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Cultura, dinheiro, alteridade: a materialização da missão e o diaconato mundial das Igrejas Protestantes na Holanda1 1 Este texto baseia-se na minha tese de doutorado – Negotiating Otherness in the Dutch Protestant World: missionary and diaconal encounters between the Protestant Church in the Netherlands and Brazilian Organisations – defendida na Universidade Livre de Amsterdã (VU Amsterdam) em 2010 (Rickli 2010). Uma parte dos argumentos expostos aqui foi apresentada em um capítulo da coletâneaEncounters of Body and Soul in Contemporary Religious Practices: anthropological reflections (Rickli 2011).

Culture, money and otherness: the materialisation of mission and world diaconate of the Protestant Church in the Netherlands

Resumo

Este artigo aborda os aspectos materiais de cultos e campanhas ligados à atividade missionária da Igreja Protestante na Holanda. Ao focar as ações desenvolvidas no país de origem, ao invés dos encontros nos campos missionários, o texto pretende investigar como as obrigações diaconais e missionárias cristãs abstratas se tornam produções rituais tangíveis e concretas, através da mobilização de um conjunto de elementos litúrgicos. O texto toma este processo como parte das negociações de alteridade em jogo no empreendimento missionário protestante. A descrição e a análise de alguns rituais observados durante a pesquisa etnográfica na Holanda permitem mostrar como a mobilização desses diversos elementos materializa e torna acessível aos sujeitos protestantes aspectos relativamente abstratos de suas obrigações missionárias.

Palavras-chave
protestantes; missão; dinheiro; materialidade

Abstract

This article addresses material aspects of religious services and campaigns connected to the missionary activities of the Protestant Church in the Netherlands. The text focuses on action developed in the sending country instead of encounters in the missionary field. In doing so, the article aims at investigating how abstract Christian missionary and diaconal obligations become concrete and tangible ritual productions, through the mobilisation of a set of liturgical elements. The text takes these practices as part of the process of negotiating otherness at issue in the Protestant missionary endeavor. The analysis of a few rituals observed during the ethnographic research in the Netherlands intends to show how the mobilisation of these varied elements materialise some abstract aspects of missionary obligations, rendering them accessible to the Protestant subjects.

Keywords
Protestants; mission; money; materiality

Introdução

Este artigo trata dos aspectos materiais dos rituais ligados à ação missionária da Igreja Protestante na Holanda, a mais importante denominação religiosa do país. Ao focar em cultos, reuniões e campanhas especiais realizados em algumas cidades das províncias do norte dos Países Baixos, o texto aborda o modo como os projetos desenvolvidos por essa igreja no exterior, especialmente no Brasil, se tornam parte da vida ritual das comunidades holandesas e das práticas religiosas de seus membros. Através da mobilização de objetos, corpos, imagens e performances, os princípios mais ou menos abstratos acerca das obrigações missionárias cristãs e os vínculos entre aqueles protestantes holandeses e o “outro distante”, objeto da ação missionária, tornam-se tangíveis e passam a fazer parte de uma experiência religiosa concreta.

Descrevo essas práticas como parte de uma realidade mais ampla em jogo nas iniciativas missionárias que chamei de “negociação de alteridade” (RickliRICKLI, João. (2010), Negotiating Otherness in the Dutch Protestant World: missionary and diaconal encounters between the Protestant Church in the Netherlands and Brazilian organisations. Amsterdã: Tese de Doutorado em Antropologia, Universidade Livre de Amsterdã (VU University). 2010:29), definida pelos processos mais ou menos sistemáticos através dos quais instituições destinadas à expansão de formas modernas de organização social continuamente (re)estabelecem os termos da diferença entre “nós” e “eles” e (re)definem os limites entre o “mesmo” e o “outro”. É apenas a partir deste processo de constante negociação da alteridade que ações orientadas a este “outro” são possíveis. Assim, analiso a materialização da missão protestante holandesa nos rituais de suas comunidades como uma das formas pelas quais essa negociação acontece. Procuro demonstrar como, ao tornar o encontro com esse “outro distante” tangível e acessível aos sentidos, os ritos e performances missionárias organizam a relação dos membros destas comunidades protestantes, em sua maioria pequenas e localizadas na parte mais rural da Holanda, com a ação da igreja, concebida em termos globais, em escritórios cosmopolitas em grandes cidades, e executada em diversas regiões do chamado “sul” do globo.

Estas reflexões buscam iluminar alguns aspectos da relação entre religião e projetos de cooperação para o desenvolvimento, privilegiando as relações estabelecidas entre os “emaranhados institucionais” (Morawska ViannaMORAWSKA VIANNA, Catarina. (2015), Nos Enleios da Tarrafa: etnografia de uma relação transnacional entre ONGs. São Carlos: EdUFSCar. 2015:17) organizados para este fim e os seus financiadores, neste caso os membros da Igreja Protestante na Holanda. Para tanto, a pesquisa teve como ponto de partida alguns argumentos produzidos pelos estudos acerca da noção de desenvolvimento, tais como FergusonFERGUSON, James. (1990), The Anti-politics Machine: “development”, depoliticization, and bureaucratic power in Lesotho. Cambridge: Cambridge University Press. (1990),EscobarESCOBAR, Arturo. (1995), Encountering Development: the Making and Unmaking of the Third World. Princeton: Princeton University Press. (1995), Quarles van Ufford e Giri (2003QUARLES VAN UFFORD, Philip e GIRI, Ananta Kuma. (eds.). (2003),A Moral Critique of Development: in search of global responsibilities. London: Routledge.) e Li (2007LI, Tania. (2007), The Will to Improve. Durham: Duke University Press.), ainda que o foco central da maior parte deles seja a relação entre cooperação internacional e o público alvo dos empreendimentos no “sul”. Neste sentido, os trabalhos de Morawska ViannaMORAWSKA VIANNA, Catarina. (2015), Nos Enleios da Tarrafa: etnografia de uma relação transnacional entre ONGs. São Carlos: EdUFSCar. (2015) e Barroso HoffmannBARROSO HOFFMANN, Maria. (2009), Fronteiras Étnicas, Fronteiras de Estado e Imaginação da Nação: um estudo sobre a cooperação internacional norueguesa junto aos povos indígenas. Rio de Janeiro: E-papers.(2009), que investigam redes de cooperação no Reino Unido e Noruega, respectivamente, são uma importante interlocução, sobretudo no que diz respeito à conformação destes feixes complexos de relações e agentes que compõem os projetos transnacionais da cooperação para o desenvolvimento em seus países de origem. Paralelamente a esses estudos, a pesquisa baseou-se também na literatura sobre missão e missionários protestantes, sobretudo ComaroffCOMAROFF, John e COMAROFF, Jean. (1991), Of Revelation and Revolution: Christianity, colonialism and consciousness in South Africa. Chicago: University of Chicago Press. e Comaroff (1991), MeyerMEYER, Birgit. (1999), Translating the Devil: Religion and Modernity among the Ewe in Ghana. Eritrea: Africa World Press.(1999), RobbinsROBBINS, Joel. (2004), Becoming Sinners: Christianity + moral torment in a Papua New Guinea Society. Berkeley: University of California Press. (2004) e KeaneKEANE, Webb. (2007), Christian Moderns: freedom and fetish in the mission encounter. Berkeley: University of California Press. (2007).

Ao analisar os processos de “negociação da alteridade” em jogo nas comunidades holandesas vinculadas aos projetos transnacionais de desenvolvimento e missão, busco descrever quais são os mediadores neles mobilizados para que seus membros, cuja relação concreta com o empreendimento em geral não passa da doação regular de quantias em dinheiro para apoiar os projetos desenvolvidos, possam transformar esta limitada participação em uma experiência religiosa. Inicio por uma breve apresentação da denominação e de seus principais organismos voltados à missão e ao diaconato mundial. Apresento ainda duas descrições etnográficas de eventos relacionados a este tema dos quais participei no norte da Holanda em 2007. Em seguida, aponto o modo como ritos religiosos e campanhas proporcionam a materialização do encontro missionário a partir da apresentação de um “outro” concebido pelas lentes da noção de cultura e de diversidade cultural. Analiso o modo como o encaixe desses elementos numa estrutura litúrgica previamente determinada propicia a experiência protestante do mundo missionário. Finalmente, destaco o recorrente apelo à concretude do ato de doar e à materialidade do dinheiro, mediador aberto e ambíguo que deve ser cuidadosamente revestido de sentidos e significados religiosos para que possa circular no mundo da missão sem poluí-lo.

