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Instrumentação e conhecimento dos profissionais da equipe saúde da família sobre a notificação de maus-tratos em crianças e adolescentes

Instrumentación y conocimiento de los profesionales del equipo de salud de la familia sobre la notificación de malos tratos en niños y adolescentes

Resumos

OBJETIVO: Analisar a instrumentação e o conhecimento dos profissionais da Equipe de Saúde da Família sobre a notificação de maus-tratos em crianças e adolescentes. MÉTODOS: Estudo de corte transversal realizado em três municípios do Estado do Ceará, de janeiro a abril de 2012. Participaram da pesquisa 51 profissionais: médicos (9), enfermeiros (26) e cirurgiões-dentistas (16) que trabalhavam na Estratégia Saúde da Família. Utilizou-se um questionário para a coleta, e os dados foram submetidos à análise estatística descritiva e analítica por meio da aplicação do teste do qui-quadrado de Pearson, sendo significante p≤0,05. RESULTADOS: Na amostra selecionada predominaram profissionais que não haviam participado de treinamento na área de violência contra crianças e adolescentes (86,3%), conheciam o Estatuto da Criança e do Adolescente (90,2%) e conheciam a ficha de notificação de maus-tratos (62,7%). A maioria afirmou que a unidade de saúde possuía a ficha (70,5%) e que sabia para qual lugar encaminhar as vítimas (82,3%). Prevaleceram os profissionais que não se depararam com situações de maus-tratos (62,8%); dos 37,2% que já tinham identificado algum caso, 60,0% relataram as ocorrências. Houve associação significante (p=0,035) entre o ato de notificar e a participação do profissional em treinamento sobre o tema. CONCLUSÕES: Este estudo mostrou que os participantes têm dificuldades na notificação de maus-tratos em crianças e adolescentes. Existem lacunas no conhecimento e fragilidades na instrumentação para essa prática.

maus-tratos infantis; notificação compulsória de doença; violência; criança; adolescente


OBJETIVO: Analizar la instrumentación y el conocimiento de los profesionales del Equipo de Salud de la Familia sobre la notificación de malos tratos en niños y adolescentes. MÉTODOS: Estudio de corte transversal, realizado en tres municipios de la Provincia de Ceará (Brasil), en el periodo de enero a abril de 2012.Participaron de la investigación 51 profesionales: médicos (9), enfermeros (26) y cirujanos dentistas (16) que trabajaban en la Estrategia Salud de la Familia. Se utilizó un cuestionario para la recolección y los datos fueron sometidos al análisis estadístico descriptivo y analítico por medio de la aplicación de la prueba de χ² de Pearson, siendo significante p≤0,05. RESULTADOS: En la muestra seleccionada predominaron profesionales que no habían participado de entrenamiento en el área de violencia contra niños y adolescentes (86,3%), conocían el Estatuto del Niño y del Adolescente (90,2%) y conocían la ficha de notificación de malos tratos (62,7%). La mayoría afirmó que la unidad de salud poseía una ficha (70,5%) y que sabía adónde encaminar las víctimas (82,3%). Prevalecieron los profesionales que no se depararon con situaciones de malos tratos (62,8%); de los 37,2% que ya habían identificado algún caso, el 60% notificó las ocurrencias. Hubo asociación significante (p=0,035) entre el acto de notificar con la participación del profesional en entrenamiento sobre el tema. CONCLUSIONES: Este estudio mostró que los participantes tienen dificultades en la notificación de malos tratos en niños y adolescentes; existen lagunas en el conocimiento y fragilidades en la instrumentación para esa práctica.

malos tratos infantiles; notificación compulsoria de enfermedad; violencia; niño; adolescente


