Open-access EXPOSIÇÕES TÓXICAS EM CRIANÇAS A SANEANTES DE USO DOMICILIAR DE VENDA LEGAL E CLANDESTINA

RESUMO

Objetivos:  Analisar e comparar as repercussões clínicas dos acidentes com saneantes de uso domiciliar de origem legal e ilegal (clandestina) em crianças menores de 7 anos.

Métodos:  Estudo descritivo de corte transversal, com dados obtidos dos prontuários eletrônicos do Centro de Informações e Assistência Toxicológica de referência regional, no período de um ano completo. Foram realizadas análises estatísticas descritivas não paramétricas e de testes de associação. Resultados: A amostra foi constituída de 737 casos. A maioria das exposições ocorreu em crianças menores de 3 anos (mediana: 1 ano, intervalo interquartil: 1-3 anos) na residência habitual (92,9%) e por ingestão (97,2%). Os produtos envolvidos foram saneantes de baixa toxicidade sem efeito cáustico (38,9%), com efeito cáustico (24,1%), hidrocarbonetos (19,3%), inseticidas/raticidas (16,6%), e outros produtos (1,1%). Setenta casos decorreram de exposições a produtos clandestinos, principalmente cáusticos (n=47) e raticidas (n=15). Entre as 337 crianças que apresentaram manifestações clínicas pós-exposição, as ocorrências mais frequentes foram vômitos (n=125), queimaduras orais (n=74), tosse (n=35), salivação (n=26) e dor abdominal (n=25), significativamente mais comum com produtos clandestinos (55/70 versus 282/667; p<0,01). Dezenove crianças foram hospitalizadas (cáusticos, n=17; produtos clandestinos, n=12; mediana do tempo de internação: 2 dias), e 22 foram submetidas à endoscopia digestiva alta (hidróxido de sódio, n=14; produtos clandestinos, n=14), com alterações em 12 casos (grave=2). Não houve óbitos.

Conclusões:  Exposições tóxicas a saneantes de uso domiciliar de origem clandestina estão associadas com maior morbidade quando comparadas aos de venda autorizada.

Palavras-chave: Envenenamento; Saneantes; Produtos domésticos; Cáusticos; Endoscopia; Criança

ABSTRACT

Objectives:  To analyze and to compare clinical repercussions of accidents involving legally and illegally commercialized household sanitizers in children under 7 years of age.

Methods:  A descriptive cross-sectional design was used to collect data from electronic database of a regional Poison Control Center during one year. Data were analyzed by means of descriptive non-parametric statistics and association tests. Results: The sample had 737 reported cases. Most of the accidents occurred with children under 3 years of age (median: 1 year of age; interquartile interval: 1-3 years of age), at home (92.9%), by ingestion (97.2%). Products involved were cleaning products with low toxicity and no caustic effects (38.9%); caustics (24.1%); hydrocarbons (19.3%); pesticides/rodenticides (16.6%), and other products (1.1%). Seventy accidents were due to exposures to illegal products, mainly caustics (n=47) and rodenticides (n=15). Among the 337 children presenting post-exposure clinical manifestations, the most frequent were vomiting (n=125), oral burns (n=74), cough (n=35), drooling (n=26), and abdominal pain (n=25). Clinical manifestations were significantly more frequent after illegal products exposure (55/70 versus 282/667, p<0.01). Nineteen children had to be hospitalized (caustics, n=17; illegal products, n=12; median time of hospitalization: 2 days), 22 were submitted to esophagogastroduodenoscopy (sodium hydroxide, n=14; illegal products, n=14); and 12 cases had endoscopic alterations (severe in 2). No deaths occurred.

Conclusion:  Toxic exposures owing to illegal household sanitizer products are associated with greater morbidity when compared with legal ones.

Keywords: Poisoning; Sanitizing products; Household products; Caustics; Endoscopy; Child

INTRODUÇÃO

Exposições tóxicas a saneantes de venda livre em crianças são comuns e podem ser de alta morbidade, especialmente as que envolvem cáusticos e hidrocarbonetos.1,2,3 Como agravante, no Brasil, ampla parcela da população também utiliza e armazena saneantes não autorizados para consumo domiciliar, denominados de ilegais ou clandestinos.4,5

Saneantes clandestinos ou de fabricação não autorizada são formulações comercializadas sem registro na Agência Nacional de Vigilância Sanitária (ANVISA).6 Para um saneante ter aprovação de registro na ANVISA são analisados diversos itens, como gerenciamento de risco, finalidade e categoria. Na avaliação e no gerenciamento do risco são consideradas a toxicidade das substâncias e suas concentrações no produto, a finalidade e as condições de uso, a ocorrência de eventos adversos ou queixas técnicas anteriores, a população provavelmente exposta, a frequência de exposição e a sua duração, bem como formas de apresentação.