Nestas análises, a noção de “formas sensoriais”, cunhada por Birgit Meyer, desempenha um papel fundamental. Para a autora, formas sensoriais são:

[...] modos relativamente fixos de invocar e organizar o acesso ao transcendente, oferecendo estruturas de repetição para criar e sustentar conexões entre fiéis em regimes religiosos específicos. Estas formas são transmitidas e compartilhadas; elas envolvem os membros de uma religião em práticas particulares de devoção e desempenham um papel central em modulá-los como sujeitos morais religiosos e como comunidades (Meyer_____________. (2011), “Mediation and Immediacy: sensational forms, semiotic ideologies and the question of the medium”. Social Anthropology, v. 19, nº 1: 23-39. 2011:29, tradução nossa).

Ao enfatizar os aspectos formais e estéticos das práticas religiosas, a noção de formas sensoriais permite articular a mobilização de elementos materiais e objetivos com os aspectos sensoriais e corpóreos da prática religiosa. Através dessa ferramenta teórica, é possível explorar os processos de produção de fronteiras simbólicas em jogo na missão não como meras representações sobre as diferenças entre, por um lado, sujeitos e comunidades protestantes, e por outro, os alvos da ação missionária, mas sobretudo como práticas que materializam o mundo da missão em uma experiência concreta da alteridade que produz sujeitos morais e comunidades.

Este texto foi elaborado a partir de pesquisa de campo realizada entre setembro de 2006 e abril de 2008 em diferentes pontos da rede de cooperação missionária e diaconal holandesa. A pesquisa foi dividida em três fases distintas. Na primeira, que durou até o início de 2007, realizei observações, entrevistas e análise documental, trabalhando como voluntário da organização chamada Kerk in Actie (KiA), que centraliza as atividades de missão, diaconato mundial e cooperação para o desenvolvimento da Igreja Protestante da Holanda. No segundo período, entre abril e setembro de 2007, visitei diversos projetos desenvolvidos no Brasil com apoio de KiA. O material empírico produzido nesse período tem um papel secundário neste texto. Finalmente, entre setembro de 2007 e abril de 2008, fiz pesquisa de campo em diversas comunidades protestantes no norte da Holanda, privilegiando aquelas que estavam diretamente envolvidas com ações específicas no Brasil. A maior parte dos dados apresentados e analisados aqui provém deste último período.

Protestantse Kerk in Nederland (PKN), Kerk in Actie (KiA) e ZWO commissies

Antes de apresentar alguns ritos que põem em questão a tangibilidade e materialidade do trabalho missionário, é necessário introduzir brevemente a denominação protestante em questão e o modo como organiza seus esforços missionários nos Países Baixos. A Igreja Protestante na Holanda (Protestantse Kerk in Nederland – PKN) é a maior e mais importante denominação protestante do país. Fundada em 2004 a partir da fusão das duas igrejas reformadas holandesas tradicionais (Nederlandse Hervormed Kerk e Gereformeerde Kerk in Nederland) e da Igreja Luterana (Evangelisch Lutherse Kerk in het Koninkrijk der Nederlanden), a PKN é reconhecida como a principal herdeira da Reforma predominantemente calvinista nos Países Baixos.

Não cabe aqui elaborar um panorama detalhado acerca dessa denominação, mas algumas de suas características devem ser introduzidas para que a relação entre as comunidades locais e a ação missionária centralizada possa ser compreendida. Em primeiro lugar, a PKN é uma igreja sinodal, ou seja, seu órgão máximo responsável por tomadas de posição estratégicas, parâmetros teológicos e litúrgicos e pela gestão de suas ações centralizadas é o Sínodo, um conselho formado por representantes leigos dos conselhos regionais (chamados classis), que por sua vez são formados por delegados de cada uma das comunidades locais. Não há, portanto, líderes religiosos com poder centralizado e pessoal, tais como bispos e cardeais, e os pastores e pastoras da PKN são subordinados aos conselhos locais, regionais e ao Sínodo. A gestão cotidiana dos assuntos ligados à igreja como um todo é feita por uma comissão executiva e por um diretor, ambos eleitos pelo Sínodo. Neste modelo institucional, não há muitos órgãos centralizadores, sendo o principal deles Kerk in Actie (KiA), a organização responsável pelas atividades missionárias e diaconais desenvolvidas pela PKN no exterior, foco deste texto.

Em segundo lugar, sendo PKN a herdeira de uma história centenária de fusões e cismas, debates teológicos inflamados e disputas de poder, ela abriga debaixo de uma mesma estrutura institucional uma variada gama de posições teológicas, éticas e políticas. Suas decisões são sempre resultado de longas negociações e alianças entre essas diferentes linhas e correntes internas, fato que se reflete na diversidade de projetos apoiados no exterior, que vão de missões evangélicas tradicionais orientadas à conversão ao apoio a sindicatos rurais e movimentos sociais de esquerda.

Uma terceira característica, que em certa medida resulta das duas já mencionadas, diz respeito ao alto grau de independência que cada comunidade local tem para organizar suas atividades, cultos e posições teológicas, desde que mantidos os parâmetros (bastante amplos) da denominação. Estes incluem, obviamente, certos dogmas, valores e normas, bem como certos protocolos de gestão de assuntos financeiros e práticos que não são negociáveis. Resta, entretanto, muito espaço para que cada comunidade defina posições e ações próprias, o que resulta numa denominação bastante heterogênea e com alto grau de diversidade interna2 2 Um exemplo bastante eloquente foi usado por uma pastora para me explicar este ponto: certas comunidades não apenas realizam matrimônios de pessoas do mesmo sexo, mas são lideradas por pastores ou pastoras homossexuais casados, enquanto outras não aceitam o casamento de pessoas do mesmo sexo (algumas sequer aceitam o segundo matrimônio nos casos de viuvez ou divórcio). . No campo da missão e do diaconato mundial, esta liberdade permite às comunidades escolherem, dentro de um variado “menu” de projetos e ações específicas, conforme mencionado acima, aqueles com os quais desejam um envolvimento mais intenso e direto. É, então, nesta composição institucional que o trabalho missionário e diaconal internacional das comunidades da PKN ocorre. Seu planejamento e execução são centralizados por KiA e subordinados ao Sínodo, cabendo às comunidades locais contribuir financeiramente com a organização, eventualmente escolhendo projetos com os quais pretendem colaborar de forma mais intensa e específica, como veremos a seguir.

O trabalho internacional realizado através de KiA no exterior é definido pela tríade missão, diaconato mundial e cooperação para o desenvolvimento. Não cabe aqui uma definição mais rigorosa e elaborada de cada um desses termos, uma vez que, nas comunidades protestantes, as pessoas não manifestam nenhum interesse nesta divisão e referem-se ao complexo de atividades voltadas ao exterior utilizando simplesmente a sigla “ZWO” (zending, werelddiaconaat,ontwikkelingsamenwerking)3 3 Numa definição simples, baseada nas opiniões ouvidas em campo, missão trata das ações e projetos que veiculam sentidos abertamente cristãos e religiosos; diaconato mundial refere-se às obrigações e ações sociais da igreja em relação à sociedade global que a cerca, sem que haja a explicitação de conteúdos religiosos; e, finalmente, cooperação para o desenvolvimento assemelha-se ao diaconato, mas abrange projetos mais amplos, geralmente desenvolvidos junto a grandes ONGs doadoras ou governos e que tratam de temas atrelados às agendas internacionais de desenvolvimento, tais como aquecimento global, sustentabilidade, etc. . Essa abreviatura é usada como um adjetivo que qualifica as atividades ligadas a qualquer uma dessas áreas de atuação, sem maiores distinções entre elas. É comum que expressões como “atividades ZWO”, “comissões ZWO”, ou mesmo “pessoas ZWO” sejam utilizadas para definir eventos, órgãos e indivíduos mobilizados em torno das ações voltadas ao “outro distante”.

