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Avaliação dos Indicadores Clínicos de Risco no Desenvolvimento Infantil ao longo da psicoterapia psicanalítica pais-bebês*1 *1 Este artigo é parte da dissertação de Mestrado em Psicologia Clínica na Universidade do Vale do Rio dos Sinos – Unisinos.

Evaluation of Clinical Child Development Risk Indicators in the process of parentbaby psychoanalytic psychotherapy

Évaluation des indicateurs cliniques de risque dans le développement infantile durant une psychothérapie psychanalytique parent-bébé

Evaluación de los Indicadores de Riesgo para el Desarrollo Infantil a lo largo de la psicoterapia psicoanalítica de padres y bebé

O objetivo deste estudo é descrever os Indicadores Clínicos de Risco no Desenvolvimento Infantil ao longo da psicoterapia psicanalítica pais-bebê. Participaram da pesquisa um bebê de quatro meses no início da psicoterapia, com risco no desenvolvimento infantil — avaliado a partir do protocolo IRDI — e seus pais. Foram realizadas 30 sessões de psicoterapia pais-bebê que ocorreram ao longo de nove meses, registradas em áudio e vídeo. Foi realizada a observação dos vídeos para avaliação dos IRDIs, havendo um comparativo entre quatro momentos do processo psicoterápico: na avaliação inicial do bebê, aos três, seis e nove meses de tratamento. Os resultados apontaram que houve uma diminuição dos indicadores clínicos de risco para o desenvolvimento infantil ao longo do tratamento, e, ao final dos nove meses de psicoterapia, o bebê da pesquisa não apresentava mais indicadores de risco.

Palavras-chave:
Risco; desenvolvimento infantil; psicoterapia pais-bebê; IRDIs


Resumos

The aim of this study is to describe the Clinical Child Development Risk Indicators throughout a parent-baby psychoanalytic psychotherapy. A four-month-old baby at the beginning of psychotherapy, at risk for child development – assessed using the CDRI protocol – and his parents participated in the research. Thirty parent-baby psychotherapy sessions took place over nine months and were recorded in audio and video format. Videos were watched to assess the child development risk indicators by comparing four moments of the psychotherapeutic process: initial evaluation of the baby, at three, six and nine months of the treatment. Results showed that Clinical Child Development Risk Indicators decreased throughout the treatment and disappeared completely at the end of the nine months of psychotherapy.

Key words:
Risk; child development; parent-baby psychotherapy; child development risk indicators; IRDIs

L’objectif de cette étude est de décrire les Indicateurs Cliniques de Risque du Développement Infantile durant une psychothérapie psychanalytique parents-bébé. Un bébé âgé de quatre mois au début de la psychothérapie et qui présentait un risque du développement infantile — constaté à partir du protocole IRDI — ainsi que ses parents ont participé à la recherche. Trente séances de psychothérapie parents-bébé ont eu lieu pendant neuf mois et ont été enregistrées en audio et vidéo. Les vidéos ont été analysées afin d’évaluer les IRDIs en comparant quatre moments du processus psychothérapeutique : l’évaluation initiale du bébé, à trois, six et neuf mois de traitement. Les résultats mettent en évidence que les indicateurs cliniques de risque pour le développement infantile ont diminué durant le traitement, si bien qu’à la fin des neuf mois de psychothérapie, le bébé examiné ne présentait plus aucun indicateur de risque.

Mots clés:
Risque; développement infantile; psychothérapie parents-bébé; IRDI


El objetivo de este estudio es describir los Indicadores de Riesgo para el Desarrollo Infantil a lo largo de la psicoterapia psicoanalítica de padres y bebé. Participaron en la investigación un bebé de cuatro meses, al inicio de la psicoterapia con riesgo para el desarrollo infantil – evaluado mediante el protocolo IRDI – y sus padres. A lo largo de nueve meses, se llevaron a cabo treinta sesiones de psicoterapia entre padres e bebé, grabadas en audio y video. Los videos fueron observados para la evaluación de los IRDI, con una comparación entre cuatro momentos del proceso psicoterapéutico: en la valoración inicial del bebé y a los tres, seis y nueve meses del tratamiento. Los resultados mostraron que, a lo largo del tratamiento, hubo una disminución en los indicadores de riesgo para el desarrollo infantil y, al final de los nueve meses de psicoterapia, el bebé investigado ya no presentaba indicadores de riesgo.

Palabras clave:
Riesgo; desarrollo infantil; psicoterapia padres y bebé; IRD


Introdução

Pensar um bebê e sua estruturação é um fator amplo e instigante. É necessário compreender a interdependência entre as noções de maturação, crescimento, desenvolvimento e subjetividade. Qualquer elemento de uma delas pode ser fator de limitação para as demais e, portanto, na semiologia pediátrica, há necessidade de investigar todas essas noções (Jerusalinsky, 2018Jerusalinsky, J. (2018). Detecção precoce de sofrimento psíquico versus patologização da primeira infância: face à Lei no 13.438/17, referente ao Estatuto da Criança e do Adolescente. Estilos da Clinica, 23(1), 83-99. doi:10.11606/issn.1981-1624. v23i1p83-99.
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; Papalia & Olds, 2000Papalia, D. E., & Olds, S. W. (2000). Desenvolvimento humano. (7. ed.). Artmed.).

As variáveis presentes na formação da subjetividade da criança não dependem somente dela e de suas habilidades inatas, dependem também do outro que cuida dessa criança. A constituição da subjetividade inicia-se logo nas primeiras experiências de satisfação de necessidades do bebê (Kupfer et al., 2007Kupfer, M. C. M., Pesaro, M. E., & Degenszajn, R. D. (2007). O desenvolvimento psíquico da criança: a abordagem da psicanálise. In A. M. de U. Escobar, S. J F E Grisi, & M. H. Valente. (Orgs.), A promoção da saúde na infância. (pp. 10-20). Manole.). Nesse sentido, os 18 primeiros meses de vida são particularmente importantes (Bernardino, 2006Bernardino, L. M. F. (2006). O que a psicanálise pode ensinar sobre a criança, sujeito em constituição. Escuta.; Jerusalinsky, 2018Jerusalinsky, J. (2018). Detecção precoce de sofrimento psíquico versus patologização da primeira infância: face à Lei no 13.438/17, referente ao Estatuto da Criança e do Adolescente. Estilos da Clinica, 23(1), 83-99. doi:10.11606/issn.1981-1624. v23i1p83-99.
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; Kupfer et al., 2009Kupfer, M. C. M., Jerusalinsky, A. N., Bernardino, L. M. F., Wanderley, D., Rocha, P. S. B., Molina, S. E., et al. (2009). Valor preditivo de indicadores clínicos de risco para o desenvolvimento infantil: um estudo a partir da teoria psicanalítica. Latin American Journal of Fundamental Psychopathology, 6(1), 48-68. doi:10.1590/ S1415-47142010000100003.
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) e por isso é necessário ficar atendo “quando algo não vai bem com o bebê” (Jerusalinsky, 2015Jerusalinsky, J. (2015). Detecção precoce de sofrimento e psicopatologia na primeira infância: a desobediência dos bebês aos critérios nosográficos deve ser considerada. In M. Kamers et al. (Orgs.), Por uma (nova) psicopatologia da infância e da adolescência. (pp. 103-115). Escuta.; Jerusalinsky & Melo, 2020, p. 53Jerusalinsky, J., & Melo, M. S. (Orgs.). (2020). Quando algo não vai bem com o bebê: detecção e intervenções estruturantes em estimulação precoce. Ágalma.) e pode representar um risco no desenvolvimento infantil.

