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DISPONIBILIDADE E ARMAZENAMENTO DE PRODUTOS PERIGOSOS EM DOMICÍLIOS DA REGIÃO METROPOLITANA DE MANAUS: ESTUDO DE BASE POPULACIONAL, 2015

RESUMO

Objetivo:

A disponibilidade de produtos perigosos em domicílios aumenta os riscos de intoxicações. Este estudo objetivou avaliar a frequência e os fatores associados à disponibilidade e armazenamento de produtos perigosos em residências da Região Metropolitana de Manaus.

Métodos:

Estudo transversal de base populacional realizado em 2015 com adultos selecionados por amostragem probabilística em três estágios. Os participantes foram entrevistados pessoalmente. A razão de prevalência (RP) da presença de produtos perigosos (presença de chumbinho [rodenticida anticolinesterase ilegal], produtos de limpeza artesanais e armazenamento inseguro desses produtos e de medicamentos) e intervalos de confiança de 95% (IC95%) foram calculados por regressão de Poisson com variância robusta, ponderada pela amostragem complexa adotada.

Resultados:

4.001 participantes foram incluídos, dos quais 53,0% (IC95% 51,5-54,6) reportaram a presença de produtos perigosos em seus domicílios, 36,3% (IC95% 34,8-37,8) apresentaram armazenamento inseguro, 16,2% (IC95% 15,1-17,4) possuíam produtos de limpeza artesanais e 8,2% (IC95% 7,4-9,1) possuíam chumbinho. Os domicílios com crianças menores de 5 anos apresentaram armazenamento mais seguro (RP=0,78; IC95% 0,71-0,86) e mais produtos artesanais (RP=1,30; IC95% 1,11-1,51). Presença de produtos artesanais foi maior em menores níveis de escolaridade (RP=2,20; IC95% 1,36-3,57) e menores classificações econômicas (RP=1,63; IC95% 1,25-2,13).

Conclusões:

Mais da metade dos domicílios da Região Metropolitana de Manaus possuía produtos perigosos; um terço os armazenava sem segurança. Produtos de limpeza artesanais e chumbinho estavam frequentemente presentes. Os domicílios com crianças apresentaram armazenamento mais seguro de produtos e fatores socioeconômicos afetaram a disponibilidade de tais produtos perigosos.

Palavras-chave:
Envenenamento; Substâncias perigosas; Saneantes; Armazenamento de saneantes; Produtos domésticos; Inquéritos epidemiológicos

ABSTRACT

Objective:

The availability of hazardous products in households increases the risks of poisoning. The present study aimed to assess the frequency and associated factors of the availability and storage of hazardous products in residences in the metropolitan region of Manaus.

Methods:

Population-based and cross-sectional study conducted in 2015 with adults selected with three-stage probabilistic sampling. Participants were interviewed face-to-face. Prevalence ratio (PR) of the presence of hazardous products (presence of chumbinho [illegal anti-cholinesterase rodenticide], artisanal cleaning products, and unsafe storage of these products and medications) and 95% confidence intervals (95%CI) were calculated with Poisson regression with robust variance, weighted by the complex sampling method adopted.

Results:

A total of 4,001 participants was included, of which 53.0% (95%CI 51.5-54.6) reported presence of hazardous products in their households, 36.3% (95%CI 34.8-37.8) had unsafe storage, 16.2% (95%CI 15.1-17.4) had artisanal cleaning products, and 8.2% (95%CI 7.4-9.1) had chumbinho. Households with children ≤5 years old had safer storage (PR=0.78; 95%CI 0.71-0.86) and more artisanal products (PR=1.30; 95%CI 1.11-1.51). Presence of artisanal products was higher in lower educational levels (PR=2.20; 95%CI 1.36-3.57) and lower economic classifications (PR=1.63; 95%CI 1.25-2.13).

Conclusions:

Over half of the households in the metropolitan region of Manaus kept hazardous products; one-third stored them unsafely. Artisanal cleaning products and chumbinho were frequently present. Households with children had safer storage of products, and socioeconomic factors affected the availability of such hazardous products.