As ações propriamente ditas consistem, principalmente, no apoio a organizações parceiras em diferentes regiões do mundo. A lista desses parceiros é bastante variada, a maior parte deles sendo igrejas envolvidas com missão e trabalho social e ONGs vinculadas a diferentes temas da agenda de desenvolvimento. KiA também envia missionários holandeses para atuar diretamente em alguns projetos, principalmente em educação teológica e formação de lideranças locais. Este texto, entretanto, aborda outra importante face do trabalho da organização: o estímulo ao desenvolvimento de iniciativas ZWO nas igrejas na Holanda, com o objetivo não apenas de captar os recursos necessários para o desenvolvimento dos projetos no exterior, mas principalmente de estabelecer vínculos entre as ações executadas e a vida ritual das comunidades. Ao aproximá-las da realidade missionária através de imagens, performances rituais, visitas e intercâmbios, essas iniciativas pretendem tornar a missão e o diaconato mundial algo vivo para os seus membros e investir de um sentido religioso as quantias arrecadas em campanhas e ofertas. O relacionamento entre KiA e comunidades locais é, portanto, extremamente importante, tanto para garantir o fluxo de recursos que sustenta a organização e seus projetos, quanto para assegurar os sentidos religiosos que as ações devem ter.

No nível local, a mais importante estrutura organizacional para a promoção destas atividades são as chamadas “comissões ZWO” (ZWO commissies). Formadas por membros leigos das comunidades, elas são os principais interlocutores de KiA nas igrejas, a engrenagem que conecta as ações missionárias e diaconais concebidas e executadas de forma centralizada por PKN, e a vida ritual (e até certo ponto, financeira) de suas comunidades e membros. As atividades que descrevo e analiso neste texto são exemplos típicos de ações promovidas pelas comissões ZWO.

A estrutura e organização das comissões não segue um mesmo padrão predefinido, variando muito de comunidade a comunidade. Entretanto, algumas características comuns em relação à sua composição, cargos, atividades e obrigações podem ser observadas. Nos parágrafos seguintes, descreverei algumas dessas características, a partir das observações que fiz nas províncias do norte da Holanda e dos comentários e percepções de meus interlocutores, principalmente alguns funcionários de KiA que trabalham diretamente na promoção das atividades locais e conhecem, portanto, inúmeras dessas comissões.

As comissões ZWO são formadas, como já mencionado, por leigos, membros das igrejas que devotam algumas horas semanais à organização dos trabalhos missionários e diaconais nas suas comunidades. De acordo com as explicações dadas em minhas entrevistas, não há um conjunto de atributos que condicionem a participação de alguém na comissão, bastando que o candidato, ou mais provavelmente candidata, uma vez que a maior parte das comissões é formada por mulheres, seja um membro ativo na igreja. Pertencer a uma comissão ZWO não é considerado algo desejável ou prestigioso e raramente alguém se candidata de modo voluntário à tarefa. Segundo meus interlocutores, quando alguém manifesta seu desejo de deixar o posto, após alguns anos de trabalho, os demais participantes procuram um novo colega na comunidade e fazem um convite. Idealmente, para eles, uma pessoa deveria permanecer por cerca de quatro anos na comissão, mas na realidade quase todos permanecem por pelo menos oito anos ou mais.

O perfil dos integrantes das comissões ZWO varia bastante de acordo com características da comunidade, tais como seu tamanho, localização (rural ou urbana), província e renda média de seus membros. Segundo funcionários de KiA, elas são formadas majoritariamente por mulheres. As comissões que conheci mais de perto correspondiam a esta imagem, sendo formadas sobretudo por senhoras em torno dos 50 anos de idade, de classe média, vivendo em cidades pequenas ou médias em Friesland e Drenthe, as províncias mais rurais do país. A maioria delas trabalhava em regime parcial ou havia recentemente se aposentado. Os poucos homens que conheci eram também recém-aposentados. O número de participantes tampouco é fixo. As comissões que frequentei tinham entre sete e dez membros, embora nem todos estivessem envolvidos nas atividades que presenciei e, de acordo com suas lideranças, nem todos plenamente ativos. Na avaliação dos funcionários de KiA, este é um número bastante alto, e nas comunidades menos conectadas com o trabalho ele normalmente é menor. Mencionaram, inclusive, que há comunidades pequenas que, ao invés de terem comissões, têm apenas uma pessoa responsável pelas atividades ZWO.

Sendo uma opção numa variada gama de trabalhos voluntários realizados pelas igrejas, as comissões ZWO disputam com outros grupos e atividades a atenção e o tempo (e, em menor medida, como veremos abaixo, o dinheiro) dos membros da comunidade. Da perspectiva do fiel, os trabalhos ZWO são mais uma opção entre outros chamados “serviços diaconais”, como por exemplo o cuidado dos idosos e crianças, o apoio a ONGs ligadas à saúde, à atenção a pobres e imigrantes não documentados, etc. Neste sentido, fica mais claro por que as três áreas das ações ZWO (missão, diaconato mundial e desenvolvimento) não são diferenciadas no nível local, pois elas sempre aparecem em conjunto, em oposição a outros tipos de atividades. Sua característica distintiva, nesse contexto, é sua orientação ao exterior, ao “outro distante”, e não a temas e problemas locais ou nacionais, tratados por outras comissões e grupos de diaconia.

Além da concorrência com outras áreas do serviço diaconal da igreja, o trabalho organizado pelas comissões ZWO concorre também com pequenos projetos privados, desvinculados da burocracia da igreja nacional. As relações entre KiA e as comunidades não são sempre naturais e garantidas, e sua manutenção demanda um certo esforço de ambas as partes. Por um lado, parece haver um sentimento bem difundido entre os funcionários e técnicos da organização de que o alto grau de profissionalização e especialização do trabalho, que implica naturalmente um alto nível de burocratização, causa um certo desinteresse e afastamento por parte das pessoas das comunidades. Por esta razão, a maior parte desses funcionários sempre fazia questão de reforçar, durante entrevistas, conversas informais e reuniões, a importância do investimento nas comissões ZWO locais e na melhoria do relacionamento com as comunidades. Por outro lado, segundo diversos membros de comissões ZWO com quem conversei, os fiéis da igreja parecem mais facilmente mobilizados por pequenos projetos, muitas vezes desenvolvidos por pessoas conhecidas e com objetivos bastante concretos. Numa das comunidades que visitei, por exemplo, ao mesmo tempo que a comissão ZWO desenvolvia atividades relacionadas ao trabalho de KiA no Brasil, havia uma campanha realizada espontaneamente por membros da comunidade para arrecadar recursos para a reconstrução de uma escola em algum lugar na África, onde morava o sobrinho de uma das senhoras mais ativas na igreja. Segundo uma de minhas interlocutoras nesta comunidade, em Friesland, a burocracia bastante complexa e opaca de KiA produz um sentimento de distância e afastamento nos fiéis, ainda que haja um nível muito alto de confiança na organização entre as pessoas da sua igreja.

Para tentar superar essa dificuldade, KiA concebeu um programa chamadoInteractief (Interativo), baseado na construção de relações mais intensivas e concretas entre determinadas comunidades na Holanda e projetos específicos desenvolvidos no exterior, numa tentativa de diminuir a distância sentida pelos fiéis na sua interação com os projetos que apoiam via KiA. As comunidades que visitei durante minha pesquisa de campo foram aquelas que, naquele momento, tinham aderido ao programa e mantinham relações estreitas com projetos desenvolvidos no Brasil. É neste âmbito que as ações que buscam dar concretude e tangibilidade ao trabalho missionário da igreja ocorrem. Estas têm, então, principalmente dois objetivos: além de captar recursos para financiar os projetos desenvolvidos por KiA, elas buscam sobretudo promover atividades para engajar os membros da comunidade na experiência e no sentido religioso da missão e da diaconia. Entre os muitos tipos de ações, destacam-se os cultos ZWO e as campanhas especiais. Descrevo a seguir um exemplo de cada uma dessas atividades.