Para Kupfer e colaboradores (2009, p. 8)Kupfer, M. C. M., Jerusalinsky, A. N., Bernardino, L. M. F., Wanderley, D., Rocha, P. S. B., Molina, S. E., et al. (2009). Valor preditivo de indicadores clínicos de risco para o desenvolvimento infantil: um estudo a partir da teoria psicanalítica. Latin American Journal of Fundamental Psychopathology, 6(1), 48-68. doi:10.1590/ S1415-47142010000100003.
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, os riscos no desenvolvimento infantil podem representar tanto dificuldades de ordem subjetiva que afetam o desenvolvimento, mas não prejudicam a instalação do sujeito psíquico — como por exemplo a hiperatividade, problemas com regras e lei e enurese — como podem denunciar “problemas na constituição subjetiva” que representariam problemas estruturais no processo de constituição de sujeito, apontando um risco prognóstico em direção às psicopatologias graves da infância. É justamente sobre esta segunda opção que este estudo se baseia, numa perspectiva de perceber os riscos no desenvolvimento infantil o mais cedo possível e oferecer uma intervenção a tempo, a fim de analisar possíveis modificações nos indicadores clínicos ao longo de uma psicoterapia psicanalítica paisbebê com risco no desenvolvimento infantil.

Como é possível avaliar tão precocemente um bebê e perceber os riscos em seu desenvolvimento? Em busca desta resposta o GNP (Grupo Nacional de Pesquisa), composto por uma equipe de pesquisadores da teoria psicanalítica e estudiosos de bebês e de desenvolvimento infantil, trabalhou entre os anos 2000 e 2008 na construção da pesquisa multicêntrica sobre Indicadores Clínicos de Risco para o Desenvolvimento Infantil – IRDI. O protocolo foi construído a partir da teoria psicanalítica e da experiência clínica dos pesquisadores, que colocaram em prática os princípios teóricos estudados. O instrumento foi desenvolvido a partir da ideia já descrita anteriormente de que há os processos maturativos, de ordem neurológica e genética, e há também os processos de constituição do sujeito psíquico, e a pesquisa IRDI buscou a articulação entre desenvolvimento e sujeito psíquico (Kupfer et al., 2009Kupfer, M. C. M., Jerusalinsky, A. N., Bernardino, L. M. F., Wanderley, D., Rocha, P. S. B., Molina, S. E., et al. (2009). Valor preditivo de indicadores clínicos de risco para o desenvolvimento infantil: um estudo a partir da teoria psicanalítica. Latin American Journal of Fundamental Psychopathology, 6(1), 48-68. doi:10.1590/ S1415-47142010000100003.
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).

O IRDI é uma metodologia para avaliar bebês de zero a 18 meses e é composto por indicadores clínicos de risco ou de problemas no desenvolvimento infantil observáveis e/ou dedutíveis nesse período da vida. As questões apresentadas no protocolo contemplam quatro eixos teóricos: Suposição de Sujeito (SS), Estabelecimento da Demanda (ED), Alternância Presença/ Ausência (PA) e Função Paterna (FP). A proposta do instrumento é identificar, além do desenvolvimento do bebê, a conduta dos cuidadores diante do comportamento da criança, sendo um instrumento que examina a relação pais--bebê, a partir de um embasamento psicanalítico (Kupfer et al., 2009Kupfer, M. C. M., Jerusalinsky, A. N., Bernardino, L. M. F., Wanderley, D., Rocha, P. S. B., Molina, S. E., et al. (2009). Valor preditivo de indicadores clínicos de risco para o desenvolvimento infantil: um estudo a partir da teoria psicanalítica. Latin American Journal of Fundamental Psychopathology, 6(1), 48-68. doi:10.1590/ S1415-47142010000100003.
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; Pesaro & Kupfer, 2016Pesaro, M. E., & Kupfer, M. C. M. (2016). Um lugar para o sujeito-criança: os Indicadores Clínicos de Risco para o Desenvolvimento Infantil (IRDI) como mediadores do olhar interdisciplinar sobre os bebês. Analytica: Revista de Psicanálise, 5(9), 58-68. Recuperado de: <http://pepsic.bvsalud.org/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S2316-51972016000200006&lng=pt&tlng=pt>.
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).

Diversos estudos têm utilizado o IRDI para avaliar os bebês nos primeiros 18 meses de vida (Beltramini et al., 2014Beltrami, L., Moraes, A. B., & Souza, A. P. R. (2014). Constituição da experiência da maternidade e risco ao desenvolvimento infantil. Revista CEFAC, 16(6), 1828-1836. doi:10.1590/1982-0216201421712.
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; Bernardino & Mariotto, 2009Bernardino, L., & Mariotto, R. (2009). Detecção de riscos psíquicos em bebês de berçários de centros municipais de Educação Infantil de Curitiba. In Congresso Nacional de Educação e III Encontro Sul Brasileiro de Psicologia, Curitiba, PR, outubro.; Campana et al., 2015Campana, N. T. C., Lerner, R., & David, V. F. (2015). IRDI na Avaliação de Bebês com Problemas de Desenvolvimento Associados ao Autismo. Paidéia, 25(60), 85-93. doi:10.1590/1982-43272560201511.
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; Ferrari et al., 2017Ferrari, A. G., Fernandes, P. de P., Silva, M. da R., & Scapinello, M. (2017). A experiência com a Metodologia IRDI em creches: pré-venir um sujeito. Revista Latinoamericana de Psicopatologia Fundamental, 20(1), 17-33. doi:10.1590/1415-4714.2017v20n1p17.2.
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; Kupfer, 2007Kupfer, M. C. M. (2007). Metodologia IRDI – uma intervenção com educadores de creche a partir da psicanálise. Projeto de Pesquisa, Universidade de São Paulo, S P, Brasil.; Kupfer et al., 2009Kupfer, M. C. M., Jerusalinsky, A. N., Bernardino, L. M. F., Wanderley, D., Rocha, P. S. B., Molina, S. E., et al. (2009). Valor preditivo de indicadores clínicos de risco para o desenvolvimento infantil: um estudo a partir da teoria psicanalítica. Latin American Journal of Fundamental Psychopathology, 6(1), 48-68. doi:10.1590/ S1415-47142010000100003.
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; Moraes et al., 2015Moraes, A. S., Bronzatto, E. M. K., Lerner, R., & Kupfer, M. C. M. (2015). Effects of pediatric training for detecting signs of developmental problems. Psicologia: Ciência e Profissão, 35(2), 359-373. doi:10.1590/1982-370300252014.
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). Campana et al. (2015)Campana, N. T. C., Lerner, R., & David, V. F. (2015). IRDI na Avaliação de Bebês com Problemas de Desenvolvimento Associados ao Autismo. Paidéia, 25(60), 85-93. doi:10.1590/1982-43272560201511.
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realizaram um estudo exploratório com 43 bebês que estavam desenvolvendo um percurso autístico, comparando os resultados do IRDI e do M-CHAT — instrumento específico para autismo (Robins et al., 2001Robins, D. L., Fein, D., Barton, M. L., & Green, J. A. (2001). The Modified Checklist for Autism in Toddlers: an initial study investigating the early detection of autism and pervasive developmental disorders. Journal of Autism and Developmental Disorders, 31(2), 131-144. doi:10.1023/a:1010738829569.
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). A pesquisa demonstrou que o autismo também é um dos riscos detectado pelo IRDI. Foi realizado ainda um estudo estatístico descritivo e discutidas vinhetas clínicas, compondo uma análise nos campos coletivo e singular. As vinhetas clínicas demonstraram que o IRDI pode ser usado como um operador de leitura, auxiliando a compreensão de dinâmicas familiares e que tem potencial para orientar intervenções pontuais no momento da avaliação. Outro estudo, de Beltramini et al. (2014)Beltrami, L., Moraes, A. B., & Souza, A. P. R. (2014). Constituição da experiência da maternidade e risco ao desenvolvimento infantil. Revista CEFAC, 16(6), 1828-1836. doi:10.1590/1982-0216201421712.
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, analisou 182 mães e seus bebês nascidos a termo ou pré-termo, em um hospital universitário da região central do Rio Grande do Sul, avaliando a possível relação entre dificuldade na constituição da experiência da maternidade e a presença de indicadores de risco do desenvolvimento infantil, bem como a interferência ou não de variáveis psicossociais e obstétricas em ambos os aspectos. Foi aplicado o protocolo IRDI com todas as díades. O estudo demonstrou que a presença de dificuldades na experiência da maternidade relacionou-se estatisticamente com a presença de risco ao desenvolvimento. A pesquisa apontou que dificuldades na constituição da experiência da maternidade pode ser um importante fator para o aparecimento de indicadores de risco para o desenvolvimento infantil, pois alterações no comportamento de quem exerce a função materna se refletem já na protoconversação inicial da díade mãe-bebê, o que pode gerar risco ao desenvolvimento infantil de um modo geral, e à aquisição da linguagem em particular. Guedenay et al. (2007)Guedenay, A., Mintz, A. S., & Dugravier, R. (2007). Risques développementaux chez le nourrisson de la naissance à 18 mois. Rev Psychiatri/Pédopsychiatry. doi:10.1016/S0246-1072(07)32787-9.
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apontam que os riscos no desenvolvimento podem ser de natureza pré ou pós-natal e estão relacionados às relações pais e filhos, podendo estar ligadas a situações específicas — abuso, deficiência, depressão pós-parto ou psicopatologias parentais e/ou representar os primeiros sinais de um transtorno na infância.

