Open-access Dimensões vitalizantes da presença e o lugar do prazer no encontro analítico

Vitalizing dimensions of presence and the place of pleasure in the analytic encounter

Dimensions vitales de la présence et place du plaisir dans la rencontre analytique

Dimensiones vitalizadoras de la presencia y el lugar del placer en el encuentro analítico

Resumos

No campo da psicanálise, a dor é comumente entendida como motor de transformação, em detrimento do prazer. Há, porém, psicanalistas que destacam que experiências prazerosas também podem gerar desenvolvimento, configurando-se como vetores de vitalização. Winnicott, Ferro, Civitarese, Anne Alvarez, Bollas e Rachael Peltz são alguns deles, com os quais nos alinhamos e dialogamos neste artigo. Nossa proposta é apresentar e dialogar com as ideias dos autores referidos que contribuem para a compreensão do termo vitalização no processo analítico e suas possíveis conexões com o prazer.

Palavras-chave:
Prazer; vitalidade; desvitalização; encontro analítico


Psychoanalysis generally understand pain as an engine of transformation to the detriment of pleasure. However, some psychoanalysts stress that pleasurable experiences can also generate development, becoming vectors of vitalization, including Winnicott, Ferro, Civitarese, Anne Alvarez, Bollas, and Rachael Peltz, with whom this study aligns itself and dialogue. We aim to describe and discuss the ideas of these authors since they contribute to understanding the term “vitalization” within the analytical process and its possible connections with pleasure. .

Keywords:
Pleasure; vitality; devitalization; analytic encounter


Dans le champ de la psychanalyse, la douleur est communément comprise comme un moteur de transformation au détriment du plaisir. Cependant, certains psychanalystes tels que Winnicott, Ferro, Civitarese, Anne Alvarez, Bollas et Rachael Peltz soulignent que les expériences agréables peuvent également être génératrices de développement, en devenant des vecteurs de vitalisation. En dialoguant avec ces auteurs, notre objectif est de présenter et de discuter leurs idées qui contribuent à la compréhension du terme « vitalisation » dans le processus analytique et de ses liens possibles avec le plaisir.

Mots-clés:
Plaisir; vitalité; dévitalisation; rencontre analytique


En el campo del psicoanálisis, el dolor se entiende comúnmente como un motor de transformación en detrimento del placer. Sin embargo, hay psicoanalistas que subrayan que las experiencias placenteras también pueden generar desarrollo y convertirse en vectores de vitalización. Algunos de estos estudiosos son Winnicott, Ferro, Civitarese, Anne Alvarez, Bollas y Rachael Peltz, con los cuales nos alineamos y dialogamos en este artículo. Nuestro objetivo es presentar y debatir las ideas de estos autores que contribuyen a la comprensión del término “vitalización” en el proceso analítico y sus posibles conexiones con el placer. .

Palabras clave:
Placer; vitalidad; desvitalización; encuentro analítico


Meu trabalho é o de viver os meus prazeres e as minhas dores. É necessário que eu tenha a modéstia de viver.

(Lispector, 2016, p. 309).

A parede cheia de grandes quadros de orixás emoldura nossos encontros on-line. A primeira fala de Rosa1 anuncia o idioma de nossa relação: “gostei de você porque vi que você era louca que nem eu”. Sem renegar esse chamado para seu mundo mental, a acolho com um sorriso, contando com minha sanidade para circunscrever a doida coreografia que iniciava a envolver nós duas.

A loucura de Rosa era mesmo encantadora. Também eu - como todo humano - não poderia fugir dos recantos d’alma mais insanos. Assim selou-se um pacto no qual Rosa, como suplicante, ansiava por transformação de um modo que oscilava entre queixas agudas e risadas cheias de graça pueril. Nossos encontros transcorriam entre pedidos de atenção para sua dor, entremeados por histórias coloridas de alegria e prazer que narrávamos mutuamente.

Definitivamente, posso afirmar que uma experiência de prazer era partilhada por ambas.

Os parágrafos com os quais iniciamos este artigo trazem um breve retrato do encontro que se deu entre Rosa e uma das autoras. Ali, o prazer parecia despontar vitalizando o campo analítico, direcionando-nos a lançar as questões: qual o lugar do prazer no trabalho de análise? Qual sua relação com a vitalidade, tanto do analista quanto do paciente? Para dialogar com essas questões, seguiremos compartilhando ideias de Donald Winnicott, Antonino Ferro, Anne Alvarez, Christopher Bollas, Giuseppe Civitarese e Rachael Peltz.

É comum encontrarmos, no campo da psicanálise, certo destaque da dor psíquica como motor de transformação, em detrimento das experiências prazerosas. Porém, alinhadas com os autores citados acima, entendemos que o prazer também pode gerar desenvolvimento emocional, configurando-se como vetor de vitalização. Estamos falando do prazer do analista com seu trabalho, ainda que árduo, do prazer do encontro da dupla, do alcance de insights, enfim: do prazer de brincar e jogar junto. Nesta direção, Giuseppe Civitarese e Antonino Ferro (2022), na introdução do livro Playing and Vitality in Psychoanalysis, indicam a necessidade de “dar mais espaço em seu léxico analítico para palavras como prazer, sonho, criatividade, hospitalidade e crescimento” (p. 4).

Propomos então, neste artigo, apresentar ideias que contribuam para a compreensão do termo vitalização, de modo a refletir sobre qual dimensão de prazer estamos nos referindo. As situações clínicas vividas no trabalho analítico desenvolvido com Rosa nos serviram, aqui, para dialogar sobre a função vitalizadora da analista, ou seja, sua ‘companhia viva’, ainda que sujeita a situações de desvitalização - em outras palavras, um disponibilizar de presenças vitalizantes favorecedoras da experiência de sentir-se vivo e o mais plenamente humano.