O “Mês do Brasil” em Coevorden

Outubro de 2007 foi declarado o “Mês do Brasil” pelas comunidades protestantes de Coevorden, uma cidade de cerca de 35 mil habitantes, na província de Drenthe, a poucos quilômetros da fronteira com a Alemanha. A comissão ZWO local, promotora do Mês do Brasil é formada por membros de duas comunidades que reuniram seus esforços e realizam as atividades missionárias e diaconais em conjunto4 4 Embora não seja necessário detalhar os motivos para que existam duas comunidades PKN na cidade, é importante esclarecer que, em algumas regiões, a fusão entre as denominações que originou a PKN não foi totalmente realizada. Assim, em algumas cidades como Coevorden mantiveram-se duas comunidades distintas, apesar de cooperarem em diversas áreas, como é o caso da comissão ZWO. . Coevorden recentemente decidira pela adesão ao programa Interactief através da cooperação com um projeto no Brasil, a Associação Diacônica Luterana (ADL), que mantinha cursos direcionados a filhos de pequenos agricultores na região serrana do Espírito Santo. O Mês do Brasil seria a primeira grande ação realizada no âmbito do programa.

Os principais eventos previstos foram realizados no último fim de semana do mês. No sábado a comissão ZWO organizou a Feira do Brasil, uma típica campanha de captação de recursos, bastante informal e recreativa. No domingo pela manhã, foi realizado um “Culto Missionário” (Zendingdienst), reunindo as duas comunidades. Estes cultos são as atividades mais prestigiosas promovidas pelas comissões ZWO. Distribuídos ao longo do ano (normalmente em quatro ou cinco domingos), eles têm o tema central dos textos, cânticos e da pregação do pastor relacionado às obrigações missionárias da igreja. Parte das ofertas arrecadadas durante essas cerimônias é destinada a KiA. Além da feira e do culto, foram realizadas três ZWO avondjes, ou “noitadas ZWO”, ao longo do mês: uma Creative Avond (Noite Criativa), uma introdução a um programa chamadoIntercultureel Bijbellezen (Leitura Bíblica Intercultural) e uma Schrijfavond (Noite da Escrita). Na primeira, ouvimos músicas e poesias brasileiras traduzidas para o holandês, enquanto fazíamos embrulhos de pequenos brindes para as brincadeiras da Feira do Brasil. Na segunda, uma funcionária de KiA responsável pela província apresentou o programa no qual grupos de reflexão na Holanda e no “sul” leem simultaneamente os mesmos textos e trocam impressões e interpretações. Estavam presentes alguns membros da comissão ZWO e mais algumas pessoas da igreja interessados em participar. Finalmente, na terceira “noitada” ouvimos música enquanto transcrevíamos frases simples em português, selecionadas previamente pela liderança da comissão, em antigos cartões postais da cidade e da região. Esses cartões seriam enviados ao longo do ano para alunos e professores da ADL. O número de participantes em cada uma dessas atividades confirmou o que eu ouvira diversas vezes em entrevistas: é cada vez mais difícil “arrastar” membros da comunidade para as atividades ZWO, e a participação das pessoas restringe-se, normalmente, aos cultos e às campanhas especiais, como a Feira do Brasil. Nenhuma das “noitadas” reuniu mais do que oito participantes, incluindo os membros da comissão e os convidados de fora (a funcionária de KiA e eu).

No último sábado daquele mês de outubro, entretanto, a Feira do Brasil atraiu um público bastante grande. Organizada dentro do amplo salão social da comunidade PKN mais nova, um edifício anexo ao templo, ela era composta de cerca de dez barraquinhas que vendiam diferentes produtos com o objetivo de arrecadar fundos para a ADL. Em meu caderno de campo, anotei os seguintes itens à venda: artesanatos feitos pelas senhoras da igreja (crochê, bordados, pintura em tecido, eventualmente abordando “temas tropicais”), doces brasileiros (brigadeiro, cocada e sequilho), vinhos do Brasil (obtidos por preço especial de uma importadora alemã), cartões postais, elementos de decoração de Natal e antiguidades doadas pelos membros da igreja. A barraquinha de antiguidades reunia uma miscelânea de quinquilharias que se referiam mais ou menos remotamente ao Brasil: suvenires do Rio de Janeiro, revistas antigas com reportagens sobre o país, DVDs sobre futebol e um antigo gibi do Tio Patinhas numa aventura na selva. Durante a feira, uma das barracas vendia café e torta de maçã e, no fim da tarde, uma “refeição brasileira”, um prato feito com arroz, feijão, linguiça, farofa e vinagrete. As crianças divertiam-se com alguns jogos e com um grabbelton, um grande cesto no qual elas podiam sortear uma pequena surpresa, embrulhada na “Noite Criativa”. Houve também um concurso de pinturas sobre o Brasil, feitas pelas crianças da comunidade, que ficaram expostas numa das paredes do salão. Três delas foram premiadas: uma retratava a bandeira brasileira, outra a floresta amazônica, e a terceira o Rio de Janeiro, com o Pão de Açúcar e o Corcovado. As três pinturas foram leiloadas após a entrega dos prêmios.

Enquanto os visitantes passeavam entre as barraquinhas e tomavam café, membros da comissão ZWO local circulavam vendendo rifas de brindes doados por lojas do comércio local. Os sorteios aconteciam regularmente, com os ganhadores anunciados com entusiasmo pela presidente da comissão ZWO e principal animadora da feira. Entre um sorteio e outro, ouvia-se música brasileira e holandesa. Eventualmente, ao microfone, ela mencionava que toda a renda do evento era destinada à ADL e ao Brasil.

Neste tipo de atividade, cujo objetivo principal é a captação de recursos, os sentidos e significados religiosos do trabalho não têm muita visibilidade. Além das rápidas menções feitas pela animadora à ADL, o projeto era apresentado apenas em uma pasta com informações, junto com algumas imagens, folhetos e mapas do Brasil, deixada numa mesa logo à entrada do salão, sem nenhum protagonismo no evento como um todo. Observei, no correr da tarde, algumas poucas pessoas curiosas folheando-a rapidamente. Para além destas curtas e pouco prestigiosas aparições como projeto diaconal e missionário, havia apenas as referências mais estereotipadas e folclóricas ao Brasil e aos brasileiros, que davam à feira um caráter pitoresco.

Em contraste com as campanhas especiais para captação de recursos, os cultos ZWO são absolutamente devotados aos sentidos religiosos da missão e do diaconato mundial. Em Coevorden, o culto encerrou o Mês do Brasil, realizado no domingo logo após a feira, no belo e solene templo histórico da comunidade PKN mais antiga da cidade, construído no início do século XVII. Antes de começar, os membros da comissão ZWO e algumas pessoas que tinham frequentado algumas das “noitadas” (eu, inclusive) acertavam os últimos detalhes da cerimônia com o pastor e alguns presbíteros e diáconos5 5 Presbíteros e diáconos são os membros leigos do Conselho, o órgão responsável pela gestão dos assuntos litúrgicos e práticos da igreja, a quem o pastor está subordinado. . Tínhamos sido convidados pela comissão a ter uma participação mais ativa no culto, lendo algumas orações e textos. Na igreja, sentamos todos no primeiro banco, próximos ao microfone e à mesa litúrgica de onde o pastor conduziu a cerimônia. O templo estava bastante cheio, já que o culto especial reunia os membros das duas comunidades da cidade.

