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Um bebê plural e falante

RESENHA DE LIVROS

Um bebê plural e falante

Leda Mariza Fischer Bernardino

Professora titular da Pontifícia Universidade Católica do Paraná – PUC-PR (Curitiba, PR, Br); psicanalista; analista membro da Associação Psicanalítica de Curitiba (Curitiba, PR, Br); integrante do GNP (Grupo Nacional de Pesquisa), para a realização da Pesquisa IRDI, que foi financiada pelo Ministério da Saúde, pela Fundação de Apoio à Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp) e teve entre as instituições participantes a Universidade de São Paulo – USP (São Paulo, SP, Br) e a Pontifícia Universidade Católica de São Paulo – PUC-SP (São Paulo, SP, Br)

Nos últimos anos, passamos a ter acesso a uma literatura extensa sobre as chamadas "competências" dos bebês, que questionam as concepções mais clássicas de um bebê passivo e pouco provocador. Entretanto, nem sempre estas pesquisas – etológicas, cognitivistas, neurocientíficas – tiram as consequências clínicas de suas descobertas, apresentadas muito mais do ponto de vista descritivo, o que acaba tornando estas pesquisas um tanto quanto tautológicas: os autores parecem saber o que vão encontrar de antemão e a pesquisa se encerra com o encontro do resultado esperado. De outro lado, do ponto de vista psicanalítico, sendo a psicanálise uma teoria investigativa do psiquismo e uma forma de intervenção clínica que tem como pressuposta uma série de hipóteses sobre o funcionamento psíquico, muito se produziu de teorias sobre o início da formação do psiquismo humano, deduzidas a partir de achados da clínica com adultos, com psicóticos, com crianças com graves psicopatologias. Contudo, raramente estas teorizações se encontram com descrições fenomênicas dos comportamentos dos primeiros anos de vida e com as peculiaridades do funcionamento cerebral, sensorial, adaptativo dos bebês.

Este é o principal mérito deste livro, organizado por Marie-Christine Laznik, psicanalista que é uma referência no Brasil e na França no trabalho e na pesquisa sobre o autismo, e pelo psiquiatra David Cohen, referência em Psicopatologia da infância e da adolescência em Paris. O volume apresenta diferentes abordagens, diferentes maneiras de interpretar o filhote humano, de uma maneira dialógica, ou seja: é um livro que demonstra a riqueza da interdisciplinaridade para a prática clínica. São nada menos que 41 autores, entre psiquiatras, psicanalistas, psicólogos, linguistas, fonoaudiólogos, etóloga, fisiologista, neurocientistas, cientista social, todos atuando como intérpretes de bebês, ou seja: propõem-se a ler, nestes que ainda não falam, o que eles têm a dizer, a partir das demandas que fundam quando, por alguma razão, é necessário buscar alívio para o sofrimento, respostas para inquietações ou para perguntas de pesquisa.

Já no Prefácio, Marie-Christine Laznik remete-se ao I Seminário Internacional Transdisciplinar sobre o bebê: clínica e pesquisa, que ocorreu em Paris em 2009, na Escola Normal Superior (instituição descrita por ela como "o vaticano do saber na França") no qual foram apresentados os trabalhos compilados neste livro. No cartaz do evento, e também na capa do livro, em uma sugestiva foto de capa dos anos 1950, que mostra bebês em uma cesta aguardando para serem pesados por uma religiosa/enfermeira que olha atentamente para o mostrador da balança, somos confrontados com o olhar predominante que se voltava aos bebês no século passado: a puericultura. Foi nesta época que Françoise Dolto pôs-se a falar com os bebês e a sustentar a ideia do bebê como sujeito em potencial, sendo chamada por muitos de seus colegas de "doutora louca". Laznik presta neste Prefácio uma justa homenagem a esta "loucura": "o que as novas pesquisas revelam é que o intuito de Dolto em 1956 era genial". Pois o fato é que no século XXI – muitas pesquisas e construções teóricas depois – é como se estivéssemos diante de um novo bebê.

O livro é dividido em duas partes. Na primeira, "Clínica e pesquisa", são apresentados os textos das conferências proferidas no evento e algumas pesquisas de autores franceses. Na segunda parte, são apresentados os trabalhos dos brasileiros que levaram a Paris sua contribuição para temas como prematuridade, intervenção precoce, autismo, corpo e psiquismo, linguagem e cultura. São trabalhos curtos, enxutos, que apresentam a questão, sua sustentação teórica, discutem os resultados da pesquisa e apresentam conclusões. Neste sentido, constituem uma pequena coleção de "atualizações" sobre o conhecimento dos bebês (nos dois sentidos da expressão).

Vejamos uma amostra do que o livro nos apresenta em sua primeira parte, sobre clínica e pesquisa.

