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Do funcionamento autoerótico à desfusão pulsional: um modelo teórico para a etiologia do recurso à droga na esquizofrenia1 1 A pesquisa de mestrado, que deu origem ao presente artigo, teve como título Índices psicopatológicos para o diagnóstico de psicose no recurso à droga: uma formulação a partir das referências de Freud, defendida em 2021. A pesquisa foi desenvolvida junto ao Programa de Pós-Graduação em Psicologia da Universidade Federal do Rio de Janeiro (PPGP/UFRJ) entre os anos de 2019 e 2021, ao qual está vinculado o Laboratório de Psicopatologia Fundamental em Estudos de Subjetividade e Emergência Humanitária. A pesquisa foi financiada pela Fundação de Amparo à Pesquisa do Rio de Janeiro (FAPERJ), no Edital Programa Mestrado Nota Dez – FAPERJ.

From autoerotic functioning to instinctual defusion: a theoretical model for the etiology of drug use in schizophrenia

Du fonctionnement autoérotique à la défusion pulsionnelle: un modèle théorique pour l’étiologie de l’usage de drogues dans la schizophrénie

Del funcionamiento autoerótico a la defusión pulsional: un modelo teórico para la etiologia del consumo de drogas en la esquizofenia

O artigo apresenta a construção de um modelo teórico-clínico em psicopatologia psicanalítica, acerca dos determinantes estruturais do recurso à droga na psicose e, em especial, na esquizofrenia. Partimos da tese de Lacan acerca dos efeitos de adesão ao gozo autoerótico decorrente da ruptura com o gozo fálico, que coloca o problema relativo ao estatuto dessa ruptura na toxicomania e, em especial, da função do recurso à droga sobre os efeitos desta ruptura. Nossa hipótese é que o recurso à droga obedece a uma tentativa de refusão pulsional com consequências catastróficas. Conduzimos o levantamento dos textos de Freud que se organizam em torno da economia pulsional, tanto na sua abordagem do recurso à droga, como na sua abordagem da etiologia da psicose e da função reparadora do delírio. Como resultado, obtivemos os índices estruturais para o diagnóstico do recurso à droga na psicose.

Palavras-chave:
Recurso à droga; esquizofrenia; subjetividade; psicanálise


Resumos

The article presents the construction of a theoretical-clinical model in psychoanalytic psychopathology about the structural determinants of drug use in psychosis and in schizophrenia. We start from Lacan’s thesis about the effects of adherence to autoerotic jouissance resulting from the rupture with phallic jouissance, which poses the problem concerning the status of this rupture in drug addiction and the role of drug use on the effects of this rupture. Our hypothesis is that the use of drugs follows an attempt at instinctual refusion with catastrophic consequences. We conducted a survey of Freud’s texts that are organized around the drive economy, both in his approach to the use of drugs and in his approach to the etiology of psychosis and the reparative function of delusion. As a result, we obtained the structural indices for the diagnosis of drug use in psychosis..

Key words:
Drug use; schizophrenia; subjectivity; psychoanalysis

L’article présente la construction d’un modèle théorico-clinique, en psychopathologie psychanalytique à propos des déterminants structurels de l’usage de drogues dans la psychose et, en particulier, dans la schizophrénie. Nous partons de la thèse lacanienne sur les effets d’adhésion à la jouissance autoérotique résultant de la rupture avec la jouissance phallique, ce qui pose le problème du statut de cette rupture dans la toxicomanie et, en particulier, du rôle de l’usage de drogues sur les effets de cette rupture. Notre hypothèse est que le recours aux drogues obéit à une tentative de refusion pulsionnelle aux conséquences catastrophiques. Nous avons mené l’enquête sur les textes de Freud qui s’organisent autour de l’économie pulsionnelle, tant dans son approche de la ressource médicamenteuse que dans son approche de l’étiologie de la psychose et de la fonction réparatrice du délire. Nous avons ainsi obtenu les indices structurels pour le diagnostic de l’usage de drogues dans la psychose.

Mots clés:
Usage de drogue; schizophrénie; subjectivité; psychanalyse


Este artículo presenta la construcción de un modelo teórico-clínico en psicopatología psicoanalítica sobre los determinantes estructurales del consumo de drogas en la psicosis y, en particular, en la esquizofrenia. Partimos de la tesis de Lacan sobre los efectos de la adhesión al goce autoerótico resultante de la ruptura con el goce fálico, que plantea el problema del estatuto de esta ruptura en la drogadicción y, en particular, el papel del consumo de drogas en los efectos de esta ruptura. Nuestra hipótesis es que el uso de drogas sigue un intento de rechazo instintivo con consecuencias catastróficas. Realizamos un recorrido por los textos de Freud que se organizan en torno a la economía pulsional, tanto en su abordaje del uso de drogas como en su abordaje de la etiología de la psicosis y de la función reparadora del delirio. Como resultado obtuvimos los índices estructurales para el diagnóstico del consumo de drogas en psicosis.

Palabras clave:
Consumo de drogas; esquizofrenia; subjetividad; psicoanálisis


Introdução

O presente artigo apresenta os resultados da pesquisa sobre a etiologia do recurso à droga na toxicomania, visando a construção de um modelo teórico, em psicopatologia psicanalítica, acerca dos determinantes estruturais do recurso à droga na psicose e, em especial, na esquizofrenia. Ele está centrado em torno do desligamento do investimento pulsional na realidade e sua fixação no modo de satisfação autoerótica.

O ponto de partida para a construção desse modelo, foi a hipótese elaborada por Lacan (1975/2016)Lacan, J. (2016). Encerramento da Jornada de Estudos de Cartéis da Escola Freudiana. Pharmakon Digital, 2, 31-36. Recuperado em 20 abr.2022, de: <http://pharmakondigital.com/encerramento-das-jornadas-de-estudos-de-carteis-da-escola-freudiana/>. (Trabalho original publicado em 1975).
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, de que a etiologia do recurso à droga reside na ocorrência de uma ruptura com o gozo fálico com adesão do sujeito ao funcionamento autoerótico, ao gozo do corpo. Essa hipótese foi formulada no Encerramento da Jornada de Estudos de Carteis da Escola Freudiana (1975/2016) nos seguintes termos: “Não há nenhuma outra definição da droga senão esta: é o que permite romper o casamento com o pequeno pipi [Wiwimacher]” (p. 21).

Essa hipótese se apresenta como uma bússola para a pesquisa dos determinantes estruturais do recurso à droga, considerando que o falo é um operador de regulação dos efeitos do gozo sobre o corpo, e que na psicose a ruptura com o gozo fálico é dada de antemão fixando a estrutura no gozo autoerótico que gravita em torno do órgão. Daí, o emprego preciso de Lacan (1975/2016)Lacan, J. (2016). Encerramento da Jornada de Estudos de Cartéis da Escola Freudiana. Pharmakon Digital, 2, 31-36. Recuperado em 20 abr.2022, de: <http://pharmakondigital.com/encerramento-das-jornadas-de-estudos-de-carteis-da-escola-freudiana/>. (Trabalho original publicado em 1975).
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do termo Wiwimacherx.