Ressaltamos que faremos uma aproximação teórico-clínica do que denominamos vitalização. Estamos acompanhando Ogden (2013), autor que dá extrema ênfase a esse tema, e que assim afirma:

... palavras e frases só estarão frouxamente “fixas à página” (Frost, 1929, p. 713). Usarei palavras como “vitalidade” (aliveness) e “desvitalização” (deadness), “humano” e “perverso”, “sincero” e “não autêntico” sem defini-las exceto na forma em que são usadas em frases, o que é uma enorme exceção. (p. 21)

Reconhecemos assim uma tensão entre o esforço de compreensão de vitalidade e a manutenção de certa imprecisão, também, necessária. Tal abertura é capaz de salvaguardar a concavidade e o insaturado, a proximidade com o jogo, algo avesso ao aprisionamento teórico da experiência de vitalidade.

O analista como presença vitalizante

Se falamos da importância fundamental de oferecer presenças, o binômio mãe-bebê constitui paradigma que inaugura tanto a vitalização quanto o prazer como fontes para o vir-a-ser do bebê, similar ao ser e tornar-se do paciente - objetivo central do encontro analítico, segundo o vértice ontológico2.

Nessa direção, Winnicott (1975) é um dos autores que pensa a relação analista-paciente a partir da relação mãe-bebê. Analista e mãe sendo presenças vitalizantes e afetivas, com o prazer circulando entre ambos, caso as ausências e ameaças de desencontro não predominem.

O brincar é central na obra de Winnicott (1975), na verdade, também em sua vida. Tanto que encontramos em seus relatos, com certa frequência, a revelação do prazer que sentia em exercer seu ofício: “eu participava ativamente nesta brincadeira que muito nos divertia” (Winnicott, 1984, p. 25), ou “estávamos os dois encantados em brincar juntos” (p. 61). Mas, com o mesmo cuidado em pensar a alegria, precisamos entender o brincar para além das brincadeiras; ou seja, como uma capacidade de o analista se colocar na posição subjetiva, de acordo com as necessidades psíquicas do paciente: é a esse jogo que se refere Winnicott. Como a alegria era uma escolha ética, esta tornou-se o centro da concepção de seu trabalho - e quanto ao brincar, ele enuncia: “se o terapeuta não pode brincar, isto significa que não é feito para este trabalho” (1975, p. 80).

No texto “Os objetivos do tratamento psicanalítico” (1962/1982c), Winnicott afirma:

Ao praticar psicanálise, tenho o propósito de:

Me manter vivo;

Me manter bem; me manter desperto.

Objetivo ser eu mesmo e me portar bem. (p. 152)

Tal vivacidade, atenção engajada, como veremos mais adiante em Peltz3 (2020), se apresenta no amor materno que equivale à mãe tomando o bebê de forma viva, sem algo que perturbe a experiência, assim possibilitando um encontro vivo. Winnicott (1964/1982b) também escreve que a mãe compreende o que o bebê sente porque está viva e tem imaginação. Ou seja: só seremos capazes, como analistas, de ir ao encontro analítico de nossos pacientes se estivermos vitalizados e em contato com nossa criatividade psíquica.

Assim como a vivacidade, quando está presente na clínica, advém de ambos (analista e paciente), a comunicação mútua mãe-bebê, iniciada no útero, é experienciada com vivacidade pela dupla: “ao espernear, [o bebê] dá sinais concretos de vida e de vivacidade” (Winnicott, 1964/1982a, p. 21). Porém, a vivacidade do bebê depende, de certa maneira, da mãe - ela mãe precisa estar bem para receber com alegria esses sinais de vida do bebê. Por isso, Winnicott incentiva as mães a se envolverem ativa, íntima e corporalmente com seu bebê, como vemos em uma de suas palestras, denominada “O bebê como organização em marcha”:

Bem, faço votos para que se divirta! Divirta-se por a julgarem importante. Divirta-se deixando que as outras pessoas cuidem do mundo, enquanto você está produzindo um de seus membros. Divirta-se com a sua concentração interior, quase enamorada de si própria - o bebê e uma parcela tão próxima de si. Divirta-se com a maneira como o seu homem sente-se responsável pelo bem-estar tanto seu como do bebê. Divirta-se descobrindo coisas novas a seu próprio respeito. Divirta-se tendo mais direito do que jamais conseguira ter, antes de fazer justamente aquilo que acha bom. Divirta-se quando fica contrariada porque os gritos e prantos do bebê o impedem de aceitar o leite que você anseia por dar com generosidade. Divirta-se com toda espécie de sentimentos femininos que você não pode nem sequer começar a explicar a um homem. Em particular, sei que a leitora [mãe] vai adorar os sintomas que gradualmente irão aparecendo, de que o bebê é uma pessoa e de que você é reconhecida como uma pessoa pelo bebê. (Winnicott, 1964/1982b, pp. 27-28)

O prazer torna-se, assim entendemos, um elemento fundamental e vitalizador, como acontece no encontro analítico - a vitalidade do paciente está conectada à do analista. Se o contato da mãe com seu filho lhe dá prazer, este é “vitalmente importante do ponto de vista do bebê” (p. 28). O prazer sendo vitalizador, não pelo fato de o bebê ser cuidado com perfeição, por uma mãe mecânica, infalível e correta - e sim por ser ofertado com alegria. Assim, é importante que o alimento, por exemplo, seja oferecido por alguém que ‘ama’ alimentar seu bebê. O prazer da mãe surge, desse modo, como equivalendo “ao raiar do sol do bebê” (p. 28).

O analista, como a mãe, precisa receber o paciente de forma viva, com alegria, como uma forma de recepção atenta, disponível e com interesse genuíno, possibilitando, nas palavras de Ogden (2020, p. 26), caminhos para o paciente “tornar-se mais plenamente si mesmo”.

Em cada bebê existe, para Winnicott (1964/1982b), uma centelha vital, um impulso inato para a vida, sendo esta uma parte que impulsiona o bebê a seguir adiante em seu amadurecimento.

Goldman (2012) vai além: “no coração da obra de Winnicott está uma persistente preocupação com o impulso para a vida e com a morte que resulta de falhas em criar e descobrir um mundo que pode tolerar sua própria vivacidade (aliveness)” (p. 333). Na verdade, também acreditamos que nossos pacientes carregam, lado a lado ao impulso vital, a morte resultante de ausências inevitáveis da vida, algumas delas impeditivas talvez de encontrar um mundo que acolha sua vivacidade.

