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Psicanálise e antropologia: diálogos possíveis

Psychoanalysis and anthropology: possible dialogues

Psychanalyse et anthropologie: dialogues possibles

Psicoanálisis y antropología: diálogos posibles

Resumos

A partir de uma experiência concreta de pesquisa, este texto propõe um diálogo entre psicanálise e antropologia, particularmente no que se refere às relações entre pesquisador e pesquisado no trabalho etnográfico: na coleta, na análise e na interpretação dos dados. Essas relações foram pensadas com base na noção de transferência, o que evidenciou a possibilidade do diálogo, tanto no plano analítico quanto metodológico, entre disciplinas que pensam a realidade mediada pela linguagem.

Psicanálise; etnografia; transferência; pesquisa


Based on a concrete experience of research, this text proposes a dialogue between psychoanalysis and anthropology, especially in terms of the relationships between researchers and their objects in ethnographical work: in fieldwork, in analyses and in the interpretation of data. These relationships are seen on the basis of transference. They showed the possibility for dialogue on an analytical and methodological level, between two fields of interest, both of which conceive reality as mediated by language.

Psychoanalysis; ethnography; transference; research


À partir d'une expérience concrète de recherche, ce texte propose un dialogue entre la psychanalyse et l'anthropologie en tenant spécialement compte des rapports entre le chercheur et son objet dans le travail ethnographique, soit le travail de terrain, l'analyse et l'interprétation des données. Ces rapports ont été analysés à l'aide de la notion de transfert, ce qui a mis en évidence la possibilité du dialogue aux niveaux analytique et méthodologique entre des disciplines qui pensent la réalité par la médiation du langage.

Psychanalyse; ethnographie; transfert; recherche


Basado en una experiencia concreta de investigación, este texto propone un diálogo entre psicoanálisis y antropología, particularmente en lo que se refiere a las relaciones entre investigador e investigado en el trabajo etnográfico: en la colecta, el análisis y la interpretación de datos. Esas relaciones fueron pensadas a partir de la noción de transferencia, lo que posibilitó el diálogo, a nivel analítico y metodológico, entre disciplinas que piensan la realidad mediada por el lenguaje.

Psicoanálisis; etnografía; transferencia; investigación


ARTIGOS

Psicanálise e antropologia: diálogos possíveis* * Trabalho apresentado originalmente no I Colóquio Internacional sobre o Método Clínico, 4-7 de setembro de 2009, São Paulo. Baseia-se em pesquisa que resultou em Dissertação de Mestrado (Barbieri, 2008), sob orientação da Profa. Dra. Cynthia Andersen Sarti, com financiamento da CAPES.

Psychoanalysis and anthropology: possible dialogues

Psychanalyse et anthropologie: dialogues possibles

Psicoanálisis y antropología: diálogos posibles

Natália Alves Barbieri; Cynthia Andersen Sarti

RESUMO

A partir de uma experiência concreta de pesquisa, este texto propõe um diálogo entre psicanálise e antropologia, particularmente no que se refere às relações entre pesquisador e pesquisado no trabalho etnográfico: na coleta, na análise e na interpretação dos dados. Essas relações foram pensadas com base na noção de transferência, o que evidenciou a possibilidade do diálogo, tanto no plano analítico quanto metodológico, entre disciplinas que pensam a realidade mediada pela linguagem.

Palavras-chave: Psicanálise, etnografia, transferência, pesquisa

ABSTRACT

Based on a concrete experience of research, this text proposes a dialogue between psychoanalysis and anthropology, especially in terms of the relationships between researchers and their objects in ethnographical work: in fieldwork, in analyses and in the interpretation of data. These relationships are seen on the basis of transference. They showed the possibility for dialogue on an analytical and methodological level, between two fields of interest, both of which conceive reality as mediated by language.

Key words: Psychoanalysis, ethnography, transference, research

RESUMÉ

À partir d'une expérience concrète de recherche, ce texte propose un dialogue entre la psychanalyse et l'anthropologie en tenant spécialement compte des rapports entre le chercheur et son objet dans le travail ethnographique, soit le travail de terrain, l'analyse et l'interprétation des données. Ces rapports ont été analysés à l'aide de la notion de transfert, ce qui a mis en évidence la possibilité du dialogue aux niveaux analytique et méthodologique entre des disciplines qui pensent la réalité par la médiation du langage.

