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As muitas faces do bem e do mal: proteção, risco e batalhas espirituais na favela de Acari

VITAL, Christina. Oração de Traficante. Uma etnografia. 2015. Garamond, Rio de Janeiro: 423

VITAL, Christina. Oração de Traficante. Uma etnografia. Rio de Janeiro: Garamond, 2015, 423pp.

Oração de traficante, uma etnografia é uma obra cujo interesse ultrapassa barreiras acadêmicas, situando-se no cruzamento de tradições como estudos da cidade, da religião, de redes sociais, da família e das “margens”. Ao tomar como objeto central as estratégias mobilizadas por moradores de favelas na construção de segurança na vida cotidiana, a autora passa por temas que estão na ordem do dia, como o crescimento pentecostal nas favelas e sua relação com as diferentes tradições que já operavam naqueles territórios, inclusive as relacionadas ao crime.

O livro parte de uma pergunta chave: quais as estratégias acionadas pelos moradores de favelas frente aos elementos de insegurança com que lidam em seu cotidiano? A questão é construída a partir das proposições de Anthony Giddens acerca das transformações na compreensão de risco e segurança na modernidade. A segurança moderna estaria na crença no funcionamento dos “sistemas peritos”(saúde, educação, transportes, habitação etc - oferecidos ou regulados pelo Estado) e nas rotinas que conferem previsibilidade à ação social. Assim, ao relacionar as especificidades da insegurança na favela com o problema geral da segurança na modernidade com as, evitam-se as armadilhas do exotismo ou da naturalização da favela como lugar de “risco”.

O livro é dividido em três partes. A primeira, é dedicada à apresentação do contexto estudado e das condições de construção da pesquisa. No capítulo 1, a favela de Acari (cercada de bairros de classe média baixa e outras favelas), é apresentada em contraponto ao morro Santa Marta (em meio a um bairro de classe média e alta, sem outras favelas contíguas). Embora o livro dê mais destaque à primeira, a justaposição dos dados permite entender como se constroem as noções de segurança em diferentes condições de acesso a aparelhos urbanos.

No capítulo 2, vemos como essas condições influenciam as percepções de risco dos moradores. Aparecem receios como o de ser punido pelos traficantes por acessar equipamentos urbanos que estão em território de outra facção ou de ser“confundido”(seja com um traficante, seja com um X9 - delator - ou inimigo). Para a autora, esses receios orientam uma série de medidas preventivas de demarcação de identidades, entre elas, a de evangélico, muitas vezes acionada como “proteção”.

A autora dedica a segunda parte do livro, que conta com os capítulos 3, 4 e 5, a analisar, a partir de algumas trajetórias, as estratégias de moradores para lidar com essa insegurança geral e sua expressão específica na favela. Baseando-se na diferenciação de Mark Granovetter de laços fortes (amizade, compadrio e demais relações profundas e cotidianas) e fracos (de baixa convivência, conhecidos, colegas etc), a autora analisa como essas relações permitiram a construção de lideranças locais, o estabelecimento de relações de proteção com outros moradores e mesmo com representantes do poder público. A segurança passa nessas histórias, não pela crença numa abstração, num direito, numa instituição, mas nas relações cotidianas com pessoas concretas.

Nos capítulos 3 e 4 são contrapostas duas estratégias de construção de redes de solidariedade. Somos apresentados primeiramente a uma liderança local que teria optado pela expressão artística e a integração a movimentos sociais (“laços fracos”) como forma de construir segurança e se reinventar subjetivamente. Os limites dessa estratégia aparecem na ironia e desdém com que alguns moradores falavam dele, apesar de todo o reconhecimento enquanto liderança que recebe de pesquisadores, intelectuais e ativistas de outras regiões da cidade.

Em seguida, conhecemos, no capítulo 4, histórias familiares que demonstram o funcionamento dos “laços fortes” como elemento de segurança. Em uma delas, vemos uma mãe, membro da Assembleia de Deus e moradora antiga de Acari, vemos que a noção de bem e mal nesses laços familiares não é necessariamente coincidente com a da filiação religiosa. As afinidades que a mãe demonstra com filhos identificados pela mãe como “bons”e carinhosos que, inclusive chegam a se envolver com o crime, contrastam com as dificuldades de relação com a filha que pertence à mesma igreja, mas é vista como “má”.