Uma pesquisa, orientada por Bernardino e Mariotto (2009)Bernardino, L., & Mariotto, R. (2009). Detecção de riscos psíquicos em bebês de berçários de centros municipais de Educação Infantil de Curitiba. In Congresso Nacional de Educação e III Encontro Sul Brasileiro de Psicologia, Curitiba, PR, outubro. em Curitiba e por Kupfer et al. (2007)Kupfer, M. C. M., Pesaro, M. E., & Degenszajn, R. D. (2007). O desenvolvimento psíquico da criança: a abordagem da psicanálise. In A. M. de U. Escobar, S. J F E Grisi, & M. H. Valente. (Orgs.), A promoção da saúde na infância. (pp. 10-20). Manole. em São Paulo, buscou demonstrar a aplicabilidade do IRDI em creches, sugerindo que uma formação baseada na Metodologia IRDI poderia aguçar o olhar do educador e favorecer a promoção de saúde mental dos bebês. Essas pesquisas se justificaram a partir da importância que a creche e as escolas de educação infantil passaram a ter no cotidiano das famílias nos centros urbanos. Já a pesquisa “O impacto da Metodologia IRDI na prevenção de risco psíquico em crianças que frequentam creche no seu primeiro ano e meio de vida”, do Núcleo de Ensino, Pesquisa e Extensão em Clínica Interdisciplinar da Infância da Clínica de Atendimento Psicológico da Universidade Federal do Rio Grande do Sul – UFRGS, acompanhou 88 bebês e seus educadores, sendo que desses 88, 30 apresentavam mais de dois indicadores ausentes. Segundo o estudo, foi possível identificar que a Metodologia IRDI se mostra um potente dispositivo para a análise da configuração da saúde psíquica da criança e uma importante ferramenta para a promoção de saúde mental (Ferrari et al., 2017Ferrari, A. G., Fernandes, P. de P., Silva, M. da R., & Scapinello, M. (2017). A experiência com a Metodologia IRDI em creches: pré-venir um sujeito. Revista Latinoamericana de Psicopatologia Fundamental, 20(1), 17-33. doi:10.1590/1415-4714.2017v20n1p17.2.
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).

Importante salientar que perceber sinais iniciais de risco no desenvolvimento infantil e iniciar uma intervenção a tempo pode representar uma mudança importante no percurso de vida do bebê e de seus pais, à medida que é o período de maior plasticidade cerebral (Halpern et al., 2000Halpern, R., Giugliani, E. R. J., Victora, C. G., Barros, F. C., & Horta, B. L. (2000). Fatores de risco para suspeita de atraso no desenvolvimento neuropsicomotor aos 12 meses de vida. J Pediatr, 76(6), 421-428.; Guedenay et al., 2007Guedenay, A., Mintz, A. S., & Dugravier, R. (2007). Risques développementaux chez le nourrisson de la naissance à 18 mois. Rev Psychiatri/Pédopsychiatry. doi:10.1016/S0246-1072(07)32787-9.
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). Mazet e Houzel (1996)Mazet, P., & Houzel, D. (1996). Psychiatrie de l’enfant et de l’adolescent. Maloine. chamam a atenção para a dificuldade da reversibilidade dos distúrbios uma vez instalados, quando se trata de psicoses infantis ou estados deficitários, alertando que é essencial evitar ao máximo a instalação desses quadros: “a experiência mostrou que frequentemente a reversibilidade dos distúrbios é função da precocidade da identificação e do tratamento” (p. 547). Portanto, uma intervenção inicial pode representar a possibilidade de evitar um diagnóstico futuro, modificando, assim, não apenas a relação do bebê com seus pais, mas todo o percurso de desenvolvimento desse sujeito em plena constituição psíquica (Campanário & Pinto, 2006Campanário, I., & Pinto, J. (2006). O atendimento psicanalítico do bebê com risco de autismo e de outras graves psicopatologias. Uma clínica da antecipação do sujeito. Estilos da Clínica, 11 (21), 150-169. doi:10.11606/issn.1981-1624.v11i21p150-169.
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; Jerusalinsky, 2011Jerusalinsky, J. (2011). A criação da criança: brincar, gozo e fala entre a mãe e o bebê. Ágalma.; Kupfer et al., 2009Kupfer, M. C. M., Jerusalinsky, A. N., Bernardino, L. M. F., Wanderley, D., Rocha, P. S. B., Molina, S. E., et al. (2009). Valor preditivo de indicadores clínicos de risco para o desenvolvimento infantil: um estudo a partir da teoria psicanalítica. Latin American Journal of Fundamental Psychopathology, 6(1), 48-68. doi:10.1590/ S1415-47142010000100003.
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; Laznik, 2015Laznik, M. C. (2015). La prise en charge précocissime des bébés. Annales du IVème Séminaire International Transdisciplinaire sur le bébé: évolution, pratiques cliniques et recherche. Instituto Langage.).

