Acessibilidade / Reportar erro

Características clínicas de pacientes com anemia de Fanconi

Resumos

OBJETIVO: Verificar as características clínicas de pacientes com anemia de Fanconi (AF) diagnosticados em um Serviço de Genética Clínica. MÉTODOS: O estudo incluiu todos os pacientes atendidos no Serviço de Genética Clínica da Universidade Federal de Ciências da Saúde de Porto Alegre e Complexo Hospitalar Santa Casa de Porto Alegre, entre 1975 e 2008, com suspeita clínica de AF submetidos ao estudo de quebras cromossômicas com o uso de diepoxi-butano (DEB) a partir do sangue periférico. Realizou-se uma análise retrospectiva das características clínicas dos pacientes, a partir de um levantamento sistemático dos seus prontuários médicos. RESULTADOS: A amostra foi composta de 17 pacientes, sendo que em sete o diagnóstico de AF foi confirmado. Os pacientes com AF caracterizaram-se por um fenótipo amplo, oscilando desde um quadro de pancitopenia sem dismorfias até a presença de múltiplas malformações sem alterações hematológicas. Certos achados, como face triangular, orelhas em abano e manchas café com leite foram frequentes e encontrados apenas nos indivíduos com AF. História de equimoses, hematomas, petéquias, infecções e linfadenopatias foi comum entre os indivíduos desse grupo. Por outro lado, alterações neurológicas foram observadas apenas em pacientes sem AF. Consanguinidade foi verificada em apenas um paciente, que apresentava AF. CONCLUSÕES: Apesar das limitações do estudo, os achados ilustram a grande variabilidade fenotípica observada na AF, o que torna seu diagnóstico clínico um desafio. No entanto, alguns achados específicos podem servir de pistas para sua detecção. A identificação precoce desses indivíduos é fundamental para o seu manejo adequado.

anemia de Fanconi; pancitopenia; manchas café-com-leite; esôfago; deformidades congênitas das extremidades superiores


OBJECTIVE: To investigate the clinical characteristics of Fanconi anemia (FA) patients diagnosed in a Clinical Genetics Service. METHODS: The study included all patients assisted in an university genetics service in Southern Brazil, between 1975 and 2008, with clinical suspicious of FA and submitted to the study of chromosomal breakage with diepoxybutane (DEB) from peripheral blood. A retrospective analysis of the clinical characteristics of the patients was carried out by a systematic survey of their medical records. RESULTS: 17 patients were studied and seven had a confirmed diagnosis of FA. Patients with FA were characterized by a broad phenotype, ranging from pancytopenia without dysmorphisms to multiple malformations and absence of hematological alterations. Certain findings, such as triangular face, prominent ears and café-au-lait spots were common and found only among individuals with FA. History of bruises, hematomas, petechiae, infections and lymphadenopathies was also common among individuals of this group. However, neurological alterations were observed only in patients without FA. Consanguinity was verified in one patient who presented FA. CONCLUSIONS: Despite the limitations of this study, thefindings show the great phenotypical variability observed in patients with FA, which makes the diagnosis a clinical challenge. Nevertheless, some specific findings can serve as clues for FA detection. The early identification of these individuals is essential for their proper clinical management.

Fanconi anemia; pancytopenia; café-au-lait spots; esophagus; upper extremity deformities; congenital


ARTIGO ORIGINAL

Características clínicas de pacientes com anemia de Fanconi

Paulo Ricardo G. ZenI; Felipe Nora de MoraesII; Rafael Fabiano M. RosaIII; Carla GraziadioIV; Giorgio Adriano PaskulinV

Instituição: Universidade Federal de Ciências da Saúde de Porto Alegre (UFCSPA) e Complexo Hospitalar Santa Casa de Porto Alegre (CHSCPA), Porto Alegre, RS, Brasil

IDoutor pelo Programa de Pós-Graduação em Patologia da UFCSPA; Professor da Disciplina de Genética Clínica e do Programa de Pós-Graduação em Patologia da UFCSPA, Porto Alegre, RS, Brasil

IIAcadêmico do Curso de Medicina da UFCSPA, Porto Alegre, RS, Brasil

IIIDoutorando pelo Programa de Pós-Graduação em Patologia da UFCSPA; Geneticista Clínico do Hospital Materno Infantil Presidente Vargas (HMIPV), Porto Alegre, RS, Brasil