Keywords:
Poisoning; Hazardous substances; Sanitizing products; Sanitizing product storage; Household products; Health surveys

INTRODUÇÃO

A intoxicação infantil ocorre principalmente em casa, com produtos facilmente acessíveis às crianças.11. Kendrick D, Majsak-Newman G, Benford P, Coupland C, Timblin C, Hayes M, et al. Poison prevention practices and medically attended poisoning in young children: multicentre case-control study. Inj Prev. 2017;23:93-101. https://doi.org/10.1136/injuryprev-2015-041828
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Lesões não intencionais, especialmente aquelas relacionadas a envenenamento, são uma importante causa de morbidade e mortalidade em crianças e adolescentes em todo o mundo.22. Kyu HH, Stein CE, Pinto CB, Rakovac I, Weber MW, Purnat TD, et al. Causes of death among children aged 5-14 years in the WHO European Region: a systematic analysis for the Global Burden of Disease Study 2016. Lancet Child Adolesc Health. 2018;2:321-37. https://doi.org/10.1016/s2352-4642(18)30095-6
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,33. Kassebaum N, Kyu HH, Zoeckler L, Olsen HE, Thomas K, Pinho C, et al. Child and adolescent health from 1990 to 2015: findings from the Global Burden of Diseases, Injuries, and Risk Factors 2015 Study. JAMA Pediatr. 2017;171:573-92. https://doi.org/10.1001/jamapediatrics.2017.0250
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,44. GBD 2016 Disease and Injury Incidence and Prevalence Collaborators. Global, regional, and national incidence, prevalence, and years lived with disability for 328 diseases and injuries for 195 countries, 1990-2016: a systematic analysis for the Global Burden of Disease Study 2016. Lancet. 2017;390:1211-59. https://doi.org/10.1016/S0140-6736(17)32154-2
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Cerca de um milhão de exposições não intencionais entre crianças ≤5 anos de idade foram relatadas nos Estados Unidos em 2018.55. Gummin DD, Mowry JB, Spyker DA, Brooks DE, Beuhler MC, Rivers LJ, et al. 2018 Annual Report of the American Association of Poison Control Centers’ National Poison Data System (NPDS): 36th Annual Report. Clin Toxicol (Phila). 2019;57:1220-413. https://doi.org/10.1080/15563650.2019.1677022
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Crianças nessa faixa etária são altamente vulneráveis a lesões não intencionais como resultado de sua curiosidade natural para explorar seus arredores, sua pequena estatura e sua falta de percepção do perigo.66. Faruque AV, Khan MA. Unintentional injuries in children: are our homes safe? J Coll Physicians Surg Pak. 2016;26:445-6.