Estudos mais clássicos como os de Laurent (1990/2017)Laurent, E. (2017). Três observações sobre a toxicomania. Pharmakon Digital, 3, 21-25. Recuperado em 20 mar. 2022, de: <http://pharmakondigital.com/tres-observacoes-sobre-a-toxicomania/>. (Trabalho original publicado em 1990).
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e contemporâneos — como os de Westphal (2015)Westphal, L. (2015). L’usage de drogue dans la clinique des psychoses. Cliniques Méditerranéennes, 1(91), 257-270. Recuperado em 20 abr 2022, de doi 10.3917/ cm.091.0257 e o de Santiago (2017)Santiago, J. (2017). Droga, ruptura fálica e toxicomanias. Pharmakon Digital, 3, 8-16. Recuperado em 20 abr. 2022, de: <http://pharmakondigital.com/droga-rupturafalica-e-psicose-ordinaria>.
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e Henschel de Lima (2019)Henschel de Lima, C. (2019). Diagnóstico diferencial das toxicomanias no último ensino de Lacan. In E. Freire Queiroz, & S. V. Zanotti, Metodologia de pesquisa em psicanálise (pp. 251-284). Editora da UFRGS. — têm chamado especial atenção para a dificuldade especial na determinação diagnóstica da toxicomania e deixam clara a importância da hipótese de Lacan (1975/2016)Lacan, J. (2016). Encerramento da Jornada de Estudos de Cartéis da Escola Freudiana. Pharmakon Digital, 2, 31-36. Recuperado em 20 abr.2022, de: <http://pharmakondigital.com/encerramento-das-jornadas-de-estudos-de-carteis-da-escola-freudiana/>. (Trabalho original publicado em 1975).
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na pesquisa dos determinantes estruturais da toxicomania e, em especial, na particularidade de seu regime de gozo nos casos de psicose.

Laurent (1990/2017)Laurent, E. (2017). Três observações sobre a toxicomania. Pharmakon Digital, 3, 21-25. Recuperado em 20 mar. 2022, de: <http://pharmakondigital.com/tres-observacoes-sobre-a-toxicomania/>. (Trabalho original publicado em 1990).
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retoma a hipótese de Lacan sobre a função da droga e coloca um problema importante acerca dos determinantes estruturais da toxicomania: seria possível verificar a ruptura com o gozo fálico sem que haja, necessariamente, a ocorrência de uma Verwerfung? Apesar do texto deixar em aberto o problema colocado, Laurent sustenta que a toxicomania é um curto-circuito, um uso do gozo por fora da fantasia.

Os estudos contemporâneos parecem oferecer uma direção mais precisa ao problema dos determinantes estruturais. Com base em um caso clínico, Westphal (2015)Westphal, L. (2015). L’usage de drogue dans la clinique des psychoses. Cliniques Méditerranéennes, 1(91), 257-270. Recuperado em 20 abr 2022, de doi 10.3917/ cm.091.0257 investiga os fenômenos de dispersão corporal e psíquica na esquizofrenia e ressalta a relevância de se considerar a centralidade da economia pulsional. A autora interroga sobre a função do recurso à droga nesses casos e sustenta a hipótese de que ele ocorre para remediar essa dispersão, por meio da produção química de uma alucinação pelo imaginário, para regular a invasão do significante sobre o sujeito na alucinação verbal.

Santiago (2017)Santiago, J. (2017). Droga, ruptura fálica e toxicomanias. Pharmakon Digital, 3, 8-16. Recuperado em 20 abr. 2022, de: <http://pharmakondigital.com/droga-rupturafalica-e-psicose-ordinaria>.
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conduz uma investigação teórica acerca da relação entre psicose e toxicomania, para inverter a leitura mais comum da hipótese de Lacan, de que a droga produziria o curto-circuito do gozo fálico. O autor demonstra que tal hipótese não afirma que a droga produz esse curto-circuito do gozo fálico. Ao contrário, tal recurso é uma forma de automedicação para os efeitos do casamento com o Wiwimacher, para os efeitos da adesão ao gozo autoerótico decorrente da ruptura com o gozo fálico; é uma forma de remediar a dispersão típica dessa forma de gozo comum à psicose.

O estudo mais recente de Henschel de Lima (2019)Henschel de Lima, C. (2019). Diagnóstico diferencial das toxicomanias no último ensino de Lacan. In E. Freire Queiroz, & S. V. Zanotti, Metodologia de pesquisa em psicanálise (pp. 251-284). Editora da UFRGS. parte dessa especificidade do regime de gozo na base da toxicomania na psicose — indicado pelo termo Wiwimacher¸ proposto por Lacan (1975/2016)Lacan, J. (2016). Encerramento da Jornada de Estudos de Cartéis da Escola Freudiana. Pharmakon Digital, 2, 31-36. Recuperado em 20 abr.2022, de: <http://pharmakondigital.com/encerramento-das-jornadas-de-estudos-de-carteis-da-escola-freudiana/>. (Trabalho original publicado em 1975).
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, bem como extensamente investigado por Santiago (2017)Santiago, J. (2017). Droga, ruptura fálica e toxicomanias. Pharmakon Digital, 3, 8-16. Recuperado em 20 abr. 2022, de: <http://pharmakondigital.com/droga-rupturafalica-e-psicose-ordinaria>.
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. E sustenta a hipótese de que esse regime de gozo autoerótico ligado à anomalia no funcionamento do gozo fálico também se verifica na psicose. A Tabela 1, apresenta as fórmulas relativas à causalidade diferencial da psicose e do recurso à droga.

Tabela 1
Causalidade diferencial nas estruturas e na toxicomania

Conforme é possível observar, a Tabela 1 apresenta as hipóteses de Lacan sobre a função da droga no quadro da ruptura com o gozo fálico e sobre a etiologia da psicose, evidenciando um ponto em comum — a adesão ao funcionamento autoerótico, decorrente da ruptura com o gozo fálico (0) — e a especificidade da droga como um recurso para romper com a dispersão típica do gozo autoerótico (Wiwimacher).

Os estudos aqui citados convergem no ponto referente à necessidade de se avançar na investigação dos determinantes estruturais do recurso à droga e, em especial, dos efeitos da adesão ao gozo autoerótico decorrente da ruptura com o gozo fálico.

A hegemonia do gozo autoerótico já havia sido indicada por Freud (1897/2006a)Freud, S. (2006a). Carta 79. In James Strachey (Ed.), Edição Standard Brasileira das Obras Completas de Sigmund Freud (2ª ed., vol.1, pp. 291-293). Imago. (Trabalho original publicado em 1897)., ao sustentar que a masturbação era o vício primário na etiologia da dependência ao álcool e à morfina. Por essa razão, avaliamos que a retomada do conceito clássico de pulsão, na construção do modelo, é fundamental. Ela segue a orientação epistemológica ressaltada por Hoffmann (2009)Hoffmann, C. (2009). Le paradigme des suppléances psychotiques. Recherches en psychanalyse 1(7), 87-91. Recuperado em 20 maio 2022, de doi: 10.3917/ rep.007.0087.
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, sobre a possibilidade de a psicanálise ser um programa de pesquisa que elucide os fenômenos clínicos específicos. Sem, no entanto, invalidar o fato de que esses fenômenos clínicos venham a interpelar a universalidade do núcleo duro de uma teoria ou sistema de pensamento.