O trabalho "A relação de uma mãe psicótica com seu filho: acompanhamento de um caso mãe-bebê em um Hospital Dia", de Claude Boukobza, como se poderia esperar de uma psicanalista com tanta experiência e com uma escuta dirigida à delicadeza da clínica materno-infantil mostra, a partir de um caso clínico, como o tratamento psicanalítico operou para que a criança com mãe psicótica pudesse "se construir como sujeito e não como puro objeto ligado à mãe" (p. 22). É o testemunho de um trabalho que Boukobza realiza há muitos anos na unidade de Acolhimento Mães-bebês de Saint Denis, com verdadeiros efeitos de prevenção.

Marie-Claire Busnel e Anne Heron abordam "O desenvolvimento da sensorialidade fetal", em uma impressionante descrição das competências do feto quanto ao tato, olfato, gustação, sistema auditivo, visual, intersensorialidade, ritmos circadianos, memória e vida afetiva; que conclui com a inovadora afirmação de que o feto "já tem todas as capacidades do adulto" (p. 31), à espera do nascimento e estimulações para se desenvolver.

A pesquisa de David Cohen e colaboradores sobre "Acompanhamento ecográfico pré-natal de gravidez com suspeitas de malformações: estudo do impacto sobre as representações maternas" discute o efeito do diagnóstico ainda incerto – e muitas vezes não confirmado – de malformações do feto sobre o psiquismo materno e sua incidência nas interações precoces mãe-bebê, nos casos em que o bebê nasce normal. Trata-se de um estudo interdisciplinar, na interface entre obstetrícia, ecografia e abordagem psicodinâmica, com uma fundamentação teórica rica e resultados preliminares de pesquisa.

O trabalho "Proposta de modelagem peirciana: semiose do bebê", de Pierre Delion, é um dos mais interessantes do volume, por apresentar uma visão geral da semiótica peirciana aplicada ao estudo do bebê e suas interações, tendo como parceiro dialógico a psicanálise. Se a introdução teórica pode parecer difícil para o leitor ainda não iniciado nas categorias semióticas, o exemplo clínico apresentado é esclarecedor, e vale a pena perceber o quanto de pequenos sinais são ressaltados por esta leitura em três níveis que o autor propõe: primeiridade, secundidade, terceridade; e o valor disto para a intervenção terapêutica com os pais e o bebê.

O capítulo "Percepção de fala nos bebês", do pesquisador em ciências cognitivas e psicolinguística Emannuel Dupoux, detalha as sutilezas da inserção dos bebês no campo da fala. O autor fornece uma interessante metáfora para resumir a complexidade deste processo: "durante a produção da fala nós quebramos todos os ovos como uma espécie de omelete e a questão para o bebê é, a partir da omelete, reconstituir um ovo inteiro" (p. 72), o que ele vai fazer por "dedução" de regras e não por aprendizagem convencional.

A pesquisadora em Psicologia e Musicologia Sistemática, Maya Gratier, em "As formas da voz: o estudo da prosódia na comunicação vocal mãe-bebê" apresenta um consistente argumento sobre a relação entre voz e musicalidade para o acesso ao universo dos sentidos da linguagem, referindo-se a Didier Anzieu ("banho sonoro"), Daniel Stern ("envelope protonarrativo") e outros autores. Para a autora, que consegue de um modo muito simples juntar a questão da voz à questão subjetiva, "as modulações da voz (...) podem dizer aquilo que as palavras não dizem" (p. 83).

Alfredo Jerusalinsky, psicanalista, em "Os bebês nas neurociências e na psicanálise: a questão da memória e da linguagem" consegue articular de modo muito simples questões complexas das neurociências com estudos de Freud, Darwin e outros pesquisadores, a propósito do estudo da memória para demonstrar a preponderância do funcionamento simbólico no bebê humano e o papel da neuroplasticidade no campo da intervenção precoce. Jerusalinsky esclarece, por exemplo, que "nossa memória não é genética fundamentalmente", pois depende das "mediações materiais com que essa memória coletiva, que é o discurso, opera sobre nós" (p. 89).

Marie-Christine Laznik, psicanalista, em "Linguagem e comunicação do bebê de zero aos três meses" retoma as principais pesquisas sobre as competências dos bebês nos últimos trinta anos para abordar o manhês, os turnos dialógicos da protoconversação e seu valor no trabalho psicanalítico. Para ela, o bebê é "um colaborador do tratamento psicoterapêutico bebê-mãe, possibilitando à mãe ter acesso a regiões recalcadas ou denegadas de seu psiquismo" (p. 99).