Mots clés: Psychanalyse, ethnographie, transfert, recherche

RESUMEN

Basado en una experiencia concreta de investigación, este texto propone un diálogo entre psicoanálisis y antropología, particularmente en lo que se refiere a las relaciones entre investigador e investigado en el trabajo etnográfico: en la colecta, el análisis y la interpretación de datos. Esas relaciones fueron pensadas a partir de la noción de transferencia, lo que posibilitó el diálogo, a nivel analítico y metodológico, entre disciplinas que piensan la realidad mediada por el lenguaje.

Palabras claves: Psicoanálisis, etnografía, transferencia, investigación

Para Cida Aidar

Pesquisar é uma forma de buscar conhecimentos, resolver problemas ou abrir novas indagações. Vários são os caminhos possíveis quando se procura aquilo que se pretende conhecer, o que implica diferentes pressupostos teóricos e metodológicos. Portanto, compartilhar e explicitar as trilhas que o pesquisador percorreu até chegar aos resultados, sempre provisórios, é parte fundamental do processo investigativo.

Este texto pretende mostrar o caminho teórico e metodológico percorrido na elaboração de uma pesquisa sobre representações de velhice, envelhecimento e cuidado de profissionais que trabalham numa instituição asilar para idosos, naquilo que esta experiência abriu de possibilidade de um diálogo entre a psicanálise e a antropologia.

Foi utilizado o método etnográfico e essa escolha esteve intrinsecamente vinculada às considerações teóricas. Estudar o fenômeno do cuidado in loco levou ao enfrentamento de questões importantes referentes à relação entre observador e observado, problemática central da etnografia e também da psicanálise. Os questionamentos propostos pela etnografia orientaram o trabalho, por meio da problematização da presença do pesquisador em campo e da permanente vigilância no que se refere às formas em que se estabelecem as relações deste com os pesquisados. O trabalho de campo foi realizado em uma instituição asilar, configurando um estudo de caso. Segundo Becker (1997), na pesquisa social, o estudo de caso não trabalha com um indivíduo, como acontece na pesquisa clínica, na qual se origina o método, mas com uma organização, ou comunidade, e faz uso da "observação participante", associada a outras técnicas, para compreender o comportamento do grupo focado, no maior número possível de manifestações.

O pesquisador coleta os dados a partir da participação na vida cotidiana da organização que estuda, durante certo período de tempo, de forma a observar como as pessoas se comportam em situações habituais (Becker, 1997). Estar em contato com os cuidadores, em seu próprio local de trabalho, na autenticidade do acontecimento, possibilitou que o foco do estudo - o cuidado e suas representações - pudesse ser apreendido em seu contexto. Sem uma seleção a priori daquilo que se observaria, o método escolhido buscou contemplar as diversas questões presentes no cotidiano da instituição, mantendo permanentemente em vista o objetivo da pesquisa: a análise do cuidado profissional ao idoso. Intenso trabalho de observação, detalhadamente anotado em "diários de campo", e entrevistas com todos os envolvidos no cuidado aos idosos, independentemente de sua qualificação profissional ou técnica, constituíram as principais ferramentas do trabalho de campo.

As possibilidades de articulação entre psicanálise e antropologia são objeto de diversos estudos,1 1 . Como o grupo coordenado por Paul-Laurent Assoun na Universidade de Paris VII, França. Disponível em: <www.ed-psycha.org>. Acesso em: 14/10/2007. e calorosos debates. Tendo em perspectiva evitar desfigurar a especificidade de cada abordagem, ao articular dois saberes em torno de pontos comuns, buscamos contribuir para esse debate, a partir de uma experiência concreta de pesquisa, no decorrer da qual o diálogo entre estes dois campos do conhecimento, que pensam a realidade mediada pela linguagem (Birman, 1991), deu-se tanto no plano metodológico quanto analítico, ao pensar as relações no trabalho etnográfico com base na noção de transferência.