Esse ponto tem sido abordado nos trabalhos de Duparc (2001)Duparc, F. (2001). Formes motrices et figures hallucinatoires. Revue française de psychanalyse, 4(65), 1291-1302. Recuperado em 20 maio 2022, de: <https://www.cairn.info/revue-francaise-de-psychanalyse-2001-4-page-1291.htm>.
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e Boucherat-Hue (2012aBoucherat-Hue, V. (2012a). Le “Péripsychotique” dans les cliniques interstitielles de l’excitation et de l’inhibition somatopsychiques, Recherches en psychanalyse 1(13), 31-42. Recuperado em 20 mar. 2022, de: <https://www.cairn.info/revue-recherches-en-psychanalyse1-2012-1-page-31.htm>.
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; 2012bBoucherat-Hue, V. (2012b). Impuissance “actuelle” et handicap (somato)psychique dans la clinique des configurations “périnévrotique”. Revue française de psychanalyse 1(76), 59-74. Recuperado em 20 mar. 2022, de: <https://www.cairn.info/revue-francaise-de-psychanalyse-2012-1-page-59.htm>.
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) com relação à complexidade de fenômenos clínicos — cuja etiologia dificilmente é elucidada por meio dos conceitos de recalcamento e foraclusão. Essa complexidade direciona a pesquisa desses autores para a releitura de categorias diagnósticas freudianas — como a de neuroses atuais e neuroses narcísicas — e para o avanço da pesquisa etiológica.

Nós acrescentamos a essa consideração dos fenômenos clínicos, a especificidade de ocorrer o recurso à droga em um funcionamento psicótico que não traz a evidência quanto a presença de um delírio. Se, de um lado, sua redução do sentido inconsciente e o regime autoerótico de funcionamento pulsional dificultam a localização dos processos constitutivos das estruturas psíquicas, de outro, escamoteiam o funcionamento da psicose. Dessa forma, a construção de um modelo elucidativo dos determinantes estruturais do recurso à droga em torno do núcleo duro da psicanálise, representa um avanço na pesquisa sobre a psicose. O modelo tem como base a hipótese de que o recurso à droga é uma tentativa de refusão pulsional no ponto em que o delírio não se constituiu. E foi elaborado com três eixos: 1) O regime autoerótico de funcionamento pulsional; 2) A economia pulsional no desencadeamento da psicose e a função do delírio na economia pulsional; 3) A desfusão pulsional.

Apesar do ponto de partida ter sido um pouco diferente do estudo de Westphal (2015)Westphal, L. (2015). L’usage de drogue dans la clinique des psychoses. Cliniques Méditerranéennes, 1(91), 257-270. Recuperado em 20 abr 2022, de doi 10.3917/ cm.091.0257, centrado na investigação do fenômeno elementar da alucinação, preservamos a função de automedicação identificada pela autora para interrogar se essa função de automedicação situa o recurso à droga como similar à função do delírio, contornando a dispersão decorrente do funcionamento do gozo autoerótico quando o delírio não se faz presente. Assim, sustentamos a hipótese de que, da mesma forma que Freud afirmara que o delírio paranoico funciona como uma tentativa, por parte do psiquismo, de reparação do investimento pulsional em objetos, o recurso à droga obedece à uma tentativa de refusão. O ponto principal se refere, precisamente, à lógica autoerótica e tóxica, identificada, originalmente, por Freud (1897/2006a)Freud, S. (2006a). Carta 79. In James Strachey (Ed.), Edição Standard Brasileira das Obras Completas de Sigmund Freud (2ª ed., vol.1, pp. 291-293). Imago. (Trabalho original publicado em 1897). como sendo o traço distintivo do vício, e indicativa do que Lacan (1975/2016)Lacan, J. (2016). Encerramento da Jornada de Estudos de Cartéis da Escola Freudiana. Pharmakon Digital, 2, 31-36. Recuperado em 20 abr.2022, de: <http://pharmakondigital.com/encerramento-das-jornadas-de-estudos-de-carteis-da-escola-freudiana/>. (Trabalho original publicado em 1975).
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localizara como a ruptura com relação ao gozo fálico.

O desenvolvimento da hipótese, em torno dos eixos, possibilitou formular, no modelo, os índices estruturais para o diagnóstico de esquizofrenia na base do recurso à droga: desligamento/retração do investimento pulsional em relação ao objeto por desfusão pulsional; hegemonia da lógica autoerótica no funcionamento pulsional; falência da formação da fantasia inconsciente; ausência da formação do delírio; identificação imaginária.

No presente artigo, apresentaremos os achados relativos ao levantamento conceitual da obra de Freud, que formaram a base da construção do modelo teórico de investigação e abordagem do recurso à droga na esquizofrenia. Apesar de Freud não haver dedicado nenhum texto ou estudo de caso à pesquisa clínico-conceitual do recurso à droga, foi possível identificar na elaboração conceitual, referente à causalidade psíquica, a presença de um quadro conceitual que permite embasar a construção de um modelo teórico. Esse quadro conceitual foi ordenado por nós, desde a formulação sobre a etiologia do vício (Freud, 1897/2006aFreud, S. (2006a). Carta 79. In James Strachey (Ed.), Edição Standard Brasileira das Obras Completas de Sigmund Freud (2ª ed., vol.1, pp. 291-293). Imago. (Trabalho original publicado em 1897).), passando pela pesquisa sobre a função do delírio na psicose, até o conceito de desfusão pulsional (Freud, 1923/2011aFreud, S. (2011a). O ego e o id. In Paulo César de Souza (Ed.), Obras completas. O ego e o Id, “autobiografia” e outros textos (1923-1925) (vol. 16, pp. 13-74). Companhia das Letras. (Trabalho original publicado em 1923).; 1924/2011dFreud, S. (2011d). O problema econômico do masoquismo. In Paulo César de Souza (Ed.), Obras completas. O ego e o Id, “autobiografia” e outros textos (1923-1925) (vol. 16, pp. 165-181). Companhia das Letras. (Trabalho original publicado em 1924).) localizando o recurso à droga como tentativa de refusão pulsional orientada ao objeto de consumo e à formação de uma identificação imaginária em torno da sentença sou toxicômano. A organização do artigo obedeceu aos eixos do modelo teórico:

  • Eixo 1: A perturbação na soldadura entre autoerotismo e fantasia como etiologia do vício

  • Eixo 2: A psicose como determinante estrutural e a função estabilizadora do delírio

  • Eixo 3: A desfusão pulsional na base do recurso à droga na esquizofrenia e a especificidade da operação toxicômana.

Primeiro eixo do modelo psicopatológico: a perturbação na soldadura entre autoerotismo e fantasia como etiologia do vício

O levantamento das referências de Freud permitiu um primeiro achado sobre as condições de funcionamento psíquico que exigem o recurso à droga. Trata-se de uma perturbação na fusão, na soldadura do autoerotismo à fantasia. Essa perturbação é indicada na “Carta 79” (1897/2006a), que apresenta a hipótese da masturbação como vício primário e os vícios em álcool, morfina e tabaco como substitutos da masturbação: “Comecei a compreender que a masturbação é o grande hábito, o ‘vício primário’, e que é somente como sucedâneo e substituto dela que outros vícios — álcool, morfina, tabaco etc. — adquirem existência” (Freud, 1897/2006a, pp. 323-324Freud, S. (2006a). Carta 79. In James Strachey (Ed.), Edição Standard Brasileira das Obras Completas de Sigmund Freud (2ª ed., vol.1, pp. 291-293). Imago. (Trabalho original publicado em 1897).).