A psicanalista Myriam Szejer, uma das seguidoras de Dolto que é também uma referência no trabalho de escuta em maternidades na França, em "Sinais transgeracionais relacionais identificáveis" explicita seu trabalho, defendendo um protocolo próprio para a atuação do psicanalista nestes locais, em que "para a mãe, o pai e a criança, a questão da filiação é fortemente reativada" (p. 102). A autora traz uma série de exemplos de situações perinatais em que o adoecimento do bebê ou sua desorganização funcional devia-se a fatores da história familiar e como a intervenção psicanalítica permitiu "a todos melhor ocupar o seu lugar" (p. 116).

Fechando a primeira parte, temos o trabalho de Colwyn Trevarthen, o grande professor escocês de Psicologia da criança e Psicobiologia, autor de várias pesquisas sobre a "intersubjetividade primária", a "musicalidade comunicativa" e a "narratividade", que sustentam sua hipótese de que o bebê muito cedo vivencia e comunica emoções complexas. Apoiado em muitas pesquisas com bebês e seus pais, o autor afirma: "durante os seis primeiros meses, as emoções se engatam de forma a formar histórias cada vez mais apaixonantes, nais quais os protagonistas desempenham papéis expressivos uns para os outros" (p. 125).

Na segunda parte do volume, sobre o tema da prematuridade, temos o trabalho de Maria do Carmo Camarotti, sobre a relação entre a vivência de dor pelos bebês e a formação do psiquismo; o trabalho de Célia Cauduro relacionando o conceito winnicottiano de holding com neurogênese; e o trabalho de Nanette Frej e colaboradores sobre o conceito freudiano de Aufhebung e bebês prematuros. Destaque para o trabalho de Sonia Motta sobre a morte de bebês prematuros e a intervenção precoce, em que a autora aponta, dentre outras afirmações: "sem o trabalho de luto, o desejo fica suspenso, afetando-se a preservação de todos os vínculos" (p. 159).

Sobre o tema "Intervenção Precoce", o volume traz trabalhos sobre a linguagem em crianças surdas (Carvalho, Penna, Grossi e Parlato-Oliveira), reflexões sobre o atendimento em saúde mental de crianças pequenas (Roberta Gomes-Kelly), aplicação do protocolo IRDI em vídeos caseiros de bebês que mais tarde foram diagnosticados como autistas (Lerner, Cohen, Muratori, Apicella e Cassel).

Sobre o tema "Autismo", Abeil, Queiroz e Correia fazem uma discussão interessante sobre o aumento deste diagnóstico clínico, propondo relacioná-lo com a mutação cultural em curso; Inês Catão trabalha a questão da voz entre linguagem e fala, para abordar sua experiência clínica com crianças autistas; Silva, Almeida e Barros também apresentam um estudo de caso desta clínica.

Sobre o tema "Corpo e psiquismo", a médica Maria Helena Cardoso narra suas corajosas intervenções em um caso de doença hemorrágica hereditária; a psicóloga e doutoranda Flaviana Maroja relaciona o impacto de uma gravidez de risco na relação mãe-bebê e a psicanalista Joanna Wilheim, pesquisadora de psiquismo fetal, propõe considerar, no atendimento ao gêmeo sobrevivente, a questão do gêmeo perdido em casos de concepção gemelar.

O tema final, "Linguagem e cultura" apresenta o trabalho de Silvia Ferreira, psicanalista e linguista, sobre "O manhês e o impossível da língua", em que aponta como "a invenção do manhês vem revelar o possível de realizar a proibição, ou seja, de tocar o impossível, o real da língua"; o trabalho de Érika Parlato, também linguista e psicanalista, sobre a clínica de linguagem de bebê, ressalta "a transdisciplinaridade do saber" (p. 254); e o trabalho de Benedicto Vitoriano sobre o cuidado e proteção do bebê na umbanda.

A impressão após a leitura do volume é quanto à pluralidade de leituras possíveis das manifestações dos bebês. Daí advém uma constatação: não é possível trabalhar com bebês sem conhecer as diferentes facetas que apresentam. Se eles não falam com palavras e precisam dos pais ou cuidadores para sustentar seu lugar, sabem com muita competência se comunicar: com seu corpo, seus movimentos, suas expressões, suas doenças, suas desorganizações funcionais.

Além disso, ao nascimento e aos poucos meses de vida os bebês já trazem uma história: a que herdaram de seus familiares e as suas próprias vivências intrauterinas e perinatais. E muitas vezes são histórias de muito sofrimento psíquico. A nós, que exercemos esta clínica dita "precoce", embora esteja já no só-depois próprio do tempo psicanalítico, cabe saber acolhê-los e a seus pais, tentando ler, interpretar, com humildade, o que nos trazem para tratamento.

Leda Mariza Fischer Bernardino

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O bebê e seus intérpretes: clínica e pesquisa Marie-Christine Laznik e David Cohen (Orgs.) São Paulo: Instituto Langage, 2011, 272 págs.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    26 Jun 2012
  • Data do Fascículo
    Jun 2012
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