OBJECTIVE: To analyze training and knowledge of professionals in the Family Health Team on reporting the mistreatment of children and adolescents. METHODS: Cross-sectional study carried out in three municipalities of Ceará State, Northeast Brazil, from January to April 2012. The research included 51 professionals: physicians (9), nurses (26), and dentists (16) who worked in the Family Health Strategy. A questionnaire was used for data collection, which received descriptive statistical analysis with the Pearson's chi-square test, being significant p≤0.05. RESULTS: There was a predominance of professionals who had not participated in violence against children and adolescents training (86.3%); who knew the Child and Adolescent Statute (90.2%), and how to notify mistreatment (62.7%). Most interviewees said that the health unit had the form (70.5%), and they knew where to refer victims to (82.3%). Most professionals did not have any contact with mistreatment situations (62.8%). Only 37.2% had already identified some case and, among them, 60.0% reported the occurrences. There was a significant association (p=0.035) between the act of notifying and the participation in a training on the subject. CONCLUSIONS: This study showed that the participants have difficulties in the reporting mistreatment of children and adolescents, and there are gaps in knowledge and weaknesses in training in this area.

child abuse; disease notification; violence; child; adolescent


ARTIGO ORIGINAL

Instrumentação e conhecimento dos profissionais da equipe saúde da família sobre a notificação de maus-tratos em crianças e adolescentes

Gracyelle Alves R. MoreiraI; Aline Araújo VasconcelosII; Lívia de Andrade MarquesII; Luiza Jane E. S. VieiraIII

IMestre em Saúde Coletiva pela UNIFOR, Fortaleza, CE, Brasil

IIGraduada em Enfermagem pela UNIFOR. Fortaleza, CE, Brasil

IIIDoutora em Enfermagem pela Universidade Federal do Ceará (UFC); Professora Titular do Programa de Pós-Graduação em Saúde Coletiva da UNIFOR e do Doutorado em Saúde Coletiva em Associação Ampla UFC-UECE-UNIFOR, Fortaleza, CE, Brasil

Endereço para correspondência Endereço para correspondência: Gracyelle Alves R. Moreira Rua Silva Jatahy, 1.140, apto. 903, Meireles CEP 60165-070 – Fortaleza/CE E-mail: gracyremigio@gmail.com

RESUMO

OBJETIVO: Analisar a instrumentação e o conhecimento dos profissionais da Equipe de Saúde da Família sobre a notificação de maus-tratos em crianças e adolescentes.

MÉTODOS: Estudo de corte transversal realizado em três municípios do Estado do Ceará, de janeiro a abril de 2012. Participaram da pesquisa 51 profissionais: médicos (9), enfermeiros (26) e cirurgiões-dentistas (16) que trabalhavam na Estratégia Saúde da Família. Utilizou-se um questionário para a coleta, e os dados foram submetidos à análise estatística descritiva e analítica por meio da aplicação do teste do qui-quadrado de Pearson, sendo significante p≤0,05.

RESULTADOS: Na amostra selecionada predominaram profissionais que não haviam participado de treinamento na área de violência contra crianças e adolescentes (86,3%), conheciam o Estatuto da Criança e do Adolescente (90,2%) e conheciam a ficha de notificação de maus-tratos (62,7%). A maioria afirmou que a unidade de saúde possuía a ficha (70,5%) e que sabia para qual lugar encaminhar as vítimas (82,3%). Prevaleceram os profissionais que não se depararam com situações de maus-tratos (62,8%); dos 37,2% que já tinham identificado algum caso, 60,0% relataram as ocorrências. Houve associação significante (p=0,035) entre o ato de notificar e a participação do profissional em treinamento sobre o tema.

CONCLUSÕES: Este estudo mostrou que os participantes têm dificuldades na notificação de maus-tratos em crianças e adolescentes. Existem lacunas no conhecimento e fragilidades na instrumentação para essa prática.

Palavras-chave: maus-tratos infantis; notificação compulsória de doença; violência; criança; adolescente.

Introdução

A violência contra crianças e adolescentes é um fenômeno histórico e manifesta-se como problema de Saúde Pública pelo impacto provocado na morbimortalidade do grupo, assim como pelas repercussões negativas na qualidade de vida das vítimas. Estima-se que morrem, mundialmente, cerca de 3.500 crianças e adolescentes anualmente por maus-tratos físicos ou negligência(1). No Brasil, as causas externas (acidentes e violências) constituem a primeira causa de óbito na população entre 5 e 19 anos(2).

