Acessibilidade / Reportar erro

Epidemiologia, curso e evolução dos transtornos alimentares

Epidemiology, course and evolution of eating disorders

Resumos

Os transtornos alimentares costumam afetar mulheres jovens e ter curso crônico, variável e com alto grau de morbidade e mortalidade. Este artigo visa a apresentar os dados que suportam tais impressões clínicas.

epidemiologia; evolução; transtornos alimentares


Eating disorders use to affect young women and have a chronic and variable course, with high levels of morbidity and mortality. The objective of this article is to demonstrate the epidemiological findings that support such clinical impressions.

Epidemiology; evolution; eating disorders


ARTIGO ORIGINAL

Epidemiologia, curso e evolução dos transtornos alimentares

Epidemiology, course and evolution of eating disorders

Vanessa Pinzon; Fabiana Chamelet Nogueira

Médicas psiquiatras colaboradoras do Ambulim/Protad — Instituto de Psiquiatria do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (IPq-HC-FMUSP)

Endereço para correspondência Endereço para correspondência Vanessa Pinzon Rua Estela, 515 bloco H conj. 42 Paraíso, CEP 04011-904, São Paulo/SP Telefone: 11.55716769 E-mail: v.pinzon@terra.com.br

RESUMO

Os transtornos alimentares costumam afetar mulheres jovens e ter curso crônico, variável e com alto grau de morbidade e mortalidade. Este artigo visa a apresentar os dados que suportam tais impressões clínicas.

Palavras-chave: epidemiologia, evolução, transtornos alimentares.

ABSTRACT

Eating disorders use to affect young women and have a chronic and variable course, with high levels of morbidity and mortality. The objective of this article is to demonstrate the epidemiological findings that support such clinical impressions.

Key words: Epidemiology, evolution, eating disorders

Introdução

Os transtornos alimentares são cada vez mais foco da atenção dos profissionais da área da saúde por apresentarem significativos graus de morbidade e mortalidade. O prejuízo pessoal e social de indivíduos caracteristicamente jovens, o curso longo e variável e o prognóstico reservado requerem planejamento terapêutico mais eficaz e alocação adequada de recursos humanos e financeiros. Tais aspectos vêm impulsionando a multiplicação de estudos epidemiológicos e de acompanhamento para observar a evolução das doenças alimentares ao longo do tempo, bem como seus fatores de bom e mau prognóstico.

O presente artigo visa a apresentar de forma clara, concisa e atualizada os dados epidemiológicos e evolutivos dos transtornos alimentares relevantes para prática clínica, mais especificamente sobre anorexia (AN) e bulimia nervosa (BN). O transtorno do comer compulsivo é abordado oportunamente e em detalhes em artigo em separado, nesta revista.

Epidemiologia

Estudos com metodologias e amostras diversas dificultam a obtenção de dados epidemiológicos mais acurados. De uma forma geral, a prevalência de AN varia entre 0,5 e 3,7% e de BN de 1,1% e 4,2%, dependendo de definições do transtorno mais restritas ou mais abrangentes (Guideline, 2000). Nielsen, em extensa revisão de estudos epidemiológicos, estima que, entre mulheres, a incidência de AN é de aproximadamente 8 por 100 mil indivíduos e, em homens, seria de menos de 0,5 por 100 mil indivíduos por ano. A incidência de BN é de 13 por 100 mil indivíduos numa população pareada por ano, segundo esse autor (Nielsen, 2001). A idéia de um aumento na incidência de transtornos alimentares em países de cultura ocidental, nos últimos anos, permanece questionável, com a demonstração de resultados ainda contraditórios.

Os transtornos alimentares afetam predominantemente mulheres jovens, com uma prevalência média de relação homem-mulher de 1:10 e até de 1:20 (Klein e Walsh, 2004). Essa diferença diminui entre populações de indivíduos mais novos, nas quais os meninos correspondem de 19% a 30% dos casos de AN (Guideline, 2000). Dentre os homens com transtornos alimentares, parece haver associação específica entre homossexualidade masculina e índices elevados de sintomatologia bulímica e anoréxica, como demonstrado em estudo de Russel e Keel (2002). Entre as mulheres, os transtornos alimentares parecem ser mais comuns naquelas de origem caucasiana, quando comparadas com mulheres negras, cujo transtorno alimentar mais comum, quando ocorre, é a BN com uso de laxantes (Striegel-Moore et al., 2003). Mulheres em determinadas profissões como atletas, modelos e bailarinas também parecem ter risco aumentado de AN e BN (Hoek, 2002; Klein e Walsh, 2004). Nessas atividades, existe uma pressão ainda maior para obtenção e manutenção do corpo magro (Johnson et al., 1999).