Em adição, as empresas legalmente autorizadas a fabricar, armazenar, distribuir, transportar, fracionar ou importar produtos saneantes estão sujeitas à verificação do cumprimento das “Boas Práticas de Fabricação e Controle”.6 Os produtos clandestinos são normalmente vendidos por ambulantes na porta dos domicílios, embora também possam ser encontrados em lojas de produtos para limpeza em geral, incluindo mercados públicos.5,7,8 Um estudo que analisou 419 domicílios urbanos na capital federal mostrou que, dos 239 lares onde residiam crianças, 30,1% armazenavam saneantes de origem clandestina, configurando risco potencial de exposições tóxicas acidentais a esses produtos.4

Os saneantes clandestinos, na maioria das vezes, possuem cores muito atrativas às crianças e comumente são armazenados em embalagens plásticas reaproveitadas de refrigerante de dois litros, comumente denominados no Brasil de “roxinho”.1,4,5 Além disso, nas apresentações clandestinas, na maioria dos casos, não constam os rótulos com a formulação do produto, ou, quando presentes, as informações costumam ser incorretas ou falsas.1,4,5

Diante dessas considerações, os objetivos deste trabalho foram analisar e comparar as repercussões clínicas dos acidentes com saneantes de uso domiciliar, de origem legal e clandestina, em crianças menores de 7 anos.

MÉTODO

Estudo descritivo de corte transversal. Os dados foram coletados das fichas de atendimento do Centro de Informação e Assistência Toxicológica de Campinas (CIATOX), serviço de referência da região administrativa de Campinas, interior do estado de São Paulo, que conta com 90 municípios e população estimada em 6,5 milhões de habitantes. O atendimento do CIATOX de Campinas, desde outubro de 2013, é registrado em tempo real, na base eletrônica do Sistema Brasileiro de Dados de Intoxicações (DATATOX) da Associação Brasileira de CIATOX (ABRACIT), que gera um banco de dados e prontuários eletrônicos com todas as informações coletadas.

Foram considerados elegíveis todos os pacientes com idade menor que 7 anos expostos acidentalmente a saneantes de uso domiciliar, comercializados de forma legal e clandestina. As informações foram coletadas no período de um ano completo (1.º de outubro de 2013 a 30 de setembro de 2014) e referem-se aos casos atendidos e seguidos tanto por via telefônica como presencial (pacientes admitidos no Setor de Emergência Pediátrica do Hospital de Clínicas da Universidade Estadual de Campinas - Unicamp).

Para análise, os produtos foram arbitrariamente divididos em cinco classes:

  1. saneantes de baixa toxicidade, como alvejantes para lavagem de roupas e desinfetantes de uso geral que não contêm cloro em sua formulação, detergentes para louça, sabões em pó ou em barras, amaciantes de roupas, limpadores multiuso e odorizantes para domicílio;

  2. saneantes com efeito caústico, que incluem formulações de hipoclorito de sódio, hidróxido de sódio, “roxinhos”, produtos à base de formulações com cloro para tratamento de água de piscinas, desengordurantes, desincrustantes e produtos ácidos ou alcalinos para limpeza de alumínio, pedras ou fornos;

  3. saneantes à base de hidrocarbonetos, como removedores, querosenes, aguarrás, thinner, cresóis, óleos de pinho e ceras;

  4. inseticidas e raticidas, como piretroides, naftalenos, formicidas, baraticidas e raticidas de uso legal (cumarínicos) e clandestino (“chumbinho”);

  5. outros, como saneantes cuja composição não foi esclarecida ou não se pôde classificar conforme as quatro classes anteriores. Os raticidas denominados de “chumbinho” são geralmente produzidos com inibidores da colinesterase, sobretudo carbamatos como aldicarbe e carbofurano.8

Para os casos em que houve exposição a mais de um produto, foi levado em conta aquele de maior toxicidade. As exposições que envolveram produtos cáusticos também foram analisadas isoladamente, por serem consideradas de maior morbidade.

Os dados referentes a cada caso foram inseridos em uma planilha eletrônica construída para o estudo (Excel, Microsoft Office® 2010). Realizaram-se análises estatísticas descritivas não paramétricas [mediana e intervalos interquartis (IIQ)] e de testes de associação (qui-quadrado e exato de Fisher) quando conveniente, adotando-se como nível de significância o valor de p≤0,05.