A notificação de maus-tratos em crianças e adolescentes destaca-se, nesse contexto, como uma estratégia de enfrentamento do problema. Esse dispositivo legal foi instituído pelo Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), que tornou obrigatória a notificação de situações suspeitas ou confirmadas de maus-tratos pelos profissionais e responsáveis das áreas da saúde e da educação (art. 13), prevendo pena para a não comunicação dos casos aos órgãos de proteção (art. 245)(3).

O ato de notificar inicia um processo que visa romper atitudes e comportamentos violentos no âmbito da família e por parte de qualquer agressor, promovendo cuidados sociossanitários voltados à proteção da criança e do adolescente em situação de violência(2). Para o sistema de saúde, essa ação ainda tem a finalidade de gerar registros fidedignos das situações de maus-tratos, possibilitando dimensionar o problema do ponto de vista epidemiológico e elaborar políticas públicas voltadas ao enfrentamento e à prevenção dessa situação(4).

Esse procedimento está respaldado pela Portaria 1.968/2001, do Ministério da Saúde, que institucionalizou a notificação compulsória de maus-tratos contra crianças e adolescentes, atendidos no Sistema Único de Saúde (SUS)(5). A Secretaria de Vigilância à Saúde, reconhecendo tal demanda, lançou, em 25 de janeiro de 2011, a Portaria 104, que dispõe sobre as violências doméstica, sexual e/ou outras como o 45º evento de notificação compulsória, estabelecendo fluxos, critérios, responsabilidades e atribuições aos profissionais e serviços de saúde(6).

Apesar de todo este aparato legal, a literatura(7,8) ainda evidencia a subnotificação dos casos, indicando a existência de debilidades estruturais e barreiras no processo de notificação. Estudos internacionais e nacionais(9-11) apontam a presença de dificuldades técnicas no ato de notificar, inviabilizando essa ação como conduta sistemática. O tipo e o grau de gravidade das situações de maus-tratos, o conhecimento insuficiente sobre a identificação dos casos e sobre os procedimentos de notificação, a deficiência da rede de atendimento, as influências culturais, a desconfiança nos serviços de proteção à criança e o medo de envolvimento legal são alguns fatores que interferem na decisão do profissional encarregado das notificações(11-13).

Nesse contexto, é relevante investigar o processo de notificação da violência contra a população infantojuvenil, visando conhecer os arranjos dos serviços da atenção básica e as experiências dos trabalhadores envolvidos nesse cenário. Dessa forma, o presente estudo analisou a instrumentaçãoe o conhecimento dos profissionais da Equipe de Saúde da Família quanto à notificação de maus-tratos em crianças e adolescentes.

Método

Este trabalho está inserido em uma investigação mais ampla, dando continuidade às pesquisas realizadas em outras regiões do Estado do Ceará(12,14,15), com o intuito de obter um diagnóstico situacional sobre o ato notificatório de maus-tratos em crianças e adolescentes em municípios cearenses no âmbito da atenção básica.

O estudo em pauta, de corte transversal, realizou-se nos municípios de Cascavel, Ocara e Pindoretama, localizados na Região Metropolitana de Fortaleza (RMF), no Estado do Ceará, de janeiro a abril de 2012. Dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) revelam que a população conjunta de tais cidades é de aproximadamente 108.832 habitantes(16).

Participaram da pesquisa médicos, enfermeiros e cirurgiões-dentistas que atuavam nas Equipes de Saúde da Família dos municípios selecionados. Foram excluídos os profissionais ausentes, aqueles que estavam em férias ou apresentavam licenças médicas no período da coleta de dados.