Essa hipótese é anterior à formulação do conceito de pulsão e, sendo assim, ainda não deixa evidente a relação entre o funcionamento pulsional desregulado e o vício. Ela se esclarecerá com os desenvolvimentos conceituais verificados nos seguintes textos: “Três ensaios sobre a teoria da sexualidade” (1905/2016a), “Fantasias histéricas e sua relação com a bissexualidade” (1908/2016b), “O recalcamento” (1915/2010c).

A ordenação dessas referências permitiu evidenciar um aprofundamento na compreensão do tema da masturbação à luz do conceito de autoerotismo. Esse conceito apareceu em “Três ensaios sobre a teoria da sexualidade” (1905/2016a), em relação direta com a funcionamento pulsional definindo o modo de satisfação pulsional sem o investimento em representações psíquicas de pessoas e objetos: “As excitações oriundas de todas essas fontes ainda não se conjugariam, cada uma perseguiria isoladamente sua meta, que é apenas a obtenção de determinado prazer. Portanto, a pulsão sexual [...] seria primeiramente sem objeto, autoerótico” (Freud, 1905/2016a, p. 157Freud, S. (2016a). Três ensaios sobre a teoria da aexualidade. In Paulo César de Souza (Ed.), Obras completas (vol. 6, pp. 13-72). Companhia das Letras. (Trabalho original publicado em 1905).).

Essa definição se ancora no modelo da relação entre o bebê e o seio materno. E a partir desse modelo, Freud (1905/2016a)Freud, S. (2016a). Três ensaios sobre a teoria da aexualidade. In Paulo César de Souza (Ed.), Obras completas (vol. 6, pp. 13-72). Companhia das Letras. (Trabalho original publicado em 1905). articula o funcionamento pulsional autoerótico às pulsões parciais e seu modo de satisfação alucinatório: trata-se de um modo de funcionamento cuja satisfação é obtida por meio da alucinação, um investimento direto no sistema perceptivo na ausência física do seio materno. Com relação ao modelo freudiano do funcionamento pulsional, Green (1995)Green, A. (1995). La causalité psychique. Odilon Jacob., por exemplo, destaca o vazio deixado pelo seio como sendo a marca distintiva da experiência alucinatória no autoerotismo.

Em “Fantasias histéricas e sua relação com a bissexualidade” (1908/2015c), Freud avança na distinção entre autoerotismo e masturbação situando o autoerotismo, e seu modo de satisfação alucinatório, como um momento anterior à fusão com a fantasia e à formação do sintoma neurótico. Assim, como um avanço conceitual em relação a “Carta 79” (1897/2006a), Freud localiza a masturbação no quadro da constituição da fantasia e o autoerotismo, em um tempo anterior à essa soldadura. Essa distinção em dois tempos da constituição do psiquismo, traça uma diferença importante entre alucinação e fantasia, conferindo maior precisão à hipótese freudiana sobre o vício, presente na “Carta 79”. Lendo a hipótese da “Carta 79” à luz das referências de 1905 e 1908, o recurso à droga tem como determinantes etiológicos a ocorrência de uma perturbação na constituição da fantasia e na formação do sintoma, a hegemonia das pulsões parciais e seu modo de funcionamento autoerótico e o regime alucinatório de satisfação.

A referência recente de Pirlot (2014)Pirlot, G. (2014). Psicanálise das adicções. Ideias & Letras. acentua a relevância dessas referências para a localização da etiologia do recurso à droga na perturbação da constituição da fantasia e na ascensão do funcionamento autoerótico, mencionando como evidência a relação entre o corpo fragmentado das pulsões parciais e a droga: “[...] a pele onde ‘se invagina’ a agulha invasora contendo heroína ou morfina ou, ainda, nas pulsões, locais de gritos abafados, como o ‘snifo’ (cocaína, cola) e a inalação (tabaco, haxixe)” (p. 159).

O conjunto desses achados de Freud, relativos à etiologia do recurso à droga, fundamentam o que Lacan (1975/2016)Lacan, J. (2016). Encerramento da Jornada de Estudos de Cartéis da Escola Freudiana. Pharmakon Digital, 2, 31-36. Recuperado em 20 abr.2022, de: <http://pharmakondigital.com/encerramento-das-jornadas-de-estudos-de-carteis-da-escola-freudiana/>. (Trabalho original publicado em 1975).
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, posteriormente, reconhecerá como sendo a função da droga: ela advém no ponto em que se verifica uma adesão do sujeito ao gozo do órgão. E colocam o problema relativo à interação entre a droga e o funcionamento estrutural nesses casos: o recurso à droga determina a desagregação típica dessa perturbação no processo de constituição da fantasia ou, ao contrário, contornam o efeito dessa perturbação?

A elaboração sobre a constituição do eu como instância psíquica decorrente da unificação das pulsões parciais e, consequentemtne, da redefinição do corpo a partir dessa instância, em “Introdução ao narcisismo” (Freud, 1914/2010bFreud, S. (2010b). Introdução ao narcisismo. In Paulo César de Souza (Ed.), Obras completas. Introdução ao Narcisismo, ensaios de metapsicologia e outros textos (1914-1916) (vol. 12, pp. 13-50). Companhia das Letras. (Trabalho original publicado em 1914).), complexifica a questão do autoerotismo: “[...] as pulsões autoeróticas existem desde a origem; [...] uma nova ação psíquica, deve então vir se juntar ao autoerotismo para dar forma ao narcisismo” (p. 20).

Essa nova ação psíquica será a do investimento libidinal narcísico, indicando que o narcisismo não é originário. O autor parte dos fenômenos clínicos observados na esquizofrenia para localizar as condições das quais depende o investimento pulsional no eu e que, posteriormente, é cedido para os objetos, mas “que persiste fundamentalmente, relacionando-se aos investimentos de objeto como o corpo de uma ameba aos pseudópodes que dele avançam” (Freud, 1914/2010b, p. 17Freud, S. (2010b). Introdução ao narcisismo. In Paulo César de Souza (Ed.), Obras completas. Introdução ao Narcisismo, ensaios de metapsicologia e outros textos (1914-1916) (vol. 12, pp. 13-50). Companhia das Letras. (Trabalho original publicado em 1914).). Com essa formulação, Freud opera uma modificação no conceito de autoerotismo que passa a definir um modo de funcionamento pulsional do narcisismo primário, anterior à constituição da fantasia e à formação do sintoma. O que se confirma em “Os instintos e seus destinos” (1915/2010c), em que distingue entre o estado de narcisismo primário de investimento pulsional no eu e o narcisismo secundário, definido pelo desligamento do investimento pulsional em pessoas e coisas e retração ao eu. Com essa distinção, Freud (1915/2010c)Freud, S. (2010c). Os instintos e seus destinos. In Paulo César de Souza (Ed.), Obras completas. Introdução ao Narcisismo, ensaios de metapsicologia e outros textos (1914-1916) (vol. 12, pp. 51-81). Companhia das Letras. (Trabalho original publicado em 1915). situa o autoerotismo como o regime de funcionamento da organização narcísica.