Para que a centelha vital do bebê venha a se desenvolver, precisa de modo absoluto do amor da mãe; isso não significa que elas (as mães) sejam responsáveis pela vivacidade de seu filho. Algumas mães que assim o sentem, ficam no papel de animadoras, em vigília, aguardando aflitas que seus bebês deem sinais de vida - algo que indique que o processo vital na criança continue.

De modo similar, o paciente necessita de nossa presença vitalizante, de nossa alegria ética. Devemos, pois, pensar a alegria como princípio ético e não restritamente como traço de humor: eis a interessante proposição de Macedo (1999).

Por outro lado, podemos lidar com tendências por parte de nosso paciente a ausentar-se do contato. Assim como as mães não põem vida em seu bebê, também o analista não põe vida em seu paciente, embora precise convidar para a vida. É essencial pontuar que a vitalização convoca à vida, por isso o prazer é tão fundamental.

Seguindo Peltz (2020), precisamos apostar nas dimensões de vida de nossos analisandos, embora nem sempre podendo resgatá-los dos infernos e desertos que atravessam. De modo a evitarmos ao máximo extravios e deslizes de morte psíquica, é fundamental que ofertemos uma atenção engajada na direção de cuidar para que nossos pacientes não sejam sugados pelos redemoinhos da vida, inclusive do que é vivenciado nos desencontros do par analítico. Assim como a vitalização, o prazer surge como ferramenta possante ao nosso alcance, considerando tanto o impulso vital quanto os assombros traiçoeiros de morte: o prazer como solo em que a dor psíquica seja passível de ser metabolizada.

A celebração do analisando pelo analista: um olhar bollasiano

A partir de ideias de Bollas (2021), seguimos aqui nosso interesse por lançar luz às dimensões afirmativas da vida em detrimento de um pensamento que prioriza a análise dos processos destrutivos, do ódio, de uma concepção da realidade apontada como fundamentalmente dolorosa. Esse autor declara sua perplexidade diante da exclusão de uma tarefa psicanaliticamente mais difícil que a análise dos processos mentais destrutivos: a psicanálise dos instintos vitais do paciente e suas criativas e admiráveis realizações na vida e na análise.

Bollas (2021) se refere à celebração do analisando pelo analista como um registro da presença do instinto vital do paciente. Da mesma forma que a análise dos instintos de morte não significa condenação, a análise dos instintos de vida não significa elogio. Afirma que, do mesmo modo que usa seus sentimentos no trabalho interpretativo ao confrontar seu analisando, usa-os também para celebrá-los:

O analista que celebra a chegada das representações do instintual e verdadeiro self proporciona uma função importante de ligação entre o mundo exclusivamente interior e o mundo real. Nessa posição intermediária, o analista usa certa sensibilidade afetiva para conter e processar receptivamente os aspectos da realidade emocional do paciente, que este se sente compelido a guardar para si mesmo. É desnecessário dizer que isso envolve o analista em uma função um pouco diferente daquela em que o seu modelo tradicional é o da voz neutra; em relação ao que foi dito acima, a voz do analista é, sem dúvida, portadora de sentimentos. (p. 114)

O que pretendemos ressaltar aqui é a ênfase que Bollas dá ao uso por parte do analista de certa sensibilidade afetiva que exige dele uma função diferente do modelo ‘clássico’. É muito interessante que, no lugar da voz neutra, a voz do analista possa ser portadora de sentimentos - não como descargas afetivas da personalidade do analista, mas de modo a usá-los em disponibilidade para o esclarecimento analítico. Pari passu ao fluxo das associações livres, aqui se destaca o fluxo dos sentimentos: “O psicanalista celebra o verdadeiro self por meio de sua resposta afetiva à sua presença!” (p. 114).

Trata-se de interesse genuíno, atenção engajada, vivacidade. Pequenas, vigorosas e afetivas intervenções por parte do analista são como se o analista dissesse: “O verdadeiro self! Por este caminho! Por aqui!” (p. 114).

Da mesma forma que valoriza a confrontação analítica frente à turbulência emocional derivada de relações familiares patológicas, Bollas considera que é de sua responsabilidade prestar cuidadosa atenção às aptidões do ego do analisando, apoiando-as pela celebração, e, em seguida, interpretando-as. O uso dos sentimentos do analista é aqui tão importante quanto o momento em que se dá a celebração da presença do analisando. Resposta afetiva e sentimentos estão no cerne do sentido do uso que Bollas faz do conceito de celebração, e que se liga à ideia que pretendemos transmitir neste artigo, em que as dimensões vitalizantes ganham destaque na coreografia do par analítico -tendo no centro a afirmação dos aspectos vitais tanto do paciente, quanto do analista, sem desconsiderar, no entanto, as ameaças de morte psíquica.

Vinculado à celebração do analisando, Bollas (2021) também chama atenção para o lugar do prazer dentro da situação analítica. Primeiramente, parte do significado de prazer do dicionário Webster4: “a gratificação dos sentidos e da mente”, o que gera um problema, ao se chocar com a concepção clássica de que o analista não deve gratificar o paciente.

Mas, então, analista e paciente não poderão encontrar prazer no processo analítico? Bollas vai na contramão dessa concepção, e a ele nos alinhamos. Considera veementemente que a análise gratifica a mente, e que ser compreendido é gratificante, assim como a associação livre, o deitar-se no divã. Em suma: falar com o analista é uma experiência diversa de qualquer outra conversa, como se no campo analítico as palavras valessem mais.

Continuando com o dicionário Webster, Bollas destaca que o prazer é uma “sensação ou emoção agradável”, como de fato experimentamos no encontro analítico destacando, aqui, a transferência positiva. Também “excitamento, satisfação e felicidade gerados pelo gozo da expectativa do bem” é uma maneira de definir a resposta de prazer do analisando diante de determinadas interpretações. Quando o prazer surge, é importante que o analista se refira a ele, mostrando que o par analítico está trabalhando de forma proveitosa, e que isso gera prazer.

