Resumos
Tomando como objeto privilegiado de estudo o livro Os Anjos (2000), da escritora portuguesa Teolinda Gersão, pretendemos apreender o que desta novela toca na questão pulsional, partindo da premissa que Eros e Tânatos, na visão freudiana, são amalgamados. Este trabalho se constrói a partir de uma interface da literatura com o campo psicanalítico, levando em consideração que a literatura pode nos instruir acerca da experiência do sujeito do inconsciente. Teolinda se debruça no ponto da confusão do amor e da relação mãe e filha. Trata também das manifestações afetivas no corpo. Como veremos, neste escrito apresenta-se a complexidade da existência e dos romances familiares, retratando forças opostas como: o amor e a morte, o corpo e a mente, o bem e o mal, a opressão e a liberdade, verdade ou ficção, anjos e demônios.
Palavras-chave:
Literatura; psicanálise; Eros; Tânatos; relação mãe e filha
Taking the book Os Anjos (2000) by Portuguese writer Teolinda Gersão as our privileged object of study, we intend to understand what in this novel addresses the question of the drive, starting from the premise that Eros and Thanatos are amalgamated in the Freudian view. This study is based on an interface between literature and psychoanalysis, considering that literature can teach us about the experience of the subject of the unconscious. Teolinda focuses on the confusion of love and the mother-daughter relationship. It also addresses affective manifestations in the body. As we shall see, this writing describes the complexity of existence and family romances, portraying opposing forces such as love and death, the body and the mind, good and evil, oppression and freedom, truth or fiction, and angels and demons.
Keywords:
Literature; psychoanalysis; Eros; Thanatos; mother and child relationship
En prenant comme objet d’étude privilégié le livre Os Anjos (2000), de l’écrivaine portugaise Teolinda Gersão, nous entendons comprendre ce que ce roman touche à la question de la pulsion, en partant du principe qu’Eros et Thanatos, dans la vision freudienne, sont amalgamés. Ce travail est construit sur une interface entre la littérature et le champ psychanalytique, en tenant compte du fait que la littérature peut nous enseigner sur l’expérience du sujet de l’inconscient. Teolinda se concentre sur la confusion de l’amour et la relation mère-fille. Elle traite également des manifestations affectives dans le corps. Comme nous le verrons, cet 22 écrit présente la complexité de l’existence et des amours familiales, en mettant en scène des forces opposées telles que l’amour et la mort, le corps et l’esprit, le bien et le mal, l’oppression et la liberté, la vérité ou la fiction, les anges et les démons.
Mots-clés:
Littérature; psychanalyse; Eros; Thanatos; relation mére-enfant
Tomando como objeto privilegiado de estudio el libro Os Anjos (2000), de la escritora portuguesa Teolinda Gersão, pretendemos comprender lo que esta novela toca a la cuestión pulsional partiendo de la premisa de que Eros y Tánatos se amalgaman en la visión freudiana. Este trabajo se construye en una interfaz entre la literatura y el campo psicoanalítico, teniendo en cuenta que la literatura puede enseñarnos sobre la experiencia del sujeto del inconsciente. Teolinda se centra en la confusión del amor y la relación madre-hija. También trata de las manifestaciones afectivas en el cuerpo. Como veremos, este escrito presenta la complejidad de la existencia y de los romances familiares, retratando fuerzas opuestas como el amor y la muerte, el cuerpo y la mente, el bien y el mal, la opresión y la libertad, la verdad o la ficción, los ángeles y los demonios.
Palabras clave:
Literatura; psicoanálisis; Eros; Tánatos; relación madre e hijo
Introdução
A turbulenta história da novela Os Anjos, na sua ilusória linearidade tradicional, apresenta uma construção subversiva em sua textualidade, trazendo um final surpreendente com desenvolvimentos complicados e inesperados. De acordo com Eikheinbaun “(...) a novela assimila-se a um problema que consiste em colocar uma equação a uma incógnita” ([1925] 1965, p. 204, apud Reis, 2018, p. 374). A novela é escrita em várias dimensões, reunindo pedaços, pontas e peças. Toda a trama assenta na figura de duas mulheres, mãe e filha, que constituem elementos fundamentais da narrativa e desfilam diante do leitor numa distância e aproximação assustadoras. A menina Ilda, na sua ingenuidade quase infantil, se desdobra em múltiplos papéis. Sua mãe é uma personagem sem nome próprio, apresentando características de instabilidade emocional, com conflitos internos que se refletem na relação com as outras personagens, especialmente com a filha, chegando à violência física: “(...) eu continuava a correr porque tinha medo dela, corri até a fonte e ela atrás de mim (...) a minha mãe me batia (...) até que lhe mordi na mão com toda força e foi assim que ela me soltou” (Gersão, 2000, pp. 11-12). Os Anjos é uma narrativa da realidade trivial e ao mesmo tempo inusitada, situada em ambiente rural, focalizando as relações familiares que se apresentam em crise. Segundo Reis, uma novela “reporta-se, em princípio, àquilo que se apresenta como novo, ao que traz notícias de eventos desconhecidos, mesmo surpreendentes e complicados por desenvolvimentos inesperados (Reis, 2018, p. 373). Tal qual veremos em Os anjos.
As personagens de Teolinda Gersão são, em geral, mulheres movidas por um entusiasmo transgressor, aspirando a rupturas sociais arcaicas e opressoras. Desejam a liberdade e procuram sair da condição de aprisionamento, abrindo passagem com o corpo.
A personagem Ilda transcorre pela narrativa, com um papel relevante, numa inversão de posição, pois é ela que, temporariamente, toma conta da mãe, inclusive deixando de frequentar regularmente a escola. A narradora observa e tenta compreender o comportamento depressivo da mãe, que passa a se comunicar cada vez menos com a família e começa a dar indícios de “loucura”, numa fuga da realidade vivenciada.
A minha mãe estava em cima de um banco e tinha na mão uma cavaca acesa (...) esticava o corpo e agitava os braços, o fogo saia da cavaca e tocava nas travas do tecto. Corri para ela e agarrei-lhe os pés, então ela caiu por cima de mim e começamos a arder, eu tinha muito calor na cara e a roupa colada ao corpo. (Gersão, 2000, p. 7)
O que esconde um corpo?
Angústias mescladas oprimiam a mãe de Ilda, de vez em quando sua alma ficava na escuridão, até que foi possível encontrar um caminho na tentativa de controlar o incontrolável.
