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Do clima e das doenças do Brasil ou estatística médica deste Império

Climate and diseases in Brazil or medical statistics in the Empire

RESENHAS DE LIVROS

Tradução de Renato Aguiar; revisão técnica de Ângela Porto e Ana Maria Galdini Raimundo Oda

Rio de Janeiro: Fiocruz, 2009

(Coleção História e Saúde, Clássicos & Fontes)

Do clima e das doenças do Brasil ou estatística médica deste Império

Os estudiosos interessados na melhor compreensão do Oitocentos brasileiro acabam de ganhar um precioso presente - a publicação da tradução brasileira do clássico da bibliografia médica do século XIX, Do clima e das doenças do Brasil ou estatística médica deste Império, do médico francês Joseph François Xavier Sigaud. A publicação de uma obra que é referência fundamental para a história do saber médico e do estabelecimento do seu campo no Brasil é motivo de aplauso também pela sua caprichosa apresentação - tradução cuidadosa, acompanhada de dois importantes textos introdutórios, que nos ajudam a compreender a obra de Sigaud nos debates do seu tempo, nos saberes que ela incorpora, e difunde e naquilo que ela inova e se abre ao futuro.

Publicado originalmente em Paris, em 1844, o livro cristaliza a intensa circulação de pessoas, bens, ideias e impressos que caracterizou o século XIX. Dois grandes vetores marcaram a intensificação dessa zona de contato entre a Europa e a América: os conflitos que marcaram a crise do Antigo Regime, na primeira metade do século, e as grandes correntes migratórias de trabalhadores, na segunda. Viagens, migrações, diásporas, significavam também novas formas de colocar em tela as relações entre as pessoas e o meio natural, de pensar os desafios da adaptabilidade humana aos diferentes ambientes e climas, e o efeito dessas travessias sobre o corpo e a mente dos seres humanos que a elas se expunham.

Este livro expressa bem esse momento, inscrito na trajetória de seu autor e no tema de seu estudo. Joseph François Xavier Sigaud, nasceu em Marselha em 1796, no fragor da crise revolucionária, e veio para o Brasil em 1825, ano do reconhecimento das independências americanas pelas nações europeias. Com períodos intermitentes de estadia na Europa, aqui viveu a maior parte da sua vida, vindo a falecer no Rio de Janeiro em 1856. Era profissional de grande prestígio, e médico particular de D. Pedro desde a juventude do monarca. Não era, entretanto, homem de ficar confinado às sociabilidades corteses. Foi também incansável jornalista, fundador e colaborador de importantes órgãos de imprensa no nascente espaço público letrado do Império. Seu jornal O Propagador das Ciências Médicas (Rio de Janeiro, 1827-1828) é considerado o primeiro periódico médico nacional. Foi um dos redatores do Semanário de Saúde Pública (1831-1833), editor do Diário de Saúde (1835-1836), e colaborador da Revista Médica Fluminense (1835-1840). Ele foi também um dos cofundadores da Aurora Fluminense e do Jornal do Commercio, o mais importante órgão de grande imprensa do Império Brasileiro. Foi militante das grandes causas reformadoras - a humanização do tratamento de alienados, a criação de cemitérios públicos, a introdução do método braile para o ensino dos cegos. Era membro de sociedades médicas em Marselha, Montpellier, Loire, Genebra e Paris. Fundou e dirigiu a Academia Imperial de Medicina do Rio de Janeiro. Foi fundador e membro do Institut de France e do Instituto Histórico e Geográfico do Brasil. Fundou e dirigiu o Instituto dos Jovens Cegos do Rio de Janeiro, foi cavaleiro da Legião de Honra (França) e da Ordem do Cruzeiro do Sul (Brasil).

A compreensão histórica do livro pede que olhemos para o seu tema - o Império brasileiro, que se afirmava como única monarquia na América, com a ascensão ao trono de D. Pedro II. A década de 1840, momento de emergência do livro, veria também o recrudescimento das pressões inglesas pelo fim do tráfico africano, a primeira discussão da Lei de Terras (1843), tematizando a possibilidade da atração de colonos europeus como forma alternativa e complementar à escravidão. Na linguagem da época, tratava-se da relação entre colonização e imigração, tema que aparecia também na França com outras significações, quando esta intensificava a sua segunda etapa de expansão colonial. O Congresso de História do Institut de France, de 1844, na classe da qual era membro o dr. Sigaud tinha como o primeiro dos doze temas a serem tratados pelos estudiosos: pesquisar as influências exercidas pelo clima, os hábitos, a dieta e o temperamento sobre a duração da vida humana; o terceiro pretendia comparar os sistemas de colonização dos gregos, gauleses, germânicos e romanos; enquanto o nono perguntava-se que influência pode ter a forma presente das instituições do Brasil sobre os outros Estados da América Meridional. História comparada das colonizações antigas e modernas, a influência de climas diferentes sobre a vida dos seres humanos, a viabilidade da monarquia na América, são temas que sugerem as visões polissêmicas da colonização e da imigração nos dois mundos. Elas perpassam, de certo modo, este livro.

Do clima e das doenças do Brasil sintetiza e articula informações científicas e históricas recolhidas na Europa e no Brasil aos conhecimentos oriundos de sua própria prática nos trópicos. A ciência portuguesa antiga e coeva aparece aí ao lado daquela oriunda dos viajantes europeus de vários quadrantes, os conhecimentos dos jesuítas, as doenças e as práticas de cura de índios, escravos e caboclos. Ela coloca também temas caros à agenda nacional do século XIX: raça e clima. Colocar a ênfase sobre o clima (e não sobre as raças) não foi aí obra do acaso, mas escolha que inclinava a balança do debate para a viabilidade da nação. Pensar os deslocamentos espaciais das distintas raças como possíveis apontava, de certo modo, na mesma direção. Por outro lado, tematizar a nostalgia, a tristeza, o banzo e até o suicídio como patologias do dépaysement acrescentava uma nota trágica às versões edulcoradas sobre a brandura da escravidão brasileira. Razões de sobra para lermos esse clássico.

WILMA PERES COSTA

Socióloga e historiadora; professora de História do Brasil Império na UNIFESP - Universidade Federal de São Paulo (São Paulo, SP, Brasil); autora do livro A espada de Dâmocles, o exército, a Guerra do Paraguai e a crise do Império (São Paulo: Hucitec, 1996) e de vários artigos sobre as relações intelectuais entre a França e o Brasil no século XIX. O mais recente, "Entre tempos e mundos, Chateaubriand e a outra América", foi publicado pela revista eletrônica Almanack Braziliense, n. 11, 2010, e está disponível no endereço <http://www.almanack.usp.br/neste_numero/index.asp?numero=11>

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e-mail: wilma_peres@uol.com.br

  • Do clima e das doenças do Brasil ou estatística médica deste Império

    Joseph François Xavier Sigaud
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      25 Mar 2011
    • Data do Fascículo
      Mar 2011
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