Paralelamente, as patologias alimentares parecem ser doenças "ocidentais", uma vez que ocorrem mais freqüentemente em países desenvolvidos e industrializados (Guideline, 2000). Todavia, tem sido cada vez mais documentado o crescimento de casos em países nos quais costumavam ser raros, talvez por influência de modificações culturais (Lee et al., 2003). Com relação a padrão familiar, parentes de primeiro grau de pacientes com AN e BN têm maiores índices dessas doenças. Isso igualmente ocorre com irmãos gêmeos dos pacientes, principalmente os monozigóticos (Kendler, 1997).

São muito freqüentes os transtornos psiquiátricos comórbidos aos transtornos alimentares, sobretudo entre aqueles indivíduos que procuram tratamento. As patologias afetivas ocorrem em 52% a 98% dos pacientes, sendo o episódio depressivo maior e a distimia os mais comuns (50% a 75%). Os transtornos ansiosos são igualmente prevalentes nessa população, com índices que variam de 65% em anoréxicas e 36% a 58% em bulímicas, com predomínio de fobia social e transtorno obsessivo-compulsivo, respectivamente. Abuso de substâncias ocorre entre 30% e 37% na BN e entre 12 e 18% na AN. De 22% a 75% das pacientes com transtornos alimentares também apresentam transtornos de personalidade, sendo os dos grupos B e C mais comuns na BN e os do grupo C mais freqüentes na AN (Guidline, 2000; Herzog et al., 1996).

Curso

Os trabalhos sobre curso e evolução dos transtornos alimentares são marcados por várias diferenças, tornando a comparação e compilação de dados em metanálises tarefa difícil e com risco de determinar resultados inconsistentes.

A maioria dos estudos de follow-up de AN adota ou as escalas de categorias de evolução de Morgan e Russell, divididas em dois critérios evolutivos (o primeiro considera peso e menstruação e o segundo avalia o funcionamento geral do paciente), ou modificações a partir delas. Em geral, depois de intervenções terapêuticas, as taxas de recuperação completa de AN ficam em torno de 50%, recuperação intermediária em torno de 30% e de recuperação desfavorável de 20% (Steinhausen, 2002; Herzog et al., 1996; Wentz, 2001; Löwe et al., 2001). Embora esses números possam parecer animadores, os trabalhos demonstram que, mesmo mantendo peso e menstruações normais, grande parte das pacientes com AN mantém alterações físicas, psicológicas ou sociais. Índices de recaída situam-se em torno de 12% a 27%, com taxa de cronicidade aproximada de 20% (Wentz, 2001; Eckert et al., 1995; Löwe et al., 2001). Entre os fatores que contribuem para manutenção da doença, está o surgimento e permanência de sintomas bulímicos, conforme apontaram Eckert e colaboradores (Eckert et al., 1995). As taxas brutas de mortalidade variam de 5% a 20%, e as taxas comparativas de 6 a 12,82 vezes maiores que as esperadas para população com características pareadas, em pesquisas de médio e longo prazo, respectivamente (Keel et al., 2003; Herzog et al., 2000). As principais causas de mortalidade são complicações da própria AN (50% a 54%), suicídio (24% a 27%) e desconhecidas (15% a 19%) (Nielsen, 2001; Herzog et al., 1996; Löwe et al., 2001). É importante salientar que estudos com períodos de seguimento maior demonstram crescimento do número de pacientes recuperados e aumento do número de pacientes mortos (Steinhausen, 2002; Eckert et al., 1995; Reas et al., 2000).