Ao trazer as mazelas da mãe, Ilda narra que a mesma vivia dias pelo avesso, numa prostração depressiva, sempre enredada com o adoecer do corpo. Tremia e estendia as mãos sobre as chamas até queimar-se. Aturdida, torcia as mãos ao olhar a janela, e cortava os pulsos com a faca da cozinha, mas sobrevivia. Razões inconscientes? Fantasmas ocultos à procura de uma saída? Os sintomas não são outra coisa, senão a expressão censurada de um desejo não reconhecido. Frequentemente, apreende-se que a vida subjetiva embala o corpo e, conforme assevera o filósofo Merleau-Pont (2011), o corpo é o “veículo do ser no mundo” (p. 122). Perpetuam-se no corpo as marcas psíquicas e, assim, o que é externo traz alguma possibilidade de desvendar o que é da ordem do interno.
A mãe de Ilda foi levada ao médico pelo pai, tomou remédios, mas de nada valia, o médico disse que não havia cura: “(...) continuou a fugir de casa e a olhar, emparvecida, para o lume” (Gersão, 2000, p. 11). Estraçalhada, prosseguiu na vida corrosiva. O pai delegava à filha uma vigilância constante para com a mãe, com receio que ocorresse uma desgraça. “O pai tinha medo que ela se queimasse, se perdesse nos campos, morresse afogada no rio” (p. 11).
Em Os impasses do feminino, Cristina Lindenmeyer (2023) sublinha: “É por meio de seu corpo, um corpo libidinal, erotizado, efetivamente marcado por uma vida fantasística, que suas fantasias se desvelam” (p. 91). É preciso não esquecer que foi graças ao impulso da histérica que Freud situou definitivamente a via de acesso ao que se encontra para além de um corpo.
O corpo da mãe de Ilda continuou a ser o palco de suas dores e nele se travaram várias batalhas, delineando os traços de seu sofrimento: “(...) desatava a gritar e a ficar vermelha, as pernas e braços punham-se rijos como paus, começava a vomitar e espumar da boca, e revirava os olhos para cima” (Gersão, 2000, p. 11). Por vezes, o corpo ocupa o lugar do sacrifício.
Entre gritos e silêncios, o amor recalcado põe a nu o corpo e a alma. O corpo, essa casa secreta, domicílio de aflição da mãe de Ilda, e que tanto interessa à psicanálise, é o corpo que ultrapassa o somático, e constitui um todo em funcionamento, coerente com a história de cada sujeito. Do corpo padecemos, como do amor e da morte.
No texto freudiano de 1923, “O ego e o id”, a noção de corpo vem associada à noção de “eu”, como “a projeção de uma superfície” (Freud, 1923/1996g, p. 40). Ele destaca a posição que o “eu” ocupa, ou seja, o “eu” retrocede para a realidade cuja importância funcional “se manifesta no fato de que, normalmente, o controle sobre as abordagens à motilidade compete a ele” (p. 39) destacando-se do isso para cumprir essa função. É ao “eu” que Freud confere a corporeidade. Simultaneamente a isto, Freud aponta:
(...) um outro fator, além da influência do sistema pré-consciente, parece ter desempenhado papel em ocasionar a formação do ego e sua diferenciação do isso. O próprio corpo de uma pessoa e, acima de tudo, a sua superfície, constitui um lugar de onde podem originar-se sensações tanto externas quanto internas. (p. 39)
É nesse sentido que vamos também entender o eu como fundamentalmente corporal. Quando dizemos “corpo” em psicanálise, estamos falando de corpo pulsional e essa temática sempre teve relevância para este campo. Freud aponta desde seus estudos iniciais que, como seres de linguagem, temos uma relação de inquietante estranheza com o corpo. Em 1915, no texto “A pulsão e suas vicissitudes”, esclarece o conceito de pulsão “como um conceito-limite entre o psíquico e o somático”, ou seja, enquanto representações psíquicas das excitações derivadas do corpo que chegam ao psiquismo, marcando a fronteira entre o mental e o corporal. Assim, o corpo funciona como palco para nomear a experiência afetiva do trauma, inventando formas para que a pulsão possa ser representada. A teoria freudiana enfatiza que o corpo é também lugar de realização de desejos inconscientes, que se encontram no mais recôndito do psiquismo - o não sabido - que perturba e faz fissuras no saber estabelecido. Os atos desesperados da mãe de Ilda revelavam no corpo adoecido o sofrimento da alma. O corpo, para a psicanálise, é erógeno e marcado pela linguagem. Tem uma dimensão do estranho e, segundo Freud (1919/1996c), é o estranho familiar - o corpo - aquilo que temos de mais íntimo, e também o que nos é mais estrangeiro. Desfrutar do corpo e da vida é tarefa árdua do sujeito desejante, não sem sofrimento.
Vida e morte
Em entrevista concedida ao jornalista americano George Sylvester Viereck, em 1926, nos Alpes austríacos, publicada em edição especial do Journal of Psychology, de 1957, o pai da psicanálise respondeu o seguinte a respeito da pulsão vida e de morte:
É possível que a morte em si não seja uma necessidade biológica. Talvez morramos porque desejamos morrer. Assim como amor e ódio por alguém habitam nosso peito ao mesmo tempo, assim também toda vida conjuga o desejo de manter-se e um anseio pela própria destruição. Do mesmo modo como um pequeno elástico esticado tende a assumir a forma original, assim também toda matéria viva, consciente ou inconscientemente, busca readquirir a completa e absoluta inércia da existência inorgânica. A pulsão de vida e a pulsão de morte habitam lado a lado dentro de nós. A Morte é a companheira do Amor. Juntas, elas regem o mundo.1
Em 1920, em “Além do princípio do prazer”, Freud instaurou um novo dualismo pulsional, confrontando as pulsões de vida com as pulsões de morte. A repercussão foi enorme, tanto por seus efeitos no pensamento filosófico quanto pelas controvérsias que essa tese provocou no movimento psicanalítico. Definiu a pulsão de morte como tendência a reduzir toda e qualquer tensão ao ponto zero. A pulsão de morte, a um mesmo tempo primitiva e conservadora, caminha em direção à inércia. Já as pulsões de vida, formadas pelas pulsões sexuais e pelas pulsões de autoconservação, também são conservadoras, mas trabalham no sentido de reorganizar o que as pulsões destrutivas desatam:
Nossas concepções, desde o início, foram dualistas e são hoje ainda mais definidamente dualistas do que antes, agora que descrevemos a oposição como se dando, não entre instintos do ego e instintos sexuais, mas entre instintos de vida e instintos de morte. (Freud, 1920/2020, p. 73)
Consideramos a perspectiva de vida e morte marcantes na novela, como assevera Freud, que recorreu à mitologia grega, discorrendo sobre o amor como Eros e a morte como Tânatos. “Eros, termo pelo qual os gregos designavam o deus do amor. Freud utiliza-o na teoria das pulsões para designar o conjunto das pulsões de vida em oposição às pulsões de morte” (Laplanche e Pontalis, 1998, p. 150). E Tânatos: “Termo grego (a morte) às vezes utilizado para designar as pulsões de morte, por simetria com o termo Eros; o seu emprego sublinha o caráter radical do dualismo pulsional conferindo-lhe um significado quase mítico (Laplanche e Pontalis, 1998, p. 501). Eros, como pulsão de vida, representa a criatividade, o desejo, e tem como função aplacar a tendência à destruição da vida, que conduz o homem em direção à morte. Além disso, pensou o amor e a morte atrelados um ao outro e presentes em todos sujeitos, visto que as pulsões de vida e de morte estão sempre amalgamadas. Assim, muitas vezes não se percebe a presença silenciosa da pulsão de morte, subjacente aos processos ruidosos das pulsões de vida. Essa análise freudiana evoca a narrativa, Os Anjos, em que percebemos a presença constante de Eros e Tânatos regendo um feroz embate.