Nos últimos anos os resultados de diferentes estudos confirmaram, de diferentes maneiras, a importância da intervenção a tempo nos casos de risco no desenvolvimento infantil (Laznik, 1997Laznik, M. C. (1997). Poderíamos pensar numa prevenção da síndrome autística. In D. B. Wanderley (Org.), Palavras em torno do berço (pp. 35-51). Ágalma.; 2004Laznik, M. C. (2004). A voz da sereia: O autismo e os impasses na constituição do sujeito. Ágalma.; 2015Laznik, M. C. (2015). La prise en charge précocissime des bébés. Annales du IVème Séminaire International Transdisciplinaire sur le bébé: évolution, pratiques cliniques et recherche. Instituto Langage.; Kupfer et. al., 2009Kupfer, M. C. M., Jerusalinsky, A. N., Bernardino, L. M. F., Wanderley, D., Rocha, P. S. B., Molina, S. E., et al. (2009). Valor preditivo de indicadores clínicos de risco para o desenvolvimento infantil: um estudo a partir da teoria psicanalítica. Latin American Journal of Fundamental Psychopathology, 6(1), 48-68. doi:10.1590/ S1415-47142010000100003.
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; Macedo, 2010Macedo, C. R. M. (2010). A função continente e o uso da contratransferência como instrumentos na psicoterapia de grupo com pacientes com severas perturbações no desenvolvimento do psiquismo. Vínculo, 7(2), 16-23. Recuperado de: <http://pepsic.bvsalud.org/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1806-24902010000200005>.
http://pepsic.bvsalud.org/scielo.php?scr...
; Dudzeele, 2012Dudzeele, G. C. (2012). Irene: das sensações {as emoções. Estilos da Clínica, 17(2), 306-323. Recuperado de: <http://pepsic.bvsalud.org/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1415-71282012000200009>.
http://pepsic.bvsalud.org/scielo.php?scr...
; Muratori & Narzisi, 2014Muratori, F., & Narzisi, A. (2014). Exploratory study describing 6 month outcomes for young children with autism who receive treatment as usual in Italy. Neuropsychiatr Dis Treat., 10, 577-586. doi:10.2147/NDT.S58308.
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; Gonçalves et al.; 2017Gonçalves, A. P., Silva, B., Menezes, M., & Tonial, L. (2017). Transtornos do espectro do autismo e psicanálise: revisitando a literatura. Tempo Psicanalítico, 49(2), 152-181. Recuperado de: <http://pepsic.bvsalud.org/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0101-48382017000200008>.
http://pepsic.bvsalud.org/scielo.php?scr...
; Jerusalinsky, 2018Jerusalinsky, J. (2018). Detecção precoce de sofrimento psíquico versus patologização da primeira infância: face à Lei no 13.438/17, referente ao Estatuto da Criança e do Adolescente. Estilos da Clinica, 23(1), 83-99. doi:10.11606/issn.1981-1624. v23i1p83-99.
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). Assim, o presente estudo tem como objetivo descrever os Indicadores Clínicos de Risco no Desenvolvimento Infantil ao longo do processo de psicoterapia psicanalítica pais-bebê.

Método

Delineamento e participantes

A presente pesquisa é de abordagem qualitativa e o delineamento é um estudo de caso único, exploratório e longitudinal.

Participaram do estudo um bebê com risco no desenvolvimento infantil, avaliado pelo instrumento IRDI, com quatro meses de vida no início do tratamento, o pai e a mãe desse bebê. Também participou desta coleta de dados uma psicoterapeuta com formação psicanalítica e especialização em Transtornos do Desenvolvimento na Infância, com 14 anos de experiência clínica, que realizou a intervenção proposta.

O bebê não possui outra comorbidade diagnosticada e os pais não apresentaram sintomas psiquiátricos severos que pudessem interferir drasticamente na compreensão dos instrumentos aplicados durante a pesquisa ou no próprio processo psicoterápico da tríade pais-bebê. Estes critérios foram avaliados a partir de sintomas autorrelatados e observados pela pesquisadora e pela caderneta de saúde do bebê

Instrumentos

Foram utilizados os seguintes instrumentos para coleta dos dados:

Ficha de contato inicial — ficha com dados de identificação e de contato, e informações sobre diagnóstico clínico e uso de medicação. Foi utilizada para fins de triagem.

Caderneta de saúde da criança — documento que contém dados sobre testes prévios realizados pela criança, tais como teste da orelhinha, do pezinho e do coraçãozinho e alertam para outros complicadores que podem ser critérios de exclusão do bebê na pesquisa.

IRDI – Indicadores Clínicos de Risco do Desenvolvimento Infantil — O instrumento tem por objetivo verificar indicadores clínicos para a detecção precoce de risco para o desenvolvimento e constituição psíquica na primeira infância. É composto por 31 indicadores clínicos de risco ou de problemas no desenvolvimento infantil observáveis e/ou dedutíveis nos primeiros 18 meses de vida da criança. Os indicadores são divididos a partir da faixa etária do bebê, sendo elas 0 a quatro meses incompletos, quatro a oito meses incompletos, oito a 12 meses incompletos e 12 a 18 meses incompletos. Quanto maior for o número de indicadores que não são manifestados pelo bebê ou pela mãe e o pai (indicadores ausentes), maiores são os indícios de risco no desenvolvimento infantil. Poucos indicadores clínicos de risco ausentes representam questões relacionadas às dificuldades de ordem subjetiva que afetam o desenvolvimento, mas não prejudicam a instalação do sujeito psíquico. Muitos indicadores negativos representam “problemas na constituição subjetiva” (p. 8) que abarcariam os problemas estruturais no processo de constituição de sujeito, apontando um risco prognóstico em direção às psicopatologias graves da infância, tais como os chamados Transtornos de Espectro Autista (Kupfer et al., 2009Kupfer, M. C. M., Jerusalinsky, A. N., Bernardino, L. M. F., Wanderley, D., Rocha, P. S. B., Molina, S. E., et al. (2009). Valor preditivo de indicadores clínicos de risco para o desenvolvimento infantil: um estudo a partir da teoria psicanalítica. Latin American Journal of Fundamental Psychopathology, 6(1), 48-68. doi:10.1590/ S1415-47142010000100003.
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).

O IRDI foi aplicado para verificar se o bebê estava dentro do critério de inclusão da pesquisa como um bebê que apresenta riscos no desenvolvimento infantil e, posteriormente, a fim de reavaliá-los ao longo do processo de psicoterapia.

Gravação de vídeos — durante todo o processo psicoterápico as sessões psicoterápicas foram gravadas em vídeo (30 sessões). Para esta pesquisa foram utilizados os vídeos da primeira sessão e de uma sessão aos três, seis e nove meses de tratamento, a fim de reavaliar o bebê a partir do IRDI.

Entrevista com os pais acerca das impressões do processo de psicoterapia psicanalítica pais-bebê — trata-se de uma entrevista semiestruturada, buscando coletar informações a respeito das impressões dos pais acerca da psicoterapia e das intervenções da terapeuta.

Entrevista com a psicoterapeuta acerca do processo de psicoterapia psicanalítica pais-bebê — trata-se de uma entrevista semiestruturada aplicada com a psicoterapeuta que realizou a psicoterapia durante a pesquisa, a fim de coletar informações com relação ao processo psicoterápico e às intervenções terapêuticas durante esse período.

Procedimentos de Coleta de Dados

Foi feito contato inicial com a instituição na qual se realizou a pesquisa, para obter carta de anuência. Essa instituição é uma clínica privada transdisciplinar de infância e adolescência localizada na região metropolitana de Porto Alegre. O projeto foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa (CEP) da Unisinos (CAAE no 26424619.9.0000.5344). A tríade pais-bebê que participou da pesquisa foi encaminhada por um pediatra da região que percebeu riscos no desenvolvimento a partir dos relatos da mãe sobre dificuldade de vinculação com o bebê e outras dificuldades, tais como raros contatos oculares de a bebê com a mãe, choro estridente por um longo período de tempo e irritabilidade extrema.

