Resumos
Trata-se de um estudo etnográfico desenvolvido no contexto do Projeto Cansanção - PROCAN - realizado no período de 1987 a 1990. Analisa-se um conjunto de informações sobre os padrões culturais que cercam o ato alimentar dos grupos sociais que habitam Cansanção, região do semi-árido baiano. Foram investigados modelos de alimentação, a partir de depoimentos das mulheres trabalhadoras rurais, observando-se as estratégias de sobrevivência alimentar, enquanto ações concretas com vistas a assegurar a reprodução da unidade familiar. O medo da proximidade da doença e da morte são referências fundamentais como modos de conceber a vida e de definições de hábitos alimentares, apoiadas pela compreensão particular de seus próprios mundos. Os hábitos que cercam o ato alimentar em Cansanção indicam uma relação entre a sobrevivência do corpo e a reprodução da unidade familiar, permeados pelo cotidiano da seca. A atividade central, o trabalho da roça, subordinado às condições precárias de vida permite a produção e reprodução de formas de conceber a vida, e em particular, define os vários conceitos e classificações sobre as necessidades de alimentar o corpo. Em algumas áreas do município de Cansanção, observa-se um modo de conceber o alimento a partir de uma razão subordinada a valores do comércio, mas o fenômeno da seca constitui ainda o determinante da cultura alimentar da população e de suas ações concretas para solucionar a carência alimentar no grupo familiar.
conduta na alimentação; cultura; hábitos alimentares
This study was developed within the context of the project Cansanção - PROCAN- developed by the Federal University of Bahia, Brazil. The study analyzed information concerning cultural patterns which surround the eating habits of the social groups which live in the semi-arid region of Bahia. It is an ethnographic study carried out over the period of 1987 to 1990. The subject of the investigation was the cultural aspect of eating habits of female rural workers, observing the strategies of eating survival as concrete actions to ensure the reproduction of the family unit. The fear of imminent illness and death proves to be fundamental references as ways of conceiving life and of defining food habits, supported by their own understanding of their worlds. The food habits in Cansanção reveal a relationship between the body survival and the reproduction of the family unit, permeated by the daily life in a drought-stricken region. The main activity, the work in the fields, subordinated to precarious living conditions, allows the production and reproduction of ways of interpreting life and, in particular, defines various concepts and classifications about the need to provide sustenance to the body. In some areas of Cansanção food is considered linked to its commercial value; however, the phenomenon of drought still remains the determining factor in the food culture of the population and in its concrete actions to solve the lack of food within the family group.
feeding behavior; culture; food habits
ARTIGO ORIGINAL
Bró, caxixe e ouricuri estratégias de sobrevivência no semi-árido baiano
"Bró", chayote and uricury syagrus palm strategies of survival in the semi-arid region of Bahia, Brazil
Ana Marlúcia Oliveira AssisI; Maria do Carmo Soares de FreitasI; Tereza Cristina OliveiraII; Matildes da Silva PradoI; Liliam Ramos SampaioI; Amélia Dreyer MachadoIII; Denise Amorim QueirozIII
IEscola de Nutrição, Universidade Federal da Bahia, Rua Araújo Pinho, 32, Canela, 40110-170, Salvador, BA, Brasil. E-mail: amos@ufba.br
IIMestranda, Universidade Federal da Bahia
IIIBolsistas do CNPq
RESUMO
Trata-se de um estudo etnográfico desenvolvido no contexto do Projeto Cansanção - PROCAN - realizado no período de 1987 a 1990. Analisa-se um conjunto de informações sobre os padrões culturais que cercam o ato alimentar dos grupos sociais que habitam Cansanção, região do semi-árido baiano. Foram investigados modelos de alimentação, a partir de depoimentos das mulheres trabalhadoras rurais, observando-se as estratégias de sobrevivência alimentar, enquanto ações concretas com vistas a assegurar a reprodução da unidade familiar. O medo da proximidade da doença e da morte são referências fundamentais como modos de conceber a vida e de definições de hábitos alimentares, apoiadas pela compreensão particular de seus próprios mundos. Os hábitos que cercam o ato alimentar em Cansanção indicam uma relação entre a sobrevivência do corpo e a reprodução da unidade familiar, permeados pelo cotidiano da seca. A atividade central, o trabalho da roça, subordinado às condições precárias de vida permite a produção e reprodução de formas de conceber a vida, e em particular, define os vários conceitos e classificações sobre as necessidades de alimentar o corpo. Em algumas áreas do município de Cansanção, observa-se um modo de conceber o alimento a partir de uma razão subordinada a valores do comércio, mas o fenômeno da seca constitui ainda o determinante da cultura alimentar da população e de suas ações concretas para solucionar a carência alimentar no grupo familiar.