Etnografia: o contato com o outro

A etnografia, método associado à antropologia, inicia-se no século XX, sendo atribuída a Malinowski a primeira sistematização do método, em 1921. No capítulo onde discorre sobre o tema e o método da sua pesquisa, o antropólogo destaca a importância do pesquisador estar in loco na situação pesquisada, em contato com o cotidiano e as intempéries da cultura estudada; e, também, a necessidade do trabalho de campo estar referendado por estudos científicos, sem que estes gerem ideias preconcebidas sobre aquilo com que se pretende entrar em contato, aspectos relevantes para garantir o rigor científico, tanto na obtenção quanto na análise dos dados. A pesquisa tem como objetivo "apreender o ponto de vista dos nativos, seu relacionamento com a vida, sua visão de mundo" (Malinowski, 1976; p. 37).

Este procedimento, marcado por uma perspectiva relativista, afirma a importância de se olhar o outro precisamente como uma alteridade, e não como espelho de si mesmo (Sarti, 2003b). Trata-se de apreender o ponto de vista do outro, em sua própria lógica, no contexto que lhe dá significado.

O ser humano é pensado a partir da sua condição social e cultural: a que grupo ou classe social pertence, suas crenças, valores e significados atribuídos ao que vive. São discriminações importantes de serem feitas, pois a própria noção de ser humano é construída e, como tal, reflete a particularidade da realidade investigada, em contraposição à noção de uma "essência" humana. A antropologia trabalha com a ideia de que homens e mulheres se tornam humanos no contexto em que vivem: o ser humano não existe, como tal, fora da cultura, e se constitui na relação com o outro: sua identidade é, assim, relacional.

O aspecto relacional, presente na situação de pesquisa, é, portanto, intrínseco à antropologia. Tanto observador como observados precisam ter seus contextos compreendidos e discriminados. Entender o outro, a partir do olhar do próprio outro, implica um esforço de distanciamento das referências do observador. Trata-se de "desnaturalizar" o olhar, relativizar as próprias referências culturais, uma vez que ambos, pesquisador e pesquisado, são sujeitos culturais. Ao mesmo tempo, há nesse encontro aquilo que o possibilita: a identificação com um outro, ao mesmo tempo diferente e semelhante, e nisso reside uma das maiores dificuldades do método empregado.

... a observação [etnográfica] pressupõe um duplo movimento: o de transformar em "estranho" aquilo que nos é familiar, ou seja, nossos procedimentos habituais, nossos costumes e valores; e o de transformar em "familiar", em algo inteligível e aceitável para nossos códigos culturais, aquilo que parecia "estranho" à primeira vista. (Sarti, 2003a; p. 64)

Nesse tipo de pesquisa, relativizam-se os diferentes contextos e busca-se a especificidade a partir do estudo da diferença (Víctora et al., 2000). O que se observa é mediado pelo significado que o observador atribui ao que vê, é impresso pelo lugar de onde fala o observador. O olhar é sempre seletivo, é sempre recorte. Por isso deve-se colocar em discussão a concepção de realidade do observador. Entende-se que o conhecimento se dá pela delimitação clara das diferenças, e isto acontece quando a presença do outro é compreendida dentro da sua singularidade no encontro de realidades distintas. É, portanto, um trabalho que exige um vaivém constante, de aproximação e afastamento daquilo que se observa. Segundo Lévi-Strauss (2005),

... para observar, é preciso estar de fora. Pode-se - e é uma opção - preferir (mas isso é possível?) fundir-se na comunidade com a qual partilhamos a existência, identificar-se com ela. O conhecimento está do lado de lá. Então o conhecimento só nasce do distanciamento entre sujeito e objeto? É um aspecto. Num segundo momento, nos empenharemos em juntá-los. Não existiria conhecimento possível se não distinguíssemos os dois momentos; mas a originalidade da pesquisa etnográfica consiste nesse incessante vaivém. (p. 218)

Etnografia e psicanálise

Podemos, assim, fazer um paralelo entre a concepção de um caráter relacional intrínseco ao trabalho de campo na etnografia e a prática e teoria psicanalíticas, com base em Freud, por meio do desenvolvimento do conceito de transferência. A psicanálise configura-se também como um método investigativo, sendo que os problemas relacionados à investigação fazem parte de seu campo de estudo (Bleger, 1985; Birman, 1992b).