Além do princípio do desprazer5, a relevância do prazer na teoria e na técnica psicanalíticas

Vamos agora compartilhar ideias desenvolvidas por Anne Alvarez6, psicanalista dedicada ao atendimento de crianças autistas, abusadas e com adoecimentos que beiram o inumano (o que não é pouco). Pensamos que suas reflexões sobre o jogo, no que ele envolve de vitalização e prazer, podem se estender ao atendimento de adultos.

Interessante que Alvarez se remete ao conhecido exemplo do jogo do carretel do neto de Freud (1920/2010), o qual, inclusive, a autora considera como a primeira teoria psicanalítica do brincar. Frente ao seu sentimento de desamparo derivado de uma saída da mãe, o menino assim brincava: segurava o carretel pelo barbante e jogava-o sobre a borda do berço, de modo a fazê-lo desaparecer, ao mesmo tempo em que emitia um expressivo “o-o-o-o”. Puxava o carretel em seguida de volta para o berço e celebrava seu reaparecimento com um alegre “dá” (lá). Ou seja, o jogo condensava, de modo completo, desaparecimento e retorno. Freud o interpreta como uma grande renúncia instintiva que seu neto fizera ao permitir que a mãe saísse sem protestar.

Alvarez ressalta, porém, que, embora Freud reconhecesse que a segunda parte do jogo era a maior fonte de prazer, ele enfatiza que a experiência desagradável é que estava sendo representada; e isso mesmo que o princípio do prazer ainda tivesse importância, já que uma experiência passiva fora transformada em ativa. Isso mostra que o prazer é visto por ele, principalmente, como uma defesa contra o desprazer, provavelmente devido à visão da realidade como fundamentalmente frustrante e dolorosa e, portanto, precisando ser enfrentada para se chegar a um acordo. Ao contrário, na visão da psicanalista, com a qual dialogamos, o jogo não indica fuga da realidade desagradável e sim um brincar que favorece a compreensão da criança do desaparecimento e retorno da mãe.

Alvarez (1988) sugere que a brincadeira pode vir a ser uma preparação para realidades mais prazerosas, o que não quer dizer que constituam a negação do desprazer. E ressalta algo bastante relevante: a longa transição de uma psicanálise centrada no passado para o pensamento de que a técnica deve fundar-se num presente vivo, mais além, em direção ao futuro. De fato, esse direcionar para o presente e, ainda, para o futuro, traz importantes consequências para a técnica. Entretanto, Alvarez alerta que a noção de perda e frustração, também, atuam como estimuladores do pensamento.

Como já afirmamos, podemos estender as ideias da autora à psicanálise com adultos7. No que se refere à técnica psicanalítica, entendemos que conduzir o encontro analítico na direção de vislumbrar futuros8 abre possibilidades que vão além do retomar o passado, e demanda uma presença vitalizante que aposta na fé em uma realidade que é fonte de prazer e possibilidades. Trata-se de algo, sem dúvida, vitalizador.

Retomando brevemente o caso da paciente Rosa, a mistura de crenças, desde umbanda, jogo de búzios, tarô e tantas outras, comunicava seu ardor por oráculos que decifrassem seu passado, mais que o futuro. Por sua vez, a analista a acompanhava nas instabilidades do presente, com os encontros seguindo entre prazer e risadas entremeados por choros imprevistos. A aposta era de que a oferta de futuros viesse a trazer-lhe esperança, bem como a possibilidade de renovação e de entrar na vida.

Prazer legítimo9: um bom motivo para retornar à próxima sessão

Por que continuamos seguindo juntas? O que nos unia? A minha entrada no mundo estético de Rosa nos aproximava (músicas, filmes, sua religiosidade), assim como nos divertíamos no encontro analítico. Podia o prazer amainar a dor, trazendo vitalidade ao encontro? Sigo apresentando algo mais da história do processo analítico com Rosa, clareando por que caminhos a leveza fazia sua aparição - intrigante, mas não impossível de acontecer no atendimento de um caso considerado difícil, pois reconheço o perambular sem rumo de Rosa e seus períodos de grande dor. Poderia o prazer metabolizar a dor? Que coreografia era esta que nos enlevava? Apresento, portanto, os enlaces que nos envolviam.

Rosa segue com seus interesses esotéricos, mas também nos encontramos nas músicas e cantores. Por exemplo, quando no meio da sessão, distraidamente, recita o verso de Zé Ramalho da canção “Chão de giz”: “são meros devaneios tolos a me torturar, amiúde”. Surpreendo-me com a capacidade de pescar pérolas que Rosa tem, afinal, não havia ainda reparado na beleza e na eloquência do verso. Também pensei na sintonia com o temor de abandono - devaneios tolos decerto - que a rondavam. Foi um momento em que nos encontramos em torno de um objeto estético que remetia à juventude, mas de modo especial, às suas dúvidas de amor.

São objetos culturais que nos unem, assim como ela traz de estrangeiro para mim os orixás e as demais crenças, apresentadas em palavras de difícil compreensão. São dialetos diversos que me atraem ao seu mundo psíquico enquanto nos esbarramos com delicadezas no encantamento comum pelas canções do tempo d’outrora. Em algumas sessões vivenciamos, portanto, momentos estéticos, no navegar de tempos sombrios, outros de leve brincar ou ainda cirandas em que as melodias emolduram as letras das canções pescadas por Rosa. São versos que me surpreendem ao me capturarem em meus devaneios - eu distraída da eloquência que veiculam. Sua mente, por sua vez, se mantinha viva, aberta e receptiva para a expressividade dos versos. O compartilhar de objetos culturais, assim como de boas risadas, banhavam algumas sessões de prazer e sua potência de transformação e elaboração da dor.

Em seu texto “O prazer da hora analítica”10, Antonino Ferro11 (2017) reconhece que a dor, considerada como fator de transformação, é objeto de muitos estudos em psicanálise, ao passo que o prazer é pouco abordado. O autor retoma a afirmação de Bion12: como analistas, devemos fornecer ao analisando, em todas as sessões, um bom motivo para que volte no encontro seguinte. Enumera, também, outros prazeres: as transformações que vivenciamos na trajetória analítica, descritas por Freud, mas especialmente por Bion; transformações no jogar e no sonho, assim como na autobiografia, o prazer da descoberta e do insight.