Inicialmente, o estudo assumiu caráter censitário, pois se pretendeu investigar os profissionais que compõem a população. A população-alvo foi estimada com base nos dados fornecidos pelo Departamento da Atenção Básica (DAB), que, na época da pesquisa, contava com 36 médicos, 36 enfermeiros e 32 cirurgiões-dentistas, totalizando 104 pessoas nas 3 cidades. Em virtude do percentual de adesão ter atingido 49,0%, as autoras assumem que a investigação deu-se a partir de uma amostragem por conveniência, muito utilizada em estudos exploratórios, o que respalda sua importância. No entanto, reconhece-se que a amostra estudada não representa a população.

Para orientar a coleta de dados, utilizou-se um questionário anônimo, com 32 questões fechadas, testado e validado em pesquisa anterior(12). Esse instrumento identifica variáveis relativas à caracterização sociodemográfica, formação profissional, instrumentação, conhecimento e conduta do profissional frente a casos de maus-tratos em crianças e adolescentes. Na operacionalização da coleta de dados, primeiramente a pesquisa foi apresentada aos gestores municipais de saúde. Em seguida, os questionários foram aplicados aos profissionais em foco por meio de visitas às unidades básicas de saúde dos municípios.

Os dados foram organizados, codificados, tabulados e submetidos à análise estatística utilizando o programa Statistical Package for the Social Sciences (SPSS), versão 16.0 for Windows. Foram utilizados análise estatística descritiva e cálculos de medidas de significância por meio da aplicação do teste de qui-quadrado. As diferenças foram consideradas estatisticamente significantes se p<0,05.

Estabeleceu-se como desfecho a notificação de maus-tratos em crianças e adolescentes, e como variáveis independentes: sexo (masculino ou feminino); profissão (médico, enfermeiro, cirurgião-dentista); idade (22 a 30 anos, 31 a 40 anos, >40 anos); estado civil (casado ou não casado); tempo de formado (menos de 05 anos, 05 a 10 anos, acima de 10 anos); pós-graduação (nenhuma, especialização em saúde pública coletiva, especialização em áreas específicas ou residência em áreas específicas); tempo de trabalho na Estratégia Saúde da Família (ESF) (menos de 05 anos, 05 a 10 anos, acima de 10 anos); participação de treinamento (sim ou não); conhecimento do ECA (sim ou não); conhecimento da ficha de notificação (sim ou não); se a unidade de saúde possui a ficha de notificação (sim ou não); se sabe para onde encaminhar os casos (sim ou não); se lê sobre a temática (sim ou não); se o assunto é discutido no trabalho (sim ou não) e se conhece instituição de assistência à vítima de violência (sim ou não). A variável faixa etária obedeceu à estratificação de acordo com a população economicamente ativa(16).

O estudo obedeceu aos aspectos éticos de pesquisas envolvendo seres humanos em conformidade com a Resolução 196/96, do Conselho Nacional de Saúde. O anonimato dos participantes foi garantido e o termo de consentimento livre e esclarecido foi assinado. A pesquisa encontra-se aprovada pelo Comitê de Ética em Pesquisa da Universidade de Fortaleza.

Resultados

Dos 104 profissionais selecionados, 51 (49,0%) participaram da pesquisa, sendo nove médicos, 26 enfermeiros e 16 cirurgiões-dentistas. A idade média dos participantes foi de 34,7±8,4 anos. Ao observar por categoria profissional, a idade média dos médicos foi de 42,7±8,0; dos enfermeiros, de 33,5±7,4; e dos cirurgiões-dentistas, de 32,1±8,2 anos. As características sociodemográficas e a formação profissional apontam para o predomínio do sexo feminino (62,7%), de faixa etária entre 22 e 30 anos (37,4%), não casados (60,8%), com tempo de formado inferior a cinco anos (43,1%), profissionais com especialização na área de saúde pública/coletiva (34,7%) e com menos de cinco anos de trabalho na ESF (51,1%).