IVDoutoranda pelo Programa de Pós-Graduação em Patologia da UFCSPA; Professora de Genética Clínica da UFCSPA, Porto Alegre, RS, Brasil

VDoutor pelo Programa de Pós-Graduação em Genética e Biologia Molecular da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS); Professor de Genética Clínica e de Pós-Graduação em Patologia da UFCSPA, Porto Alegre, RS, Brasil

Endereço para correspondência Endereço para correspondência: Giorgio Adriano Paskulin Rua Sarmento Leite, 245, sala 403 - Centro CEP 90050-170 - Porto Alegre/RS E-mail: paskulin@ufcspa.edu.br

RESUMO

OBJETIVO: Verificar as características clínicas de pacientes com anemia de Fanconi (AF) diagnosticados em um Serviço de Genética Clínica.

MÉTODOS: O estudo incluiu todos os pacientes atendidos no Serviço de Genética Clínica da Universidade Federal de Ciências da Saúde de Porto Alegre e Complexo Hospitalar Santa Casa de Porto Alegre, entre 1975 e 2008, com suspeita clínica de AF submetidos ao estudo de quebras cromossômicas com o uso de diepoxi-butano (DEB) a partir do sangue periférico. Realizou-se uma análise retrospectiva das características clínicas dos pacientes, a partir de um levantamento sistemático dos seus prontuários médicos.

RESULTADOS: A amostra foi composta de 17 pacientes, sendo que em sete o diagnóstico de AF foi confirmado. Os pacientes com AF caracterizaram-se por um fenótipo amplo, oscilando desde um quadro de pancitopenia sem dismorfias até a presença de múltiplas malformações sem alterações hematológicas. Certos achados, como face triangular, orelhas em abano e manchas café com leite foram frequentes e encontrados apenas nos indivíduos com AF. História de equimoses, hematomas, petéquias, infecções e linfadenopatias foi comum entre os indivíduos desse grupo. Por outro lado, alterações neurológicas foram observadas apenas em pacientes sem AF. Consanguinidade foi verificada em apenas um paciente, que apresentava AF.

CONCLUSÕES: Apesar das limitações do estudo, os achados ilustram a grande variabilidade fenotípica observada na AF, o que torna seu diagnóstico clínico um desafio. No entanto, alguns achados específicos podem servir de pistas para sua detecção. A identificação precoce desses indivíduos é fundamental para o seu manejo adequado.

Palavras-chave: anemia de Fanconi; pancitopenia; manchas café-com-leite; esôfago; deformidades congênitas das extremidades superiores.

Introdução

A anemia de Fanconi (AF - OMIM 227650)(1), também conhecida como síndrome da pancitopenia de Fanconi, é uma doença genética rara e heterogênea, encontrada em todos os grupos étnicos e observada em cerca de 1 em cada 360 mil nascimentos(2). Foi descrita inicialmente em 1927, pelo pediatra suíço Guido Fanconi. Este a caracterizou como uma forma rara de anemia aplásica familiar, que afetava três irmãos com baixa estatura, hipogonadismo e manifestações cutâneas(2-6).

Atualmente, é considerada a causa hereditária mais comum de falência da medula óssea. Os pacientes possuem risco aumentado para tumores tanto hematológicos como para sólidos (aqui se inclui a leucemia, carcinomas e tumores hepáticos)(7,8).

São muitos os genes responsáveis pela doença, que pode ser de herança ligada ao X e, principalmente, autossômica recessiva; contudo, todos possuem um ponto em comum: agem controlando mecanismos de reparo do DNA(7,9).

Em virtude da importância da identificação desses pacientes e da escassez de estudos em nosso país enfatizando principalmente os seus aspectos clínicos(10-15), o objetivo deste trabalho foi caracterizar o quadro clínico de pacientes com diagnóstico de AF atendidos em um serviço de Genética Clínica.

Método

O estudo incluiu todos os pacientes atendidos no Serviço de Genética Clínica da Universidade Federal de Ciências da Saúde de Porto Alegre (UFCSPA) e no Complexo Hospitalar Santa Casa de Porto Alegre (CHSCPA), entre 1975 e 2008, que apresentaram suspeita clínica de AF.