A exposição a produtos de limpeza doméstica foi a segunda exposição a envenenamento mais comum em crianças de 5 anos ou menos, correspondendo a 11% dos casos relatados nos EUA em 2018.55. Gummin DD, Mowry JB, Spyker DA, Brooks DE, Beuhler MC, Rivers LJ, et al. 2018 Annual Report of the American Association of Poison Control Centers’ National Poison Data System (NPDS): 36th Annual Report. Clin Toxicol (Phila). 2019;57:1220-413. https://doi.org/10.1080/15563650.2019.1677022
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Essas substâncias de limpeza representaram 10% de todas as chamadas de envenenamento na Austrália em 2015; um terço desses casos estava relacionado a crianças ≤5 anos de idade.77. Huynh A, Cairns R, Brown JA, Lynch AM, Robinson J, Wylie C, et al. Patterns of poisoning exposure at different ages: the 2015 annual report of the Australian Poisons Information Centres. Med J Aust. 2018;209:74-9. https://doi.org/10.5694/mja17.01063
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Dois terços das intoxicações infantis administradas em um hospital romeno entre 2014 e 2016 não estavam relacionadas a medicamentos, sendo os produtos químicos domésticos os agentes mais frequentes.88. Nistor N, Frasinariu OE, Rugina A, Ciomaga IM, Jitareanu C, Streanga V. Epidemiological study on accidental poisonings in children from northeast romania. Medicine (Baltimore). 2018;97:e11469. https://doi.org/10.1097/MD.0000000000011469
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Na Malásia, de 2006 a 2015, mais de 90% das intoxicações ocorreram em casa, por ingestão, e aproximadamente metade dos casos não intencionais ocorreram em crianças.99. Tangiisuran B, Jiva M, Ariff AM, Rani NA, Misnan A, Rashid SM, et al. Evaluation of types of poisoning exposure calls managed by the Malaysia National Poison Centre (2006-2015): a retrospective review. BMJ Open. 2018;8:e024162. https://doi.org/10.1136/bmjopen-2018-024162
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Em 2013, 73% dos pacientes tratados por intoxicações em um Centro Brasileiro de Controle de Intoxicações eram crianças com idade ≤5; produtos de limpeza foram a segunda causa mais frequente de intoxicações, que ocorreram principalmente em casa.1010. Vilaça L, Volpe FM, Ladeira RM. Accidental poisoning in children and adolescents admitted to a referral toxicology department of a Brazilian Emergency hospital. Rev Paul Pediatr. 2020;38:e2018096. https://doi.org/10.1590/1984-0462/2020/38/2018096
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As intoxicações infantis apresentam maior letalidade em países de baixa e média renda, pois estão associadas à pobreza e a regulamentações de mercado mais fracas.1111. World Health Organization. World report on child injury prevention. Geneva: WHO; 2008. Produtos ilegais, com substâncias perigosas em suas formulações, também desempenham um papel na exposição a intoxicações entre crianças, levando a sintomas sistêmicos e a um alto número de internações hospitalares.1212. Campos AM, Bucaretchi F, Fernandes LC, Fernandes CB, Capitani EM, Beck AR. Toxic exposures in children involving legally and illegally commercialized household sanitizers. Rev Paul Pediatr. 2017;35:11-7. http://dx.doi.org/10.1590/1984-0462/;2017;35;1;00010
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O Brasil carece de dados epidemiológicos sobre a disponibilidade e armazenamento dessas substâncias, principalmente em regiões subdesenvolvidas. Nosso objetivo foi avaliar a frequência de disponibilidade e armazenamento inseguro de produtos perigosos e fatores associados em residências na Amazônia brasileira.

MÉTODO

Trata-se de um estudo transversal de base populacional, conduzido entre maio e agosto de 2015, que entrevistou adultos residentes na região metropolitana de Manaus. A presente análise faz parte de uma pesquisa que visou avaliar a oferta e o uso de serviços de saúde na região.1313. Silva MT, Galvao TF. Use of health services among adults living in Manaus Metropolitan Region, Brazil: population-based survey, 2015. Epidemiol Serv Saude. 2017;26:725-34. http://dx.doi.org/10.5123/s1679-49742017000400005
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Selecionamos adultos ≥18 anos com amostragem probabilística em três estágios, por conglomerados e estratificados por sexo e idade. O tamanho da amostra foi calculado em 4.000 entrevistados, considerando a estimativa da população adulta na região e uma prevalência conservadora de utilização de serviços de saúde.1313. Silva MT, Galvao TF. Use of health services among adults living in Manaus Metropolitan Region, Brazil: population-based survey, 2015. Epidemiol Serv Saude. 2017;26:725-34. http://dx.doi.org/10.5123/s1679-49742017000400005
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Entrevistadores treinados com experiência prévia em pesquisas quantitativas coletaram dados nas residências dos participantes por meio de questionários em dispositivos eletrônicos após obter o consentimento livre e esclarecido por escrito de cada participante.

A variável dependente selecionada para este estudo foi a disponibilidade de produtos perigosos nas residências com intervalo de confiança de 95% (IC 95%), que foi avaliada pela presença autorreferida de chumbinho (um rodenticida anticolinesterase ilegal) ou de produtos de limpeza doméstica produzidos artesanalmente (produtos não registrados comercialmente pela autoridade sanitária), ou o armazenamento inseguro de produtos de limpeza doméstica, pesticidas e medicamentos. A presença de cada desfecho isolado também foi investigada (presença de chumbinho, produtos artesanais de limpeza doméstica, armazenamento inseguro).