Dentre os respondentes, 86,3% não tinham participado de treinamento na área de violência contra crianças e adolescentes, 90,2% conheciam o ECA, 62,7% conheciam a ficha de notificação de maus-tratos, 70,5% afirmaram que a unidade de saúde possuía a ficha e 82,3% sabiam pa- ra onde encaminhar as vítimas (Tabela 1). A maior parte dos profissionais relatou não fazer leituras sobre a temática (86,3%) e que o assunto não era discutido na unidade de saúde (76,5%). Quanto ao conhecimento sobre instituições de assistência à criança e ao adolescente vítimas de violência, 88,2% não dispunham desta informação (Tabela 1). Em relação à identificação e à tomada de decisão frente a casos de maus-tratos em crianças e adolescentes, 62,8% afirmaram que não haviam se deparado com situações de maus-tratos na sua prática profissional. Dos 37,2% que já tinham identificado algum caso, 60,0% notificaram as ocorrências e 40,0% não realizaram tal procedimento (Tabela 1).

Não houve associação entre o ato de notificar e as variáveis sociodemográficas e de formação profissional (Tabela 2). Apesar da ausência de associação estatística, é importante mencionar que as características dos profissionais que mais notificaram casos de maus-tratos foram: enfermeiro (40,0%), sexo feminino (35,0%), faixa etária de 31 a 40 anos (25,0%), tempo de formado >10 anos (30,0%), especialização em áreas específicas (35,0%) e tempo de trabalho na ESF entre 5 e 10 anos (25,0%). Vale destacar que, quanto à variável estado civil, os casados e os não casados apresentaram o mesmo percentual, de 30,0%.

A Tabela 3 destaca a relação estatística entre a notificação de maus-tratos e as variáveis referentes à instrumentação e ao conhecimento do profissional. Observou-se que a variável "participou de treinamento" associou-se (p=0,035) com o ato de notificar, enquanto as demais não apresentaram significância.

Discussão

Aspecto relevante evidenciado nesta pesquisa e que reitera a literatura(12,17) é o fato de a maior parte dos profissionais não ter participado de treinamento sobre a temática violência contra crianças e adolescentes. Vários autores destacam o conhecimento insuficiente sobre a questão como um dos principais fatores que interferem na identificação e notificação de maus-tratos(11,13,17,18). Esse assunto não se apresenta como alvo de capacitação na formação continuada das Equipes de Saúde da Família. Por esse motivo, muitos profissionais não se encontram preparados para o manejo dos casos e não oferecem uma atenção que tenha impacto efetivo à saúde das vítimas(19).

Apesar do baixo percentual de profissionais que participaram de treinamento específico na área, a maioria apresentou um grau de conhecimento suficiente sobre a notificação de maus-tratos em crianças e adolescentes, demonstrando conhecer o ECA, a ficha de notificação e para onde encaminhar os casos. Esse fato também foi constatado por Pires et al(17) em uma pesquisa realizada com 92 pediatras no sul do Brasil.

Verificou-se também que leituras sobre a temática não são foco de interesse dos trabalhadores e que o assunto não costuma ser discutido nas unidades de saúde. Esse distanciamento se justifica pelo fato de a violência não ser um problema de saúde típico, extrapolando o modelo biomédico e, por isso, não tem sido tratada na maioria das matrizes curriculares das graduações e pós-graduações(18).

A formação de profissionais que compreendam que a violência é um problema de saúde e requer atitudes comprometidas para seu enfrentamento é uma demanda amplamente reconhecida pelas políticas públicas de enfrentamento do fenômeno no Brasil. A Política Nacional de Redução de Morbimortalidade por Acidentes e Violências postula como uma de suas diretrizes a "capacitação e a mobilização dos profissionais de saúde que atuam em todos os níveis de atendimento do SUS, com vistas a superar os problemas relacionados à investigação e à informação relativa a acidentes e violências"(20).

Observou-se também a falta de conhecimento dos trabalhadores da saúde sobre instituições de assistência às crianças e aos adolescentes maltratados. Esse desconhecimento dos serviços que compõem a rede de proteção existente nos municípios constitui-se em uma dificuldade para o enfrentamento da violência em nível local e reflete a desarticulação das ações intersetoriais, assim como a ausência de protocolos que firmem condutas e encaminhamentos sistematizados.