A liturgia seguiu a estrutura tradicional dos serviços religiosos reformados, dividida em três partes. A primeira, chamada por vezes de “Ritos Iniciais”, é a preparação para o culto, composta de hinos de louvor e da confissão dos pecados. A segunda, a “Liturgia da Palavra”, é o momento das leituras bíblicas e da pregação do pastor. Finalmente, a terceira parte, “Intercessão e Ofertas”, é composta pela longa oração de intercessão, que tem lugar logo após a pregação, pela coleta das ofertas e pela bênção final. Naquela manhã em Coevorden, a liturgia iniciou-se com palavras de boas-vindas proferidas pelo pastor, uma oração silenciosa e um hino do hinário oficial da PKN, cantado por toda a congregação. A letra comparava o amanhecer com o surgimento da luz eterna de Cristo sobre a Terra. Logo em seguida, o pastor fez a bênção inicial, uma saudação litúrgica repetida em todos os cultos reformados, e uma canção sobre a paz mundial foi cantada em holandês e português, introduzindo assim o primeiro elemento associado ao Brasil. O cântico foi retirado de um livro chamadoHoop van alle volken (Esperança de todos os povos), uma compilação de músicas religiosas coletadas nos países nos quais há trabalho missionário e diaconal da PKN e traduzidas para o holandês. A letra “nativa” da canção escolhida para o culto em Coevorden era o espanhol, mas uma das integrantes da comissão que viveu por alguns anos no Brasil fez sua tradução para o português. Parte da congregação tentou cantar as palavras nesta língua, mas a maioria dos presentes cantou apenas em holandês.

Após essa música, houve mais uma oração pelo pastor, e a comunidade cantou dois versos do Salmo 24 que reforçam, com imagens de rios, montanhas e oceanos, a ideia da Terra inteira como o Reino de Deus, por ele habitado. Depois do salmo, teve início o momento da Confissão, no qual a relação entre a comunidade e o Brasil foi novamente explicitada. A ADL foi brevemente introduzida pelo pastor, e uma oração responsiva, que recebe o nome litúrgico de “Oração pelas aflições do mundo”, foi recitada, alternando frases lidas pelos participantes das atividades do Mês do Brasil e uma fórmula a ser respondida pela congregação após cada uma delas. Essas frases mencionavam problemas sociais do mundo contemporâneo, dos mais gerais, como pobreza e fome, aos mais específicos, ligados diretamente à realidade da ADL, como injustiça da divisão da terra e falta de acesso à educação de qualidade para jovens agricultores no Brasil. Em seguida à oração responsiva, foi lido um texto bíblico (Romanos 12:9-13) que exorta os cristãos ao amor fraternal, à oração, à caridade e à hospitalidade.

Na segunda parte da liturgia, dedicada à palavra, foi lido o texto do evangelho de Lucas que narra a parábola do fariseu e do publicano6 6 Lucas 18:9-14. A parábola valoriza a humildade e repreende aqueles que exaltam suas próprias virtudes. . A pregação do pastor relacionou o texto ao chamado missionário da igreja e à unidade do mundo cristão, destacando a necessidade de realizar as obras missionárias e diaconais com humildade. Após a pregação, a comunidade cantou em holandês um cântico brasileiro (também da coletâneaHoop van alle volken).

A última parte da liturgia foi inteiramente relacionada ao Brasil e à ADL. A oração de intercessão foi precedida por uma oração escrita pelo famoso teólogo brasileiro Leonardo Boff, um dos principais nomes da Teologia da Libertação. Como único brasileiro participante (e observador) do Mês do Brasil, fui convidado a fazer a leitura da oração. Os membros da comissão acharam que seria bom que a comunidade soubesse que havia um brasileiro presente e seria interessante ouvir um texto lido em holandês com (carregado) sotaque brasileiro. Após a oração, a presidente da comissão ZWO falou algumas palavras sobre a importância do projeto no Brasil e anunciou o valor arrecadado na Feira do Brasil, no dia anterior. A cifra foi calorosamente aplaudida.

A coleta das ofertas foi feita conforme o modo tradicional, que presenciei nos inúmeros cultos que assisti durante meu trabalho de campo. Os diáconos fazem circular algumas sacolas de veludo preto com pegadores de madeira que passam de mão em mão e nos quais as pessoas discretamente depositam as quantias em dinheiro. Há dois tipos de sacolas: umas com um “K” bordado, nas quais são colocadas as ofertas destinadas à manutenção da igreja (kerk); e outras com um “D”, onde vão as ofertas destinadas aos serviços diaconais (diaconie), que nos dias de Culto Missionário vão para os projetos da comissão ZWO. Depois das ofertas, mais um hino foi cantado, e o culto encerrou-se com a Bênção Apostólica.

Cultura e materialização da alteridade

Para a análise das narrativas apresentadas acima, busco destacar as diferentes formas pelas quais as ideias e os princípios mais ou menos abstratos acerca de missão e diaconato se tornam concretos e tangíveis nas comunidades holandesas. Para tanto, proponho tomar como ponto de partida a característica distintiva dos projetos ZWO em relação aos outros serviços diaconais realizados por elas. Conforme já dito, o princípio classificatório que define essas atividades é sua orientação ao “outro distante”, pessoas de outros lugares e culturas, cujo bem-estar (físico, religioso, ou mesmo político, a depender da orientação do projeto apoiado) é o objetivo último das ações realizadas. Meu argumento aqui, ao utilizar a ideia de “negociação de alteridade”, é que o tipo de atividade descrita acima, ao estimular a criação de relações e vínculos com o “outro”, continuamente (re)estabelece os termos da diferença entre “nós”, os cristãos holandeses, e “eles”, os beneficiários dos projetos (os agricultores brasileiros, no caso de Coevorden). Ao se promoverem as relações entre “nós” e “eles”, faz-se necessário que a fronteira simbólica entre estes dois termos seja redefinida e reafirmada.

As práticas em questão podem ser compreendidas como formas de negociação da alteridade através da mobilização de vários mediadores mais ou menos concretos que, tomados como “formas sensoriais” (Meyer_____________. (2011), “Mediation and Immediacy: sensational forms, semiotic ideologies and the question of the medium”. Social Anthropology, v. 19, nº 1: 23-39.2011:29), operam a materialização dos encontros missionários, permitindo aos membros da igreja o acesso pelos sentidos aos aspectos mais transcendentais da missão e da diaconia cristãs. Em conformidade com a definição de Meyer, esse acesso organizado em formas devocionais mais ou menos repetitivas e estruturadas é parte fundamental da modulação dos sujeitos morais protestantes e da conformação de suas comunidades em relação ao mundo mais amplo e ao “outro”.

Para uma melhor compreensão deste processo, é necessária uma abordagem mais detalhada dos elementos e mediadores mobilizados na (re)produção ritual dos encontros missionários e, consequentemente, na atualização e redefinição das fronteiras simbólicas entre os protestantes holandeses e seus outros. Em primeiro lugar, é possível afirmar que a linguagem utilizada nas definições dos termos da alteridade é a linguagem da cultura. As fronteiras a serem atravessadas para se produzirem os encontros e relações em foco no trabalho ZWO são fronteiras definidas como culturais. A clássica ideia missionária de expansão, do avanço do “ecúmeno” cristão por sobre a “terra incógnita” a ser mapeada, conquistada, civilizada e cristianizada, é substituída, na orientação missionária da PKN, pela imagem do mosaico de culturas. O “outro distante” é alguém etnicamente diferente e possuidor de uma “cultura nativa” que deve ser respeitada. Esta ideia está presente em praticamente todos os documentos oficiais com as orientações e diretrizes políticas que, aprovadas pelo Sínodo, orientam o trabalho de KiA. A existência (e relativo sucesso) do programa de Leitura Bíblica Intercultural mencionado acima é uma expressão clara e eloquente desta imagem.