Para inclusão no trabalho, era necessária a realização do estudo de quebras cromossômicas com o uso de diepoxi-butano (DEB) a partir de amostra de sangue periférico, método utilizado para o diagnóstico da síndrome. O método se baseou na técnica descrita por Auerbach et al(16), em 1981, na qual culturas de linfócitos estimulados com fito-hemaglutinina dos pacientes e de indivíduos controles (pareados por sexo e idade) foram expostas ao DEB. Na análise dos resultados, considerou-se a média de quebras cromossômicas verificadas por metáfase analisada, tanto nas culturas basais (sem DEB) como naquelas com esse agente alquilante, além do número de células apresentando figuras radiais. Todos os pacientes foram também submetidos ao cariótipo por bandas GTG segundo a técnica modificada de Yunis(17). Os resultados foram todos reavaliados por meio do International System for Cytogenetic Nomenclature (ISCN), publicado em 2009(18).

Realizou-se uma análise retrospectiva das características clínicas dos pacientes, a partir de um levantamento sistemático dos seus prontuários médicos e preenchimento de um protocolo clínico padrão. Pacientes que apresentavam prontuários com a descrição clínica incompleta foram excluídos. Este estudo foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa da UFCSPA.

Resultados

Na presente revisão, constatou-se que 20 pacientes haviam sido submetidos ao estudo de quebras cromossômicas para AF. Contudo, três deles possuíam prontuários médicos incompletos e foram excluídos. Assim, a amostra final foi composta de 17 pacientes, tendo sete o diagnóstico de AF confirmado pelo teste com DEB.

Dos pacientes confirmados para AF, três eram do sexo masculino. Suas idades na primeira avaliação variaram de duas semanas a seis anos e seis meses (mediana de cinco anos). No grupo sem diagnóstico de AF, cinco eram do sexo masculino e cinco do feminino. Suas idades oscilaram de três dias a nove anos (mediana de um ano e três meses).

Quanto aos estudos citogenéticos de quebras cromossômicas, o número de metáfases analisadas por cultura foi usualmente de 50. A média do número de quebras cromossômicas observadas por metáfase nas culturas basais (sem DEB) foi de 0,22 (oscilando de 0,1 a 0,36) para aqueles sem a doença e de 0,52 (variando de 0,41 a 0,64) nos pacientes com diagnóstico de AF. Em relação às culturas com DEB, as médias foram, respectivamente, de 0,3 (variando de 0,15 a 0,52) e de 4,6 (variando de 3,9 a 5,2). A média do número de quebras por metáfases nos indivíduos com diagnóstico de AF foi 15,3 vezes superior à média daqueles sem o mesmo nas culturas com DEB. Figuras radiais foram observadas apenas nos pacientes com diagnóstico de AF (média de 15 figuras por caso - variando de 10 a 21) (Figura 1). Em relação ao cariótipo por bandas GTG, foram observados dois pacientes com anormalidades cromossômicas no grupo sem AF: um caso de trissomia do cromossomo 9 em mosaico e outro de translocação recíproca, aparentemente balanceada, entre os cromossomos 6 e 9.


As características clínicas de todos os pacientes encontram-se descritas nas Tabelas 1 e 2. A consaguinidade foi identificada em apenas um paciente (14%), que apresentava diagnóstico de AF (Figura 2). História familiar de achados clínicos observados na síndrome foi detectada principalmente entre indivíduos com AF (57%). Tais achados consistiram de manchas café com leite (14%), anormalidade de mão (14%), anemia (14%) e malformação cardíaca (14%). Os familiares com esses achados foram, respectivamente, um irmão em 50% dos casos, a mãe em 25% e uma tia em 25%. Somente um paciente sem a síndrome (10%) possuía história familiar de cardiopatia congênita (um primo do paciente apresentava essa mesma malformação).


Quanto ao fenótipo dos pacientes com AF, um deles (14%) não apresentava dismorfias, somente alteração hematológica. Face triangular (29%), orelhas em abano (29%) e manchas café com leite (43%) foram achados relativamente frequentes, sendo encontrados apenas entre os indivíduos com a síndrome. Alterações radiais estavam presentes em cinco pacientes (71%) e consistiram de polegar baixo implantado (43%), hipoplasia de polegar (14%), agenesia de polegar (14%) e polegar longo (14%). Usualmente, o envolvimento foi bilateral e assimétrico (Tabelas 1).