Termos de indexação: conduta na alimentação, cultura, hábitos alimentares.
ABSTRACT
This study was developed within the context of the project Cansanção - PROCAN- developed by the Federal University of Bahia, Brazil. The study analyzed information concerning cultural patterns which surround the eating habits of the social groups which live in the semi-arid region of Bahia. It is an ethnographic study carried out over the period of 1987 to 1990. The subject of the investigation was the cultural aspect of eating habits of female rural workers, observing the strategies of eating survival as concrete actions to ensure the reproduction of the family unit. The fear of imminent illness and death proves to be fundamental references as ways of conceiving life and of defining food habits, supported by their own understanding of their worlds. The food habits in Cansanção reveal a relationship between the body survival and the reproduction of the family unit, permeated by the daily life in a drought-stricken region. The main activity, the work in the fields, subordinated to precarious living conditions, allows the production and reproduction of ways of interpreting life and, in particular, defines various concepts and classifications about the need to provide sustenance to the body. In some areas of Cansanção food is considered linked to its commercial value; however, the phenomenon of drought still remains the determining factor in the food culture of the population and in its concrete actions to solve the lack of food within the family group.
Index terms: feeding behavior, culture, food habits.
INTRODUÇÃO
No Brasil e em outras sociedades dependentes, com desigualdades sociais acirradas, gostos ou paladares são historicamente distribuídos segundo diferentes modos de vida. De acordo com Camporese (1996), a comida representa a manifestação da organização social, a chave simbólica dos costumes, o registro do modo de pensar a corporalidade em qualquer que seja a sociedade.
Neste sentido, o ato de comer o que se tem à mão, no contexto do semi-árido baiano, é o resultante de um conhecimento prévio, que se configura como estratégias de sobrevivência, no conjunto das ações vividas. Estas estratégias representam a prioridade racional na manutenção da saúde da unidade familiar do semi-árido; saúde compreendida enquanto um conceito apropriado de quem vive esta realidade. Os grupos sociais constroem diferentes representações, imagens e modos de conceber o ato de alimentar o corpo, que se edificam ao longo de suas trajetórias de vida.
A comida sob este ponto de vista é mesclada de valores simbólicos, imaginários, crenças e mitos que tecem o conhecimento e a cultura desses grupos sociais. Comida "de pobre", "leve", "pesada" e "carregada" são algumas formas de expressões dessa cultura e revelam a necessidade em manter a sobrevivência e a saúde do corpo.
Alguns estudos (Woortmann, 1978; Prado et al., 1995) indicam que as restrições ao alimento, o medo de adoecer e morrer são categorias centrais na investigação da ideologia alimentar em regiões brasileiras. As concepções cercadas de medo e mitos estão intimamente ligadas às precárias condições de vida, a ausência do serviço de saúde e ao deficiente atendimento das necessidades básicas da população.
O cotidiano da ação humana, enquanto um processo coletivo, é motivado por conhecimentos construídos a partir das percepções das formas de como os indivíduos viveram, vivem e se organizam em sociedade. A ação de alimentar-se é, assim, um processo que incorpora um saber sobre a natureza e o corpo, um saber derivado dos encontros, das experiências e das interações da vida diária.
"...o menino morria de fome e a gente pensando que era doença, mas era pura fome, ... nós cumia bró" (Depoimento de Dona Maria, 70 anos, Comunidade de Caetano).