A tríade chegou à instituição em que foi realizada a pesquisa para a triagem e preencheu a Ficha de Contato Inicial. Os pais trouxeram a caderneta de saúde da criança para verificar outros dados do bebê, tais como apgar, teste da orelhinha e do coraçãozinho a fim de verificar critérios de inclusão e/ou exclusão para a pesquisa. Em seguida a pesquisadora realizou uma avaliação com o bebê em que se observou que havia indicadores clínicos que representavam problemas estruturais na constituição do sujeito — critério de inclusão na pesquisa. O bebê e os pais foram avaliados pelo protocolo IRDI – Indicadores Clínicos de Risco do Desenvolvimento Infantil (Kupfer et al., 2009Kupfer, M. C. M., Jerusalinsky, A. N., Bernardino, L. M. F., Wanderley, D., Rocha, P. S. B., Molina, S. E., et al. (2009). Valor preditivo de indicadores clínicos de risco para o desenvolvimento infantil: um estudo a partir da teoria psicanalítica. Latin American Journal of Fundamental Psychopathology, 6(1), 48-68. doi:10.1590/ S1415-47142010000100003.
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). Após constatar que a tríade fechava critérios para participação na pesquisa, os pais assinaram o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido. A psicoterapeuta com orientação analítica e especialização em transtornos do desenvolvimento — que faz parte da equipe da instituição em que ocorreu a pesquisa — também foi convidada para participar do estudo e assinou o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido para a psicóloga.

Na semana seguinte iniciou-se a psicoterapia psicanalítica pais-bebê semanalmente, com a tríade e a psicoterapeuta (que não é a pesquisadora). Todas as sessões foram gravadas em vídeo e as sessões dos três, seis e nove meses de tratamento foram utilizadas para reaplicação do IRDI e utilização dos dados para a presente pesquisa.

A pesquisadora participou da triagem do bebê e da entrevista com os pais (e separadamente com a psicoterapeuta) sobre as impressões acerca do processo psicoterápico, que foi realizada aos nove meses de tratamento. A psicoterapia durante os nove meses foi realizada e filmada pela psicoterapeuta e os vídeos foram assistidos posteriormente pela pesquisadora, que não participou das sessões de psicoterapia ao longo do tratamento.

Procedimentos de análise de dados

Os dados obtidos por meio dos IRDIs observados na entrevista inicial serviram como procedimento de seleção/triagem do caso. A análise dos dados obtidos por meio dos vídeos foi realizada a partir da observação das sessões gravadas, a fim de comparar e descrever os indicadores clínicos de risco no desenvolvimento infantil ao longo do processo psicoterápico, utilizando-se a sessão inicial e as sessões de três, seis e nove meses de tratamento, sendo uma avaliação realizada pela pesquisadora e discutida no grupo de pesquisa da universidade e por um grupo de especialistas da instituição na qual a psicoterapia foi realizada.

A seguir é apresentada uma breve descrição e contextualização do caso. Depois, uma síntese dos indicadores clínicos de risco no desenvolvimento infantil nos quatro momentos avaliados é mostrada, a fim de descrever o que se passou durante o tratamento.

Resultados e discussão

O bebê participante da pesquisa chegou na instituição para avaliação com quatro meses de vida. A pediatra encaminhou a família para a pesquisa porque a mãe relatava não conseguir estabelecer um vínculo com a filha. Já na entrevista inicial com a pesquisadora foi possível perceber que a bebê chorava muito, era difícil para a mãe conseguir acalmá-la, bem como não conseguia aconchegá-la em seu colo. Elis — nome fictício para descrever a bebê — parecia distante e pouco conectada com a mãe. Dentre os cinco Indicadores Clínicos de Risco no Desenvolvimento Infantil – IRDI (Kupfer et al., 2009Kupfer, M. C. M., Jerusalinsky, A. N., Bernardino, L. M. F., Wanderley, D., Rocha, P. S. B., Molina, S. E., et al. (2009). Valor preditivo de indicadores clínicos de risco para o desenvolvimento infantil: um estudo a partir da teoria psicanalítica. Latin American Journal of Fundamental Psychopathology, 6(1), 48-68. doi:10.1590/ S1415-47142010000100003.
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) respectivos à sua faixa etária, demonstrou ter os cinco ausentes no início da pesquisa, demonstrando risco máximo de problemas de constituição subjetiva, segundo o instrumento. Seguem abaixo os indicadores referentes à faixa etária de zero a quatro meses incompletos que foram observados na avaliação de Elis:

Quando a criança chora ou grita, a mãe sabe o que ela quer. A mãe de Elis não conseguia identificar um motivo para o choro da bebê e isso desesperava muito a menina. A bebê chorava bastante e a mãe tentava inúmeras formas de acalmá-la, mas não tinha sucesso.

A mãe fala com a criança num estilo particularmente dirigido a ela (manhês). Não havia uma entonação na fala da mãe dirigida a Elis. A fala era sobre a filha, mas não para a filha.

A criança reage ao manhês. Elis não reagia ao manhês porque ele também não existia na fala da mãe. Na avaliação, quando a pesquisadora se utilizava do manhês (prosódia), Elis também não se interessava muito.

A mãe propõe algo à criança e aguarda a sua reação. A mãe não aguardava a reação da bebê, embora o choro fosse tão estridente que angustiava a própria pesquisadora durante a avaliação inicial

Há trocas de olhares entre a criança e a mãe. O contato ocular era raríssimo entre ambas, praticamente inexistente. Mesmo quando Elis estava no colo da mãe, sendo ninada para dormir, ela não buscava o olhar da mãe. A mãe chegou relatando que “não conseguia fazer vínculo com a filha” e chamou muito a atenção da pesquisadora o termo vínculo utilizado pela mãe, uma vez que é um termo técnico. Gabriela — nome fictício da mãe — sentia-se angustiada por não conseguir se conectar com a filha, percebendo que ela também não buscava a mãe nessa conexão.

Na Figura 1 pode-se observar os IRDIs no início do tratamento.

Figura 1
IRDI Início do Tratamento

Nas primeiras consultas apenas mãe e filha estavam participando da psicoterapia. A partir da quarta sessão o pai passou a participar também e mostrar-se bastante envolvido.

Após um mês de psicoterapia ocorreu a chegada da pandemia de Covid-19 e os atendimentos presenciais foram suspensos. A família aceitou seguir realizando os atendimentos de forma on-line, o que ocorreu durante um mês. Nas chamadas de vídeo on-line tanto a mãe quanto o pai e a Elis estavam presentes e participavam do atendimento. Essas sessões não foram gravadas.

Tão logo a instituição retornou aos atendimentos presenciais, assim também Elis e seus pais voltaram às consultas na instituição. A família sempre se fez presente nos atendimentos e demonstrou uma ótima aliança terapêutica com a psicoterapeuta. Surgiram, ao longo do tratamento, muitas questões relacionadas a como Elis era percebida pelos pais, quais as expectativas, medos e comparações com a irmã mais velha, de seis anos. Tanto pai quanto mãe tinham uma boa capacidade cognitiva e, aos poucos, também foram conseguindo desenvolver uma capacidade empática com a filha. No início a mãe demonstrava um discurso bastante intelectualizado e uma necessidade de que tudo estivesse sob controle. Já o pai, era um pouco mais distante.