A BN parece ter evolução mais favorável que a AN, embora as pesquisas com BN ainda tenham pouco tempo de seguimento. Os trabalhos indicam índices de recuperação total entre 50% e 70%, conforme seus períodos de acompanhamento após manejo terapêutico. Todavia, as taxas de recaída situam-se em torno de 30% a 50% (Guideline, 2000; Keel et al., 1999; Keel e Mitchell, 1997). Fairburn e colaboradores demonstraram que metade a dois terços das pacientes com BN da sua amostra apresentavam algum sintoma clinicamente significativo depois do tratamento, ao longo das diferentes avaliações, embora apenas uma minoria tivesse sintomatologia suficiente para diagnóstico do transtorno alimentar (Fairburn et al., 2000). Observaram também que, com o passar do tempo, há uma melhora gradual dos quadros clínicos. Tais achados concordam com os resultados da maioria dos trabalhos que apontam a BN como uma patologia duradoura e com múltiplos episódios de remissão e recaídas, mesmo que a definição desses termos permaneça sem consenso entre os pesquisadores. Paralelamente, as taxas brutas de mortalidade da bulimia nervosa estão entre 0,3% a 3%, de acordo com a gravidade dos casos clínicos das amostras analisadas (Keel e Mitchell, 1997; Nielsen, 2001; Herzog et al., 2000).

Evolução

Conhecer os indicadores de bom e mau prognóstico dos transtornos alimentares possibilita determinar com maior precisão tempo, intensidade e tipo de tratamento, principalmente nessas doenças de longa duração. Até o momento, o papel desempenhado por transtornos psiquiátricos associados aos quadros alimentares permanece duvidoso.

Nos estudos sobre AN, constituem fatores mais freqüentes de bom prognóstico: idade menor de início da doença com adolescentes, tendo melhor desfecho do que adultos e adolescentes mais jovens, estes com melhor evolução do que os mais velhos; menor número de hospitalizações e tempo pequeno de doença antes de internação (Herzog et al. 1996; Herpertz-Dahlmann et al., 2001; Steinhausen, 2002). São fatores de mau prognóstico comumente descritos: duração prolongada da doença (antes do tratamento ou por intervenções mal sucedidas), início tardio da patologia, presença de sintomas bulímicos, peso inicial muito baixo, relações familiares problemáticas prévias ao transtorno alimentar e estado marital (casada). Dentre esses fatores, também estão baixo peso na alta hospitalar, abuso ou dependência de álcool e doença afetiva durante curso da AN (Herzog et al., 2000; Keel et al., 2003).

A BN, na maioria dos trabalhos, tem como fatores de bom prognóstico: sintomatologia leve a moderada, indicação de tratamento ambulatorial, duração menor da doença antes do tratamento, idade menor de início da doença, motivação para o atendimento e boa rede social de suporte (Herzog et al., 1996; Guideline, 2000; Reas et al., 2000). Indicam pior evolução da doença: sintomatologia mais severa, freqüência aumentada de vômitos no início do quadro, flutuações extremas de peso, impulsividade, baixa auto-estima, conduta suicida e transtornos comórbidos, como uso de substâncias no início da patologia (Guideline, 2000; Herzog et al., 1996; Keel et al., 1999).