"Caxixe, só no tempo de umbu ...Todo mundo aqui comia bró, porque não tinha farinha, não sei dizer porque. A farinha era difícil. Torrava (o bró) no caco e usava. Naquela época tinha chiqueiro de cabra, de bode, de gado, mas não existia farinha. Alcancei meu avô contando que a farinha era tão difícil que eles matavam um bode, depois botavam pra secar, matava outro, secava e pilava pra fazer farinha de bode. Porque não produzia mandioca pra todo mundo" (Depoimento de Dona Luz, 41anos, Comunidade de Caetano).
O hábito alimentar como parte do habitus genérico do cotidiano é compreendido a partir da idéia do corpo e da vida automatizada do dia-a-dia, experimentado em diversos momentos compartilhados entre realidades objetiva e subjetiva no grupo social.
No semi-árido baiano a experiência cotidiana leva a certas construções, no que refere a análise da atividade humana, inseridas no imaginário como condutas da esfera do ambiente material e como exteriorização de significados subjetivos, em relação às maneiras de pensar a natureza, a seca e sobretudo o corpo alimentado. Uma autoprodução, coletivizada que se conecta aos empreendimentos sociais que a envolve no contexto desolado da escassez (Berger & Luckmann, 1995).
"Aqui a gente vive esperando chover ... carregando água por uma légua, légua e meia. As crianças de dez anos com a lata na cabeça, pra trazer aquela latinha de água de uma légua. As crianças vêm tudo a pulso, morrendo. Porque a gente só trabaia pra ir buscar água nos tanque, vai cedinho e vorta meio-dia outra vez. Por isso que muita gente sai daqui pra viver perto da água ..... A mulher só descansa disso nos tempos de resguardo do parto ..." (Depoimento de Dona Maria, 70 anos, Comunidade de Caetano).
No Nordeste brasileiro a sobrevivência do pequeno produtor está subordinada à lógica imposta pelas relações sociais e econômicas que molduram politicamente a seca. Neste sentido, as condições de vida do pequeno produtor não resultam somente da combinação do tamanho da terra e dos recursos para cultivá-la, mas também das políticas governamentais destinadas à pequena produção e aos setores pauperizados do país.
Evidentemente a seca assim configurada vai reproduzir no imaginário de quem com ela convive, sentimentos de sofrimento, conflitos e tensões, que nem sempre são compreendidos e expressados como gerados nas contradições sociais.
Este estudo tenta aproximar-se da realidade, descrevendo as representações sociais enquanto modelos culturais de alimentação, privilegiando as estratégias criadas em momentos de grandes privações condicionadas pela seca, por serem estas valoradas como as mais relevantes na construção cultural dos aspectos alimentares para este grupo populacional.
MATERIAL E MÉTODOS
Casuística
A escolha pela etnografia
Para investigar o uso do bró e caxixe como modelo cultural de alimentação e por conseguinte, estratégia de sobrevivência no semi-árido baiano, foi adotado como metodologia a pesquisa etnográfica por duas razões: a primeira, para possibilitar um convívio a longo prazo e direto com o campo de investigação, ou seja, com os sujeitos e situações a serem pesquisadas; a segunda, por permitir captar, no campo investigativo, não só os aspectos macroscópicos que determinam a estrutura social do semi-árido baiano, como também, "as intencionalidades inerentes aos atos, as relações, as estruturas sociais tomadas no seu advento e nas suas transformações como construções humanas significativas" (Minayo, 1992).
A etnografia permite ainda obter dados descritivos do cotidiano que expressam interações, relações, ações, fatos e formas de linguagens, permitindo estruturar o quadro figurativo da realidade estudada. Vale lembrar, que a estruturação deste quadro não se limita a quantidade de dado possível de ser obtida, mas comporta também a interpretação e análise teórica, evitando dessa maneira o empirismo que pode estar presente neste tipo de pesquisa. Sob este ponto de vista, procura-se evitar o equívoco de privilegiar o caráter empírico desse tipo de investigação e reforça-se a relação entre a observação empírica e a análise na perspectiva teórica. Ressalta-se, entretanto, que a teoria não é algo definido de forma acabada onde os objetos estão colocados em esquemas fechados, neste sentido a teoria é enriquecida no movimento entre o vivido e o percebido.