Na sessão que completava três meses de tratamento o IRDI foi reaplicado pela pesquisadora, a partir da observação da gravação da sessão, e discutido no grupo de pesquisa da universidade e com grupo de especialistas da instituição em que ocorreu a psicoterapia. No momento a bebê estava com sete meses de vida. Seguem abaixo os indicadores clínicos para a respectiva faixa etária (quatro a oito meses incompletos) e as observações realizadas.

A criança começa a diferenciar o dia da noite. A mãe conta que o sono oscila muito ainda, que algumas noites são bem agitadas, acordando de hora em hora ou ficando bastante tempo acordada e tendo mais sono durante o dia.

A criança utiliza sinais diferentes para expressar suas diferentes necessidades. Os sinais de Elis ainda são predominantemente por meio do choro não diferenciando muito sua entonação ou utilizando outras formas como puxar ou vocalizar para expressar suas necessidades.

A criança solicita a mãe e faz um intervalo para aguardar a resposta. A solicitação de Elis para a mãe é sempre por meio do choro, mas ainda é um choro mais desesperado, que não aguarda a resposta da mãe.

A mãe fala com a criança dirigindo-lhe pequenas frases. Gabriela pergunta para Elis o que ela está procurando, olhando em direção ao lugar que a filha olha. “O papazinho hoje no almoço estava gostoso, Elis?”, conta para a Renata (nome fictício da psicoterapeuta). Foram várias frases dirigidas à bebê.

A criança reage (sorri, vocaliza) quando a mãe ou outra pessoa está se dirigindo a ela. Quando a terapeuta pergunta se estava gostosa a sopinha de bolacha que a mamãe fez, falando em tom de prosódia, Elis vira a cabecinha e dá um sorriso aberto e cantado, escutando a terapeuta. Quando a mãe imita a respiração ofegante dela dizendo que está fazendo uma respiração para aliviar o estresse, também utilizando a prosódia, Elis olha para a mãe e sorri. A bebê ainda não olha para a mãe sem que a mãe lhe chame ou faça alguma sonorização cantada, mas quando a mãe usa alguma prosódia ela olha.

A criança procura ativamente o olhar da mãe. Ainda não há uma procura ativa do olhar de Elis para a mãe a não ser quando a mãe faz uma sonorização especial com a boca. A bebê ainda parece evitar o olhar da mãe.

A mãe dá o suporte às iniciativas da criança sem poupar-lhe o esforço. A mãe conta durante a sessão que às vezes dão uma judiada em casa colocando os brinquedos de interesse mais longe para ver se ela vai. Realmente a mãe faz esse comportamento durante a sessão.

A criança pede a ajuda de outra pessoa sem ficar passiva. Elis ainda não faz a solicitação de outra forma que não seja o choro com o desconforto. Ela não vai em direção da mãe para pegá-la no colo, por exemplo. Ela chora, parada. Também não estende os bracinhos pedindo colo.

Percebe-se que, após três meses de tratamento, os indicadores clínicos de risco ausentes diminuíram. Dos oito indicadores para a idade da Elis, cinco estão ausentes. Os indicadores 6, 7, 8, 11 e 13 ainda permanecem ausentes, representando risco no desenvolvimento. Três dos indicadores (9, 10 e 12) já estão presentes. Segue abaixo figura 2 com os percentuais de ausência e presença de indicadores nesse período.

Figura 2
IRDI Três meses de tratamento

Importante pontuar que cinco indicadores ausentes em um bebê de sete meses de vida é um alerta importante de que algo não vai bem com ele. Segundo estudos realizados por Kupfer et al. (2009)Kupfer, M. C. M., Jerusalinsky, A. N., Bernardino, L. M. F., Wanderley, D., Rocha, P. S. B., Molina, S. E., et al. (2009). Valor preditivo de indicadores clínicos de risco para o desenvolvimento infantil: um estudo a partir da teoria psicanalítica. Latin American Journal of Fundamental Psychopathology, 6(1), 48-68. doi:10.1590/ S1415-47142010000100003.
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, bebês com dois ou mais indicadores ausentes até 18 meses de idade apresentaram risco de constituição psíquica ou problemas de desenvolvimento após os três anos de idade.

Aos três meses de tratamento, embora a mãe já esteja utilizando o manhês no que parece ser uma imitação das intervenções da psicoterapeuta, e Elis tenha respondido a essas investidas, ainda não há uma busca ativa da bebê para a mãe e os choros ainda estão presentes e são constantes, sem ter entonações diferentes ou outras formas de solicitar atenção ou ajuda. A rotina de sono ainda é desorganizada, o que cansa e gera angústia na mãe.

Aos seis meses de tratamento, outra avaliação foi realizada. Elis estava com dez meses de vida. Segue abaixo os indicadores clínicos de risco respectivos da faixa etária em que a bebê se encontrava (oito a 12 meses incompletos) no momento da avaliação e as observações relacionadas ao comportamento da bebê e de seus cuidadores com relação aos respectivos indicadores.

A mãe percebe que alguns pedidos da criança podem ser uma forma de chamar a sua atenção. A mãe ainda atribui os comportamentos menos adequados a uma teimosia ou personalidade forte de Elis, não conseguindo perceber como uma maneira de a menina chamar sua atenção ou uma exploração de ambiente e comportamento. “Ela é teimosinha, quer ir onde não pode”.

Durante os cuidados corporais, a criança busca ativamente jogos/brincadeiras amorosas com a mãe. A mãe relata que ainda durante o banho e a alimentação é preciso ser mais rápida para que Elis não se incomode. Tentam finalizar logo para não haver choros. Não parece haver brincadeiras e jogos entre mãe e filha nesses momentos, talvez porque a mãe ainda fique tensa nessas situações devido às experiências conturbadas que ocorreram anteriormente.

A criança demonstra gostar ou não de alguma coisa. Elis demonstra claramente os brinquedos que gosta ou não gosta na sessão, dando preferência ao pandeirinho e a outro chocalho que a mãe apelidou de alteres. Gabriela conta das preferências na alimentação e relata que quando ela não gosta “serra a boquinha” e não abre de jeito nenhum para comer.

Mãe e criança compartilham uma linguagem particular. Quando Elis pega o pandeirinho de brinquedo, já começam a cantar aquela que dizem que é a música dela, um “Lelelele” que também lembra o apelido da menina, que é Lelê. Em outro momento a mãe diz para a filha: “faz moça bonita” e ela pega a mão da mãe e fica de pé. Ficar de pé é “fazer moça bonita” na linguagem particular das duas.

A criança estranha pessoas desconhecidas para ela. Quando outra profissional que não a psicoterapeuta que acompanha o caso faz uma gracinha para Elis na recepção da clínica antes da consulta, ela desvia o olhar e chora.

A criança possui objetos prediletos. Logo que Elis chega na sala de atendimento, quer ir para o chão e pegar o brinquedo que sempre brinca. A mãe, inclusive, brinca dizendo que faz uma semana que ela não realiza os exercícios com os alteres e por isso foi direto em direção ao brinquedo. Alteres é o nome que deram para um chocalho que parece o objeto usado em academias de musculação e que Elis sempre escolhe como um dos brinquedos a explorar nas consultas.

A criança faz gracinhas. Durante a sessão Elis força uma tosse e a psicoterapeuta diz: “opa”. Ela acha engraçado e faz força para tossir várias vezes para chamar a atenção da psicoterapeuta, sorrindo sempre que ela diz “opa”.