Ainda que não seja o objetivo deste trabalho tratar das questões que envolvem a cientificidade da psicanálise - igualmente tema de intenso debate, como apontam diversos autores (Birman, 1992a, 1992b; Monzani, 1989; Estêvão, 2003) -, cabe resgatar o percurso na obra de Freud sobre o que é fazer ciência.

Segundo Birman (1992a), o intenso debate sobre a cientificidade do saber psicanalítico e a sua inscrição no campo da razão científica começou a diminuir a partir da década de 1960, deixando de ser uma questão primordial. A legitimidade da psicanálise, como uma modalidade de saber, passava a não precisar mais do selo de "cientificidade" como um critério valorativo nos campos da filosofia e da cultura, dada a:

... transformação radical no paradigma regulador dos campos da epistemologia e da filosofia, onde a questão da verdade se deslocou do registro da ciência e migrou para um território simbólico regulado pelos registros da linguagem, da ética e da política. (Birman, 1992a; p. 2, grifos do autor)

O estatuto de verdade da ciência deixou de ser a questão central. O problema transfere-se para o como se realiza a produção do conhecimento e no modo como este é recebido e reproduzido no espaço social.

Ainda segundo Birman (1992a), há duas tradições oriundas da matriz freudiana: a anglo-saxônica, que privilegiou a adequação da psicanálise a possibilidades de verificação experimental neopositivista, com a finalidade de ser reconhecida no campo da razão científica; e a tradição francesa, baseada no modelo de interpretação, com intenção de construir uma teoria do sujeito no campo da hermenêutica, ao pautar o discurso psicanalítico como uma ciência da cultura e não da natureza. O texto freudiano permitiu, assim, diversos caminhos de interpretação, pois Freud viveu a tensão de ser reconhecido como propulsor de uma teoria científica positivista, de acordo com o que era considerada ciência na época, ao mesmo tempo em que rompeu com a epistemologia positivista de verificação in loco e passou a circular no âmbito das ciências humanas.

A direção de uma investigação científica, para Freud (1915a), está fundamentada primordialmente na observação, mais especificamente na "interpretação da empiria" como pode ser vislumbrado abaixo:

Ouvimos com frequência a afirmação de que as ciências devem ser estruturadas em conceitos básicos claros e bem definidos. De fato, nenhuma ciência, nem mesmo a mais exata, começa com tais definições. O verdadeiro início da atividade científica consiste antes na descrição dos fenômenos, passando então a seu agrupamento, sua classificação e sua correlação. (p. 137)

Para Freud, não é possível evitar, na fase de descrição, a influência de ideias abstratas interferindo na observação. Estas ideias devem possuir um certo grau de indefinição e não podem delimitar, rigidamente, o material observado para que esta convenção não impeça a compreensão de significados que apareçam com a observação:

Só depois de uma investigação mais completa do campo de observação, somos capazes de formular seus conceitos científicos básicos com exatidão progressivamente maior, modificando-os de forma a se tornarem úteis e coerentes numa vasta área. Então, na realidade, talvez tenha chegado o momento de confiná-los em definições. O avanço do conhecimento, contudo, não tolera qualquer rigidez, inclusive em se tratando de definições. (p. 137)

Retirados do texto "A pulsão e seus destinos", estes trechos exprimem o momento em que Freud fundamenta o desenvolvimento do conceito de pulsão, de difícil assimilação. Seu esforço em fazer considerações sobre o percurso da produção desta ideia possibilitou a aproximação da relação entre observação e construção de conhecimento. O alicerce do método científico para Freud é, antes de tudo, a observação, e não a elaboração de uma teoria especulativa, sendo os conceitos passíveis de mudanças desde que a prática dê nova luz à teoria.

Para Berlinck (2007a; 2007b), ao discorrer sobre o percurso histórico do método clínico, tanto a psicanálise quanto a antropologia, apesar de herdarem do naturalismo do século XVIII a noção de "observação desinteressada da natureza" (ou "neutralidade valorativa"), buscaram meios de minimizar as questões implícitas nesta concepção metodológica. O autor ressalta dois recursos utilizados pelas disciplinas, sendo o primeiro, justamente a necessidade de formulação, por parte do observador, da posição em que ocupa na trama; e o segundo, proposto por Freud, seria a busca por uma "narrativa científica", onde a ficção é o paradigma escolhido quando se assume que a natureza é inapreensível para o humano.