É a partir da formalização conceitual do processo de constituição do psiquismo, tendo o recalcamento como agente central do processo de defesa contra a pulsão, que Freud consegue elucidar o que anteriormente teorizara como sendo a soldadura da pulsão à fantasia e ao sintoma.

A observação dos fatores de estrutura do recurso à droga sintetizados mais acima, indica uma hipótese etiológica na base dessa interação entre a droga e a perturbação da constituição estrutural da fantasia: se na base dessa, subjaz a ocorrência de uma perturbação na defesa contra a pulsão e a ascensão do regime de funcionamento autoerótico, então o recurso à droga contornaria o efeito dessa perturbação.

Cabe interrogar sobre os determinantes estruturais dessa perturbação na defesa, na psicose, em função de um efeito comum: a adesão ao funcionamento autoerótico.

Segundo eixo do modelo psicopatológico: a psicose como determinante estrutural e a função estabilizadora do delírio

Na introdução deste artigo, destacamos um traço etiológico comum à toxicomania e à psicose: a hegemonia do funcionamento autoerótico das pulsões, formalizado por Lacan pelo matema 0, indicativo da forma de gozo autoerótico em razão da impossibilidade de, na psicose, se contrair um laço possível com o gozo fálico. Nesse regime de funcionamento, qual seria a função exercida pela droga?

A pesquisa de Silva Cunha (2021)Silva Cunha, J. (2021). Índices psicopatológicos para o diagnóstico de psicose no recurso à droga: uma formulação a partir das referências de Freud. Dissertação de Mestrado. Programa de Pós-graduação em Psicologia, Universidade Federal do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro., por exemplo, avança sobre essa pergunta a partir de uma perspectiva diferencial das psicoses — mais precisamente, a partir da distinção entre esquizofrenia e paranoia, no ponto em que o psiquismo ainda não projetou o excesso pulsional sobre uma instância persecutória, na forma do delírio paranoico.

Na história da psicopatologia, o nome de Freud é um marco importante no conhecimento acerca da etiologia psíquica da psicose, da distinção entre suas formas clínicas para o entendimento acerca dos efeitos da retração do funcionamento pulsional à lógica autoerótica (0) e do estatuto que o delírio tem no quadro do desencadeamento da psicose. Observamos que o pensamento freudiano em torno do delírio traz a originalidade de reabilitar a distinção entre as formas clínicas da esquizofrenia e da paranoia, à luz da hipótese referente a uma tendência de a psicose assumir uma forma mais sistematizada, a partir da formação do delírio. Assim, a teoria da psicose, desenvolvida por Freud (1911/2010a)Freud, S. (2010a). Observações psicanalíticas sobre um caso de paranoia relatado em autobiografia [Caso Schreber]. In Paulo César de Souza (Ed.), Obras completas. Artigos sobre técnica e outros textos (1911-1913) (vol. 10, pp. 1-257). Companhia das Letras. (Trabalho original publicado em 1911)., com base no estudo da esquizofrenia paranoide de Schreber, partiu da evidência dos fenômenos clínicos mais intrusivos e desagregativos na esquizofrenia (por exemplo, os fenômenos hipocondríacos) até a formação do delírio paranoico e sua função de remendo da realidade perdida.

Em “Observações psicanalíticas sobre um caso de paranoia relatado em autobiografia” (Caso Schreber) (1911/2010a), Freud conduzira um longo comentário acerca do livro, publicado por Daniel Paul Schreber, elaborando a hipótese etiológica sobre o desencadeamento da psicose à luz do processo de rejeição (Verwerfung) e definindo o que ninguém ousara afirmar antes dele: a função reparadora, reconstrutora, do delírio paranoico e, consequentemente, a localização da paranoia como forma clínica mais estável do que a esquizofrenia, no quadro do funcionamento da rejeição.

Essa distinção entre esquizofrenia e paranoia, se mantém e ganha maior consistência em 1924, com a hipótese de Freud acerca da função reparadora do delírio como resposta à perda da realidade decorrente do processo de rejeição. Considerando, então, a leitura do comentário sobre Schreber, deduzimos o modelo etiológico dos tempos de desencadeamento da esquizofrenia, e que permite tanto ordenar seus fenômenos clínicos como destacar o lugar do delírio paranoico no quadro do desencadeamento da psicose.

Tempo 1 – Desligamento da pulsão, anteriormente investida em outras pessoas e objetos, e sua retração para o eu, com ascensão do funcionamento autoerótico e modo de satisfação alucinatório: irrupção da experiência de fragmentação e de desabamento do mundo, típica: da experiência de inconsistência do ser na perplexidade e enigma; de fenômenos hipocondríacos invasivos e dolorosos; de alucinações auditivas; estados catatônicos e delírio de fim do mundo.

Tempo 2 – Trabalho psíquico de reparação do investimento pulsional nos objetos, de reengajamento do sujeito com o mundo por meio do delírio: eclosão do delírio de perseguição e da megalomania típica da paranoia.

Conforme apontamos anteriormente, o caráter inovador dessa concepção foi reconhecido por Freud (1911/2010a)Freud, S. (2010a). Observações psicanalíticas sobre um caso de paranoia relatado em autobiografia [Caso Schreber]. In Paulo César de Souza (Ed.), Obras completas. Artigos sobre técnica e outros textos (1911-1913) (vol. 10, pp. 1-257). Companhia das Letras. (Trabalho original publicado em 1911). ao mencionar sua oposição ao modelo descritivo e evolutivo do delírio em psiquiatria. De fato, faltava a esse modelo, a hipótese da causalidade psíquica, especificada para a psicose: a retração da pulsão, o funcionamento autoerótico e a formação do delírio paranoico para resolver, por meio do reinvestimento pulsional nos objetos, essa retração e seus efeitos clínicos.

Essa concepção se torna mais clara com a centralidade que a distribuição do investimento pulsional entre o eu e o objeto assumiu, em “Introdução ao narcisismo” (1914/2010b), a partir da evidência dos fenômenos hipocondríacos. Ela permitiu localizar a presença de um investimento pulsional originário no eu que, posteriormente, é cedido para os objetos, mas “[...] que persiste fundamentalmente, relacionando-se aos investimentos de objeto como o corpo de uma ameba aos pseudópodes que dele avançam” (Freud, 1914/2010b, p. 17Freud, S. (2010b). Introdução ao narcisismo. In Paulo César de Souza (Ed.), Obras completas. Introdução ao Narcisismo, ensaios de metapsicologia e outros textos (1914-1916) (vol. 12, pp. 13-50). Companhia das Letras. (Trabalho original publicado em 1914).). Relendo o estudo sobre Schreber (Freud, 1911/2010aFreud, S. (2010a). Observações psicanalíticas sobre um caso de paranoia relatado em autobiografia [Caso Schreber]. In Paulo César de Souza (Ed.), Obras completas. Artigos sobre técnica e outros textos (1911-1913) (vol. 10, pp. 1-257). Companhia das Letras. (Trabalho original publicado em 1911).) à luz da distribuição da pulsão entre o eu e os objetos, é possível especificar a retração pulsional na esquizofrenia: o processo de retração pulsional abandona completamente o investimento no objeto e se fixa exclusivamente, no funcionamento autoerótico, resultando na irrupção da experiência de fragmentação e de desabamento do mundo, típica do tempo 1: 1) Experiência de inconsistência do ser na perplexidade e enigma; 2) Fenômenos hipocondríacos invasivos e dolorosos; 3) Alucinações auditivas; 4) Estados catatônicos; 5) Delírio de fim do mundo.