A pesquisa foi aprovada pelo Comitê de Ética em Pesquisa da Faculdade de Ciências Médicas da Unicamp, sob os pareceres n.º 853.646 e CAAE n.º 37346214.8.0000.5404.

RESULTADOS

A amostra foi constituída de 737 casos - 15,3% do total de casos acompanhados pelo CIATOX no período de estudo. Realizou-se a maioria dos atendimentos exclusivamente por telefone (98,1%), com informações solicitadas pelo médico (64,4%), procedente de serviço hospitalar (56,7%), seguido dos atendimentos telefônicos de parentes/familiares oriundos do próprio domicílio (31,9%), e derivados da região administrativa de Campinas (67,3%).

A maior parte das exposições ocorreu em crianças menores de 3 anos (79,6%; mediana=1 ano, IIQ de 1 a 3 anos; limite de 57 dias a 6 anos), na residência habitual (92,9%), e com discreto predomínio no sexo masculino (55,6%). Quanto às vias de exposição, a principal foi por ingestão (97,2%), seguida da via cutânea (6,6%). Exposição simultânea por mais de uma via foi constatada em 52 casos (duas vias, n=48; 3 vias, n=4). Na Tabela 1, constam as principais características demográficas, das vias de exposição e da evolução da população exposta, de acordo com as cinco classes de produtos.

Tabela 1:
Características demográficas, da via de exposição e da evolução clínica da população estudada segundo a classe do produto.

Os saneantes de baixa toxicidade (38,9%) e os cáusticos (24,1%) foram os principais produtos envolvidos. Constatou-se também que 9,5% das exposições foram ocasionadas por produtos clandestinos, especialmente cáusticos e raticidas (Tabela 2). A exposição a produtos fabricados no próprio domicílio foi registrada em 12 casos, sobretudo “sabão caseiro” (n=10), no qual é empregado hidróxido de sódio (soda cáustica) no processo de fabricação; salienta-se que as dez crianças expostas a tal tipo de produto desenvolveram manifestações clínicas pós-exposição.

Tabela 2:
Distribuição de frequência dos agentes envolvidos segundo a classe e a origem do produto (uso legal ou clandestino).

No tocante às condutas tomadas antes do contato com o CIATOX, pôde-se identificar que os familiares ofereceram, nos domicílios, leite, outros líquidos e alimentos em 76 casos, dos quais 37 haviam ingerido cáusticos (hidróxido de sódio, n=13; hipoclorito de sódio, n=16; “roxinho”, n=4; outros, n=4) e 11 hidrocarbonetos; e 28 evoluíram com vômitos, com mais de um episódio em 14 casos. Em 11 pacientes também foi induzido vômito no domicílio, dos quais seis ingeriram cáusticos (hipoclorito de sódio, n=3; ácidos para limpeza de alumínio, n=2; “roxinho”, n=1) e um hidrocarboneto. A lavagem gástrica foi realizada nos serviços de saúde em 25 casos (3,4% do total), dos quais 14 crianças ingeriram raticidas (cumarínicos, n=10; “chumbinho”, n=3; produto não determinado, n=1), 7 produtos cáusticos (hipoclorito de sódio, n=6; limpa-alumínio, n=1), 3 hidrocarbonetos (removedores, n=2; querosene, n=1), e uma inseticida carbamato de uso clandestino (metomil).

Entre as 337 crianças que apresentaram manifestações clínicas pós-exposição, as mais frequentes foram vômitos (n=125), queimaduras orais (n=74), tosse (n=35), salivação (n=26) e dor abdominal (n=25), significativamente mais comuns com produtos clandestinos (55/70 versus 282/667; p<0,01). No que diz respeito aos 35 pacientes que evoluíram com tosse, 21 foram expostos a hidrocarbonetos, dos quais 14 também apresentaram vômitos. Em relação às 14 crianças expostas a raticidas de uso clandestino, em 12 foi confirmada a ingestão de “chumbinho”, com apenas 1 precisando de antídoto (atropina). Na Tabela 3 constam as principais manifestações clínicas detectadas e a associação entre os tipos de produto (venda legal ou clandestina) quanto à presença de manifestações clínicas e a necessidade de internação hospitalar.

Tabela 3:
Associação entre exposição a saneantes de uso domiciliar de uso legal e clandestino, em 337 crianças com sintomas pós-exposição quanto à evolução para a internação e o tipo de manifestação clínica relatada.