A apreensão dos dados deu-se basicamente por meio de observação participante, conversas informais e entrevistas semi-estruturadas, que foram gravadas e transcritas para análise; aí, procurou-se observar as sub-categorias produzidas e os aspectos diversos das relações imbricadas entre os conceitos ideológicos sobre a relação entre o corpo e o alimento.
Local
Integraram este estudo as localidades de Lagoa das Moças, Caetano, Riacho Alegre, Capoeira, Lage da Gameleira, Caldeirão, Tanque da Gameleira, Nossa Senhora das Graças e Deixaí, situadas no município de Cansanção.
O município de Cansanção, distante 350 Km da Cidade de Salvador, está inserido na micro-região do Sertão de Canudos e está incluído no Polígono da Seca. Em 1991, a população estimada estava em torno de 30 903 habitantes, com um contigente predominantemente rural, sendo que somente 23,4% dos habitantes viviam na área urbana . O analfabetismo atinge 57,0% da população, sendo 63,0% deles residentes da área rural (Instituto..., 1991).
O município de Cansanção possui uma estrutura fundiária com áreas que se estendem de 1 a 2 hectares, extensão que nem sempre é totalmente plantada. O acesso a terra se dá por sistema de herança e compra. A agricultura de subsistência é representada basicamente pelas culturas da mandioca, feijão, milho e o extrativismo do ouricuri. A cultura do sisal é também desenvolvida na área, envolvendo toda a família, inclusive crianças, no processo de produção e beneficiamento. Ressalta-se o caráter altamente perigoso do beneficiamento do sisal, que utilizando-se de tecnologia rudimentar é revestida de total insegurança, verificando-se na área os constantes acidentes que invariavelmente levam a mutilação permanente, em especial dos membros superiores dos trabalhadores rurais, que para eles representam único instrumento de trabalho tornando-os, assim, inválidos para a trabalho da lavoura e para prover a sobrevivência do núcleo familiar.
O serviço de atenção à saúde é precário e o atendimento prestado à população é deficiente; os serviços especializados são buscado em cidades vizinhas. É comum a utilização da "poupança" familiar caracterizada pela venda dos poucos animais que a família consegue criar (porcos, galinhas e cabras) para cobrir os gastos com o transporte e o tratamento do doente.
Os comerciantes das farmácias da sede do município, as parteiras leigas e os raizeiros constituem o "saber saúde" na região. Como garantia da saúde, as prescrições para determinadas doenças são guardadas e com base nos sintomas, são reproduzidas no coletivo.
O trabalho de campo
Para a realização desse trabalho foram efetuadas 20 entrevistas semi-estruturadas aplicadas a informantes das comunidades de Capoeira, Deixaí, Lagoa das Moças, Caetano e Caldeirão do Vaqueiro, além de gravações de conversas informais, realizadas por ocasião das reuniões em comunidades atendidas pelo Projeto Cansanção (PROCAN), ademais da história de vida e diário de campo em suas formas sistematizadas; estes instrumentos permitiram compreender as contradições e a complexidade da vida dessa população.
As informações sobre as formas de pensar ações concretas ou estratégias alimentares para a garantia da sobrevivência foram obtidas através das mulheres trabalhadoras rurais. A escolha das informantes, justifica-se pelo fato de que as mulheres tradicionalmente elaboram e preparam os alimentos, cuidando de repor a força de trabalho masculina, dos seus próprios corpos e da alimentação da criança. Por motivo ético, neste trabalho foram adotados pseudônimos para a identidade dos informantes.
Foram utilizadas, neste estudo, categorias empíricas como as alternativas alimentares no contexto da seca, hábitos e tabus alimentares, o proibido e o permitido, o "forte" e o "fraco" na dieta cotidiana. Estas categorias, eleitas pelo estudo, foram identificadas como as mais importantes e estavam sistematicamente presentes nos seus discursos, chamando atenção para as formas como procedem as classificações das restrições, e as ações concretas para o enfrentamento da fome, do medo de adoecer e morrer. Nesse sentido, este estudo ao utilizar essas categorias o faz, no sentido de buscar a apreensão não só das estratégias concretas da cultura alimentar mas, também, da sua relação com a estrutura social.