Achados observados apenas entre os indivíduos sem AF consistiram principalmente de alterações neurológicas, como atraso do desenvolvimento neuropsicomotor (60%), anormalidades do sistema nervoso central (40%), hipotonia (30%) e distúrbio da deglutição (30%). Outras alterações verificadas somente nesse grupo incluíram a cardiopatia congênita (30%) e a escoliose (30%). Anormalidades radiais foram observadas em seis pacientes sem AF (60%) e consistiram de hipoplasia de polegar (30%), polidactilia pré-axial (30%), hipoplasia radial (10%), agenesia radial (10%), polegar baixo implantado (10%), polegar trifalangeano (10%), polegar séssil (10%) e agenesia de polegar (10%) (Tabelas 1 e 2).

Alterações hematológicas, por sua vez, foram encontradas de forma similar entre ambos os grupos (Tabela 2). Em relação às intercorrências clínicas, estas foram muito mais frequentes nos indivíduos com AF e consistiram de história de equimoses, hematomas e petéquias (42%); infecções (42%); linfadenopatias (28%); hepatoesplenomegalia (14%) e diarreia (14%). Intercorrências observadas no grupo sem diagnóstico de AF incluíram história de sangramento (10%) e hepatoesplenomegalia (10%). Apenas um paciente com AF possuía descrição de óbito devido a um quadro infeccioso.

Discussão

Quando o pediatra Guido Fanconi descreveu primeiramente a AF, não imaginava que a mesma fosse futuramente revelar um importante mecanismo de defesa celular contra a instabilidade genética(19). Apesar de se tratar de uma doença gênica e não cromossômica, o diagnóstico da AF é usualmente confirmado por um exame de cariótipo específico. Utiliza-se uma técnica diferenciada com substâncias clastogênicas como o DEB ou a mitomicina C (MMC), que promovem dano ao DNA, quebra e rearranjo dos cromossomos e morte celular. Isso é de grande importância, pois, apesar de indivíduos com a síndrome apresentarem uma predisposição espontânea a quebras cromossômicas, em alguns casos as culturas basais (sem esses agentes) podem mostrar resultados normais (considerados falsos-negativos). O teste com DEB é considerado o padrão-ouro para o diagnóstico da AF (este é mais sensível que a MMC). Os resultados obtidos são comparados aos de um grupo controle normal, especialmente pareado para o sexo e a idade. Analisam-se microscopicamente um mínimo de 25 metáfases por cultivo. Os cromossomos de pacientes com AF tendem a se romper espontaneamente e quebram mais facilmente na presença das substâncias utilizadas, inclusive se reagrupando, como que formando figuras radiais ou letras (Figura 1). Essas figuras são consideradas trirradiais quando há duas quebras e tetrarradiais quando há três. No estudo, conta-se o número, tipo de quebras cromossômicas detectadas em cada célula e a distribuição destas(2,10,20-23). O grau de sensibilidade ao DEB ou à MMC não se correlaciona nem com o fenótipo, nem com a gravidade da doença. Além disso, é importante estar ciente de que indivíduos heterozigotos para a AF não podem ser detectados por meio desse teste com DEB/MMC(9). Outro aspecto interessante é quanto aos locais onde ocorrem as quebras cromossômicas. Alguns estudos, como o de Schoder et al(24), têm mostrado que as quebras possuem uma importante relação com os sítios frágeis, que são regiões cromossômicas que podem apresentar uma alta incidência de falhas e quebras em cromossomos metafásicos de indivíduos hígidos.

Entretanto, questiona-se a efetividade do teste, uma vez que o exame negativo é encontrado em alguns casos diagnosticados pela análise molecular(10). Além disso, pacientes com mosaicismo para AF (que possuem uma constituição genética com mais de um tipo de linhagem celular, usualmente uma normal e outra alterada para a síndrome) podem apresentar um teste falso-negativo. Desta forma, em casos nos quais a análise do sangue foi normal e persiste a dúvida diagnóstica, é importante avaliar outro tecido com indução de quebras, usualmente fibroblastos(2,9,25). Assim, não é possível excluir a hipótese de que algum paciente com resultado negativo para a AF da presente amostra possa ainda apresentar a síndrome.