No decorrer da trama, comparece também o avô idoso que, após ficar viúvo e ter inundada a aldeia em que morou por 48 anos, adoeceu. Fizeram uma barragem e abriram as comportas, assim a aldeia desapareceu, ele ficou sem casa e teve que ir morar com a família a contragosto da mãe de Ilda, que o considerava um peso, tal qual ela pensava da filha. Ele gostava de falar e contava muitas histórias, e era muito diferente do seu pai, que sempre fora de pouca conversa e não se comunicava com a filha. “O meu pai cortava árvores, para a serração. Às vezes eu pensava que ele tinha emudecido, como um tronco. As árvores não tinham nada para dizer. Mas estavam lá e davam sombra. Eu gostava do meu pai e das árvores” (Gersão, 2000, p. 16). Seria o silêncio um vazio de pensamento? Fazer silêncio, necessariamente não significa se calar, pode ser uma fresta que se abre na profundeza barulhenta do mundo. Mas, no silêncio, as fantasias podem encontrar abrigo, daí as dores clamarem por imagens e palavras que possam representá-las por meio de um bem dizer. É Lacan quem nos convida a bem-dizer, bem dizer o sintoma. O sintoma tem a força de um enigma, que é um sentido a ser decifrado - não simplesmente um erro a ser corrigido. Bem dizer não se trata de dizer belo, com eloquência, e sim da palavra que produz um efeito. Trata-se de um bem que leva ao ato comunicativo, ou seja, um modo de dizer da melhor forma possível, daquilo que nos sobressalta, visando mudar a posição do sujeito. O pai de Ilda parecia não saber traduzir em palavras seu sofrimento e o silêncio era sua forma de gritar.
Ilda apreciava a companhia do avô, que a instruía ao questionamento e reflexão sobre os valores do mundo ao redor. Ela sabia valorizar sua experiência e sabedoria. Na escola, ela apresentava dificuldades de aprendizagem, a professora dava-lhe umas reguadas, abusando de seu poder e rebaixando-a frente ao fracasso na aquisição do saber. As outras crianças também a humilhavam e gritavam: “É burra” (Gersão, 2000, p. 21). Em casa, o avô oferece um almanaque com letras e figuras a Ilda e ensina-lhe a tocar uma música num pente coberto por papel celofane. Assim, ela aprende a ler com a ajuda do avô, o que lhe dá certo empoderamento e uma quase alegria. A chegada dele parece ser um alento para a menina e os dois têm longas e agradáveis conversas. Diz Ilda: “Aprendia muita coisa com meu avô” (p. 20). Compartilha também com o mesmo a história sobre um tal Serafim das Canas, um sujeito misterioso que tem a profissão de ferreiro e ouvira os homens da aldeia, na taberna, discutirem o caráter dele, e dizerem que não era boa figura. 7
Ilda cuida do avô, alimentando-o com comida na boca, porque suas mãos tremem. Ele tem uma doença que “trepava pelo corpo, como uma hera na parede. Avançava pedaço a pedaço, devagar, mas sem recuos” (p. 18). O pai de Ilda veste e lava o avô, e a mãe continua a olhar o caminho, a fugir e a desmaiar. Ilda descreve seu próprio sofrimento: “Eu também tinha vontade de fugir, chorava à noite debaixo do lençol e não me apetecia falar com ninguém” (p. 24). Ilda igualmente viveu tempos de vazio e dor. A relação danosa com a mãe, e os cuidados que necessitava dispensar com a família eram demasiadamente penosos.
Num dia de domingo, quando se sente melhor, a mãe vai à missa com Ilda. Serafim está sempre lá à saída, no meio de outros homens. A mãe a puxa e passa adiante apressada e atordoada.
Houve um outro domingo em que a mãe não foi à missa porque doía-lhe a cabeça e Ilda foi com a vizinha. Na saída, Serafim foi ao seu encontro e deu-lhe um embrulho dizendo: “É um remédio para o seu avô (...) Não te esqueças de entregar à tua mãe porque é urgente” (p. 25). Ilda entregou o embrulho ao avô, mas ele não abriu e o deu à sua mãe, que parecia irritadiça, mas cheira o embrulho e sorri. Este objeto tem o cheiro do Serafim, o que acalma o ódio que a mãe tem pelo avô. A mãe fez um chá ao avô e ele aceita. Era uma receita de “boticário do Alvião”, bom para as tremuras. Nos dias que se seguiram a mãe lhe parecera melhor.
Ilda passou a ler, andava “curiosa e deslumbrada”. O fato de ter aprendido a decifrar as palavras lhe abre novas possibilidades, pois o acesso à leitura traz uma dimensão de pequenos milagres. Ler propicia a organização do mundo interno e externo. A amabilidade e encorajamento do avô repercutiram em sua rotina e puderam desembaraçar seus temores e dificuldades em relação à escola, estimulando sua criatividade. De repente pensou que era com Serafim que sua mãe dançava, quando ela ainda não havia nascido. Lembrou-se que havia visto um retrato do Serafim no fundo do roupeiro.
