Acessibilidade / Reportar erro

Além dos cuidados básicos

Barbieri, Natália Alves; Baptista, Carolina Guimarães de. Travessias do tempo: acompanhamento terapêutico e envelhecimento. São Paulo: Casa do Psicólogo, 2013. 239

Não parece à toa que o termo “travessia”, presente no título do livro Travessias do tempo: acompanhamento terapêutico e envelhecimento, também seja usado para designar o processo de uma análise. É conhecida a expressão “travessia do fantasma”. Essa primeira intuição mais geral sobre o livro, me foi despertada pela leitura do seguinte trecho, à página 116: “dei-me conta de que seria convidada a ajudar meus pacientes a fazerem suas malas e se prepararem para a morte”. O alcance dessa forte constatação me pareceu muito maior do que uma primeira leitura poderia levar a crer, e sua relação com a travessia de uma análise — ou ainda, com a clínica, no seu sentido mais amplo —, se apresentou como algo ao mesmo tempo evidente e obscuro.

Desde o belo prefácio de Maurício Hermann, somos introduzidos a um tema central do livro: se houver escuta, o reencontro com o desamparo fundamental na velhice poderá ser produtivo; “elaboração de luto, renovar projeto de vida, retirar o idoso da passividade, resgate de uma palavra permeada de afeto, entre outros” (p. 12). Porém, não se trata apenas da abertura do livro, mas também da abertura mesma que parece estar em jogo nessa clínica do envelhecimento. Nas páginas seguintes, vemos que é de uma paralisia, em primeiro lugar, que irá tratar o livro, descrita de diversas maneiras nos primeiros artigos: certeza paralisante que a percepção da finitude na velhice pode gerar; destituição subjetiva de quem envelhece na sociedade contemporânea; captura pelo mandamento do “envelhecimento ativo”; lugar de dejeto, enfim, emudecido e descartado pelos ideais de beleza e juventude.

No artigo “Acompanhamento Terapêutico com idosos: além do mínimo necessário”, vemos surgir de uma forma muito nítida um estranho objeto: o idoso como mero objeto a ser cuidado. Que diferença brutal entre o Outro anônimo — o Outro institucional — e o endereçamento de um desejo não anônimo, como dizia Lacan, sustentado pela acompanhante! Em outras palavras, o Outro da assistência básica não basta.

Que escuta é essa que acompanha o idoso no seu duro enfrentamento do desamparo original? Alguns artigos levam a pensar numa escuta da singularidade, num resgate do sujeito destituído de seu lugar de transmissor de uma história, estereotipado por um discurso imperativo dos ideais de beleza e juventude a qualquer preço. Porém, o que parece retornar a todo momento no texto, é a questão da diferença que faz nessa clínica, o intervalo entre o Outro anônimo e o endereçamento de desejo. Além das “necessidades básicas que precisavam ser satisfeitas” — tal qual o bebê de Winnicott, comenta uma das autoras —, “afeto e muito mais que os cuidados básicos para viver” (p. 158).

O comovente relato do caso do senhor Oscar dá o ensejo a uma pergunta central deixada por uma das autoras na penúltima parte do livro: que diferença faz ter um acompanhante terapêutico nesse momento tão difícil de declínio e morte? São chamativas as últimas palavras do relato, quando a autora reflete sobre sua função como acompanhante, e parece mais uma vez colocar em jogo a função do desejo não anônimo: “precisava de alguém que garantisse um espaço de cuidados que não se referisse, exclusivamente, aos cuidados do corpo, aos cuidados orgânicos” (p. 179).

Tal reflexão nos faz lembrar do velho Freud; não tanto o Freud psicanalista, diria, mas o velho Freud diante da morte, acompanhado de seu médico numa relação que também parece não se reduzir aos cuidados do corpo. Pouco antes de morrer, Freud diz a seu médico: “Schur, o senhor lembra-se de nosso ‘contrato’ de não me deixar quando tiver chegado a hora” (Gay, 2012Gay, P. (2012). Freud: uma vida para o nosso tempo. São Paulo: Companhia das Letras., p. 650). Curiosamente, essas palavras parecem resumir muito bem a questão central colocada pelo livro.

Referências

  • Gay, P. (2012). Freud: uma vida para o nosso tempo São Paulo: Companhia das Letras.
Editor do artigo/Editor: Profa. Dra. Sonia Leite

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Jun 2016

Histórico

  • Recebido
    14 Fev 2016
  • Aceito
    29 Mar 2016
Associação Universitária de Pesquisa em Psicopatologia Fundamental Av. Onze de Junho, 1070, conj. 804, 04041-004 São Paulo, SP - Brasil - São Paulo - SP - Brazil
E-mail: secretaria.auppf@gmail.com