Outro achado da presente pesquisa revelou o predomínio de profissionais que não tinham se deparado com casos de maus-tratos em sua prática, semelhante ao trabalho de Luna, Ferreira e Vieira(12), e divergindo do estudo de Pires et al(17). Entretanto, alguns fatores podem ter interferido na constatação desse dado: a existência do viés de memória, pois alguns trabalhadores exercem suas funções há anos e em mais de uma instituição; a influência de aspectos culturais; a falta de conhecimento sobre a problemática; e a formação embasada no tecnicismo das ciências biomédicas.

Com frequência, o profissional de saúde apenas identifica uma situação de violência quando esta é evidenciada por meio de sinais clínicos, o que pode constituir um entrave na revelação do caso, pois nem sempre a vitimização transparece por meio de lesões físicas(13). Torna-se necessário um olhar profissional ampliado para desvelar a demanda implícita que o sujeito apresenta. Contudo, esse desnudamento do real não é tarefa fácil, pois requer uma análise diferenciada e baseada em arcabouço teórico que a oriente(21).

Dos trabalhadores que se depararam com casos, prevaleceram aqueles que notificaram as situações de violência. Esse resultado vai de encontro à outra investigação(22), que retratou uma parcela maior de casos não notificados. Na concepção de Day et al(23), devido à desinformação, negação e medo, os profissionais de saúde se omitem desse procedimento. Também a ideia de que é preciso averiguar e confirmar os casos a partir de provas gera dúvida e sentimento de insegurança, fazendo com que muitos profissionais deixem de notificar(11).

No presente trabalho, as características sociodemográficas e de formação profissional não apresentaram significância estatística com o ato de notificar. No entanto, outros estudos apontaram associação entre alguns desses aspectos com a notificação de maus-tratos em crianças e adolescentes(12,15). Luna, Ferreira e Vieira(12) verificaram que o tempo de formação e o fato de o profissional ser pós-graduado tiveram associação positiva com a realização da notificação. Silva(15), além dos itens mencionados, identificou que o estado civil e o tempo de trabalho na ESF influenciaram significativamente a iniciativa de notificar. Embora sem associação estatística, vale ressaltar que os enfermeiros, profissionais do sexo feminino, com idades entre 31 e 40 anos, com tempo de formado acima de 10 anos, especialização em áreas específicas e tempo de trabalho na ESF entre cinco e dez anos apresentaram mais chances de realizarem a notificação diante de casos de maus-tratos. Investigações(12,14,15) apontam, dentre as categorias profissionais, a Enfermagem como a que mais notifica os casos, denotando a aproximação e a sensibilidade destes profissionais para com as demandas do sistema de saúde. A presença marcante do enfermeiro no processo de gestão e a percepção mais acurada da subjetividade comunitária(15) podem estar associadas ao maior envolvimento da categoria com a questão da identificação e notificação da violência contra crianças e adolescentes.

Tais resultados também sugerem que o amadurecimento pessoal e profissional propicia mais experiência, formação de vínculos, habilidade de comunicação, maior sensibilização à questão e confiança, favorecendo a apropriação de competências dispostas na legislação e a segurança no ato de notificar. Em contraponto, não se pode inferir que a experiência profissional irá proporcionar a melhor conduta frente a casos de violência, pois a iniciativa e o interesse em fazer cumprir as normas e portarias vigentes independem do tempo de atuação profissional, tendo relação com a postura de cada trabalhador.

Entre as variáveis de instrumentação e conhecimento profissional, somente a variável "participou de treinamento" associou-se positivamente com o ato de notificar. Tal achado reforça o pressuposto da influência positiva do conhecimento, do acesso à capacitação e da qualificação da formação sobre a atitude dos profissionais de notificar situações de violência contra crianças e adolescentes(12).