A problematização da relação entre pesquisador e pesquisado, implícita na etnografia, ocorre, portanto, igualmente na psicanálise, no que se refere à relação entre psicanalista e analisando. Assim, a elaboração desta relação pela psicanálise, embora não esteja implicada no trabalho de campo, serve de parâmetro analítico para a compreensão da relação entre pesquisador e pesquisado no trabalho etnográfico, por meio da utilização do conceito de transferência, que permite pensar aquilo que acontece no entre dois, entre três, entre vários, em contextos relacionais.

Uma das objeções feitas à pesquisa no campo da psicanálise é a da sua inadequação, por princípio, uma vez que a psicanálise só existe na experiência fundada na transferência, e esta ocorreria apenas no setting analítico tradicional: o consultório. O conceito de transferência, no entanto, diz respeito a uma abordagem da forma, relacional por excelência, em que sujeitos falam e interagem entre si. É um conceito que postula a comunicação humana como sendo de ordem transferencial, o que possibilitou o desenvolvimento da psicanálise como método clínico. A (psi) análise baseia-se fundamentalmente na palavra, que interpela uma escuta (do inconsciente) de um outro. É a partir da escuta da fala de um (ou vários) que se constitui a experiência psicanalítica, sendo este o campo da transferência, onde se funda o campo da ação e da pesquisa empírica psicanalítica.

Não se trata, portanto, de uma psicanálise aplicada onde seriam utilizados conceitos psicanalíticos como recurso para compreender o que se vê em campo, mas do próprio trabalho de campo que se constitui em um campo de transferência. Nesta mesma linha de pensamento, Birman (1992b) afirma que: "a experiência psicanalítica admite diversas possibilidades de clínica, desde que nesta diversidade se reconheça as condições epistemológicas e éticas para a construção do espaço psicanalítico, isto é, uma experiência centrada na fala, na escuta e regulada pelo impacto da transferência" (p. 23).

As afinidades entre as questões colocadas pelo trabalho analítico e pela prática etnográfica como relações intersubjetivas que requerem, como condição sine qua non, a elaboração dos termos da relação entre pesquisador e pesquisado, observador e observado, psicanalista e analisando, permitem utilizar conceitos da psicanálise como marco teórico de uma pesquisa etnográfica, numa abordagem interdisciplinar. Podemos inferir, assim, a possibilidade de analogias entre as relações abordadas neste trabalho: entre pesquisador e pesquisado (observador e observado) e entre profissional da instituição e idoso. Também podemos considerar como outra relação análoga aquela existente entre psicanalista e analisando. Seria pertinente considerar infinitamente outras relações equivalentes? Isto indicaria a presença de um modelo estrutural. As escolhas metodológicas, portanto, estão intrinsecamente associadas ao problema de pesquisa.

A transferência no trabalho etnográfico

O desenvolvimento do conceito de transferência acompanha o percurso de construção da psicanálise por Freud - e, depois, por outros psicanalistas. Parte deste caminho será traçado, a seguir, com o intuito de aproximação deste que é considerado um dos alicerces centrais da teoria psicanalítica.

Freud desenvolveu conceitos teóricos e clínicos a partir daquilo que foi constatando na sua prática, que tinha como objetivo, no início de seu trabalho como médico, identificar e solucionar o foco causador dos sintomas patológicos de suas pacientes (na época, ele tratava principalmente mulheres histéricas). No decorrer de sua prática clínica utilizou diversas técnicas comuns no período, como a hipnose, a hipnose catártica e a sugestão, até o momento em que passou a utilizar a associação livre, em que pedia para suas pacientes falarem aquilo que viesse à cabeça, sem restrição a nenhuma ideia que por ventura pudesse parecer sem nexo. Nesse processo, Freud percebeu que o resultado do trabalho que realizava dependia prioritariamente daquilo que acontecia na relação entre ele e a pessoa atendida. Havia um direcionamento da fala do paciente para o médico que já vinha acompanhado de expectativas e repetições de padrões constitucionais da pessoa analisada. A este aspecto da relação deu o nome de transferência.