Há pelo menos 13 genes envolvidos na apresentação do fenótipo da AF, que correspondem a grupos de complementação que vão de A até N (FANCA-N). Todos os genes localizam-se em regiões bastante distintas, envolvendo tanto cromossomos autossômicos como sexuais (no caso, o cromossomo X)(9,19,25,26). Além disso, várias mutações diferentes têm sido identificadas em cada um desses genes, o que torna a doença ainda mais heterogênea. Os genes BRCA1 (OMIM 113705)(1) e 2 (OMIM 600185)(1) também se associam à rota de reparo do DNA alterada na AF e, recentemente, se descobriu que os genes BRCA2 e FANCD1 são, na verdade, o mesmo(4,5,7,11). Dos grupos de complemento, o mais frequentemente descrito é o A (FANCA), relatado em 57 a 65% dos casos(11). Apesar dos grandes avanços ocorridos nas últimas décadas quanto aos mecanismos moleculares envolvidos na AF, ainda não existe uma correlação genótipo-fenótipo bem definida. Variações fenotípicas são observadas mesmo em indivíduos de uma mesma família e em gêmeos monozigóticos(26,27).

Assim, a grande variabilidade clínica da AF torna o seu diagnóstico clínico bastante difícil(27). Tal observação pôde ser verificada entre os indivíduos do presente estudo, cujo fenótipo oscilou desde pancitopenia isolada até a presença de múltiplas malformações e ausência de alterações hematológicas. Malformações congênitas maiores são relatadas em aproximadamente dois terços dos pacientes e podem afetar praticamente qualquer sistema ou órgão. Por outro lado, um terço não apresenta as mesmas anormalidades(27). Nestes últimos, o diagnóstico é usualmente realizado apenas após o início dos sintomas de disfunção hematológica, que normalmente começam por volta dos sete anos, podendo variar do nascimento até 31 anos(2,27).

Apesar disso, existem alguns sinais clínicos que podem auxiliar em sua detecção. Por exemplo, achados exclusivamente verificados entre os pacientes com AF incluíram algumas alterações craniofaciais (como face triangular e orelhas em abano) e manchas café com leite. As primeiras têm sido descritas na literatura em 25% dos casos de AF. Outras anormalidades documentadas incluem pregas epicânticas, estrabismo, hipertelorismo, estenose de conduto auditivo e microtia, achados também evidenciados nos pacientes aqui analisados(2,27). Apesar de as alterações craniofaciais serem sutis, alguns autores referem que elas poderiam permitir o reconhecimento clínico dos indivíduos com AF(25). Anormalidades de pele, por sua vez, são descritas na literatura em 45-60% dos casos e caracterizam-se principalmente, como observado em nossa amostra, por manchas café com leite e hiperpigmentação localizada ou, usualmente, generalizada(2,23).

Anormalidades radiais, um achado considerado clássico da síndrome, são descritas em cerca de 50% das crianças e consistem principalmente de ausência ou hipoplasia do polegar, polegares bífidos ou supranumerários e ausência ou hipoplasia do rádio(2,6,25). Estas ocorreram em 71% dos pacientes do presente estudo. As alterações radiais podem ser uni ou bilaterais e mesmo aqueles com acometimento bilateral usualmente apresentam certa assimetria, com seus membros tendo diferentes anomalias(27). As anomalias radiais, juntamente com as hematológicas, foram frequentes em ambos os grupos do estudo (com e sem AF), sendo que esse achado pode ter relação com o fato de elas representarem os principais motivos que levam à suspeição da AF(3,5,6,11).

Já as alterações neurológicas, como hipotonia, atraso de desenvolvimento neuropsicomotor, distúrbios da deglutição e anormalidades do sistema nervoso central, são incomuns na AF(2) e foram observadas somente em indivíduos sem esse diagnóstico. Cerca de 5% dos pacientes com AF podem apresentar ainda malformações gastrintestinais de gravidade distinta, que podem necessitar de tratamento cirúrgico precoce(2,25). Anormalidades de esôfago, como observado em um paciente de nossa amostra, são incomuns(27). Além disso, a AF é raramente verificada em indivíduos com atresia de esôfago. Contudo, quando presente, essa malformação pode, juntamente com outros achados, mimetizar o fenótipo de associação VATER/VACTERL (acrônimo para anomalias vertebrais, imperfuração anal, cardiopatia congênita, atresia de esôfago com fístula traqueoesofágica, malformação renal e anomalia de membros) (OMIM 192350)(1), um importante diagnóstico diferencial da AF(28).