O estado de saúde do seu avô piorara, perdera também a firmeza das pernas e só agravava, e parecia tão abstraído como sua mãe. Serafim havia oferecido mais remédio para o avô, o que demandou a Ilda ir a casa dele buscar, uma vez que o remédio fizera bem às suas dores. Ilda hesita a propósito da realidade de ter encontrado o retrato de Serafim entrevisto no fundo do gavetão da mãe, e não conta ao avô: “Não lhe contei do retrato escondido no gavetão do roupeiro, porque isso me parecia outra vez sonho. Embora fosse verdade.” (Gersão, 2000, p. 30). Isto a confundiu, sem que ela soubesse dizer porquê, tornando-se para ela um enigma.
Ilda vai à casa de Serafim em busca do remédio: “Foi, portanto, o que vi primeiro, o fogo e o vulto dele passando adiante, de um lado para o outro. Quando cheguei mais perto, ouvi o bater do martelo na bigorna, cada vez mais forte” (p. 31). Aguardava Serafim, que enfim a viu: “Esperei um pouco, mas ele não se interrompia, descia os braços sobre o fogo e batia o ferro, sem medo de queimar-se. Estava descalço e tive a sensação de que ele poderia andar, sem sentir dor, sobre os carvões acesos” (p. 31). Finalmente ele disse olá e entregou o embrulho. A mãe, ao receber a encomenda, desapareceu e “gritou alegremente da cozinha: Já levo o chá” (p. 32). Tal qual a mãe Ilda parece experimentar um certo fascínio por Serafim. A menina afirma: “Queria vê-lo outra vez bater o ferro, lidar com o fogo como se domasse um animal” (p. 32). Na mira da maternidade Teolinda Gersão exprime nas suas obras diversas abordagens maternas, adentrando nas filigranas da complexa relação mãe e filha.
As nuances do amor
Em relação à tripartição das figuras masculinas na novela, cada um dos homens apresenta de forma singular o seu poder. O pai de Ilda é aquela figura rural e fortemente patriarcal, que concomitantemente destaca a autoridade masculina e promove o seu sombreamento, pois acata uma situação totalmente fora dos padrões convencionais em nome da preservação da família. Homem “de poucas falas”, provedor e ensimesmado, cuidava da mulher e do pai com a ajuda da filha. Serafim, o dito anjo, era mal falado pela comunidade... “do Serafim só queríamos distância porque ele não prestava, toda a gente dizia” (Gersão, 2000, p. 30). O avô não estava de acordo e proferia: “Pode ser tudo isso que dizem, mas é também um bom homem, achou. O remédio tinha-lhe feito bem às dores e era urgente que eu fosse buscar mais” (p. 30). Seria Serafim um anjo caído? Aquele que ambicionando maiores poderes, se entrega “às trevas e ao pecado” e é expulso do paraíso. A expressão “anjo caído” indica, justamente, que é um anjo que caiu dos céus. Entre os anjos também parece que o bem e mal convivem lado a lado, tal qual para os meros mortais. Já o avô tem um papel determinante na trama, e evidencia sua potência amorosa em relação à neta, mostrando constante preocupação com a dinâmica aterradora da casa. Apesar da aridez de seus dias, do corpo que se tornou frágil e exiliado de sua própria casa, foi ele quem vislumbrou uma saída para o fatídico drama familiar. Sobre a velhice, Simone de Beauvoir (1990) nos adverte sobre o “terrível flagelo da velhice: 9
Mais vale não pensar demais na velhice, mas viver uma vida de homem bastante engajada, bastante justificada, para que se continue a aderir a ela, mesmo quando já se perderam todas as ilusões e quando já arrefeceu o ardor vital. (p. 662)
Nesse sentido o avô de Ilda parece ter atribuído um valor à vida dos outros pela via do amor e da compaixão na tentativa de enganar o enfado da velhice. Reestabeleceu os laços com a família num viés colaborativo, inclusive corroborando com a cura da nora. Sua presença, um tanto paterna, anseia proteger e agregar a família. Ilda, em alguma medida, regozijava os dias do avô e amenizava o seu mundo fatigado, tratando-o amorosamente.
O avô “nessa noite quis dormir no espigueiro. Para rezar e pensar” (Gersão, 2000, p. 33). Depois de refletir bastante, diz a Ilda: “São espíritos que andam com ela. A sua mãe tem que saber o que querem. Tem de ir sozinha, de noite, ter com eles” (p. 33). O avô fala da necessidade de a mãe sair nas noites de mudança de lua para satisfazer os espíritos. Ilda pergunta ao avô o que são espíritos? E ele responde que são anjos.
Talvez, ao dar-se conta da efemeridade da própria existência, e face à loucura da mãe de Ilda, o avô, arguto, tenha captado suas angústias confessas e inconfessas, promovendo, assim, seu reencontro com o anjo. Foi permitido, portanto, à mãe de Ilda desbravar esse chão misterioso.
“Bons ou maus?” (Gersão, 2000, p. 33) - Insiste Ilda, alegando que tinha medo pela mãe. “O avô abanou a cabeça, como se nada disso fizesse sentido”. “São anjos, repetiu” (p. 33). E insistiu que não se pode desobedecer aos anjos. “Anjos trazem recados de Deus” (p. 34). Pensou Ilda. “E há também os querubins, E os serafins...” (p. 34).
O anjo Serafim, segundo a angeologia tem seis asas e é o anjo mais próximo de Deus. Seu nome significa queimar ou incendiar. Para Freud, o fogo é equivalente à paixão do amor, é uma alegoria da libido, tendo em vista o calor que irradia e também às suas chamas, que se assemelham ao falo em estado de atividade: “quando falamos do ‘fogo devorador’ do amor ou das chamas que ‘lambem’ - comparando assim o fogo a uma língua -, não nos distanciamos do modo de pensar de nossos ancestrais primitivos” (Freud, 1933[1932]/1996k, p. 230). Assim, labaredas seriam símbolos fálicos. Serafim, esse “anjo de fogo” consistiria também numa certa potência de vida, num corpo paixão. Diz Ilda arrebatada pelo fogo:
Esperei um pouco, mas ele não se interrompia, descia os braços sobre o fogo e batia o ferro, sem medo de queimar-se. Estava descalço e tive a sensação de que ele poderia andar, sem sentir dor, sobre os carvões acesos.