Os dados foram obtidos a partir da seguinte questão: “Para cada produto listado abaixo (produtos de limpeza doméstica: alvejante, amaciante, desinfetante, detergente, sabonete, soda cáustica; chumbinho para rato; inseticidas; e medicamentos), eles são armazenados em sua casa?” (sim ou não). Em caso de resposta positiva, foram feitas as seguintes perguntas em relação a cada produto: “É artesanal?” (sim ou não) - para determinar se o produto foi considerado ilegal - e “Ele é armazenado em um local alto ou trancado?” (sim ou não) - para determinar o armazenamento não seguro.

As variáveis independentes incluíram o município (capital [Manaus] ou cidades do interior); número de moradores em cada domicílio (1-2, 3-5, ≥6); presença de crianças ≤5 anos residentes no domicílio (sim ou não); nível de escolaridade do entrevistado (ensino superior ou mais, ensino médio completo, ensino fundamental completo, menor que o ensino fundamental); classificação econômica (A/B, C, D/E, segundo os Critérios de Classificação Econômica do Brasil,1414. Associação Brasileira de Empresas de Pesquisa. Critério de Classificação Econômica Brasil 2015. São Paulo: ABEP; 2015. em que A se refere aos mais ricos e E, aos mais pobres); e visita do Programa de Saúde da Família (programa de atenção básica do Sistema Único de Saúde [SUS] baseado no atendimento a toda a família que inclui visitas domiciliares) nos últimos 12 meses (sim ou não).

A lista de produtos foi questionada de forma aleatória a cada entrevista para evitar viés de dessensibilização dos entrevistados quando houvesse semelhança entre as opções de resposta, principalmente nas últimas questões.1515. Warner SL. Randomized response: a survey technique for eliminating evasive answer bias. J Am Stat Assoc. 1965;60:63-9. https://doi.org/10.1080/01621459.1965.10480775
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Os dados foram analisados descritivamente e ajustados para covariáveis por meio de regressão de Poisson com variância robusta. Todas as variáveis foram incluídas na análise multivariada ajustada como covariáveis. Calculamos a razão de prevalência (RP) e IC95%para a presença de produtos perigosos para cada variável independente. Significância estatística foi considerada para p <0,05. Calculamos a estatística de desvio e o teste de ajuste de Pearson para avaliar a adequação dos modelos de regressão de Poisson.1616. Long JS, Freese J. Regression Models for categorical dependent variables using stata. 3rd ed. College Station, TX: Stata Press; 2014. Todas as análises foram realizadas no Stata 14.2 (StataCorp, College Station, TX) e consideraram o desenho complexo da amostra (comando svy) para ponderar a amostra adequadamente.

O projeto foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa da Universidade Federal do Amazonas, sob o Parecer nº 974.428 de 3 de março de 2015 (Certificado de Apresentação para Apreciação Ética na Plataforma Brasil: 42203615.4.0000.5020). Todos os participantes assinaram o termo de consentimento livre e esclarecido.

RESULTADOS

Foram incluídos 4.001 participantes, dos quais 87,0% residiam na cidade de Manaus (Tabela 1). A maioria dos domicílios tinha 3-5 moradores na mesma residência, nenhuma criança ≤5 anos e não havia recebido visita do Programa Saúde da Família nos 12 meses anteriores à entrevista. A maioria dos entrevistados possuía escolaridade até o ensino médio e pertencia à classe média (classificação econômica C).

Tabela 1
Características dos participantes e presença de produtos perigosos, armazenamento inseguro, produtos artesanais e chumbinho nos domicílios (Região Metropolitana de Manaus, 2015; n = 4.001).

A disponibilidade de produtos perigosos foi autorrelatada em 53,0% (IC95%51,5-54,6) das residências, enquanto o armazenamento inseguro estava presente em 36,3% (IC95%34,8-37,8), produtos de limpeza artesanais em 16,2% (IC 95% 15,1-17,4), e chumbinho em 8,2% (IC95%7,4-9,1).

