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Do corpo da mulher ao corpo do social

From the female body to the social body

“O que quer a mulher?” Esta não é só uma pergunta freudiana por excelência, mas também uma questão presente na sociedade e que Cristina Lindenmeyer, psicanalista, professora na Universidade Paris VII Diderot e pesquisadora ligada ao centro de pesquisa “Santé connectée et humain augmenté” [Saúde conectada e humano aumentado] do Instituto das Ciências das Comunicações do CNRS, quer manter aberta em seu último livro Les embarras du féminin.2 1 Este livro será traduzido para a língua portuguesa nos próximos meses. Esse livro é tanto uma reflexão sobre a mulher, seus desejos e seu corpo, quanto uma elaboração psicanalítica sobre as práticas médicas tecnocientíficas da contemporaneidade, as quais mostram a riqueza do diálogo possível entre o corpo feminino e o corpo social.

Cristina Lindenmeyer apresenta, desde o prefácio, uma epistemologia rica e minuciosa, necessária para que a psicanálise possa refletir sobre o que acontece no campo médico. Sua experiência como psicanalista a coloca diante dos desafios contemporâneos como o câncer feminino, a anorexia, a cirurgia estética e a protetização do corpo tido como deficiente, como pode-se observar no relato de quatro casos que a autora acompanhou. Seu cuidado clínico contribui para que repensemos conceitos de psicanálise como trauma, fantasma e sexualidade infantil, situação de desamparo original, complexo de castração.

No primeiro capítulo, “A angústia de Talion, uma figura do câncer feminino”, Cristina Lindenmeyer nos sugere questionar como o sujeito vivencia uma doença somática, momento em que vem reatualizar seus conflitos inconscientes. Nesse sentido, ela reafirma a importância da presença dos/as psicanalistas nos hospitais, a fim de que os pacientes possam ter a oportunidade de falar sobre o sofrimento despertado em suas psiques pelos corpos adoecidos. Sua posição pode ser colocada em diálogo com a posição de Tourinho (2019)Tourinho, M. L. M. (2019). Abordagem psicanalítica do sofrimento nas instituições de saúde. São Paulo, SP: Zagodoni., que indica a importância de transformar o trabalho do/a psicanalista nas instituições de saúde “em uma oportunidade cuidadosa e privilegiada para a ampliação e avanço do escopo teórico da própria psicanálise e, consequentemente, para a produção e a transmissão de novos saberes produzidos por meio da pesquisa na área” (p. 15). Assim, a autora sugere e desenvolve a ideia de que o câncer feminino recoloca em jogo “a complexidade da instauração da sexualidade feminina” (p. 74).

Ao lermos esse livro, é possível perceber constantemente a presença do trabalho de Cristina Lindenmeyer sobre a transferência. Esse tema é tratado de maneira muito inovadora por meio da apresentação do caso de Adèle, uma jovem mulher anoréxica. A dimensão da relação mãe-filha - com todos os seus desafios de identificação, de ódio e de amor que aparecem na relação transferencial/contratransferencial - é destacada pela psicanalista, que a inscreve tanto pelo lado narcisista quanto pelo lado social, da Kultur.

Enquanto o sujeito anoréxico é o mesmo que destaca o fracasso da defesa histérica (isto é, da defesa fálica), Cristina Lindenmeyer se pergunta, no terceiro capítulo, sobre a figura contemporânea da histeria. Afinal, podemos dizer que, embora o/a histérico/a de Sigmund Freud não apareça mais nos consultórios dos/as psicanalistas, isso não significa que ele/a desapareceu. De acordo com a autora, a cirurgia estética pode ser inscrita como uma solução histérica, contudo, é uma solução precária aos sujeitos que continuam jogando a essa mascarada feminina, ao aparência em detrimento do serem. A partir do caso clínico de Aurore, assim como apoiando-se em autores como Hélène Parat, Maria Torok e Joyce McDougall, Cristina Lindenmeyer, nos oferece a oportunidade de pensar o Édipo e a sexualidade infantil sob um outro prisma que o fálico, reiterando a importância do tempo pré-Édipo e a relação com a figura da mãe.