Interessante também a maneira como Ferro (2017) aborda o tema da criatividade, destacando o quanto é comum encontrarmos pessoas que têm medo do criar, por trazer à tona o desconhecido, quando, na verdade trata-se de um lugar de prazer e transformação. Ele nos conta de uma experiência pessoal com um colega psicanalista, que teria ficado escandalizado quando Ferro lhe disse que “gostava” de ser analista, como se isso significasse que estava desconsiderando a dor e o sofrimento de seus pacientes. E completa: “A criatividade é capaz de abrir, transformar, metabolizar até a dor, o sofrimento, a agonia, as coisas horríveis das quais também somos moldados” (p. 70; grifos do autor).

Refere-se, também, a Ogden (2018), quando este diz que o que não pode ser sonhado torna-se um sintoma que pode ser dissolvido ao ser sonhado pela dupla analítica. Por esse caminho, emerge o prazer por enigmas (puzzles), a curiosidade, o prazer da história e, antes disso, a reverie e as capacidades de transformação em sonho, em brincadeira e jogo. Vivenciar o brincar compartilhado com o analista, aqui entendido como favorecedor de longas travessias analíticas por experiências dolorosas, parece um bom motivo para que o analisando volte na sessão seguinte.

Um aspecto do prazer analítico mencionado por Ferro é a conarração na sessão, da qual fazem parte tanto o analista como o paciente; ou seja, quando falamos em prazer legítimo, estamos nos referindo à experiência de que algo é partilhado pela dupla analítica.

A oferta da vitalidade do analista: algumas ideias de Rachael Peltz

O título do artigo de Rachael Peltz (2020) - “Ativando a vitalidade no encontro analítico: o fundamento do Ser em Psicanálise”13 - condensa as ideias que ligam brincar, prazer e vitalização. Segundo a autora, “a ênfase aqui está na ativação de presenças vitalizantes (vitalizing) e afetivas no campo do relacionamento analítico - transformação em ação, transformação em ser, em que nós ‘usamos tudo o que há para usar’ para estabelecer contato emocional” (p. 268).

Embora não se refira diretamente ao prazer, ao destacar a noção de vitalização, Peltz parece relacionar tal experiência ao ato de ligação (Bindung assim chamado em alemão por Freud) e a Eros (pulsão de vida).

É importante destacar que Peltz (2020) sugere uma mudança de paradigma na psicanálise - de uma explicação causal para uma perspectiva fenomenológica, na qual o fundamento é o campo da relação, incluindo “todas suas dimensões não-simbólicas-incorporadas, pré-simbólicas-descritivas e simbólicos-representacionais” (p. 267). Somente assim podemos acessar “os assombros de morte mais traiçoeiros” (p. 267).

Desse modo, será possível oferecer nossa vivacidade, acreditando também que venhamos a atravessar nossos próprios assombros, para que juntos possamos enfrentar “o objeto da morte” (Durban, 2017, p. 15). Será dentro deste paradigma que iremos trabalhar, predominantemente.

Peltz (2020) sugere que devemos estar próximos aos nossos pacientes, atendendo suas experiências vividas a partir de uma abordagem mais fenomenológica do que explicativa; ou seja, algo diverso das dimensões causais dos porquês. Isso vai ao encontro do que Alvarez (2020) chama de dimensões descritivas e vitalizantes, e do que Ogden (1999) refere quando escreve sobre a música do que acontece na poesia e na psicanálise. Assim, no lugar de explicar, a prática clínica atual nos dirige ao ‘compreender’, entrando no campo do relacionamento analítico de um modo que podemos denominar corporificado. Peltz nos remete novamente a Alvarez (2020), quando a autora denomina a aproximação de situações reais a presenças vitalizantes14, como apontamos no título do artigo.

Peltz (2020) levanta a questão: em que registro estamos quando a troca vitalizante ocorre? A resposta é a oferta de uma forma de engajamento que venha a gerar presenças diante das ausências vitais, incluindo as ausências em nosso próprio trabalho.

No paradigma mencionado por Peltz (2020), o chamado é, pois, para o engajar nas “dimensões afirmativas da vida” (p. 269). Também se referindo ao jogo do carretel do neto de Freud, e alinhada a Alvarez, como vimos anteriormente, ressalta que, até recentemente, ouvimos mais sobre o “fort” do que sobre o “da”. Argumenta ainda que não necessariamente nossos pacientes estão mais adoecidos, propondo que, na verdade - “(...) nossas metáforas estão mudando - de cavar para alcançar ‘profundidade’ em direção a receber profundamente, aprimorar, amplificar” (p. 269).

Assim como Peltz (2020), também perguntamos: “O que é uma presença vitalizadora?”. Trata-se de “uma presença que desperta momentaneamente a capacidade mais rudimentar em uma pessoa em se sentir viva com ela mesma” (p. 170). É aquela que permite a alguém se sentir vivo - nos casos mais graves, a ‘nascer de novo’. Mas como isso acontece? A resposta é simples e complexa ao mesmo tempo: auxiliamos o paciente a se sentir vivo ao nos importarmos autenticamente com ele!

Algo semelhante ao reclaiming de Alvarez (2020) com seu paciente Robbie e sua expressão espontânea: “Ei!”, significando: “Ei! Você importa!”. Haverá algo mais profundo e fundamental em nosso estar com o paciente? Um extremo e complexo cuidado, assim compreendemos. Vemos aqui a importância do interesse genuíno do analista pelo paciente, manifesto em palavras com investimento afetivo simples e direto. Conseguir comunicar ao paciente essa simples e profunda mensagem, eis o solo em que se planta o trabalho analítico a partir dos autores que estamos dialogando.

Peltz (2020) também leva em conta a linguagem como vetor de vitalização15, referindo-se a interpretações insaturadas16 que expandem o que é sentido e não perseguem o paciente. A autora fala, ainda, da tarefa nada simples de “salvaguardar a segurança de uma interpretação!” (p. 272) - como, quando e quanto interpretar. Ideias que também estão presentes no pensamento de Thomas Ogden (2018): o mais importante é como falar, e não o que falar.