Alguns aspectos do Culto Missionário descrito também apontam nessa direção. Participei de muitas dessas cerimônias durante o período da pesquisa, e em todas elas língua, textos e músicas dos países em questão eram incorporados à tradicional liturgia reformada. Quando havia “nativos” fisicamente presentes, sempre era solicitado, como foi a mim em Coevorden, que estas pessoas se mostrassem de alguma forma à congregação. O recurso ao meu sotaque como justificativa para a leitura do texto escrito por um brasileiro aponta para a experiência sensorial da presença do outro. Não é apenas o conteúdo da mensagem que importa, mas a forma “outra” na qual ela é apresentada. De maneira semelhante, assisti em vários desses cultos a canções executadas por africanos em trajes tradicionais, poesias lidas por senhoras indonésias em sua própria língua (com tradução posterior), orações cantadas por jovens caribenhos e pequenos números de dança tradicional apresentados por jovens nigerianos. Em todas essas performances, o “outro” é reconhecido como culturalmente diverso e encaixado num lugar específico de uma estrutura litúrgica previamente determinada.

Da mesma forma, objetos, imagens e mapas podem ser utilizados durante os cultos para dar mais concretude aos projetos missionários em questão em cada um deles. Em várias ocasiões, pude observar a utilização desses elementos na montagem da decoração litúrgica dos Cultos Missionários. KiA tem um departamento de comunicação e captação de recursos que elabora diversos tipos de materiais especificamente para essas ocasiões. Fotógrafos profissionais visitam projetos em diferentes países com o objetivo de captar boas imagens que possam tanto ilustrar o material de divulgação (folhetos, cartazes, sites na internet, etc.), quanto servir como base para painéis e banners exibidos durante cultos e campanhas. As imagens variam, mas a maior parte das que são utilizadas nos cultos são retratos sorridentes de crianças e adultos em seu ensolarado ambiente tropical, frequentemente vestindo roupas típicas e engajados em alguma atividade cotidiana. Além dessas imagens, objetos relacionados à cultura ou ao tema específico do projeto apoiado podem ser exibidos. Por exemplo, num culto realizado na capela na sede de KiA por ocasião da visita de uma delegação que trabalha com plantio sustentável de algodão na África, um cesto cheio do produto foi colocado na mesa litúrgica. Igualmente, barras de chocolate fair trade foram utilizadas numa celebração da equipe missionária da organização.

Em segundo lugar, é importante destacar que o uso ritual de pessoas, objetos e imagens se dá através do seu encaixe nas liturgias tradicionais reformadas e da superposição desses elementos com textos bíblicos, hinos, cânticos e orações. Na maioria dos muitos cultos missionários a que assisti, parece haver um esforço de aproximação entre diferentes tempos e lugares: o tempo presente na Holanda, no momento da realização dos ritos; o tempo e os lugares bíblicos, nos quais o chamado à missão e ao serviço diaconal é feito, e dos quais provêm as obrigações cristãs; e, finalmente, o tempo presente dos “outros” em seus lugares distantes, cuja vida deve ser transformada (ou pelo menos influenciada) pelo encontro com a missão e o diaconato mundial protestante. Estes cultos e ritos localizam, através de “formas sensoriais”, os protestantes holandeses e os alvos da ação missionária sobre um mesmo tempo e espaço, um mundo missionário concebido em termos bíblicos e cristãos. Ao fazê-lo em formas devocionais estruturadas, tornam a missão tangível e acessível aos sentidos, atuando na negociação das fronteiras simbólicas da comunidade e na formação dos sujeitos morais protestantes.

Nos detalhes mais decorativos e prosaicos das ações mais informais de KiA a importância da cultura como categoria organizadora de uma concepção de mundo fica igualmente evidente. O caráter pitoresco da concepção da Feira do Brasil, em Coevorden, pode ser entendido como uma forma, dentro das possibilidades da comissão local, de produzir uma atividade na qual o público pudesse experimentar um pouco da cultura brasileira, com suas músicas, comidas, bebidas, imagens estereotipadas e cartões postais. Alguns outros exemplos podem ser acrescentados aqui para reforçar esta percepção. Durante os quase dois anos nos quais pesquisei diferentes atividades ligadas ao trabalho ZWO, acompanhei algumas visitas de delegações de “parceiros” do sul às comunidades na Holanda. Nessas ocasiões, pude perceber como a ideia de diferença cultural era um importante princípio classificatório que orientava os encontros e relações. Por um lado, uma visão um tanto folclórica de cultura guiava os interesses dos anfitriões holandeses, que mantinham olhos e ouvidos bem abertos para qualquer atitude ou gesto dos hóspedes que pudesse ser interpretado como tendo um “conteúdo cultural”. Cada nova situação ou objeto encontrado durante a programação da visita, de refeições a cultos, de vasos sanitários a ônibus e trens, motivava perguntas do tipo: “como vocês fazem isso na sua cultura?” ou “como é isso no seu país?”. Diferenças culturais eram também a explicação favorita para quaisquer atitudes ou comportamentos que diferissem dos hábitos locais. Qualquer manifestação de “comportamento nativo” por parte dos hóspedes disparava muitos flashes das máquinas fotográficas dos anfitriões.

Por outro lado, essa visão algo folclórica de cultura estava também no centro do interesse frequente em mostrar a cultura holandesa para os hóspedes. Observei que essas visitas de delegações estrangeiras incluem quase sempre um variado número de atividades que visam proporcionar aos hóspedes o contato com alguns dos aspectos mais estereotipados da cultura holandesa. Visitas às vacas leiteiras, refeições à base de pratos típicos da gastronomia camponesa da Holanda, ou uma noitada de jogos de salão tradicionais holandeses são quase sempre parte da programação mais recreativa e informal desse tipo de iniciativa. Novamente, fotografias dos visitantes fazendo coisas consideradas tipicamente holandesas são também altamente apreciadas e produzem boas imagens de um encontro entre culturas.

Parece-me revelador que os “insights” da cultura holandesa oferecidos aos visitantes do “sul” sejam compostos de curiosidades folclóricas e de imagens estereotipadas. Neste campo, o ideal de um verdadeiro encontro e de um diálogo a partir de posições simétricas parece se realizar com uma certa facilidade. Em contraste, a liturgia dos cultos (bem como a organização das reuniões mais práticas, que não tratarei neste texto) nunca é colocada em cheque, sendo a cultura do outro transformada em elemento a ser encaixado numa estrutura prévia que nunca é posta em questão. A imagem do mundo missionário como um mosaico de culturas, com fronteiras simbólicas a serem atravessadas por encontros e diálogos, é produzida a partir de uma perspectiva exterior a ela, uma perspectiva não negociável e exclusivamente holandesa. Através dela, a cultura do “outro” é objetificada e transformada em um tipo de “forma sensorial” pela mobilização de mediadores que invocam estereótipos e uma ideia estática de cultura, concebida como um conjunto de objetos, costumes e práticas. Por este motivo, as tentativas de produção de um diálogo simétrico dentro desta percepção acabam sempre por apelar aos estereótipos de uma cultura holandesa e às suas quinquilharias “étnicas” que podem se encaixar como mais uma entre as diversas culturas do mosaico. Fora desta imagem e de seu reflexo nas liturgias e protocolos previamente estabelecidos, uma verdadeira conversa parece muito mais difícil.

Dinheiro e participação missionária

Em contraste com essas imagens de um encontro entre culturas, permanece o fato de que, para a esmagadora maioria dos membros da PKN, o único vínculo real mantido com o mundo ZWO é a fria e solitária doação financeira. O cumprimento de suas obrigações cristãs perante os “outros” resume-se à transferência de alguns euros mensalmente para a manutenção de organizações e projetos ligadas a KiA. Intensificar o sentido religioso dessa prática bastante corriqueira parece ser também uma questão na produção ritual do encontro missionário a partir das formas sensoriais que descrevo aqui. Para que possamos abordá-lo como tal, é necessária uma rápida descrição das principais formas de doação, na perspectiva dos membros da PKN.