Considerando as 178 crianças expostas a produtos cáusticos, 129 (72,5%) desenvolveram manifestações clínicas, nas seguintes proporções de acordo com o produto: hidróxido de sódio, 27/31 (87,1%); hipoclorito de sódio, 74/110 (67,3%); “roxinho”, 10/10; e outros cáusticos, 18/27 (66,7%). Observou-se também que os cáusticos de uso clandestino estiveram significativamente associados à maior ocorrência de internação quando comparados aos de uso legal (11/43 versus 6/86; p<0,01), bem como no que se refere à realização de endoscopia digestiva alta (14/43 versus 8/86; p<0,01).

Das 19 crianças que necessitaram de internação hospitalar, a maioria foi de curta duração (mediana=2 dias, IIQ de um a três dias) e decorrente de exposições a produtos cáusticos (hidróxido de sódio, n=12; “roxinho”, n=3; hipoclorito de sódio, n=1; outro, n=1), seguida de um caso de exposição a hidrocarboneto e outro a “chumbinho”. Três meninos precisaram de internação mais prolongada: dois por esofagite grave pós-ingestão de hidróxido de sódio (idades de 10 meses e 6 anos, com tempo de internação de nove e 45 dias, respectivamente); e outro, de 1 ano, por ingestão de hidrocarbonetos (removedor de uso legal). Este desenvolveu provável dano alveolar difuso (pneumonite química) com desconforto respiratório, necessitando de suplementação de oxigênio (sete dias de internação). Nenhum óbito foi registrado.

Na Tabela 4 estão informações quanto aos produtos envolvidos, às manifestações clínicas e às alterações endoscópicas encontradas nos 22 pacientes submetidos a esse procedimento. Em apenas dois casos foi utilizada a classificação endoscópica de Zargar (I a III) para queimaduras químicas causadas por cáusticos,9 descritas como I (hiperemia ou edema de mucosa sem formação de úlceras) e IIa (lesões da submucosa, úlceras ou exsudatos sem comprometimento circunferencial do esôfago), nessa ordem.

Tabela 4:
Produtos cáusticos envolvidos, manifestações clínicas e alterações endoscópicas encontradas nos 22 pacientes submetidos à endoscopia digestiva alta.

DISCUSSÃO

Os resultados mostram um panorama epidemiológico das exposições a saneantes de uso domiciliar legais e clandestinos em crianças, em uma importante região do interior do estado de São Paulo. A maior proporção de exposições em menores de 3 anos, meninos e no ambiente domiciliar, segue o padrão identificado em outros estudos1,2,3,9,10 e está associada com a fase do desenvolvimento infantil, caracterizada por incapacidade de reconhecer riscos, curiosidade natural, mobilidade independente com comportamento exploratório e maior proximidade do chão, frequentemente levando os objetos à boca.1,2,3,10 Além dessas observações, os resultados confirmam um maior número de hospitalizações decorrente da exposição a produtos cáusticos, similar ao detectado nos serviços de emergência pediátrica dos Estados Unidos.3

Considerando os procedimentos de descontaminação efetuados ainda no domicilio e nos serviços de saúde, foi possível identificar diversas condutas pouco efetivas ou, ainda, iatrogênicas.1,2,11,12 Tanto a lavagem gástrica como a indução de vômitos são formalmente contraindicadas para pacientes que ingeriram substâncias cáusticas ou hidrocarbonetos, pelos riscos de piora das queimaduras químicas e de pneumonite química aspirativa, respectivamente.2,11,12 Além disso, a recomendação da lavagem gástrica encontra-se em progressivo desuso, com indicações extremamente restritas, mesmo em ingestões intencionais,12 e deveria seguir uma discussão prévia entre o profissional de saúde e o serviço especializado, por exemplo, o CIATOX regional.

A exposição a produtos de uso clandestino representou 9,5% do total da amostra, todavia esteve associada à maior morbidade, diretamente relacionada aos tipos de produto envolvidos (cáusticos), incluindo maior número de casos submetidos à endoscopia digestiva alta e de hospitalizações. No tocante às exposições ao raticida clandestino “chumbinho”, apenas uma entre 12 crianças evoluiu com manifestações clínicas de uma síndrome colinérgica e necessitou utilizar atropina. Tais dados sugerem um possível reflexo da retirada do aldicarbe (Temik 150) do mercado brasileiro, desde o fim de 2012.13

A presença de manifestações clínicas pós-exposição como marcadores de risco de evolução para lesão esofágica grave é motivo de debate.14,15,16,17 De maneira geral, em ingestões não intencionais de cáusticos, a endoscopia deve ser realizada em todos os pacientes com estridor, e em qualquer paciente que evolua com dois ou mais sintomas como vômitos, salivação e dor.15