No último capítulo do livro, “‘Reparar’ o corpo feminino: o futuro de uma ilusão moderna”, a psicanalista desenvolve suas contribuições - iniciadas em obra anterior3 2 Cristina Lindenmeyer, L’humain et ses prothèses. Paris: Editions CNRS, 2017. - sobre a modificação, reparação e aumento do sujeito. Apoiando-se especialmente na análise do caso da Mathilde (menina com agenesia do braço e que colocou uma prótese) e de Aimée Mullins (mulher amputada nas duas pernas e que é muito midiatizada), Cristina Lindenmeyer destaca que essas “reparações” do corpo podem, igualmente, ser apreendidas pelos sujeitos como “aumentos” de seus corpos. Nesse sentido, dois discursos e práticas podem aparecer: de um lado, o orgulho e a promoção das vantagens de uma prótese; de outro, o retrato das próteses que não fazem parte do próprio corpo e que podem, dessa forma, se inscreverem como um objeto fetiche. As interpretações da autora permitem o seu resgate e sua reintrodução da noção de um “Deus protético” - anunciada em 1929 por Sigmund Freud em “O mal-estar na civilização”, sobre o fato de que a protetização do ser humano “às vezes, ainda lhe causam muitas dificuldades”.

Como um todo, esse livro consiste em um aporte excepcional, não somente para a psicanálise e para os/as psicanalistas que atuam em hospitais e consultórios, mas também contribui aos/às pesquisadores/as da área em geral. Sua riqueza se encontra também na atualização, pessoal e profunda, das interrogações da Cristina Lindenmeyer diante de sintomas e comportamentos no tratamento psicanalítico, por vezes violentos, frequentemente incom-preensíveis: “Às vezes, eu gostaria de achar explicações objetivas, médicas ou psicológicas, para parar a angústia e o sentimento de impotência que invadem estes momentos, mas é justamente nestes momentos que não é possível ceder às ‘identificações imaginárias contratransferenciais’, como Pierre Fédida enfatiza” (p. 99).

Além de ser um livro sobre a mulher e seu corpo na contemporaneidade, essa obra é uma porta aberta e um chamado aos/às psicanalistas e pesquisadores/as para que se engajem tanto a pensar o sujeito em nossa sociedade, como também sobre as posições do sujeito frente às práticas científicas atuais. Enquanto a medicina se apressa em procurar, por todos os caminhos possíveis, a supressão dos sintomas, respondendo assim ao discurso manifesto dos/as pacientes, a psicanálise é testemunha de uma outra temporalidade, a temporalidade do inconsciente, nos levando a escutar, em contratempo, esses sintomas que podem ter um discurso subjetivo, singular, e que podem precisar de algo além do “ticket de benefício” (Lacan, 1966Lacan, J. (1966). O lugar da psicanálise na medicina. Opção Lacaniana, 32, São Paulo, dez. 2001./2001).

  • 1
    Este livro será traduzido para a língua portuguesa nos próximos meses.
  • 2
    Cristina Lindenmeyer, L’humain et ses prothèses. Paris: Editions CNRS, 2017.
  • Citação/Citation: Bergheimer, S. (2020, mar.). Do corpo da mulher ao corpo do social. Resenha do livro Les embarras du féminin. Revista Latinoamericana de Psicopatologia Fundamental, 23(1), 161-165. http://dx.doi.org/10.1590/1415-4714.2020v23n1p161.11.
  • Copyright: © 2009 Associação Universitária de Pesquisa em Psicopatologia Fundamental/University Association for Research in Fundamental Psychopathology. Este é um artigo de livre acesso, que permite uso irrestrito, distribuição e reprodução em qualquer meio, desde que o autor e a fonte sejam citados / This is an open-access article, which permits unrestricted use, distribution, and reproduction in any medium, provided the original authors and sources are credited.

Referências

  • Freud, S. (1996). O mal-estar na civilização. In Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud (Vol. 21). Rio de Janeiro, RJ: Imago. (Trabalho original publicado em 1929).
  • Lacan, J. (1966). O lugar da psicanálise na medicina. Opção Lacaniana, 32, São Paulo, dez. 2001.
  • Tourinho, M. L. M. (2019). Abordagem psicanalítica do sofrimento nas instituições de saúde São Paulo, SP: Zagodoni.
Editora/Editor: Profa. Dra. Marta Regina de Leão D’Agord

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    22 Abr 2020
  • Data do Fascículo
    Jan-Mar 2020

Histórico

  • Recebido
    30 Out 2019
  • Aceito
    10 Jan 2020
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