Pacientes com AF usualmente apresentam também alterações nos parâmetros de crescimento, com altura, peso e/ou perímetro cefálico abaixo do percentil cinco(27). Na presente amostra, observaram-se pacientes com baixa estatura (n=1) e microcefalia (n=2). Outras alterações menos frequentes, como anormalidades renais e cardíacas(2), não foram notadas nos pacientes com AF de nosso estudo.

História de consanguindade entre os pais foi verificada somente em um indivíduo com AF (Figura 2), sendo que esta se relaciona com a etiologia da síndrome, pois, como visto inicialmente, a maior parte dos casos segrega de forma autossômica recessiva. Em relação à história familiar, quatro pacientes com AF possuíam familiares com alterações pertencentes ao espectro da síndrome, sendo que estas foram observadas em apenas um indivíduo do outro grupo. Não foi possível precisar a relevância desse achado; contudo, este poderia indicar a presença de mais indivíduos afetados na mesma família. Porém, para confirmar seriam necessários mais dados clínicos e a aplicação de testes diagnósticos adicionais. Na literatura, existe atualmente um consenso de que, devido à falta de concordância do fenótipo da AF entre irmãos afetados, todos os irmãos de um paciente com AF deveriam ser investigados para a síndrome(27).

Outro aspecto importante da AF é a baixa expectativa de vida dos afetados - em média, de 20 anos - sendo a probabilidade de sobrevida acima dos 50 anos quase nula(3,6). Isso se deve principalmente à anemia aplásica e à maior probabilidade de esses pacientes desenvolverem leucemia mieloide aguda, síndrome mielodisplásica ou tumores sólidos (os últimos, especialmente a partir dos 20 anos de idade)(2-6,21). História de equimoses, hematomas, petéquias, linfadenopatias e infecções foram acontecimentos frequentes entre nossos pacientes com AF. Com os avanços ocorridos no tratamento das afecções hematológicas de indivíduos com a síndrome, as infecções surgiram como a principal complicação clínica, mesmo com o desenvolvimento de novos antibióticos(25). Muitas crianças com AF acabam falecendo devido a infecções bacterianas e fúngicas, sendo que as infecções neutropênicas são geralmente pouco toleradas e tipicamente não curadas apenas com os antibióticos(25), como aconteceu com um dos pacientes da presente amostra. Nenhum caso de neoplasia hematológica ou sólida foi identificado em nosso estudo.

A frequência de heterozigotos é de um em cada 300 pessoas na Europa e nos Estados Unidos. Entretanto, há grupos étnicos em que esse índice é maior, como nos casos das comunidades de judeus Ashkenazi e de africanos descendentes de holandeses, chegando a um em cada 100 indivíduos(2,4,5,27). Atualmente, sabe-se que o risco de neoplasias observado na AF pode se estender mesmo a indivíduos portadores (heterozigotos), como os pais dos pacientes com a síndrome. No presente estudo, não se evidenciou nenhum caso de familiar que tenha apresentado neoplasia.

O diagnóstico diferencial da AF deve incluir a associação VATER/VACTERL, além da síndrome de Holt-Oram (OMIM 142900)(1) e a síndrome de trombocitopenia e agenesia radial (TAR) (OMIM 274000)(1) devido, principalmente, às anormalidades radiais. Outras condições a serem consideradas incluem a anemia de Diamond-Blackfan (OMIM 105650)(1) (especialmente pelo quadro hematológico), a neurofibromatose tipo 1 (OMIM 162200)(1) (pelas manchas café com leite) e outras síndromes de instabilidade cromossômica, como a síndrome de Bloom (OMIM 210900)(1) e a síndrome de ataxia-telangiectasia (OMIM 208900)(1). Entretanto, nenhuma dessas síndromes de instabilidade apresenta alteração no cariótipo, quando este é processado em presença de DEB/MMC(2,4,5,27).