Na análise multivariada (Tabelas 2 e 3), morar em cidades do interior foi negativamente associado à disponibilidade de produtos perigosos (RP=0,68; IC95%0,61-0,76), armazenamento inseguro (RP=0,68; IC95%0,58-0,80), e produtos artesanais (RP=0,56; IC95%0,43-0,72) em comparação à capital Manaus. Famílias com 3-5 moradores tinham mais produtos perigosos (RP=1,24; IC95%1,14-1,35), armazenamento inseguro (RP=1,16; IC 95% 1,04-1,30), produtos artesanais (RP=1,37; IC95%1,11-1,69), e chumbinho (RP=1,76; IC95%1,27-2,45). Domicílios com crianças ≤5 anos apresentaram significativamente mais produtos artesanais (RP=1,30; IC95%1,11-1,51), mas armazenamento mais seguro (RP=0,78; IC95%0,71-0,86). Baixo nível de escolaridade (menor que o ensino fundamental) foi positivamente associado à presença de produtos perigosos (RP=1,22; IC95%1,03-1,44) e artesanais (RP=2,20; IC95%1,36-3,57), enquanto ter uma classificação econômica mais baixa (D/E) foi negativamente associada ao armazenamento inseguro (RP=0,75; IC95%0,65-0,86) e à presença de chumbinho (RP=0,54; IC95%0,38-0,77), e positivamente associada à presença de produtos artesanais (RP=1,63; IC95%1,25-2,13). Os domicílios não visitados pelo Programa Saúde da Família no ano anterior apresentaram menor disponibilidade de produtos perigosos (RP=0,86; IC95%0,81-0,92), armazenamento inseguro (RP=0,89; IC95%0,81-0,97) e produtos artesanais (PR=0,81; IC95%0,70-0,94). Os testes de desvio e de ajuste de Pearson para todas as regressões sugeriram que os modelos ajustados eram adequados (p> 0,05).

Tabela 2
Razões de prevalência não ajustadas e ajustadas e intervalo de confiança de 95% sobre a presença de produtos perigosos e armazenamento inseguro no domicílio (n = 4.001).
Tabela 3
Razões de prevalência não ajustadas e ajustadas e intervalo de confiança de 95% sobre a presença de produtos artesanais e chumbinho no domicílio (n = 4.001).

DISCUSSÃO

A disponibilidade de produtos perigosos e artesanais e o armazenamento inseguro foram associados ao fato de morar na capital e ter três ou mais moradores no mesmo domicílio. A presença de crianças ≤5 anos foi associada a um armazenamento mais seguro dos produtos e maior disponibilidade de produtos de limpeza artesanais. Os níveis educacionais mais baixos aumentaram a disponibilidade de produtos artesanais e perigosos, enquanto a classificação econômica mais baixa foi associada à maior presença de produtos artesanais, menor disponibilidade de chumbinho e armazenamento mais seguro dos produtos. As visitas do Programa Saúde da Família não reduziram a disponibilidade e o armazenamento inseguro de produtos perigosos.

As famílias localizadas em cidades do interior tinham menos produtos perigosos e artesanais e relataram armazenamento mais seguro de produtos de limpeza e medicamentos. Um estudo retrospectivo conduzido em um hospital polonês analisou os prontuários de 848 crianças internadas na instituição devido a exposições a intoxicações, de 2008 a 2012, e observou que a intoxicação foi mais frequente em crianças urbanas do que aquelas residentes em áreas rurais,1717. Pac-Kożuchowska E, Krawiec P, Mroczkowska-Juchkiewicz A, Mełges B, Pawłowska-Kamieniak A, Kominek K, et al. Patterns of poisoning in urban and rural children: a single-center study. Adv Clin Exp Med. 2016;25:335-40. https://doi.org/10.17219/acem/36142
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o que pode ser explicado pelo menor acesso a esses produtos pelos moradores do interior.