Uma investigação empreendida com 419 profissionais da Atenção Primária à Saúde na Irlanda do Norte identificou que muitos trabalhadores deixaram de relatar por não saber como proceder diante dos casos de abuso(24). Pesquisa brasileira também mostrou que a falta de conhecimento esteve associada à não notificação de maus-tratos(17). Leite et al(25), investigando médicos residentes no Estado de São Paulo, analisaram o número de relatos de maus-tratos infantis antes e após a realização de um curso sobre o tema. Foi constatado aumento considerável da quantidade de notificações após a realização do treinamento. Contudo, nos meses subsequentes à capacitação, observou-se uma queda no número dos registros. Esse fato sugere que a oferta de um curso isolado não é suficiente, sendo necessário um processo de educação continuada, que trate do assunto envolvendo todas as suas dimensões e que propicie o desenvolvimento de competências profissionais para uma atuação eficaz diante da problemática.

Algumas limitações deste estudo devem ser levadas em consideração. A adesão à pesquisa foi de 49,0% da população estudada. Porém, ao analisar por categoria profissional, a adesão à pesquisa foi de 72,2% entre os enfermeiros, 50,0% entre os cirurgiões-dentistas e 25,0% entre os médicos. Fatores como sobrecarga de trabalho, complexidade do objeto de investigação, falta de interesse e formação no assunto, além de não ver contra–partida ao participar da pesquisa, podem estar relacionados com essas taxas. É importante acrescentar que, ao assumir a amostragem por conveniência, reafirma-se que os resultados não refletem o comportamento geral dos profissionais da ESF em relação ao ato notificatório nos municípios investigados. É possível ainda que o fato de a maioria das associações entre a variável dependente e as independentes não ter apresentado significância estatística tenha decorrido do percentual limitado dos profissionais que relataram notificação de maus-tratos, constituída pelos participantes que se depararam com algum caso. Esclarece-se também sobre as limitações inerentes ao desenho de pesquisa do tipo transversal, que mensura um determinado fenômeno em único momento, impossibilitando aprofundá-lo, o que seria possível por meio de pesquisas qualitativas, que auxiliariam na análise do fenômeno.

Em resumo, entre os 51 profissionais da Equipe de Saúde da Família, verificou-se a presença de lacunas na instrumentação e no conhecimento em relação à notificação de maus-tratos em crianças e adolescentes. Constatou-se que lidar com esse procedimento envolve dificuldades que não se mostram em relação a outros tipos de relato. Por esse motivo, a abordagem dos serviços e dos profissionais de saúde para minimizar o problema deve levar em conta tais obstáculos e complexidades.

De posse dos achados, recomenda-se aproximar a gestão, o serviço e as instituições de ensino para redirecionar os currículos às demandas vigentes e à capacitação de forma contínua sobre o tema violência contra a população infantojuvenil e o seu enfrentamento, envolvendo o assunto nas discussões e nas rodas de conversa dos serviços de saúde.

Agradecimentos

À Fundação Cearense de Apoio de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (FUNCAP) – Edital de Segurança Pública 05/2008, ao Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) – Bolsa Produtividade em Pesquisa – e à Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES) – Bolsa Mestrado.

Recebido em: 2/8/2012

Aprovado em: 4/2/2013

Conflito de interesses: nada a declarar

Fonte financiadora: Fundação Cearense de Apoio de Desenvolvimento Científico e Tecnológico – FUNCAP (Edital de Segurança Pública 05/2008)

Instituição: Núcleo de Estudos e Pesquisas em Acidentes e Violência (NEPAV) do Programa de Pós-Graduação em Saúde Coletiva da Universidade de Fortaleza (UNIFOR), Fortaleza, CE, Brasil

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  • Endereço para correspondência:

    Gracyelle Alves R. Moreira
    Rua Silva Jatahy, 1.140, apto. 903, Meireles
    CEP 60165-070 – Fortaleza/CE
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  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      01 Jul 2013
    • Data do Fascículo
      Jun 2013

    Histórico

    • Recebido
      02 Ago 2012
    • Aceito
      04 Fev 2013
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