Acessibilidade / Reportar erro

Reconfigurações do religioso na paisagem urbana

Neste número de Religião & Sociedade, se mantem a vocação da revista, preservada em cada volume ao longo de seus 40 anos de existência, de abordar arranjos nem sempre evidentes entre religião, territorialidades e os diferentes aspectos que compõem a vida social contemporânea. No dossiê Religião na Paisagem Urbana, os artigos apresentam, a partir de diferentes casos, processos de reconfiguração da paisagem citadina, nexos entre domínios ditos seculares e religiosos, além de nos permitirem observar como instituições e valores religiosos articulam a vida nas cidades. Assim, o religioso que pode parecer residual e encapsulado nas cidades modernas, emerge na vida social dessas localidades em diálogo estreito e muitas vezes conflitivo com atores políticos, econômicos e culturais. Parece-nos singularmente oportuno dar relevo ao tema do dossiê em um contexto no qual a religião vem assumindo importância na pauta global e, sobretudo a partir dos anos 1990, se impôs para quem estuda o urbano. Isso, pois, dentro de um leque amplo de recursos disponíveis, os habitantes das cidades e diversos movimentos sociais e culturais tenderam a mobilizar práticas, gramáticas e estéticas notadamente religiosas como meio de se relacionar, de se expressar no espaço público e de fazer política. A cidade, nesse sentido, seria ao mesmo tempo contexto e paisagem, reveladora e viabilizadora de articulações entre esferas reconhecidas como públicas e outras privadas, um espaço de encontro e reverberação de forças que se somam ou se antagonizam.

Em diálogo direto com essa proposta, quatro trabalhos foram selecionados para compor este dossiê. No primeiro deles, Luciana Gonzalez e Cecília Mariz, em Jornada Mundial da Juventude Rio 2013, buscam explorar as reconfigurações promovidas no Rio de Janeiro pela realização de um evento católico massivo, a JMJ, que contou com a presença do Papa Francisco e de milhares de peregrinos de todo o mundo e que por cerca de 10 dias alterou a vida na cidade. Através de observação participante na jornada, e de entrevistas realizadas com pessoas que hospedaram peregrinos em suas casas, as autoras procuram discutir como esse ritual religioso-festivo se fez presente no espaço público e impactou subjetividades. Ao dispersar peregrinos por todo o Rio, a JMJ possibilitou que católicos mais pobres e de bairros menos centrais entrassem em contato com visitantes estrangeiros, fazendo com que eles se percebessem como parte integrante de uma igreja universal. A hospedagem solidária reconfigurou também a composição religiosa de várias zonas, ao aumentar expressivamente a presença de católicos em áreas que no cotidiano são de maioria evangélica.

Adriano Godoy , em seu artigo O papa é o melhor prefeito que a cidade já teve, focaliza também a visita do Papa Francisco em 2013, mas a acompanha em Aparecida, a cidade-santuário que abriga a padroeira do Brasil. O autor recupera o processo histórico de construção social da devoção e seu entrelaçamento com a vida da cidade, abordando os impactos da visita papal a partir da ótica da política e das transformações no cotidiano.

A partir do diálogo com comerciantes e feirantes, o clero e políticos, Godoy explora as tensões entre poder religioso e poder secular e entre práticas religiosas e práticas econômicas reveladas por eventos singulares como o das visitas papais ocorridas em Aparecida desde décadas atrás até a visita de Francisco.

Frank Davies, em Via-crúcis, via expressa: dinâmicas políticas e gramáticas religiosas na passagem da Transolímpica, explora modalidades de gestão do urbano que combinam praticas religiosas e seculares em uma situação tal como a de demolição de casas no bairro de Magalhães Bastos, Zona Norte da cidade do Rio de Janeiro, para a construção de uma via urbana, condicionada pela realização das Olimpíadas 2016. Através de entrevistas, trabalho de campo e análise documental realizados entre os anos 2012 e 2015, Davies apresenta os jogos que marcaram a construção da via destacando a atuação do pároco local como negociador junto aos moradores e ao poder público fornecendo instrumentais de luta, seja pela via da resistência, seja da resignação, sempre combinando uma gramática religiosa cristã à gramática secular na conquista das demandas da população. Com isso, oferece-nos fortes reflexões sobre o fazer do Estado, da religião e do movimento popular em situação.

O dossiê encerra com o artigo de Ana Paula Miranda e Roberta Boniolo, Em público, é preciso se unir. Através de uma experiência etnográfica que privilegia o acompanhamento de reuniões da Comissão de Combate à Intolerância Religiosa (CCIR) e do grupo Elos da Diversidade, problematiza a reivindicação de religiosos de matriz afro-brasileira à cidadania e ao espaço público. As reuniões são metodologicamente apresentadas pelas autoras como espaços de tomadas de decisão, logo do fazer político, mas também como produtoras e fortalecedoras de sociabilidade. Neste sentido, o trabalho minucioso de descrição e análise das relações sociais nestes coletivos, dos discursos (gramáticas e repertórios ativados em situação) e da produção de eventos, nos permitiu acompanhar interfaces entre religião, política, cultura e territorialidades no calor de um debate que provoca a reflexão sobre intolerância religiosa, demandas por laicidade e direitos.

Além dos artigos do dossiê, contamos com cinco artigos provenientes do fluxo contínuo da revista e quatro resenhas.