A atenção engajada (engaged attentiveness) possibilita que detalhes vitalizantes da vida cotidiana venham a emergir (Peltz, 2020, p. 174). Portanto, estamos nos referindo a significados em comum: interessar-se, importar-se, oferecer atenção engajada. Consequentemente, tal atenção nos direciona à linguagem que se adapta a cada paciente. Para tal, é preciso salvaguardar uma dimensão atenta, propiciadora de trazer à vida o que o encontro analítico traz de desafiador.

A atenção destacada por Peltz pode ser associada aqui à ideia de devoção de Winnicott17 (1982a). Mais importante do que estar ‘certa’, é que a presença do analista seja experienciada pelo analisando, pensamento do qual compartilhamos.

Seguimos com Peltz (2020), que aponta como a vitalidade (lifeness) que emerge no encontro analítico serve como fundamento do ser na psicanálise. É a partir desse solo ontológico que se dá a possibilidade de nos aproximarmos das “assombrações de morte” (p. 270) do paciente. Afinal, quando estamos falando de Eros, a dimensão tanática também está presente. Da mesma forma que cuidamos dos recursos vitais do paciente, tal atenção vem imbricada com o olhar para o mortífero: é preciso considerá-lo para podermos afirmar a vida.

As ideias de Peltz acompanham o texto de Ogden (2020): “Psicanálise ontológica ou ‘o que você quer ser quando crescer’”, quando este identifica um movimento crescente na direção da psicanálise ontológica (tendo Bion e Winnicott como principais interlocutores). A psicanálise ontológica se refere a uma experiência na qual o paciente está engajado num processo de tornar-se mais plenamente humano. Ogden declara que algo mudou em seu pensamento com o direcionamento do enfoque nas relações inconscientes de objetos internos - o que ele denomina de psicanálise epistemológica, com Freud e Klein como principais referências - para “a luta de cada um de nós por tornar-se mais pleno e as experiências mais reais e vivas” (p. 24).

Essa mudança que Ogden e Peltz compartilham nos parece surgir vinculada ao resgate do lugar do prazer na psicanálise, a partir da qualidade da presença, tanto no encontro analítico como no encontro bebê-objeto primário.

Referindo-se a Winnicott e Bion, Ogden (2020) afirma: na psicanálise ontológica a experiência ganha destaque em relação ao conhecimento. Seguindo o pensamento de Winnicott, nos diz que será fonte de alegria chegar à compreensão criativamente. Ou, nas palavras de Peltz (2020): “Esses momentos fugazes de vitalidade (lifeness) animam nossas almas. Eles fazem a vida valer ser vivida” (p. 268).

A palavra anterior ao entendimento, palavra-presença

Assim como os autores que aqui visitamos, compreendemos que a celebração do analisando parece se relacionar ao prazer. Nessa perspectiva, é preciso que resgatemos o lugar da gratificação, não como forma de elogio, mas como uma parte fundamental da técnica analítica, como tão bem indica Bollas (2021). Atravessamos com esses autores noções de prazer e vitalidade na esfera do afeto e do sentimento, derivando daí tanto as limitações como sua potência.

No dizer de Civitarese (2018), alguém que se sente vitalizado ou não, autêntico (ou não), não pode ser reduzido a uma fórmula conceitual. O autor retoma então este trecho de Ogden (1995):

Em qualquer forma de atividade psíquica o sofrimento resulta de uma limitação da capacidade do indivíduo de se sentir plenamente vivo como ser humano. O que estas associações imediatas dizem é que a tarefa da psicanálise é muito mais ampla do que resolver conflitos psíquicos, eliminar sintomas, ampliando a capacidade de refletir sobre si mesmo e tomar iniciativa, mas tem a ver com promover a experiência de sentir-se vitalizado e com o fato de que a dimensão da vitalidade deve ser considerada uma análise “em seus próprios termos”. (p. 700)

Aqui, Civitarese (2018) lança a pergunta: “O que significa hoje quando falamos de cura em psicanálise?” (p. 129). E responde fazendo um paralelo com os textos psicanalíticos que considera mais interessantes, os quais seriam os mais vitais. Indiretamente ele associa cura com tornar-se o mais vivo possível. Existem textos que respiram e textos que oprimem. Nos primeiros, a linguagem é cotidiana - o analista expressa um interesse genuíno ao conhecer o paciente, reconhece suas emoções e usa a teoria com delicadeza. O vivo parecendo estar no aparentemente simples. Nos textos aprisionantes, ao contrário, se erguem muros de teoria e jargão, muitas vezes assumem um tom moralista, como um grilo falante, e frequentemente parecem frios e insensíveis.

Circunscrevemos assim o processo analítico com vitalidade, simplicidade, o respirar como bem precioso que indica o iniciar da vida; assim como o não-respirar com o seu final. Estamos num momento da psicanálise em que nos encaminhamos para o resgate do prazer, da técnica do jogo, da delicadeza, da emoção e interesse pelo paciente; enfim, do sentir-se vivo na análise.

O prazer comparece aqui como uma das facetas do humano, uma experiência factual, lado a lado com a dor, a alegria, de tudo que faz parte do humano e das vivências relacionais. Podemos supor uma dimensão ontológica do prazer baseando-nos na afirmativa de Ferro, de que o mesmo é fator de transformação, concepção partilhada pela maioria dos autores aqui apresentados. Assim, podemos abrir como questão, caminho para novas pesquisas, o lugar do prazer na vida, na relação mãe-bebê (como vimos em Winnicott) e na hora analítica; buscando melhor compreender a dimensão ontológica da experiência humana.

Vitalidade não é idêntica a sentir prazer e não se encontra circunscrita a determinados momentos, nem a uma experiência uniforme. Estar vivo implica inclusive a vivência de dor e sofrimento, é estar vivo para a experiência, também de prazer. Vitalidade não é algo estático, podendo até incluir momentos de desvitalização ou a tendência a deixar de existir.