O ferro brilhava e era vermelho como o fogo. Se se olhasse muito tempo ficava-se pregado ao chão, encandeado. (Gersão, 2000, p. 31)
Serafim parece representar tanto para filha como para a mãe um feitio fulgurante, abrasa-dor, e por vezes até incendiário do amor. A novela aponta a pujança do fogo, como seiva que se apresenta tão literalmente na vida dos personagens. O fogo se exibe veemente trazendo à tona a revivescência do amor como força motriz a ser investida a favor da vida.
O anjo Serafim era o remédio para a mãe de Ilda. Uma relação de amor que só poderia ser aceita pela via dos subterfúgios, acobertada por seres celestes como os anjos, que são autores de fenômenos milagrosos.
Assim, a despeito de suavizar o próprio sofrimento, a mãe de Ilda passou a sair de noite, quando mudava a lua. Regressava de manhã com a roupa cheirando a fumo. “Não via nada ao redor de si, quando voltava. Não existíamos nós, nem a casa, o poço, o cão, as galinhas. Não existia nada” (p. 35). Uma estranha serenidade se apossou dela. A partir daí, tomada pelo anjo, não tornou a cortar os pulsos nem a fugir e parecia melhorar.
O pai de Ilda, ao se dar conta “dos anjos e das noites de lua”, revoltou-se contra o próprio pai e se sentiu traído. “Mas o meu pai enfureceu-se e gritou que o avô era um porco velho e sujo ... e nem se importava de fazer pouco de seu próprio filho...” (Gersão, 2000, p. 35). Ilda ouve o avô dizer ao pai: “que se a minha mãe não fosse, a cada mudança de lua, mudaria outra vez ela própria. Tornaria a ficar louca e morria” (p. 36). Assim, tornou-se um consenso familiar dissimulado suas saídas na mudança da lua. Cada um se cura como pode.
Ilda nos apresenta inicialmente a trajetória de uma mãe depressiva, em desencontro com o marido, mergulhada em abismos e afundada em intensa tristeza, ensaiando saídas suicidas. A mãe aparece transtornada mentalmente, para enfim reencontrar uma paixão da juventude que a reequilibra, Serafim das Canas, um ser comum que desponta como anjo e tem poder de cura. O amor, sempre o amor, é que serve de fio condutor para guiar a mãe de Ilda a caminhos menos tortuosos, trazendo uma sustentação para o seu ser.
Nesta obra de Teolinda, vemos o que Freud já anunciava: a relevância do amor para a constituição da subjetividade. O amor sempre esteve presente nos estudos freudianos, não à toa é ele o centro da experiência psicanalítica. Em vários momentos da sua obra, o mestre vienense aponta a importância do amor, chamando a atenção para o desamparo constitutivo do humano, marca dos falantes. Diante dessa condição de desamparo que acompanha todo sujeito, será o amor que revigora e sustenta a difícil tarefa de viver.
No texto “Observações sobre o amor transferencial”, Freud afirma sem contestação que: “o amor é indubitavelmente uma das principais coisas da vida” (Freud, 1915/1996e, p. 186). Nesse mesmo texto, faz alusão às raízes infantis do amor relacionando-as com as matrizes primitivas. A forma como se foi amado fica registrada no psiquismo. Então o amor tem esse caráter de repetição e ao longo da vida o sujeito revive esses afetos. Tal comportamento decorre dessa constelação psíquica, relacionado às primeiras experiências amorosas, com os primeiros objetos, tendo feito assim sua morada nos primórdios da existência. Dessa maneira a infância é um chão que se percorre pela vida inteira. Nesse sentido, podemos pensar que todo encontro amoroso é um reencontro, porque são os traços fortes da infância que desenham e determinam as possibilidades do amor.
Pelo viés da psicanálise, entendemos que o amor é uma saída essencial frente às agruras da vida. Desde que nascemos até à morte, é o amor que valida a existência, que nos acode do mal-estar e ajuda a driblar a morte. Que seria da mãe de Ilda sem o amor?
Quando se ama e é amado o trágico da experiência de viver se atenua. Ou seja, o amor traz essa possibilidade de enlaçamento à vida, traz algum respiro, um sopro de apaziguamento e acalento. Mas também pode surpreender de forma contraditória, porque abre as portas do céu, mas igualmente pode escancarar as portas do inferno. Para viver o amor, é preciso perambular por esses caminhos emaranhados. O amor é custoso: ao mesmo tempo que dá asas ao sonho alado e causa deslumbramentos, pode acender as labaredas de nossos abismos. Há sempre algo de enigmático no amor. De vez em quando é bálsamo, em outros momentos é tempestade ameaçadora, pura fonte de inquietude com seus precipícios e tormentos. Mas apesar de suas vicissitudes, somos todos ávidos por este afeto precioso. Vivemos mais felizes quando amamos, e também mais desassossegados porque quando se ama existe o medo da perda e daí o comparecimento da dor de amor, uma vez “que nunca nos achamos tão indefesos contra o sofrimento como quando amamos, nunca tão desamparadamente infelizes como quando perdemos o nosso objeto amado ou o seu amor” (Freud, 1929-1930/1996h, p. 90). Assim, adentrar nesse mar é navegar entre o deleite e o desassossego, entre a luz e a sombra. O amor é aquilo que fracassa, mas que persevera. Incontrolável, é sempre da ordem de uma aposta, de tal maneira que não existe sem riscos. Aliás, se há algo que a psicanálise ensina é que tanto na vida como no amor, não há garantias e que todo encontro é desencontrado. O encontro com o outro é frequentemente de tal maneira, um encontro consigo mesmo, o outro revela algo que habita em mim, e do qual por vezes, não quero saber, daí tantas complicações. O enfrentamento com o outro é sempre da ordem do combate.
Nesse sentido, Zygmunt Bauman, sociólogo da atualidade que escreve brilhantemente sobre o amor na modernidade, diz também desse descompasso, dessa ambiguidade que atravessa o amor em sua longa história: “Eros move a mão que se estende na direção do outro - mas as mãos que acariciam podem também esmagar” (Bauman, 2004, p. 23). Essa ambivalência é a marca indelével do amor e na novela se mostra nas relações entre os personagens de forma acentuada. Tanto Freud quanto Lacan afirmavam que amor e ódio são faces da mesma moeda. Tal ambivalência é indicada por Lacan (1972-73/1985), no Seminário 20, com um novo significante: amódio, “uma enamoraçao feita de ódio (haine) e de amor, um amódio” (p. 122).