A função do delírio ganha maior precisão quando consideramos a distinção diagnóstica entre neurose e psicose no quadro da oposição entre pulsões de vida e pulsão de morte. Nesse sentido, quatro textos são fundamentais na abordagem do funcionamento psíquico em termos da ligação das pulsões às representações psíquicas e da força de desligamento, de desfusão pulsional, em relação às representações: “O eu e o id” (1923/2011a), “Neurose e psicose” (1924/2011b) e “A perda da realidade na neurose e na psicose” (1924/2011c).

Em “O eu e o id” (1923/2011a) Freud distingue neurose e psicose a partir da natureza do conflito entre as instâncias psíquicas: a neurose seria consequência de um conflito entre o Eu e o Id, enquanto a psicose se daria por uma perturbação no laço entre o Eu e o mundo exterior. Já em “Neurose e psicose” (1924/2011b), Freud avança esse ponto específico, referente ao conflito entre o eu e o mundo exterior na psicose, e localiza a perda da realidade como marca específica da psicose. Com base na perda da realidade, ele retoma os achados anteriores sobre a função do delírio e a ratifica como solução, como remendo no ponto exato em que se verifica o rompimento na relação entre o eu e o mundo exterior: “Sobre a gênese das formações delirantes, algumas análises nos ensinaram que o delírio é como um remendo colocado onde originalmente surgira uma fissura na relação do eu com o mundo exterior” (Freud, 1924/2011b, p. 180Freud, S. (2011b). Neurose e psicose. In Paulo César de Souza (Ed.), Obras completas. O ego e o Id, “autobiografia” e outros textos (1923-1925) (vol. 16, pp. 158-164). Companhia das Letras. (Trabalho original publicado em 1924).). No entanto, no mesmo ano, com a publicação de “A perda da realidade na neurose e na psicose” (1924/2011c), Freud corrige as formulações anteriores — em especial, a natureza do conflito entre instâncias que especificariam a neurose e a psicose — na direção de sustentar, na base de ambas as estruturas, a mesma perda da realidade e a direção do psiquismo para tentar reparar a perda da realidade em ambas as estruturas. Dois traços definem a distinção estrutural entre neurose e psicose formuladas em “A perda da realidade na neurose e na psicose” (1924/2011c). São eles:

  1. O processo psíquico que produz a perda da realidade: na psicose, a perda da realidade se encontra desde o início, como decorrência direta da fissura na relação do eu com o mundo exterior: “A perda da realidade já estaria na psicose desde o início; na neurose, parece, ela seria evitada” (p. 215).

  2. A forma de reparação: na neurose, a fantasia; na psicose, o delírio.

Com base nesse conjunto de referências, que atestam a função reparadora do delírio no quadro dos efeitos da retração pulsional até o funcionamento autoerótico, interrogamos sobre o recurso à droga, na medida em que ela também incide diretamente sobre a adesão do funcionamento psíquico ao gozo autoerótico. E consideramos a hipótese acerca das coordenadas precisas da função da droga na psicose: ela advém no ponto em que se verifica uma adesão ao funcionamento autoerótico, anterior à solução pelo delírio, ou ao que Lacan (1975/2016)Lacan, J. (2016). Encerramento da Jornada de Estudos de Cartéis da Escola Freudiana. Pharmakon Digital, 2, 31-36. Recuperado em 20 abr.2022, de: <http://pharmakondigital.com/encerramento-das-jornadas-de-estudos-de-carteis-da-escola-freudiana/>. (Trabalho original publicado em 1975).
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identificara como adesão do sujeito ao gozo do órgão, como tentativa de reinvestimento pulsional na realidade. O que nos leva a recolocar a interrogação acerca dos determinantes estruturais do recurso à droga na psicose, à luz da solução reparadora e parcialmente exitosa do delírio: de que forma ocorre esse recurso?

A fim de avançarmos neste ponto da formalização do modelo, definindo o estatuto desse recurso e sua especificidade em relação ao delírio, consideraremos o conceito freudiano de desfusão pulsional.

Terceiro eixo do modelo psicopatológico: a desfusão pulsional na base do recurso à droga na esquizofrenia

A construção de um modelo teórico elucidativo dos determinantes estruturais do recurso à droga na psicose, nos conduziu até as últimas formulações de Freud sobre a distinção entre pulsões de vida e pulsão de morte à luz de duas metas pulsionais: um estado de desfusionamento, de desligamento, das pulsões em relação às representações psíquicas e um estado de ligação, de fusão das pulsões às representações psíquicas.

Consideramos a meta da desfusão pulsional a partir dos dois eixos conceituais que estão na base desse modelo teórico: a retração da pulsão em relação ao investimento na representação psíquica como fator etiológico da psicose e a hegemonia do funcionamento autoerótico da pulsão, verificada no recurso à droga. Ressaltamos a retificação, presente em “O eu e o id” (1923/2011a), sobre a meta pulsional da sublimação à luz do conceito de pulsão de morte e sua importância na pesquisa etiológica das neuroses graves e dos quadros de psicose.

A retificação consistiu em localizar, na sublimação, o que podemos definir como sendo um ponto de anomia em sua meta pulsional: antes do estabelecimento de um novo destino pulsional ocorreria uma desfusão pulsional com liberação da pulsão e morte sob a forma de agressão e destruição com risco de gerar novas fusões que podem se apresentar de forma devastadora para o funcionamento psíquico.

O mesmo, se depreende ao considerarmos a análise feita em “O problema econômico do masoquismo” (1924/2011d). Nesse texto Freud acentua que, se por um lado, a desfusão está na base do estabelecimento de um novo destino pulsional na sublimação, por outro ela também pode ameaçar o funcionamento psíquico colocando-o em risco. Em alguns casos, a desfusão revela a retração mais radical do investimento pulsional em relação às representações psíquicas de objeto e uma espécie de narcotização do princípio do prazer: “o guardião de nossa vida psíquica é como que narcotizado” (p. 185). Essa mesma formulação estará no fundamento da análise conduzida em “O mal-estar na civilizaço” (1930[1929]/2010e) ao localizar o recurso à droga como um modo de solução cuja especificidade reside em tornar o sujeito insensível ao mal-estar decorrente da renúncia pulsional imposta pela civilização: “[...] poderosas diversões, que nos permitem fazer pouco de nossa miséria, gratificações substitutivas, que a diminuem, e substâncias inebriantes que nos tornam insensíveis a ela” (p. 28).

Os recursos especificados por Freud (1930[1929]/2010e)Freud, S. (2010e). O mal-estar na civilização. In Paulo César de Souza (Ed.), O mal-estar na civilização, Novas conferências introdutórias à psicanálise e outros textos (1930-1936) (vol. 18, pp. 13-123). Companhia das Letras. (Trabalho original publicado em 1930)., nessa passagem do texto — a diversão, as gratificações substitutivas e a droga — se reportam a processos psíquicos bem diferenciados. Em se tratando da diversão e das satisfações substitutivas, os processos psíquicos em jogo são a conversão do mal-estar em prazer e a lógica do sintoma. Mas o recurso às substâncias inebriantes tem outro estatuto: ele é um recurso fixo, exterior, invariável, que garante a independência do mundo externo, que afasta o psiquismo da pressão da realidade e permite o refúgio em um mundo próprio, segundo exatamente o que depreendemos dos achados sobre a lógica de funcionamento pulsional autoerótica na esquizofrenia.