Inicialmente a equipe de trabalho do projeto PROCAN realizou visitas exploratórias ao município de Cansanção e foram mantidos contatos com as lideranças locais. O aprofundamento do conhecimento da dinâmica das relações sociais e culturais na área possibilitou a elaboração de um referencial teórico sobre a determinação da seca. Na medida em que se intensificou a permanência na área (1985-1990), surgiu a necessidade de conhecimento sobre as representações acerca da produção das doenças, do uso da água e da comida, além da representação teórica sobre o corpo e das estratégias usadas para= a sobrevivência da unidade familiar no contexto da seca. Destaca-se o período de 1988 a 1990 para a coleta de dados destinados especificamente para o estudo das representações sociais acerca das estratégias alimentares.
RESULTADOS
As representações sociais ou o senso comum construídos e operados na cotidianidade de uma sociedade podem ser tomadas como ponto de partida para análise da realidade alimentar de uma dada população.
Os trabalhadores rurais e suas famílias em Cansanção têm suas representações, sobre as determinações da saúde e da doença, e são capazes de interpretá-las dentro de uma lógica empírica própria das suas condições materiais de vida.
"O que mais tem aqui é disenteria nas crianças, vômito, as vez dá febre. Qualquer um cházinho dando certo, já mióra. Qualquer remedinho que vai de farmácia ou no raizeiro, toma e mióra. O que não mióra com raizeiro vai no médico (riso) e o que tem que escapar, escapa, e o que não tem que escapar morre. Porque tem que morrer mesmo. Se fosse pra criar tudo, então o mundo não cabia. E muitas vez, morre à míngua" (Depoimento de Dona Carol).
As condições materiais de vida dos pequenos produtores de Cansanção são geradas no contexto da utilização política da seca. Na época da seca ressaltam de forma contundente às suas contradições e conflitos. Contradições estas que se traduzem no imaginário do ser "fraco". Neste sentido, o "fraco" traduz a sua própria existência, o seu cotidiano do amanhecer ao anoitecer. "Fraco" refere-se não só às condições econômicas e sociais da população, mas também as estratégias que se desenvolvem no cotidiano para superar a escassez, a falta e a miséria absoluta.
A constante imagem que evoca o sentido de terra fraca está vinculada ao cotidiano dos pequenos produtores de Cansanção, é a expressão literal da pouca produção, chuva fraca e do corpo desprovido de meios para sobreviver. Conforme depoimento de Dona Carol (70 anos de idade), Comunidade de Caldeirão do Vaqueiro:
"O lugarzinho aqui é fraco que nem nóis aqui e por aí ... Tudo fraquinho. Mas todo mundo vai vivendo como Deus quer. Cada um tem aquele pedacinho. Quando chove se trabaia, pranta. O que não tem, pede. O que tem, pranta uma bobaginha e chega assim, dá uma chuvada que nem tá agora, nós quebrando esses coquinhos, quando a fé aparece. A gente vai catupirar pela roça, quem tem rocinha e quem não tem, tem aquelas beirinha de mato, nos pés da cerca. Assim a gente vai comprando um quilo de farinha, um de feijão, um vidro de remédio e assim vai atravessando. As vez tem um mió que o outro ..., a vida do fraco é cheia e sem vão. Um dia tem, outro dia não tem nada e assim vai passando" (grifo nosso).
Há, portanto, a construção de uma representação social fundamental à apropriação do mundo genérico e particular, intrínseca à condição humana, edificada como verdade que por sua vez é transformada e relativizada em suas próprias experiências de vida. A exemplo do citado, as expressões narradas do que consideram como verdades, referem-se ao mundo da rotina, que garantem a compreensão de um estar no mundo provido de explicações, onde em um dado momento, há uma racionalidade capaz de compreender e tornar possível a ordem social no árduo cotidiano (Helmut, 1995).
A construção cultural do corpo é fundada em um mínimo de ordem e coesão, buscando os significados necessários e interrelacionados à totalidade (Comaroff, 1978). Assim, os relatos formais de simbolismos e crenças, demonstram no processo da investigação uma certa coerência com os demais elementos culturais dentro do contexto social.