Enfim, a despeito de todos os sobressaltos, há uma insistência nessa miragem, nesse mistério chamado amor. Bauman (2004) refere que “não se pode aprender a amar, tal como não se pode aprender a morrer” (p. 17). A morte e o amor sempre assaltarão o sujeito. Tentar entender o amor é querer “compreender o incompreensível”. O triângulo amoroso que se apresenta na novela - pai - mãe - amante - talvez esteja mais próximo da era da modernidade, apontando a decadência do modelo formal, desviando-se dos padrões familiares consagrados pela cultura e instaurando novas possibilidades de relacionamentos. Novos romances familiares se apresentam. Parece ser o recurso encontrado frente a “loucura” da mãe de Ilda. “No mar da incerteza, procura-se a salvação nas ilhotas da segurança” (Bauman, 2004, p. 45).
Apesar de o amor ser uma invenção humana para amenizar a castração, sabe-se que ele não a elimina. “O amor é dar o que não se tem” (Lacan, 1960-61/1982, p. 41), ou seja, o amor se sustenta na ausência do ter. O que não se tem é o falo.2 O amado jamais terá o falo para dar ao amante. Nesses termos, dar o que não se tem é dar a falta, compartilhando-a. O que falta ao amado o amante não tem para oferecer porque também lhe falta a ele.
Em O Seminário, livro 20: mais, ainda, Lacan (1972-73/1985) define o amor como aquilo que, sem participar da estrutura humana, vem suprir o não haver da relação sexual. “O que vem em suplência à relação sexual é precisamente o amor” (p. 62). Por isso, na impossibilidade da relação sexual, o sujeito tem a ilusão de que o amor o completaria. Será a doce ilusão da plenitude do amor, sempre inalcançável, que a mãe de Ilda procura?
Sabe-se que Lacan, em suas referências à estruturação do psiquismo, destacou três registros: simbólico, imaginário e real. O primeiro deles é o universo da palavra e da lei; o segundo, o campo do sentido e da imagem do próprio corpo, enquanto o último, pertencente ao registro do impossível, engloba a dimensão do desamparo, do sem sentido e do que resiste a todo processo de simbolização. O real sempre se presentifica de forma avassaladora, razão pela qual o encontro com ele tem valor de trauma. Lacan ensina que o amor vem tentar dar conta da falta inerente ao sujeito e também é o que vem em suplência ao real.
Assim, a mãe de Ilda tenta driblar o real. Ao aproximar-se do anjo esbarra no fulgor de Eros, com seu efeito transformador, redescobrindo o interesse pela vida, pela família e pela maternidade. O anjo da mãe é enfim integrado e aceito à dinâmica familiar de forma velada, restaurando as relações e evitando a tristeza e o desequilíbrio. Mas não deixa de ser uma figura proibida, que não pode ser dita pelos personagens, por isso a solução é que ele apareça acobertado, como anjo. Dessa forma, um novo posicionamento se deu na cena familiar. A relação atípica/adúltera da mãe com o seu anjo Serafim é acatada, mesmo fora dos enquadramentos aprovados pela sociedade, sendo aceita de maneira implícita pela filha, marido e sogro. A mãe de Ilda, confiante na sua libertação pela via do amor e provida de um desejo decidido, transcende sua condição de subserviência e rompe com a cultura que normatiza os comportamentos. De tal modo, não cultiva os estados melancólicos e a tristeza arrefeceu.
A relação mãe e filha
Em Os Anjos, o próprio fato de a focalização narrativa ser a filha, revela que a história contempla a figura substancial da mãe e sua relação com Ilda. Como sabemos com Freud, as vivências infantis com a mãe são de extrema importância na constituição do sujeito. Pois a mãe é tida como primeiro objeto de amor de uma criança.
Interessante pensar na grandiosidade e força da palavra mãe. Percebe-se na narrativa que a mãe não tem um nome próprio. Ela não foi reduzida ao nome próprio, e ultrapassou esse lugar materno, sendo também mulher. Marco Antônio Coutinho Jorge, ao escrever a orelha do livro A relação mãe e filha, de Malvine Zalcberg (2003), aponta a complexa questão do feminino:
Se Freud abordou a feminilidade, de início, a partir da relação da menina com o pai e acabou desembocando na importância da relação entre ela e a mãe, Lacan trará como grande inovação a concepção de um resto na operação edípica presente no destino feminino. Trata-se do desdobramento da figura da mãe em duas funções distintas e igualmente fundamentais: a função materna e a função feminina. (Orelha)
Assim, o desejo da mãe porta a enunciação do que é ser uma mulher. A mãe de Ilda pôde conjugar essas duas posições.
De acordo com Zalcberg (2007): “Lacan, em vez de sobrepor a mãe e a mulher, como Freud o fizera, ele as separa. Para ele a mãe e a mulher não só se recobrem por completo, como também, de certo modo, podem constituir posições antagônicas” (p. 68). Colette Soler (2005) reforça esse mérito de Lacan enfatizando que “A mulher é uma invenção da cultura, ‘histórica’, que muda de feição conforme as épocas” (p. 30).
Atrás da mãe de Ilda se esconde a mulher, que arde de amor na casa do ferreiro Serafim, um anjo sedutor que foi capaz de encantar não só a mãe, mas a filha e o avô. Foi possível encontrar um ponto de equilíbrio, uma luz que permitiu romper os reveses da desagregação familiar.
Ilda sonhava que um anjo se revelaria e subitamente pudesse resgatá-la, como ocorreu com a mãe: “Antes de adormecer penso nos serafins. Mas não consigo vê-los, tudo que vejo é a cara do Serafim das Canas, ao fundo dos degraus da igreja, penteado com brilhantina e com olhos que parecem rir e deitar lume” (Gersão, 2000. p. 34).
Nas noites em que a mãe saía, Ilda sentava-se no seu lugar a olhar o fogo, como numa relação materna diádica e especular: “A lenha torcia-se, sibilava como cobra, enovelava-se sobre si própria. As chamas dançavam, nunca mais largando o que tocavam, enrolavam-se em volta, faziam corpo com o outro corpo, como se o devorassem” (pp. 36-37). Esta imagem é simbólica, representando o sentir das duas personagens - a filha revela a mãe como polo de identificação e algo dessa mãe se transmite para a filha.