O maior número de indivíduos morando na mesma casa aumentou a disponibilidade de produtos perigosos e armazenamento inseguro. Isso pode ser resultado de um maior uso e acesso a produtos potencialmente perigosos. Lesões não intencionais na infância, como queimaduras, são mais prováveis de ocorrer em domicílios lotados, conforme sugerido por um estudo caso-controle conduzido no Rio de Janeiro, Brasil, entre 1991 e 1992.1818. Werneck GL, Reichenheim ME. Paediatric burns and associated risk factors in Rio de Janeiro, Brazil. Burns. 1997;23:478-83. https://doi.org/10.1016/s0305-4179(97)00046-6
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Outro estudo epidemiológico conduzido na Grécia com 1.245 crianças de até 5 anos indicou que a intoxicação infantil está correlacionada com a superlotação em casa, o que poderia levar a ambientes descontrolados e, consequentemente, a dificuldades no monitoramento do comportamento da criança.1919. Paritsis N, Pallis D, Deligeorgis D, Doxiadis S, Phylactou C, Vlachonicolis I. An epidemiological study of the factors influencing poisoning in children aged 0-5 years. Paediatr Perinat Epidemiol. 1994;8:79-89. https://doi.org/10.1111/j.1365-3016.1994.tb00437.x
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Os domicílios com crianças ≤5 anos apresentaram armazenamento mais seguro de produtos de limpeza e medicamentos, indicando um melhor cuidado por parte dos responsáveis. A maioria dos casos de intoxicações relatados em um estudo que incluiu cinco hospitais na Austrália ocorreu em um período de tempo não supervisionado de cinco minutos ou menos, e o meio mais comum de acesso foi durante o uso de agentes, representando três quartos do total de casos.2020. Ozanne-Smith J, Day L, Parsons B, Tibballs J, Dobbin M. Childhood poisoning: access and prevention. J Paediatr Child Health. 2001;37:262-5. https://doi.org/10.1046/j.1440-1754.2001.00654.x
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De 2010 a 2013, os pais de mais de 500 crianças envenenadas, com idades entre 0 e 4 anos, na Inglaterra, eram menos propensos a armazenar medicamentos fora do alcance ou trancados com segurança, e a guardar medicamentos e produtos domésticos imediatamente após o uso.11. Kendrick D, Majsak-Newman G, Benford P, Coupland C, Timblin C, Hayes M, et al. Poison prevention practices and medically attended poisoning in young children: multicentre case-control study. Inj Prev. 2017;23:93-101. https://doi.org/10.1136/injuryprev-2015-041828
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As crianças mais novas são o grupo mais vulnerável por motivos inerentes, pois são propensas a inserir objetos e líquidos na boca, têm percepções gustativas menos evoluídas e não têm consciência dos perigos envolvidos, o que pode ser minimizado pelo uso de embalagens e conteúdos de rótulos menos atrativos para crianças.2121. White ND, Kibalama W. Prevention of pediatric pharmaceutical poisonings. Am J Lifestyle Med. 2017;12:117-9. https://doi.org/10.1177/1559827617745014
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,2222. Mennella JA, Beauchamp GK. Optimizing oral medications for children. Clin Ther. 2008;30:2120-32. https://doi.org/10.1016/j.clinthera.2008.11.018
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As crianças também têm um peso corporal mais baixo. Portanto, a quantidade de substância necessária para atingir concentrações que podem causar danos é significativamente menor.