Teoricamente a ordem social construída, não é dada biologicamente a priori, mas é dada no interior do modos vivendis, é portanto, um contínuo produto humano. Quaisquer que sejam os aspectos biológicos, estes servem de premissas necessárias à produção da ordem social edificada (Berger & Luckmann, 1987), e dentro dessa lógica representacional que o bró, caxixe e ouricuri se constituem enquanto estratégias alimentares.
"...Quando tinha seca braba, o povo comia bró, aquele fubá do ricurizeiro. Comia aquilo, como comida, mas ali era uma mistura, quer dizer, era uma farinha seca. Fazia cuscuz e misturava com feijão ou então comia puro. A seca quando vem, Ave-Maria! Quem não pode comprar uma coisa fica se acabando" (De-poimento de Dona Marta, parteira da Comunidade de Deixaí).
O bró, caxixi, ou caxixa, historicamente representam as principais preparações alimentares em época de seca, os únicos que sobrevivem à estiagem prolongada das chuvas. Bró é uma preparação a base de palmito do ouricurizeiro (grande palmeira do semi-árido, que fornece o palmito e o coco, que abriga os pequenos produtores da sensação de fome) e o caxixe é uma bebida a base de coco de ouricuri misturado ao umbu, fruta característica do nordeste brasileiro1 1 Segundo depoimentos diversos, o umbu é considerada a fruta mais resistente à seca, daí seu uso habitual, nessa época. . Os três elementos, bró, caxixe e ouricuri representam a escassez, a seca propriamente dita, e a única condição de sobrevivência da população, conforme depoimentos:
"...Na época da seca se prepara o bró... descasca, bate e bota aquela polpa pra secar e adispos come. Se tiver com o que moiá, móia. O Bró é uma coisa que fica dentro do talo do licuri. Tem que fazer um buraco no pé do licuri e tirar o talo. Tem ciência. Não é todo licurizeiro que dá bró não. Hoje, você não vê o povo usar mais bró. Graças a Deus"(Dona Rai, 81 anos, Comunidade de Dexaí).
"O bró, a gente descasca aquele pau, que é o licurizeiro2 2 "Licourizeiro" ou "Ricourizeiro" o mesmo que Ouricurizeiro. , aí fica amarelinho, bate numa lage bem alvinha, acaba a gente sacode aquela pragana que fica e estende ele na lage, quando seca põe no saco. Prá fazer a comida a gente torra no caco e adispois de torrado, vai no pilão, pisa. Aí fica fubá, só é moiá e botar no caco e mexe. Fica igual a farinha. Só farinha" (Dona Carol, Comunidade do Caldeirão do Vaqueiro).
O termo bró, derivado de "broca"3 3 Notas de campo, Comunidade de Capoeira. dado ao orifício grande que se faz no caule do ouricurizeiro, é narrado como uma espécie de remédio, pelo aspecto de cor roxa, cheiro forte e sabor amargo. Descobriram seu uso comestível a partir de experiências e observações em animais e passaram a adotar como alimento último, quando não se tem mais nada para comer.
A fala citada demostra que não só o preparo do bró requer um conhecimento empírico que vai desde o reconhecimento do bom ouricuri até as etapas de manipulação do alimento, como, também, um sentimento de insatisfação em ter que prepará-lo. "Hoje, você não vê o povo usar mais bró. Graças a Deus", esta imagem guardada no "espaço do esquecimento" mas evocada através da entrevista, é reveladora para compreender as condições materiais de vida do povo do sertão ao longo da história e estabelece o reconhecimento por parte da população do valor do bró como alimento que assegurou a sobrevivência, quando nenhum outro alimento era disponível.
"Num morria de fome, porque tinha bró. Agora hoje num tá mais assim não. Num cume mais essas coisa não. Tá bem mió. Porque si miorou mais. ... O bró alimenta, porque naquela época, que eu era menina, num morreu ninguém, eram até mais forte que os de hoje. Acho que ele contém vitaminas, deu sustança, não fez mal a ninguém, naquele tempo. Não tinha tanta mortalidade que tem hoje. Não tinha contra indicação, até mulher menstruada e crianças podia comer, era forte, mas não fazia mal ... Dava como mingau pra o neném. ... Lembro que minha mãe levou pra mim. ... Quando escalda fica que nem tapioca, beijú. Ficava aquelas bolas, liguento mesmo como tapioca. E ali dá mingau porque liga" (Dona Marta, parteira da Comunidade de Dexaí).