Sabemos com Freud que é como a mãe, e com a mãe, que a menina compõe sua feminilidade. Assim, constituir-se subjetivamente enquanto mulher perpassa pela relação essencial entre mãe e filha, podendo tomar caminhos diversos. Frequentemente, pode-se perceber o comparecimento de um abandono afetivo ou a presença invasiva da mãe, apontando que o limiar entre invasão e exclusão pode ser tênue.
Vemos aqui uma narrativa que diz respeito a uma intensa relação de uma menina com sua mãe, onde comparece um conjunto de afetos conflitantes. Apesar de tentar entender o adoecimento materno, Ilda, que se desdobra em múltiplos papéis, inclusive mãe da mãe, traz passagens de tristeza e enfrentamento na relação com a mesma: “(...) bastava um olhar para enfurecê-la (...) também comigo se enervava, fechava-me no canil com o cão ou metia-me no galinheiro e não me dava de comer durante todo o dia” (Gersão, 2000, p. 11). O amor materno era inconstante como uma corda bamba. No texto que trata dos “Romances familiares” (1908-1909/1996a), Freud ressalta a dificuldade do sujeito se separar das instâncias parentais e de sua autoridade. Um jogo de vínculo e ruptura habitam os laços que unem Ilda e sua mãe.
Na novela, a relação entre mãe e filha é conturbada, permeada por uma dinâmica conflituosa onde a filha se submete aos ditames maternos. “A minha mãe ficava muito tempo à janela, depois fazia uma trouxa com roupa e dizia que ia embora. Às vezes abria a porta, arrastava a trouxa até a soleira, e quando eu dizia que ia com ela, enfurecia-se comigo e começava a bater-me”. (Gersão, 2000, p. 14). A mãe de Ilda era intermitente, a conta-gotas.
Sobre a mãe, André (2015) nos ensina: “Mater certíssima (...) se ao menos fosse verdade! No melhor dos casos ela é good enough, suficientemente boa. No pior, hesitamos entre: imprevisível, indiferente, intrusiva, possessiva, excessiva (...) e perfeita!” (p. 97).
A mãe de Ilda, completamente ocupada consigo mesma, às vezes acometida por uma fúria desenfreada, age de forma hostil com a filha, um amor negligenciado, com manifestações de agressividade, instaurando a falta de acolhimento e cuidados para com a mesma. Isto se dá em função de seu desequilíbrio emocional. Mãe e filha serão curadas após o encontro com o anjo?
Veremos que a mãe sim, mas Ilda não encontra seu anjo e comparece um desejo não realizado. “Odiei-a porque ela parecia feliz...” (Gersão, 2000, p. 45). O triunfo da mãe parece incomodar a filha. Comenta Jacques André (2015): “O ódio jaz no âmago do amor e vice-versa, na ignorância da contradição” (p. 9). A ambivalência amorosa e a rivalidade se constituem como marca da relação com a mãe, já dizia Freud. Muitas vezes esses traços arcaicos são conservados por toda vida. Diz Ilda: “Então os anjos roçaram a minha face e abrasaram-na de fogo. Os anjos maus desceram sobre mim como relâmpagos, estenderam-me o braço na direcção do roupeiro, abriram-me a boca e encheram-na de palavras como carvões acesos” (Gersão, 2000, p. 45). Ilda, tomada pelo ódio, teve vontade de gritar que já sabia do retrato do Serafim escondido no gavetão. Antes de ser destruidor, o ódio é também um separa-dor. “Da mais profunda das cumplicidades à paixão do ódio, as relações entre mãe e filha variam ao sabor da vida; nenhum contudo que não traga o vestígio desse laço primitivo, ‘civilização’ arcaica ‘encanecida pelos anos’” (André, 2015, p. 100).
Ilda recalca as palavras odiosas, na tentativa de abrandar a relação lacerada com a mãe e seu próprio recalque a protege, deixando fora do alcance da consciência um desejo inadmissível, uma representação inaceitável: “Mas os anjos roçaram minha outra face e não cheguei a dizer palavras (...)” (Gersão, 2000, p. 45). A mãe para ela é tão absolutamente boa quanto má.
Freud reconhece que a relação edípica é estrutural para todo sujeito, mas reconhece que, para a menina, tanto a relação com o pai (edípica) quanto a relação com a mãe (pré-edípica), nunca é verdadeiramente eliminada no complexo edípico de uma mulher.
Vemos, portanto, que a fase de ligação exclusiva à mãe, que pode ser chamada de fase pré-edipiana, tem nas mulheres uma importância muito maior do que a que pode ter nos homens. Muitos fenômenos da vida sexual feminina, que não foram devidamente compreendidos antes, podem ser integralmente explicados por referência a essa fase. (Freud, 1931/1996i, p. 238)
A fase pré-edipiana é um tempo de rico conteúdo e pode deixar motivos para fixações e disposições. Esse vínculo ao Outro materno traz notícias de como o sujeito foi marcado pelo campo do Outro3 e das dificuldades para a menina no confronto com a privação materna.
Vemos que a situação edipiana para as meninas é o resultado de uma difícil e longa evolução. As meninas permanecem no complexo de Édipo por tempo indeterminado, apagam-no tardiamente e, mesmo assim, de forma incompleta. Freud nos indica, no texto de 1931, que a relação da filha com a mãe é sempre da ordem de uma catástrofe, porque não há um desligamento pleno da fase pré-edípica, que é a fase de ligação exclusiva e intensa à mãe. Ressalta que o primeiro objeto de amor da menina é a mãe. Segundo Zalcberg (2003): “É essa história pré-edipiana da menina com a mãe - história que não ocorre com o menino - que em grande parte determina seu futuro como mulher” (p. 36). Ou seja, essa relação complexa e multifacetada deixa marcas que se eternizam, mas Ilda parece se conformar e perceber que o lado doentio da mãe foi suprimido e a vida pode transcorrer ordinariamente. Será uma superação pela via da identificação? A identificação implica tentar ser idêntico ao outro para granjear identidade.