Achados endoscópicos como lesões circunferenciais da submucosa, com presença de úlceras e exsudatos (classificação IIb), ou de úlceras profundas com necrose das camadas teciduais esofágicas (classificação III), são importantes marcadores preditivos de risco de evolução para estenose esofágica cicatricial.9,16,17 Dessa forma, a endoscopia precoce, entre 12 e 24 horas pós-exposição, em pacientes com manifestações clínicas indicativas de lesão cáustica, tem valor prognóstico e auxilia na indicação de uma terapêutica mais apropriada nos casos graves, visando prevenir ou minimizar a evolução para estenose esofágica nos pacientes de risco, como colocação de stents intraluminais ou tubos nasogástricos.16,17 Na presente série, em apenas dois casos entre os 22 submetidos à endoscopia foi empregada a classificação de Zargar,9 sendo importante enfatizar aos endoscopistas da região a relevância do uso dessa classificação na emissão dos laudos.

Estudo multicêntrico conduzido na Itália em 2008 correlacionou a presença de manifestações clínicas (queimaduras orais/orofaringe, vômitos, dispneia, disfagia, salivação e hematêmese) e a evolução para queimadura esofágica grave (Zargar III) em 162 crianças após ingestão acidental de cáusticos, constatando que pacientes que apresentavam um, dois, três ou mais sinais/sintomas mostraram razões de chance de evolução para lesão esofágica grave de 7,71, 6,69 e 11,97, respectivamente.17

Em nossa série, o paciente que evoluiu com necrose esofágica exibia quatro sinais/sintomas à admissão, como queimaduras orais, vários episódios de vômito, disfagia e dor abdominal, após ingestão de um gole de soda cáustica armazenada em uma garrafa de refrigerante. Em contraste, nenhuma alteração endoscópica foi detectada nos cinco pacientes submetidos à endoscopia que demonstraram apenas um sinal/sintoma - quatro com queimaduras orais isoladas e um com vários episódios de vômito.

O uso de embalagens com tampas à prova de abertura por crianças é uma medida preventiva comprovadamente eficaz na redução da mortalidade infantil por intoxicações.1,18,19 Assim, em 2013, a ANVISA publicou uma resolução que exige embalagem plástica rígida para produtos corrosivos, resistente à ruptura e com tampa de dupla segurança à prova de abertura por crianças.20 Tal regulamentação entrou em vigor no período em que se iniciou a coleta de dados deste estudo, não sendo possível avaliar o seu impacto. No entanto, como o preconizado em outros países, entendemos que embalagens de segurança devem ser obrigatórias não apenas em produtos corrosivos, mas também medicamentos, outros saneantes, hidrocarbonetos e pesticidas.1,2,18,19 Como exemplo trágico recente, temos o caso de um menino de 1 ano atendido no início de 2015 e seguido pelo nosso CIATOX que faleceu após ingestão acidental de um inseticida piretroide de uso legal. O óbito foi decorrente, porém, de cardiotoxicidade e lesão pulmonar causadas pela alta concentração de hidrocarbonetos alifáticos presentes na formulação (~97%), identificados na amostra sanguínea do paciente, coletada antes do óbito (cromatografia gasosa acoplada à espectrometria de massas).

Além das medidas de prevenção mencionadas anteriormente, outras precisam ser efetivadas, como ações educativas permanentes que incluam a divulgação em meios de comunicação em massa sobre a importância de armazenar saneantes e outros produtos em locais seguros e fora do alcance de crianças, os riscos relacionados ao consumo de produtos clandestinos, incluindo os fabricados no próprio domicílio, como os sabões caseiros, bem como a maior divulgação das atividades dos CIATOX brasileiros, tanto para a área da saúde como para a população em geral.1

Para concluir, em que pesem as limitações de uma análise retrospectiva, os resultados obtidos podem ser úteis tanto na prevenção como na melhora do atendimento da população pediátrica exposta a saneantes de uso domiciliar, mostrando maior morbidade na exposição aos produtos clandestinos. Em adição, os resultados corroboram a relevância que os CIATOX podem representar no atendimento à população, no suporte ao atendimento de emergências toxicológicas e em toxicovigilância.1 Assim, em 2015, o Ministério da Saúde do Brasil reconheceu os CIATOX como estabelecimentos de saúde integrantes da Rede de Atenção às Urgências e Emergências do Sistema Único de Saúde.21

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  • Financiamento O estudo não recebeu financiamento.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Jan-Mar 2017

Histórico

  • Recebido
    01 Jul 2016
  • Aceito
    28 Ago 2016
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