Nossa hipótese de uma anomia da meta pulsional como solução na toxicomania, para a adesão ao gozo autoerótico, é corroborada indiretamente pelo estudo de Viganó (2003)Viganó, C. (2003). Assunção múltipla de substâncias e comorbidade psiquiátrica. Mental, 1(1),11-2. Recuperado em 20 abr. 2022, de: <http://pepsic.bvsalud.org/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1679-44272003000100002&lng=pt&tlng=pt>.
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— que considera o recurso à droga como sendo o recurso a um objeto de consumo decorrente da rarefação do funcionamento da fantasia — e, mais diretamente, pelos trabalhos de Silva Junior (2003Silva Junior, N. (2003). A sublimação na contemporaneidade: o imperialismo da imagem e os novos destinos pulsionais. Revista Psychê, 7(11), 29-38. Recuperado em 20 abr. 2022, de: <https://www.redalyc.org/pdf/307/30701103.pdf>.
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; 2006Silva Junior, N. (2006). A gramática pós-moderna da perversão e sua clínica psicanalítica. In F. Milnitzky (Org.), Desafios da clínica psicanalítica na atualidade (pp. 103-115). Dimensão.) e Metzger & Silva Junior (2010)Metzger, C., & Silva Junior, N. (2010). Sublimação e pulsão de morte: a desfusão pulsional. Psicologia USP, 21(3), 567-583. Recuperado em 25 mar. 2022, de doi: 10.1590/S0103-65642010000300007
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, que mostram como o psiquismo empreende tentativas de refusão pulsional, como forma de solucionar a desfusão, por meio do reinvestimento em objetos de consumo, a despeito dos riscos de gerar fusões devastadoras. A partir das referências trabalhadas, é possível construir quatro modalidades de funcionamento pulsional, associadas:

  1. À rarefação do funcionamento da fantasia e a hegemonia da lógica autoerótica, tal como Freud (1897/2006aFreud, S. (2006a). Carta 79. In James Strachey (Ed.), Edição Standard Brasileira das Obras Completas de Sigmund Freud (2ª ed., vol.1, pp. 291-293). Imago. (Trabalho original publicado em 1897)., 1905/2016aFreud, S. (2016a). Três ensaios sobre a teoria da aexualidade. In Paulo César de Souza (Ed.), Obras completas (vol. 6, pp. 13-72). Companhia das Letras. (Trabalho original publicado em 1905)., 1908/2016bFreud, S. (2016b). Fantasias histéricas e sua relação com a bissexualidade. In Paulo César de Souza (Ed.), Obras completas (vol. 8, pp. 339-349). Companhia das Letras. (Trabalho original publicado em 1908)., 1915/ 2010cFreud, S. (2010c). Os instintos e seus destinos. In Paulo César de Souza (Ed.), Obras completas. Introdução ao Narcisismo, ensaios de metapsicologia e outros textos (1914-1916) (vol. 12, pp. 51-81). Companhia das Letras. (Trabalho original publicado em 1915).) e, mais recentemente, Viganó (2003)Viganó, C. (2003). Assunção múltipla de substâncias e comorbidade psiquiátrica. Mental, 1(1),11-2. Recuperado em 20 abr. 2022, de: <http://pepsic.bvsalud.org/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1679-44272003000100002&lng=pt&tlng=pt>.
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    definiram.

  2. À anomia introduzida pela desfusão pulsional na sublimação, tal como Freud (1923/2011i, 1924/2011dFreud, S. (2011d). O problema econômico do masoquismo. In Paulo César de Souza (Ed.), Obras completas. O ego e o Id, “autobiografia” e outros textos (1923-1925) (vol. 16, pp. 165-181). Companhia das Letras. (Trabalho original publicado em 1924).) definira.

  3. À formação de novas fusões (devastadoras), por meio do investimento em objetos de consumo, tal como indicam os estudos mais recentes de Silva Junior (2003Silva Junior, N. (2003). A sublimação na contemporaneidade: o imperialismo da imagem e os novos destinos pulsionais. Revista Psychê, 7(11), 29-38. Recuperado em 20 abr. 2022, de: <https://www.redalyc.org/pdf/307/30701103.pdf>.
    https://www.redalyc.org/pdf/307/30701103...
    ; 2006Silva Junior, N. (2006). A gramática pós-moderna da perversão e sua clínica psicanalítica. In F. Milnitzky (Org.), Desafios da clínica psicanalítica na atualidade (pp. 103-115). Dimensão.) e Metzger & Silva Junior (2010)Metzger, C., & Silva Junior, N. (2010). Sublimação e pulsão de morte: a desfusão pulsional. Psicologia USP, 21(3), 567-583. Recuperado em 25 mar. 2022, de doi: 10.1590/S0103-65642010000300007
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    .

  4. A uma espécie de narcose radical do princípio de prazer: tal como indicara Freud (1924/2011d)Freud, S. (2011d). O problema econômico do masoquismo. In Paulo César de Souza (Ed.), Obras completas. O ego e o Id, “autobiografia” e outros textos (1923-1925) (vol. 16, pp. 165-181). Companhia das Letras. (Trabalho original publicado em 1924)..

A partir da base conceitual construída ao longo deste artigo, podemos afirmar que a perturbação no investimento pulsional em objetos e pessoas, com retração até a lógica de funcionamento autoerótica, verificada na esquizofrenia, é o que explica a ocorrência da desfusão na psicose (em especial, na esquizofrenia), para além das observações de Freud sobre a sublimação. Portanto, é possível afirmar que o recurso à droga, no que se refere à esquizofrenia, em específico, trata-se de uma tentativa de refusão pulsional por meio do recurso à droga e é anterior ao trabalho psíquico de construção do delírio.

Considerações finais: a especificidade da operação toxicômana na esquizofrenia

A organização das referências de Freud, a partir da hipótese de Lacan (1975/2016)Lacan, J. (2016). Encerramento da Jornada de Estudos de Cartéis da Escola Freudiana. Pharmakon Digital, 2, 31-36. Recuperado em 20 abr.2022, de: <http://pharmakondigital.com/encerramento-das-jornadas-de-estudos-de-carteis-da-escola-freudiana/>. (Trabalho original publicado em 1975).
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cumpriu a finalidade de sistematizar um modelo teórico para elucidar os determinantes estruturais do recurso à droga a partir de índices psicopatológicos estruturais para o diagnóstico de psicose em casos em que o recurso à droga é hegemônico. A construção desse modelo se ancorou em quatro indicações fundamentais:

A hipótese de que o vício responde ao funcionamento autoerótico das pulsões (Freud, 1897/2006aFreud, S. (2006a). Carta 79. In James Strachey (Ed.), Edição Standard Brasileira das Obras Completas de Sigmund Freud (2ª ed., vol.1, pp. 291-293). Imago. (Trabalho original publicado em 1897).).