A criança busca o olhar de aprovação do adulto. Quando Elis mexe o chocalho (que a mãe apelidou de alteres), ela olha para os pais para verificar se estão olhando para aquilo que ela está fazendo.

A criança aceita alimentação semissólida, sólida e variada. Elis já come alimentos sólidos, semissólidos e líquidos, demonstrando suas preferências. A mãe relata que ela prefere iogurte a frutinhas e que está se interessando por aquilo que os pais estão comendo, embora tenha alguns alimentos que ela não tolera e precisam estar disfarçados na comida.

Aos seis meses de tratamento os indicadores 14 e 15 ainda estão ausentes, representando 29% de ausência nesse período. No entanto, 71% dos indicadores já estão presentes, conforme ilustra a Figura 3. Vale destacar novamente que, segundo Kupfer et al. (2009)Kupfer, M. C. M., Jerusalinsky, A. N., Bernardino, L. M. F., Wanderley, D., Rocha, P. S. B., Molina, S. E., et al. (2009). Valor preditivo de indicadores clínicos de risco para o desenvolvimento infantil: um estudo a partir da teoria psicanalítica. Latin American Journal of Fundamental Psychopathology, 6(1), 48-68. doi:10.1590/ S1415-47142010000100003.
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, dois indicadores ausentes até os 18 meses do bebê, representa riscos no desenvolvimento infantil às psicopatologias futuras.

Figura 3
IRDI Seis meses de tratamento

Ao longo do tratamento o pai de Elis se aproximou dela e construiu um vínculo mais consistente com a filha, sendo também uma excelente rede de apoio para a mãe. Elis diminuiu seus indicadores de risco no desenvolvimento infantil, aumentando a interação num primeiro momento com a psicoterapeuta e, em seguida, com a mãe e o pai. A família relatava que Elis adorava o espaço da terapia, o que se pode pensar que também é uma forma de manifestar que os pais se sentiam muito bem no setting terapêutico.

O pai e a mãe foram demitidos dos seus respectivos trabalhos ao longo do tratamento e contaram com o apoio da psicoterapia também nesse momento. A família tinha uma reserva financeira, o que fez com que as demissões não se tornassem tão ansiogênicas. Em virtude de estarem todos em casa, os pais se aproximaram muito da Elis nesse período e demonstraram um olhar atento à menina. Um mês antes do término da pesquisa o pai tinha se recolocado profissionalmente.

Tanto a relação da mãe quanto a relação do pai com a psicoterapeuta eram muito boas e ambos participavam ativamente das consultas, trazendo dúvidas, informações e ansiedades. Na última sessão registrada para este trabalho, Elis estava com um ano e um mês e já estava caminhando. Os primeiros passos que a menina deu sozinha, segundo a mãe, ocorreram numa sessão de psicoterapia, o que parece bastante representativo para o caso. Elis também já falava várias palavrinhas e buscava o pai e a mãe para brincarem com ela durante a sessão.

Seguem abaixo os indicadores clínicos de risco no desenvolvimento infantil avaliados de acordo com a faixa etária que Elis se encontrava ao término desta pesquisa (12 a 18 meses incompletos) e os comportamentos apresentados. A bebê estava com um ano e um mês completos na última avaliação realizada.

A mãe alterna momentos de dedicação à criança com outros interesses. Na última sessão a mãe conseguia se voltar para a terapeuta r contar alguns fatos, deixando Elis pela sala livremente. Foi possível perceber que a mãe estava tranquila falando com a psicoterapeuta enquanto deixava aos cuidados do pai o olhar atento à filha. Elis tentava abrir gavetas, subir no sofá, entre outras explorações do ambiente que são características dessa faixa etária.

A criança suporta bem as breves ausências da mãe e reage às ausências prolongadas. A mãe sai da sala e se dirige ao banheiro. Elis segue brincando com a terapeuta com entusiasmo. No entanto, quando a mãe retorna à sala, Elis corre em direção a ela, demonstrando que sentiu sua falta.

A mãe oferece brinquedos como alternativas para o interesse da criança pelo corpo materno. Elis já não mama mais no peito e a mãe demonstra certa facilidade em distrair a filha com brinquedos e brincadeiras que já foram realizadas, inclusive em outras sessões da psicoterapia. Na sessão do 9o mês de tratamento, a mãe pega o pandeiro para distrair a filha e começa a cantar o “Lererere” e a filha logo se interessa e dança com ela.

A mãe já não se sente mais obrigada a satisfazer tudo o que a criança pede. Quando Elis se dirige até a bolsa da mãe, esta pergunta se ela quer água. Elis repete “aua” e a mãe lhe dá a mamadeira. Em seguida, Elis mexe novamente na bolsa querendo pegar a carteira da mãe e ela responde “não, essa aqui é minha, a tua é a água”.

A criança olha com curiosidade para o que interessa à mãe. O interesse de Elis pela bolsa da mãe, conforme descrito no indicador acima, é uma forma de avaliar este indicador.

A criança gosta de brincar com objetos usados pela mãe e pelo pai. Elis tenta pegar a bolsa, a carteira e os óculos de sol da mãe durante a sessão, embora estivesse à disposição muitos brinquedos com os quais a menina já estava brincando.

A mãe começa a pedir à criança que nomeie o que deseja, não se contentando apenas com gestos. A mãe diz “A Elis quer água?” e a Elis repete “Aua” e então a mãe entrega a água para a filha. Quando Elis pega o cachorrinho de brinquedo para brincar, a mãe pergunta: “Como o cachorro faz?” e Elis responde “auauaua”.

Os pais colocam pequenas regras de comportamento para a criança. Os pais usam a expressão “nananã” para dizer não para Elis quando ela se aproxima ou mexe em algum lugar que não deve, como a bolsa, a chave e algumas gavetas de documentos da psicoterapeuta.

A criança diferencia objetos maternos, paternos e próprios. Quando Elis mexe na bolsa e nos óculos da mãe, ela vai indo em direção aos mesmos e olha para a mãe para ver qual será sua reação. O mesmo não ocorre com o pandeiro e outros brinquedinhos que estão à disposição na sala, o que demonstra a diferenciação do que é dela e aquilo que é da mãe. Ao término da sessão a mãe diz para Elis pegar o “papato” dela e a menina vai em direção ao mesmo para pegá-lo e entregá-lo à Gabriela para colocar de volta no pezinho.

Aos nove meses de tratamento, 100% dos IRDIs estão presentes, conforme ilustra a Figura 4. Elis finalmente não apresenta mais risco no desenvolvimento infantil.