O fluxo monetário entre os fiéis doadores e KiA pode seguir caminhos diversos, e as doações podem ser feitas de várias maneiras. A primeira opção com a qual se depara o doador é entregar sua contribuição diretamente à organização ou através da comunidade local. Segundo uma longa entrevista que fiz com uma funcionária do setor financeiro de KiA em 2008, nos últimos anos cerca de dois terços do dinheiro arrecadado por KiA vinha das comunidades. De acordo com ela, a maior parte das doações privadas diretas são resultantes de campanhas especiais para situações específicas de crise humanitária, normalmente por desastres naturais, o que faz com que a maioria absoluta das doações mensais regulares seja feita através das igrejas locais, sendo as doações privadas diretas vinculadas a situações esporádicas. O que mantém, portanto, o trabalho missionário da PKN são as doações dos seus membros através das comunidades locais das quais participam.

A segunda opção que se apresenta aos doadores diz respeito às formas de contribuição. Ao questionar meus interlocutores sobre como doam à igreja, obtive relatos de quatro modalidades: transferência bancária; doação em cartório (notariële schenking); doações em campanhas especiais; e ofertas nos cultos. Segundo eles, a transferência pelos bancos é, de longe, a forma mais utilizada, o que é confirmado pelo departamento financeiro de KiA. Além da praticidade, a maior parte das pessoas mencionou como principal motivo da preferência por este método o fato de que as doações para os trabalhos sociais de igrejas, quando devidamente registradas, podem ser deduzidas do imposto de renda. A segunda forma é bem menos comum, sendo mais burocrática e complexa. Por ter algumas vantagens do ponto de vista fiscal, ela é normalmente utilizada apenas para grandes quantias ou heranças. Em relação a estas duas modalidades, não parece haver qualquer associação ritual com o sentido religioso da oferta no momento da doação ou transferência. Durante as entrevistas, questionei algumas pessoas se praticavam algum ato religioso, como uma oração, por exemplo, quando faziam a transferência. Todas elas responderam negativamente. Uma senhora de Heerenveen, na Friesland, me disse, sorrindo: “Não é diferente de pagar meu aluguel” (entrevista com Sra. D. A., 29/10/2007).

O vínculo ritual entre doação e cumprimento das obrigações cristãs missionárias fica, então, restrito às campanhas especiais e às ofertas nos cultos, que representam, em valores, uma parcela muito pequena das quantias totais arrecadadas. De acordo com a presidente de uma das comissões ZWO de Drenthe, a função dessas doações é apenas “simbólica”, e a finalidade mais importante de campanhas como o Mês do Brasil não é o dinheiro em si, mas sim a promoção do envolvimento da comunidade com os projetos. Assim, podemos compreender essas ofertas também como uma forma de materialização, no ritual, das obrigações missionárias dos fiéis, cumpridas através da doação financeira. O encaixe da moeda e do ato de doar, ainda que em quantias insignificantes em comparação com as transferências financeiras, nas mesmas estruturas litúrgicas em que são dispostos os elementos referentes ao “outro” e sua cultura, parece operar uma certa sacralização do dinheiro, revestindo-o de um caráter religioso e vinculando-o ao “outro distante”.

Este fato põe em evidência o caráter ambíguo da moeda como objeto e como mediador. Aqui é necessária uma curta digressão teórica para que seja possível a análise do modo como a missão da PKN trata o dinheiro7 7 Essa digressão acompanha parcialmente algumas das sínteses teóricas produzidas na antropologia brasileira acerca de dinheiro e moeda, principalmente Neiburg (2007) e Müller (2006). Ver também as etnografias reunidas em Motta et al. (2014). Sobre dinheiro e religião, ver Lima (2007). . Tomado desde as análises seminais de MarxMARX, Karl. (1974), O Capital. Coimbra: Centelha. (1974) e SimmelSIMMEL, Georg. (1990), The Philosophy of Money. London: Routledge. (1990) como um dos fundamentos da modernidade e um dos principais agentes da emergência da economia como um esfera autônoma, o dinheiro é quase sempre visto apenas como um símbolo, uma força capaz de transformar coisas em mercadorias, desfazendo os laços que vinculam pessoas e objetos. Seguindo os pressupostos lançados por esses autores, o dinheiro é raramente considerado um objeto em si, sendo tomado como algo cujo valor não resulta de suas qualidades sensíveis, mas das relações sociais que ele exprime e engendra (BlochBLOCH, Maurice e PARRY, Jonathan. (1989), Money and the Morality of Exchange. Cambridge: Cambridge University Press. e Parry 1989:6).

Embora esta compreensão do dinheiro seja bem aceita pela literatura, vários autores contestam sua universalidade e abrangência8 8 O volume organizado por Bloch e Parry (1989) traz uma coletânea de exemplos etnográficos de sociedades que utilizam dinheiro, mas o fazem a partir de pressupostos distintos destes descritos por Marx e Simmel. Ver também Gregory(2000). . Dentre estes, a análise empreendida por ZelizerZELIZER, Viviana. (1997), The Social Meaning of Money. Princeton: Princeton University Press. (1997) é especialmente relevante aqui, por tratar de situações em sociedades modernas nas quais a moeda não funciona apenas como um “nivelador radical”, mas que é tomada por valores e vínculos distintos daqueles que constituiriam sua principal função numa economia de mercado.

No caso analisado neste texto, o dinheiro parece oscilar entre seu papel abstrato tradicional como “medida de todas as coisas” e como um objeto ritual, cuja presença física e circulação durante os cultos missionários é importante para acentuar as relações estabelecidas entre os fiéis protestantes e os “outros” da atividade missionária. É precisamente porque bens e serviços necessários à execução prática dos trabalhos missionários são mercadoria e podem ser trocados por dinheiro que um grande número de holandeses pode deles participar sem sair de suas cidades ou províncias. O cumprimento de suas tarefas missionárias é possibilitado pela mediação eficaz do dinheiro. Sem ele, seria muito difícil para uma dona de casa ou para o proprietário de uma pequena leiteria em Coevorden, na Holanda, participar da educação de jovens agricultores na região serrana do Espírito Santo, no Brasil. O dinheiro, tomado como um mediador abstrato e poderoso, como “nivelador radical”, pode produzir um número virtualmente infinito de vínculos e conexões que, ainda que tênues e impessoais, são fundamentais para a execução dos trabalhos ZWO.

Entretanto, o poder alienador e despersonalizador do dinheiro, se não acompanhado de outros vínculos pessoais e claramente religiosos, pode fazer da doação mero consumo, ao invés de cumprimento do dever religioso. Todos os participantes de comissões ZWO que entrevistei faziam questão de destacar que sua maior preocupação era a criação de conexões entre a comunidade e a missão que fossem além da mera doação de dinheiro. Muitos disseram que este é o ponto mais importante, a razão de ser do trabalho que fazem: promover na comunidade compromisso, consciência e disposição para se relacionar com o “outro”. Nas palavras de uma outra senhora de Heerenveen, bastante ativa na Comissão ZWO local: “O trabalho ZWO não é uma questão de dinheiro, é uma questão de conscientização e compromisso. Eu sempre digo que não é uma questão de pagar para se eximir de uma responsabilidade [afkopen]. É uma questão de estar consciente. Nós temos que repetir, repetir, repetir e repetir, em cada oportunidade que tivermos, o que a missão da igreja é de verdade” (entrevista com Sra. A. L., 27/11/2007). Um membro de outra comissão resumiu: “Primeiro a relação, depois a doação” (entrevista com Sr. P. A., 17/01/2008). Estas opiniões acerca do trabalho estão em contraste direto com a relação puramente financeira, comparável com o simples pagamento de uma conta, estabelecida pelos fiéis com as doações por transferência bancária.

O poder do dinheiro de produzir e multiplicar relações, em evidência nas transações financeiras que direcionam a maior parte do dinheiro aos projetos, deve ser então controlado, domesticado e enquadrado num esquema religioso. O momento das ofertas, nos cultos, oferece uma expressão ritual desse fato. Após a circulação das sacolas de veludo, elas são depositadas na mesa litúrgica, junto com os outros objetos ligados à temática do culto. Embora a presença do dinheiro seja parte indispensável da liturgia, ele não é abertamente mostrado, sua participação sendo encoberta pelo austero tecido preto. A discrição em seu uso no rito pode ser interpretada como um reconhecimento de seu poder disruptivo e poluidor, que precisa ser contido e completamente revestido pelo seu papel ritual.