Como sugere Boraks (2008, p. 115) em seu artigo “A capacidade de estar vivo”: viver é a capacidade de sustentar alternâncias, sendo que, se estas ficam restritas a agonias e/ou medo, o paciente se torna sobrevivente, não tendo alcançado a vida. Viver inclui deslocamentos entre vários aspectos do núcleo do ser e da existência, podendo até ser capaz de desistir momentaneamente da vida, abandonando o impulso para existir e, portanto, acolhendo toda a amplitude de vivências subjetivas. Devemos abandonar o mito da “inteireza” e de um funcionamento harmônico: a capacidade de estar vivo implica o trabalho psíquico com nossas ambivalências - “a partir, inclusive, da nossa ambivalência em relação à capacidade de estarmos vivos”, como diz Boraks (p. 122).

Acreditamos que cresce o interesse pela compreensão do que aqui nomeamos vitalização; ousamos referirmo-nos que se trata de uma pesquisa relativamente recente: é um debate atual que caminha pari passu com o pensamento do vértice ontológico da psicanálise, referido acima. Testemunhamos na psicanálise contemporânea uma virada significante de uma ênfase no luto do velho para uma criação do novo, distanciando-nos do desenterrar de conteúdos reprimidos e caminhando na direção da geração de futuros. A transição da ênfase no passado para o futuro, do soterrado para o emergente, da perda para a descoberta, do morto para o vivo vai constituir uma mudança relevante na teoria da técnica, direcionando-nos para o que aqui chamamos de vitalização, que significa a geração de uma nova experiência e de um processo interno vivificante que pode surgir através de uma profunda troca de afetos entre os pares da dupla analítica. O encontro das subjetividades no processo analítico pode ser gerador do novo, dando vida a experiências não desenvolvidas, num propulsor movimento em direção à transformação.

Várias questões despontam: como pode dar-se o encontro analítico, de tal forma que as feridas do passado não sejam negadas, mas ao contrário insuflem esperanças para o futuro? Como dar vida aos estados de morte? O que podemos fazer com a experiência de morte, para que seja possível o advir de uma nova vida?

Considerando que cada vez mais nos procuram pacientes agarrados em penhascos, à beira de abismos, lutando pela vida, o tema da vitalização ganha centralidade na teoria da técnica; é algo fundante que remete à constituição do eu e se faz necessário. O termo “técnica” se faz restrito para descrever os vários caminhos acessados pelo analista, as intervenções vitalizantes, para auxiliar o paciente a viver a vida do modo mais pleno possível.

Finalizamos com o texto de Civitarese (2018), que nos convoca a reconhecer a dimensão vitalizadora do analista. Nela vislumbramos a prevalência do Ser, o vértice ontológico guiando os novos passos da psicanálise, paradoxalmente em suplementaridade18 com a psicanálise epistemológica:

Só posso me sentir vital aos olhos de alguém. Nesses olhos, você deve ser capaz de se reimaginar de uma forma que o faça sentir-se satisfeito, em essência, amado. Você se torna você mesmo por meio desse espelhamento. Se você se sentir friamente refletido, algo dentro de você permanecerá silencioso, inerte, estéril e indefinido. Às vezes isso acontece. (p. 132)

  • 1
    Rosa é uma vinheta clínica ficcionalizada de uma das autoras deste texto, por esse motivo o uso do pronome no singular.
  • 2
    O vértice ontológico da psicanálise será abordado mais adiante no texto.
  • 3
    Rachael Peltz, Ph.D., psicanalista, co-diretora do Psychoanalytic Institute of Northern California em 2019 (PINC), Editora associada da revista Psychoanalytic Dialogues, exerce suas atividades clínicas em Berkeley, California.
  • 4
  • 5
    “Além do princípio do desprazer” (Beyond the unpleasure principle: Some preconditions for thinking through play, 1988) é o título do artigo de Anne Alvarez no qual nos apoiaremos neste item.
  • 6
    “É psicanalista de crianças e adolescentes, foi copresidente do setor de autismo na Clínica Tavistock, em Londres, foi professora visitante no departamento de neuropsiquiatria infantil na Universidade de Turin. Atualmente é professora visitante e palestrante na Clínica Tavistock e no Curso de Formação de Analistas de Crianças e Adolescentes da Sociedade Psicanalítica de São Francisco. É autora em português dos livros Companhia viva e Coração Pensante.” (https://www.blucher.com.br/autor/detalhes/anne-alvarez-1727. Acesso 14 set. 2024)
  • 7
    No texto de Peltz que apresentamos neste artigo, a autora compartilha da mesma concepção.
  • 8
    Trabalhamos sobre futuros em outro texto.
  • 9
    Esse termo foi inspirado na música Oração ao tempo: “tempo, tempo/Peço-te o prazer legítimo/E o movimento preciso/tempo, tempo/Quando o tempo for propício”. Compositor brasileiro Caetano Veloso, segunda faixa do álbum Cinema Transcendental (Philips/PolyGram), lançado em 1979.
  • 10
    “The pleasure of the analytic hour”.
  • 11
    Antonino Ferro é “médico, psiquiatra e psicanalista de crianças, adolescentes e adultos, é analista didata e supervisor na Società Psicoanalitica Italiana (SPI), da qual foi presidente (2013--2017), e membro da American Psychoanalytic Association (APsaA) e da International Psychoanalytical Association (IPA). Autor de vários livros e inúmeros artigos sobre clínica, técnica e teoria da técnica publicados em revistas de psicanálise na Itália e em outros países, é um analista internacionalmente conhecido, com profundas contribuições em relação ao trabalho analítico e ao encontro analista/paciente.” (https://www.sbpsp.org.br/blog/homenagem-a-antonino-ferro/. (Acesso em 14 set. 24).
  • 12
    Bion aborda essa questão em vários de seus seminários clínicos ocorridos na década de 1970.
  • 13
    “Activating lifeness in the analytic encounter”, todos os textos em inglês utilizados neste artigo são tradução nossa.
  • 14
    O nome do artigo se refere a essa expressão de Alvarez (2020): presenças vitalizantes.
  • 15
    Em trabalho anterior (Cesar & Ribeiro, 2023) compartilhamos de ideias semelhantes.
  • 16
    Insaturado refere-se a uma interpretação que favorece a expansão para uma rede múltipla de significados.
  • 17
    Estendemos aqui o termo devoção usado por Winnicott ao se referir aos cuidados iniciais da mãe com seu bebê e que inclui seu envolvimento total, aos cuidados terapêuticos - excluindo qualquer tipo de sentimentalismo. Visamos destacar o uso que o autor faz do relacionamento mãe-bebê como inspiração para desenvolver seu pensamento sobre o par analítico, com suas devidas diferenças.
  • 18
    Fazendo referência ao pensamento de Derrida, Coelho Junior e Figueiredo (2004) compreendem a suplementaridade das dimensões intersubjetivas, argumentando que “cada dimensão é sempre um apelo de suplemento endereçado ao outro, assim como cada dimensão procura no outro a suplência de suas fraquezas ou o controle suplementar de seus excessos” (p. 24).