O bró é um alimento que segundo os informantes é a última coisa possível para comer em tempos difíceis da seca, época de fome acentuada e, representa não só a falta de comida mas uma combinação da necessidade, escassez, precariedade e miséria e da falta de respeito para com a dignidade humana. "É mió saí daqui do que vortar a cumê Bró, num quero nem pensar nisso." Esta fala está imbricada de simbolismo que expressa a ligação entre o uso do bró e épocas de tempos difíceis, ademais do sentido do sofrimento, dor e impotência diante das determinações que estruturam a vida no semi-árido, que não são somente naturais, mas sobretudo, produzidas histórica, social e politicamente.
Há indicativos ainda de que as estratégias alimentares modificam-se ao longo do tempo e são inexoravelmente substituídas por outras dependendo dos processos sociais efetivos. Embora o bró tenha sido usado no passado como estratégia de sobrevivência, na atualidade é rara a sua utilização, dado a escassez do palmito pela grande extração no passado, ou pela redução da quantidade de ouricurizeiro promovida pela seca persistente.
Ao contrário do bró, o caxixe embora seja também usado em época de seca e escassez, não traz recordações amargas associadas ao seu uso. Possivelmente pelo sabor adocicado da preparação e no ritual da cultura alimentar tem lugar de destaque como alimento de época de fim de ano. O suco cozido do umbu adicionado ao leite do coco de ouricuri pisado no pilão e acrescido de açúcar, origina uma preparação, não só utilizada como estratégia alimentar em época de seca, como também continua presente no cotidiano alimentar na época da safra. Os informantes consideram o caxixe forte como comida.
"E com seca e sem seca aqui se come Caxixe.... é umbu misturado com licuri. Pisa o licuri com umbu e bota açúcar dentro. É comida de fim de ano... De princípio de ano. Todo mundo gosta de caxixe. Fazia cuscuz e misturava com feijão ou então comia puro. Num morria de fome, porque tinha bró. Agora hoje num tá mais assim não. Num cume mais essas coisa não. Tá bem mió. Porque si miorou mais" (Dona Marta, parteira da Comunidade de Dexaí).
"Caxixe, a gente conhece aqui como Caxixa, junta o licuri, pisa, coa pra separá o bagaço do leite, porque o leite é forte. Mistura o vinho do umbu com o leite do licuri, e aí já tá feito a Caxixa, aí coloca açúcar e se quiser bota farinha. Come até hoje, quando acha licuri. A coisa mais difícil que tá existindo é você encontrar um cacho de licuri na roça. Hoje a roça não tem nada, nada, nada. Só se come no dia que tem dinheiro pra comer" (Dona Luz).
À época da seca favorece ainda a adoção de novas regras no hábito alimentar da população de pequenos produtores rurais de Cansanção, através dos fluxos migratórios para centros de urbanização acentuada em especial para a Cidade de São Paulo e, traduzidos basicamente no mito da facilidade do preparo e dos alimentos que são "bons", "fortes" e "modernos", representados por alimentos de fora diferentes daqueles que se tem à mão e que são localmente produzidos, estes revestem-se de aspectos altamente fascinantes e sedutores e são vistos como alimentos fortes, aqueles ricos em nutrientes, particularmente em vitaminas. Os alimentos de fora representam, assim, no cotidiano dos pequenos produtores de Cansanção a imagem da facilidade e da "civilidade", como se expressa uma das entrevistadas sobre a comida de seus netos que migraram para São Paulo: "a comida lá é outra, é tudo batido no liquidificador, é maça, é mamão, é tudo que é coisa boa.... esse de copinho, iogurte, tudo aquilo tem ... Essa é uma representação construída e incorporada através de outros valores, na interrelação com outros grupos sociais, geralmente vivida no fluxo migratório para os grandes centros urbanos, especialmente nos momentos mais dramáticos da seca. Boltanski (1974) a esse respeito comenta que o caráter dinâmico da sociedade moderna provoca transformações no modo de vida dos sujeitos, mesmo nos mais recônditos dos lugares.