A formulação do conceito de desfusão pulsional para definir o regime de funcionamento da pulsão de morte (Freud, 1923/2011aFreud, S. (2011a). O ego e o id. In Paulo César de Souza (Ed.), Obras completas. O ego e o Id, “autobiografia” e outros textos (1923-1925) (vol. 16, pp. 13-74). Companhia das Letras. (Trabalho original publicado em 1923)., 1924/2011bFreud, S. (2011b). Neurose e psicose. In Paulo César de Souza (Ed.), Obras completas. O ego e o Id, “autobiografia” e outros textos (1923-1925) (vol. 16, pp. 158-164). Companhia das Letras. (Trabalho original publicado em 1924)., 1924/2011cFreud, S. (2011c). A perda da realidade na neurose e na psicose. In Paulo César de Souza (Ed.), Obras completas. O ego e o Id, “autobiografia” e outros textos (1923-1925) (vol. 16, pp. 193-199). Companhia das Letras. (Trabalho original publicado em 1924).).

A hipótese de que o recurso à droga tem a função de produzir o afastamento da pressão da realidade e encontrar refúgio num mundo próprio (Freud, 1930[1929]/2010eFreud, S. (2010e). O mal-estar na civilização. In Paulo César de Souza (Ed.), O mal-estar na civilização, Novas conferências introdutórias à psicanálise e outros textos (1930-1936) (vol. 18, pp. 13-123). Companhia das Letras. (Trabalho original publicado em 1930).).

A tese de que a droga é um recurso cuja razão de ser responde, estruturalmente, à adesão do sujeito ao wiwmaccher, ao gozo do corpo, tal como fora formulada por Lacan (1975/2016)Lacan, J. (2016). Encerramento da Jornada de Estudos de Cartéis da Escola Freudiana. Pharmakon Digital, 2, 31-36. Recuperado em 20 abr.2022, de: <http://pharmakondigital.com/encerramento-das-jornadas-de-estudos-de-carteis-da-escola-freudiana/>. (Trabalho original publicado em 1975).
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.

O modelo tem como base a hipótese de que o recurso à droga é uma tentativa de refusão pulsional no ponto em que a economia pulsional mantém-se aderida à lógica autoerótica — em que se verifica o desligamento do investimento em pessoas e objetos — e o delírio não se constituiu. A Tabela 2 apresenta uma síntese desta hipótese.

Tabela 2
A hipótese da pesquisa

Seu desenvolvimento permitiu isolar cinco índices estruturais para o diagnóstico do recurso à droga na psicose, já apresentados na introdução deste artigo: desligamento/retração do investimento pulsional em relação ao objeto por desfusão pulsional; hegemonia da lógica autoerótica no funcionamento pulsional; falência da formação da fantasia inconsciente; ausência da formação do delírio; identificação imaginária.

Do primeiro eixo, foi possível formular uma primeira indicação a respeito dos determinantes estruturais do recurso à droga: ele responde à lógica autoerótica de funcionamento pulsional com clara carência na constituição da fantasia. Com base nessa indicação, formulamos dois índices clínicos relativos à etiologia do recurso à droga: o funcionamento psíquico autoerótico e a perturbação na constituição da fantasia.

Esses dois índices estão presentes não só na etiologia do recurso à droga, como também na etiologia da psicose, tal como verificamos no estudo da esquizofrenia paranoide de Schreber, conduzido por Freud (1911/2010a)Freud, S. (2010a). Observações psicanalíticas sobre um caso de paranoia relatado em autobiografia [Caso Schreber]. In Paulo César de Souza (Ed.), Obras completas. Artigos sobre técnica e outros textos (1911-1913) (vol. 10, pp. 1-257). Companhia das Letras. (Trabalho original publicado em 1911).. De fato, identificamos na hipótese etiológica da forma clínica da esquizofrenia esses dois índices identificados no recurso à droga: a falência da constituição da fantasia inconsciente com o desligamento do investimento pulsional em objetos e pessoas e a retração da pulsão à lógica autoerótica.

A partir da forma específica e original com que Freud (1911/2010a)Freud, S. (2010a). Observações psicanalíticas sobre um caso de paranoia relatado em autobiografia [Caso Schreber]. In Paulo César de Souza (Ed.), Obras completas. Artigos sobre técnica e outros textos (1911-1913) (vol. 10, pp. 1-257). Companhia das Letras. (Trabalho original publicado em 1911). define a função do delírio na psicose nos levou a um importante achado: tendo recurso à droga e esquizofrenia, etiologias comuns, e sendo o recurso à droga um fenômeno clínico, há a indicação de que seria o fenômeno clínico que se apresenta na esquizofrenia no ponto em que o funcionamento psíquico não opera uma estabilização por meio do delírio. Ao avançar na referência freudiana sobre a esquizofrenia, em “Introdução ao narcisismo” (1914/2010b), identificamos uma diferença fundamental entre as etiologias do recurso à droga e da esquizofrenia: nesta última encontramos a formação de um delírio como tentativa de reparação para o investimento pulsional em objetos e pessoas. O que nos conduziu ao índice relativo à ausência de delírio.

O que nos conduziu, no terceiro eixo, à pesquisa sobre a ocorrência da desfusão como uma das metas pulsionais na sublimação. Foi possível, então, estender a investigação da função do delírio na psicose e sua consistência no quadro de um funcionamento psíquico com nítida ausência da fantasia à hegemonia de uma desfusão pulsional que explica tanto a retração da pulsão até o autoerotismo como também a fixação tóxica na pulsão de morte. Com isso, extraímos dois novos índices: o desligamento/a retração do investimento pulsional objetal por desfusão pulsional e identificação narcísica.

Ao construir esse modelo observamos com clareza que o recurso à droga tem efeitos ambivalentes na tentativa de reparação da ligação da pulsão à realidade. Esse esforço de reparação tem o caráter de automedicação do que Freud e Lacan identificaram como os efeitos hegemonia do funcionamento auterótico ou do gozo autoerótico (0). No entanto, a dimensão da anomia, inerente à desfusão pulsional, explica como essa tentativa de reparação traz como risco a possibilidade de aniquilação do sujeito.

Esses índices permitem delimitar as condições estruturais do recurso à droga na esquizofrenia, auxiliando não só na elucidação de sua etiologia a partir da anomia da refusão pulsional que curto-circuita a produção do delírio, como também na delimitação do horizonte de uma direção de tratamento que possibilite a construção de outras formas de reparação da realidade menos catastróficas.

Agradecimentos

Agradecemos à Faperj e ao PPGP/UFRJ todo o apoio financeiro e suporte logístico para a realização da pesquisa.

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    A pesquisa de mestrado, que deu origem ao presente artigo, teve como título Índices psicopatológicos para o diagnóstico de psicose no recurso à droga: uma formulação a partir das referências de Freud, defendida em 2021. A pesquisa foi desenvolvida junto ao Programa de Pós-Graduação em Psicologia da Universidade Federal do Rio de Janeiro (PPGP/UFRJ) entre os anos de 2019 e 2021, ao qual está vinculado o Laboratório de Psicopatologia Fundamental em Estudos de Subjetividade e Emergência Humanitária. A pesquisa foi financiada pela Fundação de Amparo à Pesquisa do Rio de Janeiro (FAPERJ), no Edital Programa Mestrado Nota Dez – FAPERJ.

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    09 Out 2023
  • Data do Fascículo
    2023

Histórico

  • Recebido
    14 Jun 2022
  • Revisado
    06 Fev 2023
  • Aceito
    16 Fev 2023
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