Medidas eficazes para prevenir a exposição de crianças a envenenamento dentro de suas residências incluem educação sobre prevenção de envenenamentos para os pais, fornecimento de números de contato de emergência de centros de controle de intoxicações e armazenamento seguro de produtos perigosos em armários/gavetas com fechaduras.2323. O’Donnell KA. Pediatric toxicology: household product ingestions. Pediatr Ann. 2017;46:e449-53. https://doi.org/10.3928/19382359-20171120-04
https://doi.org/https://doi.org/10.3928/...
,2424. Wynn PM, Zou K, Young B, Majsak-Newman G, Hawkins A, Kay B, et al. Prevention of childhood poisoning in the home: overview of systematic reviews and a systematic review of primary studies. Int J Inj Contr Saf Promot. 2016;23:3-28. https://doi.org/10.1080/17457300.2015.1032978
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Quando o armazenamento seguro falha, outras táticas podem ajudar a prevenir o envenenamento, como rotulagens e/ou embalagens aprimoradas, e o uso de frascos seguros, que consistem em uma tampa que é difícil de abrir, exigindo mais força do que as crianças costumam ter.2020. Ozanne-Smith J, Day L, Parsons B, Tibballs J, Dobbin M. Childhood poisoning: access and prevention. J Paediatr Child Health. 2001;37:262-5. https://doi.org/10.1046/j.1440-1754.2001.00654.x
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,2525. Talukder BB, Jovanov E, Schwebel DC, Evans WD. A new method to prevent unintentional child poisoning. Conf Proc IEEE Eng Med Biol Soc. 2018;2018:5142-5. https://doi.org/10.1109/embc.2018.8513459
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,2626. Schwebel DC, Evans WD, Hoeffler SE, Marlenga BL, Nguyen SP, Jovanov E, et al. Unintentional child poisoning risk: a review of causal factors and prevention studies. Child Health Care. 2017;46:109-30. https://doi.org/10.1080/02739615.2015.1124775
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Os participantes com níveis educacionais mais baixos foram associados a uma maior disponibilidade de produtos perigosos e artesanais. A classificação econômica mais baixa foi associada positivamente à presença de produtos artesanais, mas negativamente associada à disponibilidade de chumbinho e armazenamento inseguro. Uma análise dinamarquesa de 173.504 crianças atendidas em departamentos de emergência de 1998 a 2003 observou um maior risco de lesões domiciliares não intencionais em crianças cujas mães tinham escolaridade mais baixa e naquelas do estrato de renda mais baixa.2727. Laursen B, Nielsen JW. Influence of sociodemographic factors on the risk of unintentional childhood home injuries. Eur J Public Health. 2008;18:366-70. https://doi.org/10.1093/eurpub/ckn034
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Explicações plausíveis para essas diferenças são a consciência de práticas perigosas e o desenvolvimento de hábitos de segurança entre aqueles com maior escolaridade e a possibilidade de morar em domicílios mais seguros com riscos de exposição reduzidos em famílias de alta renda, que podem pagar por equipamentos mais seguros.2727. Laursen B, Nielsen JW. Influence of sociodemographic factors on the risk of unintentional childhood home injuries. Eur J Public Health. 2008;18:366-70. https://doi.org/10.1093/eurpub/ckn034
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Produtos de limpeza artesanal também foram mais frequentes nesses domicílios, o que pode resultar em maior toxicidade em comparação com produtos regulamentados.1212. Campos AM, Bucaretchi F, Fernandes LC, Fernandes CB, Capitani EM, Beck AR. Toxic exposures in children involving legally and illegally commercialized household sanitizers. Rev Paul Pediatr. 2017;35:11-7. http://dx.doi.org/10.1590/1984-0462/;2017;35;1;00010
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Um estudo transversal que coletou dados de um Centro de Controle de Intoxicações brasileiro entre 2013 e 2014 descobriu que as manifestações clínicas tóxicas eram significativamente mais frequentes após a exposição a produtos ilegais, muitas vezes levando a hospitalizações e cirurgias.1212. Campos AM, Bucaretchi F, Fernandes LC, Fernandes CB, Capitani EM, Beck AR. Toxic exposures in children involving legally and illegally commercialized household sanitizers. Rev Paul Pediatr. 2017;35:11-7. http://dx.doi.org/10.1590/1984-0462/;2017;35;1;00010