A identificação precoce de indivíduos com a AF é fundamental, pois permite um controle adequado da doença hematológica apresentada pelos pacientes, a realização de tratamentos cirúrgicos para corrigir malformações congênitas maiores antes da instauração da trombocitopenia, o aconselhamento genético para a família quanto a riscos em futuras gestações e possibilidade de diagnóstico pré-natal e a identificação pré-sintomática de irmãos afetados ou de gestações cujos fetos sejam possíveis doadores de células-tronco hematopoéticas a um irmão afetado(2,27). Além disso, o diagnóstico permite o adequado tratamento dos pacientes, pois, por exemplo, indivíduos com AF podem experimentar maior toxicidade se receberem uma dose padrão de regimes quimioterápicos pré-transplante de células tronco hematopoiéticas(29,30). Uma vez que o início da pancitopenia é mais tardio, o diagnóstico de AF deveria ser considerado em todas as crianças com achados dismórficos característicos, mesmo na ausência de alterações hematológicas(6).

Apesar do pequeno tamanho amostral - que pode ser uma consequência do não encaminhamento dos pacientes com AF para investigação e aconselhamento genético - e da utilização somente da técnica de cultivo de linfócitos em presença de DEB, sem a realização de testes complementares naqueles pacientes que não apresentaram aumento no número de quebras cromossômicas, nossos achados ilustram a grande variabilidade fenotípica observada na AF, o que torna o seu diagnóstico clínico um desafio. No entanto, achados específicos, como alterações radiais e manchas café com leite, devem nos lembrar da possibilidade deste diagnóstico. A AF é uma doença genética de predisposição ao câncer que necessita de um acompanhamento multidisciplinar, para que ocorra o adequado manejo clínico do paciente e de sua família.

