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Do espírito da Coisa: um cálculo de graça

RESENHA DE LIVROS

Flávia Albergaria Raveli

Do espírito da Coisa: um cálculo de graça

Karin de Paula

São Paulo: Escuta, 2008, 184p.

Em Do espírito da Coisa: um cálculo de graça, a psicanalista Karin de Paula pensa o Witz - palavra espirituosa -, sua construção e definição como análogo a uma psicanálise. Em ambos, trata-se, segundo a tradição lacaniana ancorada na filosofia hegeliana, de um movimento dialético, de um deslocamento do drama especular e do cômico, para o trágico e a "palavra espirituosa", os quais pressupõem uma tríade: terceiro "elemento" resultante do cálculo de graça, sujeito que advém ao fim de uma análise, instituído por e nessa matemática, "sobra" possível de lidar, recriar, pôr a trabalhar em nome da graça - a graça do próprio sujeito. Qual é a sua graça?, pode-se perguntar. Só é possível "fazer graça" em nome próprio, tendo se apropriado de seu desejo, do trágico próprio desse, cujo objeto - objetos - desliza metonimicamente num desenho lógico do sujeito e para ele, numa sucessão de significantes "caídos" no percurso de uma psicanálise, para a instituição de outros, para o deslizar permanente e sem fim da cadeia do desejo. Ficção tão mais verdadeira quanto mais falsa. É por aí que a verdade da falta e do desejo caminha. Pela ficção que o sujeito cria de si, pela fala chistosa, na qual a psicanalista pode ser um crupiê, sem por isso fazer pouco do sofrimento alheio e da sua própria condição de incompreensão e ignorância. Karin aposta e convida o leitor/paciente/praticante da psicanálise a entrar no jogo: quem dá mais? Quem banca o apostador e o jogador? Que bola é esta posta em campo e quem é o fominha que "não passa a bola"? O neurótico - da qual é constituída, basicamente, a clínica da autora - apega-se ao seu sintoma e briga por ele. Birra por ele, chorando baixinho pela festa para a qual não foi convidado. Trata-se de romper a dupla queixosa dele com ele mesmo e fazê-lo sobrar. Fazer sobrar a falta, a so-bra ela mesma. Trata-se de "contar até três", cálculo elementar próprio do jogo e da brincadeira que, resvalando o nada - Das Ding -, põe em movimento o resto - objeto a - que em-pulsiona o desejo, razão do mesmo. E quem deseja, deseja para continuar desejante. Moto-contínuo que "não acaba quando termina", como diz o ditado.

Como o jogo e a brincadeira infantil da qual tratou Winnicott, o Witz realiza uma interrupção no tempo, sendo ele próprio o limite - na linguagem, no tempo - da lei, do resto que resvala o nada, o qual não pode ser visto de frente, bicho/ estranho em si mesmo do qual não se foge - ficando ou correndo. Núcleo de atração e repulsão, vazio, deserto do Real, pavor de despedaçamento: nada contornado pela linguagem, borda do abismo - abismar-se, estar à borda de: nada. Nesse limite - espacial e temporal - o Witz é constituído: entre o nada e o resto do nada, contornado pela linguagem, por ela instituído. Para além do muro da linguagem, lembra Karin, só o "deserto do Real", em cuja vastidão - o tudo que é nada -, num tempo muito preciso, a palavra espirituosa faz furo, escancarando o vazio, constituindo a diferença, "diferencia", segundo Derrida, num movimento pulsional que percorre, de forma nova, a cadeia significante, propondo uma nova geometria, um novo caminho para o sujeito que ali, no tempo que dura o chiste, é atualizado, re-instituído na possibilidade de fazer sentido, "dar o ar da graça", dizer a que veio - e vir, pelo Witz.

Através da psicanálise, pelo caminho chistoso que essa percorre, a autora dialoga com a tradição filosófica desde Kant seguindo a trilha de Lacan, e dessa forma atualiza Freud naquilo que constitui a psicanálise na sua radicalidade: a palavra e a fala, o que ela convoca - Outro, outros - e o que ela também evoca: o nada, o impossível que só pode ser tocado - de leve -, posto que é na contramão da pulsão sem representação, do que não pode ser representado, que se institui a representação possível - a graça, de si para si mesmo passando pelo Outro - cultura que sanciona a fala -, para outros que advêm da transformação de dois em três, do drama ao trágico. Terceiro presente no Witz, na análise, na cultura/Lei do jogo, da brincadeira infantil que institui a ausência, a falta que precisa faltar para a palavra - e o Witz - existir. Para isso, lembra Karin, é preciso romper a compreensão e a própria noção de entendimento e atendimento que ela encerra para que o paciente possa ser escutado na sua ficção. Que não reste pedra sobre pedra do palavreado egoico/imaginário é o que Karin de Paula propõe. Não há negociação possível no cálculo da graça e do sujeito: paga-se com a carne, com a palavra nela inscrita da qual o neurótico sofre em se des-fazer. "Alegrar-se no deserto", propõe Karin; só diante do nada se pode instituir algo; do resto fazer o melhor possível. Do limão - o fel bíblico - a limonada. Estar só e nu diante de Deus, o Absoluto, e da solidão compartilhada numa psicanálise, calçar as sandálias na terra sagrada que é o nada, fazendo da palavra uma atualização do sujeito, verbo em ato convertido, e somente com-vertido pela hiância que o verbo instaura. Essa falta é o próprio Homem, diz, de forma metafórica, o texto bíblico. Não o idêntico em si mesmo, que o Homem não pode ver, nome impronunciável, luz que cega, pura pulsão sem representação rumando para a morte. Esta, diz Lacan, não faz Witz. Mas é possível fazer Witz da morte, como Karin demonstra citando anedotas judaicas.

Do paraíso - do qual sempre estivemos expulsos, lembra Luís Cláudio Figueiredo -, mal resta a lembrança, e do estatuto da verdade como realidade, nada sobra. Da verdade do sujeito, da ficção por ele inventada - repetida, no sintoma -, essa é a que conta para o psicanalista. Da destituição e explosão do Outro é quese institui o sujeito. É porque ele pode se deixar enganar que produz sentidos, que faz Witz. E ri de si mesmo. Riso fundamentalmente trágico, lembra Karin de Paula citando textos da Antiguidade grega, tão cara e fecunda para a psicanálise. Mas, afinal, que motivo melhor para o Witz senão não ter motivo algum? Afinal, como dizia o poeta, Hoje eu não sofreria nem por mim mesmo. Nosso destino é morrer. Mas é também nascer. O resto é aflição de espírito.

  • 1 Paulo Mendes Campos. Na praia. In: O amor acaba: crônicas líricas e existenciais. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1999.
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    FLÁVIA ALBERGARIA RAVELI
    Psicanalista; mestre pelo Departamento de História da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo - USP (São Paulo, SP, Brasil), doutoranda no Instituto de Psicologia da mesma Universidade e aluna do curso de formação do Centro de Estudos Psicanalíticos - CEP (São Paulo, SP, Brasil).
    Rua Humberto I, 974/63 - Vila Mariana
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  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      01 Out 2009
    • Data do Fascículo
      Set 2009
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