Recebido: 02/09/2004 - Aceito: 15/09/2004

  • AMERICAN PSYCHIATRIC ASSOCIATION PRACTICE GUIDELINES.- Practice Guideline for the Treatment of Patients with Eating Disorders. Am J Psychiatry 157(1) suppl., 2000.
  • ECKERT, E.D.; HALMI, K.A.; MARCHI, P.; GROVE, W. & CROSBY,R.- Ten-year Follow-up of Anorexia Nervosa: Clinical Course and Outcome Psychol Med 25(1): 143-56, 1995.
  • FAIRBURN, C.G.; COOPER, Z.; DOLL,H.A.; N, P. & O'C, M.- The Natural Course of Bulimia Nervosa and Binge Eating Disorder in Young Women. Arch Gen Psychiatry 57(7): 659-65, 2000.
  • HERZOG, D.B.; NUSSBAUM, K.M. & MARMOR, A.K.- Comorbidity and Outcome in Eating Disorders. Pschiatr Clin Norh Am 19(4): 843-59, 1996.
  • HERZOG, D.B.; GRENWOOD, D.N.; DORER, D.J.; FLORES, A.T., EKEBLAD, E.R.; RICHARDS, A.; BLAIS, M.A. & KELLER, M.B.- Mortality in Eating Disorders: A Descriptive Study. Int J Eat Disorders 28(1): 20-6, 2000.
  • HERPERTZ-DAHLMANN, B.; MÜLLER, B.; HERPERTZ, S. & HEUSSEN, N.- Prospective 10-year Follow-up in Adolescent Anorexia Nervosa-Course, Outcome, Psychiatric Comorbidity, and Psychosocial Adaptation. J Child Psychol Psychiatry 42(5): 603-12, 2001.
  • HOEK, H.W.- Distribution of Eating Disorders, In: FAIRBURN, C.G. & BROWNELL, K.D. Eating Disorders and Obesity. The Guilford Press, New York, 2002.
  • JOHNSON, C.; POWERS, P.S. & DICK, R.- Athletes and Eating Disorders: The National Collegiate Athletic Association Study. Int J Eat Disord 26(2): 179-88, 1999.
  • KEEL, P.K. & MITCHELL, J.E.- Outcome in Bulimia Nervosa. Am J Psychiatry 154(3): 313-21, 1997.
  • KEEL, P.K.; MITCHELL, J.E.; MILLER, K.B.; DAVIS, T.L. & CROW, S.J.- Long-term Outcome of Bulimia Nervosa. Arch Gen Psychiatry 56(1): 63-9, 1999.
  • KEEL, P.K.; DORER, D.J.; EDDY, K.T. & FRANKO, D.- Predictors of Mortality in Eating Disorders. Arch Gen Psychiatry 60(2): 179-83, 2003.
  • KENDLER, K.S.- Social Support: A Genetic-Epidemiologic Analysis. Am J Psychiatry 154(10): 1398-404, 1997.
  • KLEIN, D.A. & WALSH, T.- Eating Disorders: Clinical Features and Pathophysiology. Phisiology & Behaviour 81(2): 359-74, 2004.
  • LEE, S.L.; CHAN, Y.Y.L & HSU, L.K.G.- The Intermediate-Term Outcome of Chinese Patients with Anorexia Nervosa in Hong Kong. Am J Psychiatry 160(5): 967-72, 2003.
  • LÖWE, B.; ZIPFEL, S., BUCHHOLZ, C.; DUPONT, Y.; REAS, D.L. & HERZOG, W.- Long-term Outcome of Anorexia Nervosa in a Prospective 21-year Follow-up study. Psychol Med 31(5): 881-90, 2001.
  • NIELSEN, S.- Epidemiology and Mortality of Eating Disorders. Psychiatr Clin North Am 24(2): 201-14, 2001.
  • REAS, D.L.; WILLIAMSON, D.A.; MARTIN, C.K. & ZUCKER, N.L.- Duration of Illness Predicts Outcome for Bulimia Nervosa: A Long-Term Follow-Up Study. Int J Eat Disorders 27(4): 428-34, 2000.
  • RUSSELL, C.J. & KEEL, P.K. Homosexuality as a Specific Risk Factor for Eating Disorders in Men. Int J Eat Disord 31(3): 300-06, 2002.
  • STEINHAUSEN, H.C.- The Outcome of Anorexia Nervosa in the 20th Century. Am J Psychiatry 159(8): 1284-93, 2002.
  • STRIEGEL-MOORE, R.H.; DOHM, F.A.; KRAEMER, H.C.; TAYLOR, C.B.; DANIELS, S.; CRAWFORD, P.B. & SCHREIBER, G.B.- Eating Disorders in White and Black Women. Am J Psychiatry 160(7): 1326-31, 2003.
  • WENTZ, E.; GILLBERG, C.; GILLBERG, I.C. & RASTAM, M.- Ten-year Follow-up of Adolescent-onset Anorexia Nervosa Psychiatric Disorders and Overall Functioning Scales. J Child Psychol Psychiatry 42(5): 613-22, 2001.
  • Endereço para correspondência
    Vanessa Pinzon
    Rua Estela, 515 bloco H conj. 42
    Paraíso, CEP 04011-904, São Paulo/SP
    Telefone: 11.55716769
    E-mail:
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      03 Dez 2004
    • Data do Fascículo
      2004

    Histórico

    • Aceito
      15 Set 2004
    • Recebido
      02 Set 2004
    Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo Rua Ovídio Pires de Campos, 785 , 05403-010 São Paulo SP Brasil, Tel./Fax: +55 11 2661-8011 - São Paulo - SP - Brazil
    E-mail: archives@usp.br