El psicoanálisis comenzó investigando lo que ocurre en el paciente ("dentro" de él), pero la introducción de la transferencia ha llevado insensiblemente a un cambio fundamental: a la investigación de lo que ocurre durante la sesión analítica en tanto relación interpersonal. A esto se ha agregado el estudio de lo que ocurre en el psicoanalista. (Bleger, 1985, p. 115)

O termo em si pertence ao senso comum e é utilizado para designar diversas situações que tenham a ver com movimento, deslocamento, afastamento, transposição ou ainda transporte, tradução, transmissão (Fédida, 1996). Freud não inventou a palavra, mas lhe atribuiu significados novos e, ao fazer isto, passou a especificar uma parte do funcionamento psíquico, sendo considerado um dos conceitos fundantes da psicanálise. Como explicita Oury (1988):

Então, de maneira talvez um pouco restrita, mas rigorosa, poderíamos definir a transferência como condição de possibilidade da emergência de um dizer. E frequentemente no silêncio que tem o "dizer", e quando há um espaço do dizer, isto se sente... sentimos então, que quando ele está presente, mesmo se não diz nada: uma pessoa está aí. (p. 33)

Sob este aspecto a escuta do analista tem como função "captar o que é dito para além do que se quer dizer" (Lacan, 1999, p. 169).

No texto "Observações sobre o amor transferencial", Freud (1915b) apresentará o trabalho da transferência como "as únicas dificuldades realmente sérias" entre as que o "principiante em psicanálise" (p. 208) aprende em sua prática. Neste artigo, Freud trata a transferência como técnica e diz que o analista deve abandonar sua vaidade pessoal, frente aos encaminhamentos do que acontece em análise, para poder reconhecer que aquilo que lhe é dirigido, encaminha-se para o papel que exerce e não "aos encantos de sua própria pessoa" (p. 210). De outro modo, corre-se o risco do autoengano, por parte do profissional, e da manutenção de uma resistência do paciente em desfocar o objetivo do tratamento. O termo furor curandis, a maneira como Freud denominou o desejo do analista em curar, interfere e impossibilita a cura do paciente, apontando, assim, uma dificuldade (humana) do profissional em lidar com suas próprias questões despertadas pelas questões do outro.

Em um dos seus últimos trabalhos, Freud (1937) apontou a "individualidade do analista" como um dos impedimentos do trabalho analítico. As dificuldades em lidar com a própria resistência, despertada por temas e vivências na relação terapêutica, mostram-se atuantes no trabalho. É aconselhável desconfiar da própria segurança e das certezas, revisitar-se constantemente em sua própria análise ou em uma supervisão de seu trabalho, tornando possível uma elaboração a posteriori do que ocorreu no encontro. Malinowski (1976) diz, analogamente, a respeito da interferência da subjetividade do pesquisador na observação etnográfica:

Em relação ao método adequado para observar e registrar estes aspectos imponderáveis da vida real e do comportamento típico, não resta dúvida de que a subjetividade do observador interfere de modo mais marcante do que na coleta dos dados etnográficos cristalizados. Porém, mesmo nesse particular, devemos empenhar-nos no sentido de deixar que os fatos falem por si mesmos. (p. 35, grifos do autor)

Na pesquisa, portanto, a noção de transferência aplica-se tanto para o pesquisador quanto para os pesquisados. A ressalva torna-se importante, pois na psicanálise há uma discussão acerca da diferença entre os conceitos de contratransferência e transferência, sendo o primeiro termo considerado como uma reação do analista às reações do paciente. Althusser (1973) argumenta que os sujeitos funcionam em todos seus relacionamentos mediante a transferência, sendo esta uma lei universal. O autor argumenta que os conceitos desenvolvidos por Freud não vieram de ideias abstratas, mas sim decorrentes da sua experiência concreta - transferencial - na clínica com suas pacientes histéricas. Althusser questiona a nomeação "contratransferência", pois o prefixo "contra" denota algo que veio depois, referindo-se a um estado de contrariedade à primazia da transferência, que pode ser entendida como uma função defensiva: contra a transferência do paciente. O autor parafraseia Freud ao dizer que não se pode esquecer que uma contratransferência é também uma transferência: "On n'a pas assez remarqué que le contre-transfert était aussi un transfert" (Althusser, 1973, p. 176).