A televisão enquanto veículo de comunicação de massa, fornece um repertório de informação a respeito de novos hábitos alimentares como a expressão de transformações sociais e culturais impostas pela sociedade industrial moderna. Este fato de certo contribui para a incorporação destes hábitos à cultura alimentar dos pequenos produtores rurais do semi-árido. No entanto esses apelos a nova forma de se alimentar não encontram ambiente propício para a sua plena adoção, justificado possivelmente pelas precárias condições materiais de vida, pelo modo de produção e comercialização dos alimentos no semi-árido e sobretudo pelo fenômeno da seca.
Contudo essa população não está imune ao risco da adoção de novos hábitos alimentares, sem a devida condição material de vida para assegurar a sua sustentação. Para alguns grupos, esses novos hábitos podem representar perigos à sobrevivência, em especial à população infantil.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
No cotidiano das famílias dos trabalhadores rurais de Cansanção são construídos conceitos nos quais o medo da proximidade da doença e da morte são referências fundamentais. Conceitos estes inscritos como modos de conceber a vida, apoiados pela compreensão particular de seus próprios mundos, edificados de maneira a transcenderem a corporalidade e a habitarem inevitavelmente o território da subjetividade. Assim, o medo de adoecer e morrer leva à restrição ainda maior em relação ao alimento pela população em geral e particularmente por grupos específicos a exemplo das puérperas, das crianças menores e dos idosos. Nesse contexto, a restrição ao alimento pode ser decodificado como prevenção a doenças. Há de se considerar ainda que as carências nutricionais estão relacionadas também às precárias condições econômicas, sociais e políticas que cercam os trabalhadores do semi-árido baiano. Barbosa (1995) refere-se ao significado dos conceitos que surgem em cada experimento, como construções determinadas em momentos históricos. Estes conceitos são sempre parte da história dos indivíduos e da coletividade que orientam um certo estar no mundo.
Tipificados como modelos de um receituário regional, os hábitos que cercam o ato alimentar em Cansanção indicam uma relação entre a sobrevivência do corpo e a reprodução da unidade familiar. A atividade central, o trabalho da roça, subordinado a condições precárias de vida permite a produção e reprodução de formas de conceber a vida e em particular define os vários conceitos e classificações sobre as necessidades de alimentar o corpo. A inscrição de uma preparação tão amarga quanto a seca, enquanto estratégia alimentar de sobrevivência familiar, pode ser entendida como a motivação para a busca de solução nos momentos de extrema escassez, e tem uma base única, enquanto significação social e coletiva, e pode ser entendido de acordo com Crespo (1990) que o "instinto de sobrevivência do corpo, num dado momento transcende a racionalidade de modo radical".
Embora tenha sido observado em algumas áreas do município de Cansanção um modo de conceber o alimento a partir de uma razão subordinada a valores do comércio, o fenômeno da seca constitui ainda o determinante da cultura alimentar da população.
As populações trabalhadoras das áreas rurais de Cansanção expressam idéias semelhantes entre si sobre o corpo e sua interação no contexto da seca e da pobreza e, possuem distintas maneiras de diálogos entre os sentidos e os significados, apoiados pelas interpretações das suas ações concretas para solucionar a carência alimentar no grupo familiar.
É nessa ordem social, configurada pelos conflitos, tensões e contradições, que sobrevivem os pequenos produtores e trabalhadores rurais do Município de Cansanção. A produção da seca para esse grupo social não passa pelas determinações sociais mas, compõe o imaginário relacionando-a com o clima e a determinação divina. Assim, é muito comum a expressão "Deus quer assim..." e desta forma vão se fortalecendo a angústia e a dominação dos pequenos produtores.4 4 PROJETO Cansanção: o impacto de ações comunitárias numa Região Semi-Árida da Bahia. Salvador : Universidade Federal da Bahia, 1993. (Relatório final).
Recebido para publicação em 30 de janeiro e aceito em 17 de agosto de 1998.
Projeto financiado pelo CNPq, Processo n. 408059/85-0.
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Datas de Publicação
-
Publicação nesta coleção
07 Out 2004 -
Data do Fascículo
Ago 1999
Histórico
-
Aceito
17 Ago 1998 -
Recebido
30 Jan 1998