Conflito de interesse: nada a declarar

Recebido em: 1/10/2010

Aprovado em: 20/1/2011

  • 1
    Online Mendelian Inheritance in Man, OMIM (TM) [homepage on the Internet]. Baltimore e Bethesda: BeMcKusick-Nathans Institute for Genetic Medicine, Johns Hopkins University and National Center for Biotechnology Information, National Library of Medicine [cited 2010 Sept 5]. Available from: http://www.ncbi.nlm.nih.gov/omim/
  • 2. Sagaseta IM, Molina J, Lezáun I, Valiente A, Durán G. Anemia de Fanconi. Consideraciones actuales. Anales Sis San Navarra 2003;26:63-78.
  • 3. Joenje H, Patel KJ. The emerging genetic and molecular basis of Fanconi anaemia. Nat Rev Genet 2001;2:446-57.
  • 4. Tischkowitz MD, Hodgson SV. Fanconi anaemia. J Med Genet 2003;40:1-10.
  • 5. Chen H. Atlas of genetic diagnosis and counseling. New Jersey: Humana Press; 2006.
  • 6. Jones K. Smith's recognizable patterns of human malformation. 6th ed. Philadelphia: Elsevier; 2006.
  • 7. Kennedy RD, D'Andrea AD. DNA repair pathways in clinical practice: lessons from pediatric cancer susceptibility syndromes. J Clin Oncol 2006;24:3799-808.
  • 8. Tootian S, Mahjoubi F, Rahnama M, Hormozian F, Mortezapour F, Razazian F et al Cytogenetic investigation in Iranian patients suspected with Fanconi anemia. J Pediatr Hematol Oncol 2006;28:834-6.
  • 9. Taniguchi T. Fanconi Anemia. In: Pagon RA, Bird TC, Dolan CR, Stephens K, editors. GeneReviews. Seattle (WA): University of Washington; 1993.
  • 10. Lima CS, Lourenço GJ, Rodriguez DE, Zocca M, Bertuzzo CS. Cytogenetic and molecular diagnosis of Fanconi anemia. Rev Bras Hematol Hemoter 2003;25:191-2.
  • 11. Magdalena N, Pilonetto DV, Bitencourt MA, Pereira NF, Ribeiro RC, Jeng M et al Frequency of Fanconi anemia in Brazil and efficacy of screening for the FANCA 3788-3790del mutation. Braz J Med Biol Res 2005;38:669-73.
  • 12. Pasquini R, Neto JZ, Medeiros CR, Bitencourt MA, Bonfim CM, Moreira VA et al Carcinoma de células escamosas em língua pós-transplante de medula óssea por Anemia de Fanconi. Rev Bras Hematol Hemoter 2003;25:239-46.
  • 13. Rodriguez DE, Lima CS, Lourenço GJ, Figueiredo ME, Carneiro JD, Tone LG et al Molecular analysis of the most prevalent mutations of the FANCA and FANCC genes in Brazilian patients with Fanconi anaemia. Genet Mol Biol 2005;28:205-9.
  • 14. Horta HL, Guimarães FF, Rocha LO, Guimarães RE, Valadares ER. Carcinoma de células escamosas da hipofaringe em mulher jovem com anemia de Fanconi. Rev Bras Otorrinolaringol 2006;72:845-8.
  • 15. Medeiros CR, Bitencourt MA, Zanis-Neto J, Maluf EC, Carvalho DS, Bonfim CS et al Allogeneic hematopoietic stem cell transplantation from an alternative stem cell source in Fanconi anemia patients: analysis of 47 patients from a single institution. Braz J Med Biol Res 2006;39:1297-304.
  • 16. Auerbach AD. Fanconi anemia and its diagnosis. Mutat Res 2009;668:4-10.
  • 17. Yunis JJ. New chromosome techniques in the study of human neoplasia. Hum Pathol. 1981;12:540-9.
  • 18. Shaffer LG, Slovak ML, Campbell LJ. ISCN: An International System for Human Cytogenetic Nomenclature. Basel: S. Karger; 2009.
  • 19. de Winter JP, Joenje H. The genetic and molecular basis of Fanconi anemia. Mutat Res 2009;668:11-9.
  • 20. Brown MG, Lawce HJ. Peripheral blood cytogenetic methods. In: Barch MJ, Knutsen T, Spurbeck J, editors. The AGT cytogenetics laboratory manual. 3rd ed. Philadelphia: Lippincott-Raven; 1997. p. 163-7.
  • 21. Zhang XX. Chromossome instability. In: Gersen SL, Keagle MB. The principles of clinical cytogenetics. 2nd ed. New Jersey: Humana Press; 2005. p. 350-1.
  • 22. Ottoni FA, Froes GC, Pimenta MR, Vale EC. Do you know this syndrome? An Bras Dermatol 2006;81:487-9.
  • 23. Korgaonkar S, Ghosh K, Vundinti BR. Clinical, genetic and cytogenetic study of Fanconi anemia in an Indian population. Hematology 2010;15:58-62.
  • 24. Schoder C, Liehr T, Velleuer E, Wilhelm K, Blaurock N, Weise A et al New aspects on chromosomal instability: chromosomal break-points in Fanconi anemia patients co-localize on the molecular level with fragile sites. Int J Oncol 2010;36:307-12.
  • 25. Green AM, Kupfer GM. Fanconi anemia. Hematol Oncol Clin North Am 2009;23:193-214.
  • 26. Neveling K, Endt D, Hoehn H, Schindler D. Genotype-phenotype correlations in Fanconi anemia. Mutat Res 2009;668:73-91.
  • 27. Auerbach AD, Adler B, Chaganti RS. Prenatal and postnatal diagnosis and carrier detection of Fanconi anemia by a cytogenetic method. Pediatrics 1981;67:128-35.
  • 28. Stoll C, Alembik Y, Dott B, Roth MP. Associated malformations in patients with esophageal atresia. Eur J Med Genet 2009;52:287-90.
  • 29. Dufour C, Svahn J. Fanconi anemia: new strategies. Bone Marrow Transplant 2008;41 (Suppl 2):S90-5.
  • 30. Pinto FO, Leblanc T, Chamousset D, Le Roux G, Brethon B, Cassinat B et al Diagnosis of Fanconi anemia in patients with bone marrow failure. Haematologica 2009;94:487-95.
  • Endereço para correspondência:
    Giorgio Adriano Paskulin
    Rua Sarmento Leite, 245, sala 403 - Centro
    CEP 90050-170 - Porto Alegre/RS
    E-mail:
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      14 Out 2011
    • Data do Fascículo
      Set 2011

    Histórico

    • Recebido
      01 Out 2010
    • Aceito
      20 Jan 2011
    Sociedade de Pediatria de São Paulo R. Maria Figueiredo, 595 - 10o andar, 04002-003 São Paulo - SP - Brasil, Tel./Fax: (11 55) 3284-0308; 3289-9809; 3284-0051 - São Paulo - SP - Brazil
    E-mail: rpp@spsp.org.br