Emerson Giumbelli, no artigo A vida jurídica das igrejas, analisa a constituição de coletivos religiosos baseado em uma pesquisa comparada entre quatro países latino-americanos: Argentina, Brasil, México e Uruguai. Em cada contexto, as questões que orientam a análise recaem sobre grupos minoritários que buscam reconhecimento como religiões através da validação jurídica de suas existências. A vigência de grupos religiosos prescinde de seu reconhecimento formal, no entanto, no âmbito deste artigo, ganha destaque as nada banais construções do fazer religioso nas esferas jurídicas e estatais nos provocando a refletir sobre o estatuto do religioso, sobre diversidade e liberdade em cada contexto estudado. Em um ambiente social favorável às demandas por reconhecimento e direitos, as gestões públicas e os judiciários em cada país são conclamadas a “produzirem religião” ou, nos termos do autor, regular o religioso a partir de preceitos, conceituações e normativas, o que poderia parecer contraditório.

Já Rodrigo Toniol, em seu artigo O que faz a espiritualidade?, explora a construção desta categoria a partir de uma pesquisa empírica e documental que articula os campos da saúde e da religião. Toniol demonstra que a inclusão de terapias alternativas como política pública de saúde em Porto Alegre (RS), modelam novas configurações das relações entre Estado e religião e ciência. Explorando de modo refinado a sentença espiritualidade é saúde, contribui, ainda, para refletir sobre singularidades da presença da religião no espaço público.

No artigo Das Encruzilhadas: As Categorias Tempo-Espaço em Rituais e Cosmologias, Kleyton Rattes nos possibilita acessar uma minuciosa discussão teórica entre tempo e espaço tomando como caso para a análise registros de memória de escravos no chamado “sistema atlântico”. Mobiliza um conjunto de autores clássicos e alguns contemporâneos para o tratamento das categorias tempo e espaço provocando uma reflexão sobre elas próprias e sobre o desconforto e a insuficiência analíticas de aderir integralmente ou recursar irrestritamente metafísicas dominantes em cada contexto histórico.

Olívia Bandeira de Mello, no artigo Música gospel no Brasil, apresenta uma relevante análise bibliográfica sobre a produção acadêmica sobre o tema. Um fenômeno de sucesso crescente, que extrapola o mundo restrito da religião e se torna um produto midiático mais geral, a música gospel tem atraído a atenção de vários pesquisadores, principalmente há duas décadas. A partir de um levantamento no Banco de Dados da Capes e no Google Acadêmico, Olívia Bandeira chama a atenção que as visões de mundo dos sujeitos que produzem ou consomem esse gênero musical têm sido pouco exploradas, pois o mais comum é encontrar uma perspectiva de tratamento exterior, monolítica e homogeneizadora. Defende, então, a importância de se recuperar a diversidade interna ao universo evangélico, a fim de que não se essencializem práticas. Neste sentido, sugere que o foco das análises se desloque para os subgêneros que compõem o gênero gospel, o que permitiria tanto a visualização de uma diversidade interna de discursos e sonoridades, como até mesmo de contradições e divergências no mundo evangélico.

Por fim, em O sacrifício de animais nas religiões afro-brasileiras, de Ari Pedro Oro, Erico Carvalho e Juan Scuro, podemos acompanhar uma ampla polêmica gerada pela apresentação, na Assembleia Legislativa do Estado do Rio Grande do Sul, no início de 2015, de um projeto de lei proposto por uma deputada evangélica e ativista na defesa dos direitos dos animais. O texto retoma e atualiza as disputas e debates gerados por um projeto semelhante apresentado há dez anos neste mesmo Estado. Ambos possuem a recorrência de terem sido propostos por legisladores declaradamente evangélicos e visarem à interdição da imolação de animais nas religiões afro-riograndenses. São analisados os discursos e argumentos acionados pelos atores sociais defensores e contrários ao projeto, o que coloca em confronto não apenas concepções cosmológicas distintas, mas também diferentes entendimentos acerca da liberdade religiosa no Brasil.

Este número contém ainda quatro resenhas de livros, contribuições de Jacqueline Moraes, Júlio Bizarria, Mattijs Van de Port e Raquel Sant’Ana. Os livros, três publicados no Brasil e um no exterior, abordam diferentes contextos empíricos e tradições religiosas, demandas por direitos e reconhecimento e criminalidade violenta. Tal riqueza e diversidade de temas e abordagens são emblemáticas da pujança dos estudos de religião no país e no exterior.

Nos artigos e resenhas que compõem mais este número de Religião & Sociedade, reafirmamos nosso compromisso com a divulgação da multiplicidade da produção acadêmica na grande área das Ciências Sociais sobre as interfaces da religião com os mais diversos aspectos da vida social. O exercício da crítica, presente em cada contribuição desta revista ao longo de seus 40 anos, esforço sempre necessário, torna-se um imperativo neste contexto nacional e mundial.

Christina Vital da Cunha e Renata Menezes

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Dez 2017
Instituto de Estudos da Religião ISER - Av. Presidente Vargas, 502 / 16º andar – Centro., CEP 20071-000 Rio de Janeiro / RJ, Tel: (21) 2558-3764 - Rio de Janeiro - RJ - Brazil
E-mail: religiaoesociedade@iser.org.br