Referências

  • Alvarez, A. (1988). Beyond the unpleasure principle: Some precontitions for thinking through play. Journal of Child Psychotherapy, 14(2), 1-13.
  • Alvarez, A. (2020). Companhia viva. (Hirschhorn, trad.). Blucher.
  • Bollas, C. (2021). A celebração do analisando pelo analista. In Forças do destino (pp. 105-120). Escuta.
  • Boraks, R. (2008). A capacidade de estar vivo. Rev. Bras. Psicanál [online]. 42(1), 112-123.
  • Cesar, F. F., & Ribeiro, M. F. R. (2023). Chuva n'alma. A função vitalizadora do analista Blucher.
  • Civitarese, G. (2018). Vitality as a theoretical and technical parameter in psychoanalysis. Rom J Psychoanal, 11(2), 121-138. DOI: 10.2478/rjp-2018-0022.
    » https://doi.org/10.2478/rjp-2018-0022.
  • Civitarese, G., & Ferro, A. (2022). Playing and Vitality in Psychoanalysis (Ian Harvey, transl.). Routledge.
  • Durban, J. (2017). Facing the death-object: Unconscious phantasies of relationships with death. In Not Knowing, Knowing, not Knowing: Festscrift Celebrating the Life and Word of Samuel Erlich (M.Erlich-Ginor, Ed., pp. 85-115). International Psychoanaytic Books.
  • Coelho Junior, N. C., & Figueiredo, L. C. (2004). Figuras da intersubjetividade na constituição subjetiva: dimensões da alteridade. Interações, IX(17), 9-28.
  • Ferro, A. (2017). The pleasure of the analytic hour. The Italian Psychoanalytic Annual, 11, 67-78.
  • Freud, S. (2010). Além do princípio do prazer. In S. Freud, Obras completas (P. C. Souza, Trad., Vol. 14, pp. 161-239). Companhia das Letras. (Trabalho original publicado em 1920).
  • Goldman, D. (2012). Vital sparks and forms of things unknown. In Donald Winnicott Today (J. Abram, Ed., pp. 331-357). Routledge.
  • Lispector, C. (2016). O ovo e a galinha. In Todos os contos (p. 309). Rocco.
  • Macedo, H. (1999). Do amor ao pensamento. A psicanálise, a criação da criança e D. W. Winnicott. Via Lettera.
  • Ogden, T. H. (1995). Analysing forms of aliveness and deadness of the transference--countertransference. Int J Psychoanal., 76, 695-709.
  • Ogden, T. H. (1999). The music what happens’ in Poetry and Psychoanalysis. International Journal of Psychoanalysis, 80(5), 979-994.
  • Ogden, T. H. (2013). Reverie e interpretação: captando algo humano (Tania Mara Zalcberg, trad.). Escuta.
  • Ogden, T. H. (2018). How I talk with my patients. Psychoanalytic Quarterly, 87 (3), 399-413. Republished in the book: Thomas H. Ogden, Coming to Life in the Consulting Room (2021).
  • Ogden, T. H. (2020). Psicanálise ontológica ou “O que você quer ser quando crescer?” Revista Brasileira de Psicanálise, 54(1), 23-46.
  • Ogden, T. H. (2022). How I talk with my patients. In Coming to Life in the Consulting Room: Toward a New Analytic Sensibility (Cap. 3, pp. 57-71). Routledge. (Trabalho original publicado em 2018).
  • Peltz, R. (2020). Activation lifeness in the analytic encounter: The ground of being psychoanalysis. Psychoanalytic Dialogues, 30(3), 267-282.
  • Winnicott, D. W. (1975). O brincar e a realidade Imago.
  • Winnicott, D. W. (1982a). Conheça o seu filhinho. In A criança e seu mundo (pp. 19-25). LTC. (Trabalho originalmente publicado em 1964).
  • Winnicott, D. W. (1982b). O bebê como organização em marcha. In A criança e seu mundo (pp. 26-30). LTC. (Trabalho originalmente publicado em 1964)
  • Winnicott, D. W. (1982c). Os objetivos do tratamento psicanalítico. In O ambiente e os processos de maturação (p. 152-155). Artes Médicas. (Trabalho originalmente publicado em 1962).
  • Winnicott, D. W. (1982e). Da dependência à independência no desenvolvimento do indivíduo. In O ambiente e os processos de maturação (pp. 79-87). Artes Médicas. (Trabalho originalmente publicado em 1963).
  • Winnicott, D. W. (1984). Consultas terapêuticas em psiquiatria infantil Imago.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    13 Jun 2025
  • Data do Fascículo
    2025

Histórico

  • Recebido
    17 Set 2024
  • Aceito
    29 Out 2024
location_on
Associação Universitária de Pesquisa em Psicopatologia Fundamental Av. Onze de Junho, 1070, conj. 804, 04041-004 São Paulo, SP - Brasil - São Paulo - SP - Brazil
E-mail: secretaria.auppf@gmail.com
rss_feed Stay informed of issues for this journal through your RSS reader
Accessibility / Report Error