O analista trabalha com aquilo que lhe é dirigido e tem sempre em consideração o que acontece na relação. A relação, pelo viés da transferência, é continuamente colocada em questão, como na etnografia. Citando Ocariz (2003), "Um analista pode fazer muitas coisas (falar, gesticular, cantar, agir), mas sempre tem de saber, embora a posteriori, que lugar ocupa sua intervenção na trama transferencial. (...) Este processo de analisar e pensar nossas ações é a condição fundamental para o rigor científico e para a ética" (p. 114).

A noção de transferência, como a de estranhamento na etnografia, evidencia a importância de se considerar o aspecto intersubjetivo no trabalho de campo. Fédida (1996), no entanto, aponta para uma dificuldade no compartilhar da estranheza vivida na relação transferencial, e para a impossibilidade de uma metalinguagem da transferência, já que qualquer forma de comunicação é insuficiente e inadequada para expressar aquilo que ocorre na experiência. As palavras se modificam ao serem expressas: "... a transferência é sem dúvida processo (mais que fenômeno) realizando mudanças de lugares que são movimentos temporais na linguagem. (...) Nesse sentido, a palavra sempre carrega o lugar com seu movimento" (p. 163).

De forma análoga, na etnografia, a relação entre observador e observado é problematizada tanto no trabalho de campo ("estar lá"), como na interpretação e análise dos dados ("estar aqui"), refletindo a preocupação com a legitimidade do que é dito, frente não apenas aos pares acadêmicos, mas também ao grupo pesquisado (Geertz, 1989). Como em qualquer relação intersubjetiva, não há qualquer garantia de que o que se atribui ao outro é o que ele atribui a si mesmo. Na clareza da exposição dos caminhos metodológicos e analíticos empreendidos está a condição de possibilidade de serem postas à prova as interpretações.

Recebido/Received: 24.11.2009 / 11.24.2009

Aceito/Accepted: 28.1.2010 / 1.28.2010

NATÁLIA ALVES BARBIERI

Psicóloga e psicanalista; mestre em Saúde Coletiva pela Universidade Federal de São Paulo (São Paulo, SP, Brasil)

Av. Ipiranga, 200/C271 - Consolação

01046-010 São Paulo, SP - Brasil

e-mail: nabarbieri@uol.com.br

CYNTHIA ANDERSEN SARTI

Antropóloga; professora titular na Universidade Federal de São Paulo/Campus Guarulhos (São Paulo, SP, Brasil).

Rua Alagoas, 162/71 - Higienópolis

01242-000 São Paulo, SP - Brasil

e-mail: csarti@unifesp.br

Citação/Citation: BARBIERI, N.A.; SARTI, C.A. Psicanálise e antropologia: diálogos possíveis. Revista Latinoamericana de Psicopatologia Fundamental, São Paulo, v. 14, n. 1, p. 57-69, mar. 2011.

Editor do artigo/Editor: Prof. Dr. Manoel Tosta Berlinck

Copyright: © 2009 Associação Universitária de Pesquisa em Psicopatologia Fundamental/University Association for Research in Fundamental Psychopathology. Este é um artigo de livre acesso, que permite uso irrestrito, distribuição e reprodução em qualquer meio, desde que o autor e a fonte sejam citados/This is an open-access article, which permits unrestricted use, distribution, and reproduction in any medium, provided the original author and source are credited.

Financiamento/Funding: As autoras declaram não ter sido financiados ou apoiados/The authors have no support or funding to report.

Conflito de interesses/Conflict of interest: As autoras declaram que não há conflito de interesses/The authors declare that has no conflict of interest.

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    Trabalho apresentado originalmente no I Colóquio Internacional sobre o Método Clínico, 4-7 de setembro de 2009, São Paulo. Baseia-se em pesquisa que resultou em Dissertação de Mestrado (Barbieri, 2008), sob orientação da Profa. Dra. Cynthia Andersen Sarti, com financiamento da CAPES.
  • 1
    . Como o grupo coordenado por Paul-Laurent Assoun na Universidade de Paris VII, França. Disponível em: <www.ed-psycha.org>. Acesso em: 14/10/2007.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      25 Mar 2011
    • Data do Fascículo
      Mar 2011

    Histórico

    • Recebido
      24 Nov 2009
    • Aceito
      28 Jan 2010
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