Ilda conclui:
Éramos uma família, vi. O meu pai, a minha mãe, o meu avô e eu. O que quer que acontecesse, a minha mãe voltaria sempre, não punha um pé em falso ao andar nem caía do alto das ravinas. Nem a levava o vento. Porque estava ligada a nós. Olhei para ela outra vez: Estava tão bonita como no tempo do retrato, antes de eu nascer. E eu estava contente por ter nascido. (Gersão, 2000, p. 46)
A mãe, depois de reencontrar o anjo, estava conectada à vida, ao abrigo seguro da família, desfrutando do amor, que pôde enfim triunfar, aplacando o desamparo trazido por Tânatos. Cedeu ao amor transgressor como o desígnio de cura do corpo e da alma. Ela agora viverá no segredo de Eros e, mesmo sujeita às intempéries da vida, abrandará suas chances de cair nas trevas da morte. Pois bem, sabemos que, apesar do amor ser uma invenção para amenizar as dores da existência, não elimina o desamparo radical inerente a todo sujeito, mas regenera os abismos que incendeiam.
Se, na trama, o encontro entre a mãe e o anjo ocorre, o mesmo parece não acontecer com a mãe e a filha, revelando-se aí um imbróglio, um hiato impreenchível, sobretudo no que tange ao laço entre as duas. Mas Ilda parece conformada e está “contente por ter nascido”. Apesar da conturbada trajetória materna, confrontada e afetada pelo inóspito de uma relação sem consistência, Ilda busca diante do caos um arranjo para suas vivências subjetivas. A menina parece ter amadurecido prematuramente e acatado o que a vida lhe impôs. Mas o “eu” conserva as marcas das feridas, fragilidades e fissuras. De acordo com André (2015):
A vida psíquica é uma vida de conflito. Entre o eu e a realidade exterior não faltam choques, mas o antagonismo principal se dá com o inimigo interior, de que é impossível fugir, que é impossível vencer. É preciso se submeter, se comprometer, negociar (...) por vezes se libertar (...) (p. 35)
O que fazer com as marcas traumáticas deixadas pela relação com a mãe? O trauma é um ferimento, é quando acontece algo que excede as capacidades psíquicas de elaboração, de integração pelo “eu”. Ocorre quando as fronteiras desse mesmo “eu” são transpostas, pisoteadas, às vezes destruídas. Diante do trauma, se faz necessário restituir a palavra, o acesso à sua história e a possibilidade de escolher entre a pulsão de vida e a de morte. O que importa é que a palavra, posta em circulação, permita a Ilda sair do impasse do sintoma e da repetição. Freud, no texto “Recordar, repetir e elaborar” (Freud, 1914/1996b), nos adverte que o que permaneceu incompreendido retorna e, como uma alma penada, só repousa quando encontra solução e absolvição. A Ilda, cabe interrogar: quem é ela afinal? Diante dos desmoronamentos internos, resta ao sujeito reordenar as rotas, reorganizar fluxos a favor de uma vida o mais pulsante possível. Faz-se importante sublinhar o quanto essa dimensão de Eros e Tânatos é evidenciada no decorrer da novela, notadamente no que tange à relação mãe e filha.
Considerações finais
Na novela percebemos que cada um dos personagens atravessa o limite em relação à verdade, indo mais além daquilo que supunha saber, conduzindo o leitor a se deparar com a verdade sempre faltosa. Assim, Teolinda Gersão, sensível e brilhante com sua habilidade técnica e estilística, nos apresenta a arte de fazer literatura, desafiando-nos a compreender as nuances do sofrimento humano. Gersão agarra as palavras revelando a universalidade e complexidade dos afetos. Imbuída de estética e beleza, transforma o banal em extraordinário. Suas narrativas são poéticas, instigantes, irreverentes e sua ficção nos aproxima do mais intrínseco do sujeito e nos encaminha aos paradoxos da existência. Assim, Os Anjos, é tão somente mais um testemunho do engenho majestoso da escritora.
Concluindo, o amor e a morte se apresentam maciçamente nessa novela e são enigmas não decifrados, que sempre nos deixam um fascínio, levando-nos continuamente a nos interrogar. São contornos, esboços e respostas inesgotáveis que continuarão desafiando e levando constantemente o sujeito a se recriar. Os Anjos, na figuração de seus personagens, é uma obra que nos revela essa reinvenção, tão necessária ao território de batalha que todos habitamos, seja nos laços afetivos, no adoecimento do corpo... De acordo com a história singular de cada sujeito, há um trabalho psíquico que aciona diferentes saídas.
Lembramos que o estatuto da morte na concepção freudiana não trata da morte em si, mas se refere ao enfrentamento das sucessivas perdas reais e simbólicas, é especialmente sobre aquilo que se deteriora e tem a ver com agressividade, destrutividade e violência. É quando “a expressão do amor de si se transforma em seu contrário, um recolhimento, até o retraimento, quando a animação da vida psíquica parece ter-se tornado o inimigo principal” (André, 2015, p. 129). A morte aponta para a suspensão radical do desejo.
Nesse sentido, é imperioso que Tânatos não se sobreponha a Eros, ou, pelo menos, que não o consiga durante muito tempo. Em presença da rocha dura e árida, e se o rio secar, resta-nos Eros, essa força dançante, vital a nos impulsionar diante da impermanência inimaginável das coisas e na simples alegria de viver.
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Este artigo faz parte da pesquisa da tese em construção, que tem como tema: Maternidade: quantas faces? e se intitula Narrativas sobre mães na obra de Teolinda Gersão: viagens nem sempre cintilantes em torno da maternidade.
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http://pepsic.bvsalud.org/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0101-31062020000100002 George Sylvester Viereck (1926).
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Na psicanálise, o termo "falo" tem uma conotação simbólica e não deve ser entendido literalmente como o órgão sexual masculino. O conceito de falo foi introduzido por Sigmund Freud para descrever um símbolo de poder, desejo e completude. O falo é central na teoria freudiana da sexualidade infantil e na construção do complexo de Édipo. Já Lacan reinterpretou o conceito de falo, destacando-o como um significante que representa a falta, a incompletude e a castração, e está ligado à estrutura simbólica do sujeito.
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Lacan em seu ensino faz referência ao que está marcado em nossa própria existência, nesse engodo com o Outro, trazendo à baila a relação do sujeito com o desejo e a demanda desse Outro. Sendo assim, o Outro torna-se a nossa salvação e o nosso inferno.
Agradecimentos:
Agradeço à Universidade de Évora e à Profa. Dra. Ana Luisa Vilela, que acolheram generosamente minha pesquisa.
Referências
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Datas de Publicação
-
Publicação nesta coleção
02 Maio 2025 -
Data do Fascículo
2025
Histórico
-
Recebido
13 Maio 2024 -
Aceito
16 Dez 2024