Figura 4
IRDI Nove meses de tratamento

Conforme já aponta a literatura, foi perceptível o impacto da psicoterapia pais-bebê para o aumento da sensibilidade materna (Cramer et al., 1990Cramer, B., Robert-Tissot, C., Stern, D. N., Serpa-Rusconi, S., Muralt, M., Besson, G., Palacio-Espasa, F., Bachmann, J. P., Knauer, D., Berney, C., & D’arcis, U. (1990). Outcome evaluation in brief mother-infant psychotherapy: a preliminary report. Infant Mental Health Journal, 11(3), 278-300.; Gomes, 2007Gomes, A. (2007). Malformação do bebê e maternidade: impacto de uma psicoterapia breve pais-bebê para as representações da mãe. Tese (Doutorado), Universidade Federal do Rio Grande do Sul, RS, Brasil.) e, nesse caso, também paterna, ao longo do processo psicoterápico dessa tríade. No início da psicoterapia Elis chorava por muito tempo durante as consultas e a mãe e o pai não conseguiam tranquilizá-la. Aos poucos os pais foram diminuindo a ansiedade e buscando escutar aquilo que a filha precisava, mostrando-se mais sensíveis às necessidades dela e se sentindo correspondidos. Na sessão 24 a psicoterapeuta pergunta como eles têm se sentido com relação a esse vínculo com a Elis, quando relatam que estavam brincando com ela durante o banho e a mãe responde:

Ah, libertador, né? É muito bom poder interagir com ela assim, fazer essas coisas que antes eu pensei em que momento isso ia ser possível, né, o que eu poderia fazer pra chegar mais próximo dela, né. E agora eu consigo e o melhor é que ela também curte.

Ao final dos nove meses de tratamento a pesquisadora perguntou aos pais — na entrevista sobre as impressões acerca da psicoterapia — como foi o processo de terapia. A resposta ilustrou não apenas o processo de terapia, mas também o desenvolvimento de Elis:

Mãe – Ela tinha um olhar perdido e agora vemos nela um olhar apaixonado que eu achei que nunca iria conseguir ver (...) foi muito bom entender ela, adotamos outra postura, vimos as coisas de um jeito diferente e uma forma de pensar diferente. Parecia que nós não tínhamos vínculo. Parecia que ela não estava fazendo parte e a gente teve que mudar para ela fazer parte também.

É possível perceber a mudança não apenas na bebê da pesquisa como — e principalmente — no comportamento dos pais com relação a essa filha. Segundo Soulé (2004)Soulé, M. (2004). Une ardente obligation: la prévention précoce. In Dugnat, M. (Org.), Prévention précoce, parentalité et périnatalité. Érès., é preciso atentar para “a emergência de uma demanda mascarada”, quando o indicador alerta para a existência de uma necessidade que a família não consegue expressar e que “caberia então ao profissional ajudá-la a formulá-la ou fazê-la emergir de um outro modo” (p. 40). Esse foi o trabalho da psicoterapeuta no processo psicoterápico de Elis e seus pais numa intervenção inicial que possibilitou que os indicadores clínicos de risco fossem gradativamente diminuindo e se extinguindo. Os pais se sentiam mais próximos dessa filha, conseguiam interagir melhor e recebiam uma resposta de Elis às suas tentativas de interação, demonstrando uma abertura efetiva para a entrada dessa criança na família, reconhecendo-a como um sujeito diferente deles e com suas próprias necessidades.

Segundo a psicoterapeuta que realizou a psicoterapia, quando foi perguntada se percebeu mudanças em Elis ao longo do tratamento, ela respondeu:

Houve muitas mudanças, houve um crescimento e desenvolvimento bem significativo. Inicialmente tinham muitas questões que me preocupavam em termos de constituição psíquica dela e da forma como os pais viam Elis. Aquele choro constante que não acalmava, o sono que não acontecia e fui vendo o quanto a Elis ia respondendo às intervenções e um holding para a mãe e o pai foi ajudando-os a decodificar ela, dando outros sentidos, encontrando sentidos (...) quem era a Elis, o que ela precisava. Que bom que a Elis chegou cedo para tratamento, pois tinha ainda uma apetência para a relação, embora a angústia estivesse tomando conta dela e dos pais. Não tinha espaço psíquico para um lugar dela. Eles estavam reagindo e não pensando. Sem a psicoterapia poderia ter ficado no risco da constituição psíquica, pois ela estava se fechando e os pais também.”

Sabe-se que o bebê sofre mudanças expressivas nos primeiros meses, como o surgimento do sorriso social, que é uma forma de comunicação intencional, alicerçada nas primeiras trocas intersubjetivas estabelecidas com adultos e que possui reflexos na cognição social e aquisição da linguagem (Ferrari, Piccinini & Lopes, 2007Ferrari, A. G., Piccinini, C. A., & Lopes, R. S. (2007). O bebê imaginado na gestação: aspectos teóricos e empíricos. Psicologia em Estudo, 12(2), 305-313. doi:10.1590/ S1413-73722007000200011.
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). Sabe-se também que tais características dos bebês se combinam de forma complexa e singular com as possibilidades do adulto para cuidar e interagir de formas distintas e a partir das bases culturais próprias de seus cuidadores (Lavelli & Fogel, 2005Lavelli, M., & Fogel, A. (2005). Developmental changes in the relationship between the infant’s attention and emotion during early face-to-face communication: the 2-month transition. Dev Psychol, 41(1), 265-80. doi:10.1037/0012-1649.41.1.265.
https://doi.org/10.1037/0012-1649.41.1.2...
; Parlato-Oliveira, 2010Parlato-Oliveira É. (2010). Como falam os bebês? Explorações sobre a fala e o campo da linguagem na clínica de bebês. In D. C. Barbosa & É. Parlato-Oliveira (Orgs.), Psicanálise e clinica com bebês: sintoma, tratamento e interdisciplina na primeira infância. Instituto Langage.). A partir do trabalho da psicoterapia a tríade pais-bebê foi percebendo novas possibilidades para além das dificuldades que estavam presentes e construindo uma forma nova de “maternar” e “paternar” a partir do bebê que se fazia presente. Elis também foi percebendo as possibilidades que eram oferecidas a ela e o desenvolvimento passou a acontecer de maneira gradual, e que os indicadores de risco foram se extinguindo.

Considerações finais

Tendo em vista que o objetivo desta pesquisa era descrever os Indicadores Clínicos de Risco no Desenvolvimento Infantil ao longo do processo de psicoterapia psicanalítica pais-bebê, percebeu-se que houve uma mudança ao longo do processo, diminuindo gradativamente os IRDIs nesses nove meses de tratamento. Sabe-se que múltiplos fatores podem ter interferido no comportamento dos indicadores, tais como crescimento e desenvolvimento do bebê e fatores externos ao processo de psicoterapia. No entanto, é importante salientar que Elis chegou para tratamento aos quatro meses de vida apresentando cinco de um total de cinco indicadores clínicos de risco e que ao longo da psicoterapia esses IRDIs foram desaparecendo e tanto os pais quanto a psicoterapeuta atribuem ao tratamento grande parte do sucesso no desenvolvimento da menina e, porque não, dos pais.

Outros estudos seriam necessários para verificar como outros bebês com risco se comportariam diante dessa mesma psicoterapia, tendo em vista que cada sujeito é único e as histórias familiares são singulares. No entanto, acompanhar um bebê com risco tão evidente no desenvolvimento e perceber a modificação gradativa dos IRDIs ao longo do tratamento dá indícios importantes de que o instrumento é sensível às modificações ocorridas com o bebê e sua família e que uma psicoterapia psicanalítica pais-bebê com risco no desenvolvimento infantil pode trazer muitos benefícios quando iniciada a tempo, representando possíveis mudanças no prognóstico de uma criança.

  • *1
    Este artigo é parte da dissertação de Mestrado em Psicologia Clínica na Universidade do Vale do Rio dos Sinos – Unisinos.

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Editor/Editor: Prof. Dr. Nelson da Silva Jr.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    15 Ago 2022
  • Data do Fascículo
    Apr-Jun 2022

Histórico

  • Recebido
    06 Mar 2022
  • Revisado
    08 Abr 2022
  • Aceito
    19 Abr 2022
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