Resta ainda analisar o papel das doações a partir da participação nas campanhas especiais. Elas parecem apostar nas trocas cotidianas como forma de participação na ação missionária da igreja. Assim, simples atos de consumo como comer uma fatia de torta de maçã ou comprar um pano de prato, ao serem realizados na Feira do Brasil, embalados por música brasileira e cercados das quinquilharias étnicas que decoram o salão, passam a ser uma parte, ainda que ínfima, da ação missionária protestante no Brasil e, portanto, a ser parte do mundo missionário. Enquanto os cultos sacralizam o dinheiro, ao afastá-lo do mundo do consumo cotidiano através do apelo à sua materialidade e sua circulação ritual como objeto, as campanhas parecem reforçar sua capacidade de promover conexões e vínculos, suas potencialidades como mediador aberto.

Conclusão

Neste texto, analisei processos de materialização do empreendimento missionário da PKN em suas comunidades locais no norte da Holanda. Ao utilizar a noção de “formas sensoriais” como ferramenta analítica, busquei demonstrar como, através da utilização de certas formas devocionais estruturadas e repetitivas, as obrigações missionárias cristãs se tornam tangíveis e acessíveis aos sentidos dos fiéis protestantes, produzindo sujeitos morais e comunidades. Analisei ainda como esses ritos compõem parte do que chamei de “negociação da alteridade”, ou seja, do processo de constante (re)estabelecimento e (re)definição das fronteiras simbólicas entre o “mesmo” e o “outro”, em jogo na missão, no diaconato mundial e na cooperação para o desenvolvimento.

Na análise das campanhas especiais, cujo principal exemplo foi a Feira do Brasil, em Coevorden, destaquei o modo como o apelo a estereótipos e a objetos “étnicos” permite aproximar, na linguagem da “cultura”, o cotidiano dos membros das comunidades na Holanda daquilo que é imaginado como o “outro distante”. Através de pequenas doações, da participação em brincadeiras e loterias e do consumo bastante trivial típicos dessas campanhas, atitudes cotidianas são incorporadas a um mundo missionário retratado como um mosaico multicultural, no qual seria possível um diálogo simétrico entre culturas.

A maneira como analisei os cultos missionários demonstra como o outro, materializado em sua cultura, é encaixado como “forma sensorial” em uma estrutura litúrgica previamente existente, baseada na teologia e nas práticas rituais tradicionais protestantes. Da mesma forma, o dinheiro doado (ou uma pequena parte dele, denominada “simbólica”), único vínculo real da maior parte dos fiéis com o empreendimento missionário, circula como objeto ritual e é revestido de sentido religioso. Estas superposições – da presença do “outro” (física, ou em imagens, objetos, música, língua e sotaque), de doações objetificadas e materializadas em ofertas e das imagens bíblicas que produzem a visão missionária cristã – fazem dos cultos missionários momentos cruciais para que as ações realizadas pelas diferentes organizações vinculadas a KiA e a PKN possam ser incorporadas pelos fiéis e pelas comunidades como a realização de suas obrigações missionárias cristãs.

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Entrevistas

Entrevista com Sra. A. L., 27 de novembro de 2007.

Entrevista com Sra. D. A., 29 de outubro de 2007.

Entrevista com Sr. P. A., 17 de janeiro de 2008.

Notas

  • 1
    Este texto baseia-se na minha tese de doutorado – Negotiating Otherness in the Dutch Protestant World: missionary and diaconal encounters between the Protestant Church in the Netherlands and Brazilian Organisations – defendida na Universidade Livre de Amsterdã (VU Amsterdam) em 2010 (RickliRICKLI, João. (2010), Negotiating Otherness in the Dutch Protestant World: missionary and diaconal encounters between the Protestant Church in the Netherlands and Brazilian organisations. Amsterdã: Tese de Doutorado em Antropologia, Universidade Livre de Amsterdã (VU University). 2010). Uma parte dos argumentos expostos aqui foi apresentada em um capítulo da coletâneaEncounters of Body and Soul in Contemporary Religious Practices: anthropological reflections (Rickli_____________. (2011), “The Body and the World: missionary performances and the experience of the world in the Protestant Church in the Netherlands”. In: A. Fedele e R. L. Blanes (eds.). Encounters of Body and Soul in Contemporary Religious Practices: anthropological reflections. Oxford: Berghahn Books. 2011).
  • 2
    Um exemplo bastante eloquente foi usado por uma pastora para me explicar este ponto: certas comunidades não apenas realizam matrimônios de pessoas do mesmo sexo, mas são lideradas por pastores ou pastoras homossexuais casados, enquanto outras não aceitam o casamento de pessoas do mesmo sexo (algumas sequer aceitam o segundo matrimônio nos casos de viuvez ou divórcio).
  • 3
    Numa definição simples, baseada nas opiniões ouvidas em campo, missão trata das ações e projetos que veiculam sentidos abertamente cristãos e religiosos; diaconato mundial refere-se às obrigações e ações sociais da igreja em relação à sociedade global que a cerca, sem que haja a explicitação de conteúdos religiosos; e, finalmente, cooperação para o desenvolvimento assemelha-se ao diaconato, mas abrange projetos mais amplos, geralmente desenvolvidos junto a grandes ONGs doadoras ou governos e que tratam de temas atrelados às agendas internacionais de desenvolvimento, tais como aquecimento global, sustentabilidade, etc.
  • 4
    Embora não seja necessário detalhar os motivos para que existam duas comunidades PKN na cidade, é importante esclarecer que, em algumas regiões, a fusão entre as denominações que originou a PKN não foi totalmente realizada. Assim, em algumas cidades como Coevorden mantiveram-se duas comunidades distintas, apesar de cooperarem em diversas áreas, como é o caso da comissão ZWO.
  • 5
    Presbíteros e diáconos são os membros leigos do Conselho, o órgão responsável pela gestão dos assuntos litúrgicos e práticos da igreja, a quem o pastor está subordinado.
  • 6
    Lucas 18:9-14. A parábola valoriza a humildade e repreende aqueles que exaltam suas próprias virtudes.
  • 7
    Essa digressão acompanha parcialmente algumas das sínteses teóricas produzidas na antropologia brasileira acerca de dinheiro e moeda, principalmente NeiburgNEIBURG, Federico. (2007), “As Moedas Doentes, os Números Públicos e a Antropologia do Dinheiro”. Mana, v. 13, nº1: 119-151. (2007) e MüllerMÜLLER, Lúcia. (2006), Mercado Exemplar: um estudo antropológico sobre a Bolsa de Valores. Porto Alegre: Zouk. (2006). Ver também as etnografias reunidas em MottaMOTTA, Eugênia et al. (eds.). (2014), “Dossier ‘Ethnographies of Economy/ics’”. Vibrant, v. 11, nº 1. et al. (2014). Sobre dinheiro e religião, ver LimaLIMA, Diana. (2007), “‘Trabalho’, ‘Mudança de Vida’ e ‘Prosperidade’ entre Fiéis da Igreja Universal do Reino de Deus”. Religião & Sociedade, v. 27, nº 1: 132-155. (2007).
  • 8
    O volume organizado por BlochBLOCH, Maurice e PARRY, Jonathan. (1989), Money and the Morality of Exchange. Cambridge: Cambridge University Press. e Parry (1989) traz uma coletânea de exemplos etnográficos de sociedades que utilizam dinheiro, mas o fazem a partir de pressupostos distintos destes descritos por Marx e Simmel. Ver também GregoryGREGORY, Chris. (2000), Savage Money: the anthropology and politics of commodity exchange. Amsterdam: Harwood Academic Press.(2000).

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Jul-Dec 2015

Histórico

  • Recebido
    Nov 2014
  • Aceito
    Set 2015
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