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As visitas do Programa Saúde da Família não reduziram a disponibilidade e o armazenamento inseguro de produtos perigosos; em vez disso, menor presença de produtos perigosos, armazenamento inseguro e produtos artesanais foram observados em domicílios não visitados no ano anterior. Na maioria dos contextos brasileiros, os agentes comunitários de saúde que visitam as residências têm diversas tarefas e são frequentemente mal pagos, sobrecarregados e não reconhecidos.2828. Guanaes-Lorenzi C, Pinheiro RL. Is the value of Community Healthcare Agents in Brazil’s family health strategy receiving full recognition? Cienc Saude Colet. 2016;21:2537-46. https://doi.org/10.1590/1413-81232015218.19572015
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Isso pode ter impacto no nível de informação e assistência prestada por esses profissionais. Um estudo qualitativo conduzido em 2016 com 50 profissionais de saúde do Programa Saúde da Família evidenciou que as práticas educativas relacionadas às intoxicações infantis promovidas por esses agentes estavam voltadas principalmente aos conceitos de primeiros socorros, com pouca discussão sobre as reais estratégias de prevenção de acidentes por intoxicações.2929. Sales CC, Oliveira ML. Health education practices of poisoning prevention for child in Family Health Strategy. Esc Anna Nery. 2019;23:e20180140. https://doi.org/10.1590/2177-9465-ean-2018-0140
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Se adotada pelos agentes do Programa de Saúde da Família, a educação da prevenção de envenenamentos dirigida aos pais - incluindo o aumento do conhecimento sobre substâncias tóxicas e comportamentos de prevenção de envenenamentos, como armazenamento seguro de medicamentos e produtos de limpeza - pode reduzir as taxas de envenenamento infantil.2424. Wynn PM, Zou K, Young B, Majsak-Newman G, Hawkins A, Kay B, et al. Prevention of childhood poisoning in the home: overview of systematic reviews and a systematic review of primary studies. Int J Inj Contr Saf Promot. 2016;23:3-28. https://doi.org/10.1080/17457300.2015.1032978
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A prevenção com educação melhora as práticas de prevenção de intoxicações e incentiva a necessidade de medidas legislativas, como as relacionadas aos frascos para crianças.2424. Wynn PM, Zou K, Young B, Majsak-Newman G, Hawkins A, Kay B, et al. Prevention of childhood poisoning in the home: overview of systematic reviews and a systematic review of primary studies. Int J Inj Contr Saf Promot. 2016;23:3-28. https://doi.org/10.1080/17457300.2015.1032978
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O potencial do Programa Saúde da Família, porém, pode ser comprometido em um futuro próximo, pois mudanças na Política Nacional de Atenção Básica permitiram uma redução no tamanho e nos componentes do Programa Saúde da Família.3030. Morosini MV, Fonseca AF. Reviewing the Brazilian National Primary Healthcare Policy at such a time? Cad Saude Publica. 2017;33:e00206316. https://doi.org/10.1590/0102-311x00206316
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As entrevistas foram conduzidas com um indivíduo de cada domicílio, sem confirmação objetiva das respostas, o que limita a validade dos resultados. Como as opções de produtos disponíveis em casa eram repetitivas, pode ter ocorrido dessensibilização dos entrevistados. Essas ressalvas podem impactar na avaliação e representar viés de informação no estudo. Considerando que a pesquisa investigou muitos desfechos em apenas uma entrevista, o estudo não incluiu medidas de prevenção de intoxicações ou acompanhamento com os participantes. Não avaliamos a incidência de intoxicação dos produtos investigados e, consequentemente, não podemos fornecer implicações da disponibilidade de produtos perigosos. Os cálculos do tamanho da amostra foram baseados em estimativas de uso de serviços de saúde, e a avaliação dos desfechos da presente análise não foi planejada.

Em conclusão, mais da metade dos domicílios da região metropolitana de Manaus mantinham produtos perigosos, e esses produtos eram armazenados de forma insegura em um terço dos domicílios. Produtos de limpeza artesanais e chumbinho estavam frequentemente disponíveis nas residências. Fatores socioeconômicos desfavoráveis aumentaram a disponibilidade de produtos perigosos.

REFERENCES

  • Financiamento

    O presente trabalho teve o apoio do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), através das bolsas nº 404990/2013-4 e 448093/2014-6.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    05 Fev 2021
  • Data do Fascículo
    2021

Histórico

  • Recebido
    06 Maio 2020
  • Aceito
    09 Ago 2020
  • Publicado
    03 Fev 2021
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