Por fim, o capítulo 5 apresenta o papel das redes religiosas. A autora compara com a ação católica, antiga na região, a densidade das redes pentecostais, que enfatizam a proteção aos fiéis. Diante do crescimento pentecostal, a Igreja Católica estaria reformulando sua atuação. Isso se apresenta na figura de padre Nixon, carismático, que transfere o foco de ação, antes em pastorais sociais, para atividades segmentadas e mais espirituais, semelhantes aos evangélicos. A postura da liderança católica em relação ao tráfico, porém, seria de imposição de respeito, preferencialmente pela distância, contrastando com as aproximações promovidas pelos evangélicos que aparecem na 3a parte, onde a autora desenvolve as aproximações entre esses universos.

No capítulo 6, vemos operar uma rede familiar reforçada pelas relações densas estabelecidas na Assembleia de Deus a partir do caso de intervenção de um tio que impede o sobrinho assaltante de ser morto pelo tráfico e permite sua conversão e inserção nesta rede de proteção.

O contato com as forças do bem teria um efeito civilizador na contenção de impulsos e na organização da vida, inclusive financeira. Nesse sentido, cumpre papel fundamental a chamada teologia da batalha espiritual, marca do pentecostalismo, que identifica nas dificuldades terrenas uma dimensão espiritual, uma ação de forças demoníacas. O combate ao crime, por exemplo, seria um combate ao demônio, que poderia ser exorcizado no corpo do criminoso ou do território tomado pelo crime. Essa distinção entre a pessoa (do traficante, por exemplo) e o demônio que seria o autor direto do mal realizado permite uma aproximação com os traficantes que não contamina o religioso. O traficante pode ser salvo, caso o demônio seja combatido e é papel do crente combater o mal e acolher a pessoa.

A autora demonstra essa lógica na descrição do culto mais famoso da favela, que conta com a frequência de esposas de traficantes e mesmo de seus maridos. Ao orar e exorcizar os traficantes, a missionária afirma a superioridade do poder de Deus (ao qual até mesmo as figuras mais poderosas da favela recorrem) e seu lugar de mediadora. Essa capacidade de acolhimento colocaria a Igreja numa posição chave enquanto elemento de proteção e poder, já que até o traficante, que tem poder sobre o território e a vida dos moradores, reconhece o poder desse Deus.

No capítulo 7, a autora trata da memória construída sobre o tráfico na favela e seu impacto em relação à noção de segurança. Os moradores identificam diferentes períodos e valorizam a paz promovida nos anos 1980 pelo que Marcos Alvito chamou de “traficantes reis” como períodos de paz, uma vez que atuariam como ordenadores da vida social, proibindo assaltos na região e mortes despropositadas. Vistos como benfeitores da comunidade, sua entrada no tráfico é rememorada como motivada pela revolta em situações de injustiça, permitindo que sejam diferenciados da ideia de mal associada ao crime. A leitura de perigo é deslocada para o bandido “dos outros”, já que os laços e afetos desenvolvidos com os moradores não são necessariamente desfeitos quando o indivíduo entra no tráfico.

No capítulo 8, compreendemos a relação entre as transformações no tráfico local e a dimensão religiosa. A associação dos traficantes reis com religiões de matriz africana, que marcava o território em imagens e conferia prestígio aos terreiros, é resignificada como a razão de sua derrota quando a polícia ocupa a favela e aciona uma narrativa que associa essas religiões com o mal, destruindo suas marcas nos muros e imagens.

Essa narrativa se consolida após a saída da polícia e com a conversão do novo chefe do tráfico. Sua estratégia de menos confrontos, economicamente mais lucrativa e desejada pelos moradores, influencia a formação da geração seguinte de traficantes, que, por sua vez, viveu suas próprias experiências com o pentecostalismo e suas redes.

No capítulo 9 vemos a consolidação desse processo. Embora não haja proibições quanto à presença dos terreiros, eles perdem prestígio e seguidores. A proteção passa a ser reconhecida em outro poder, o Deus pentecostal, mediado pelos pastores, que oram e exorcizam o mal nos que demandam, mesmo que sejam traficantes. A autora dá destaque às expressões dessa mudança nos muros que ganham textos bíblicos e orações, algumas encomendadas pelos próprios traficantes.

As histórias de vida apresentadas demonstram que essa combinação é possível através da ideia de “caminhada”. Apesar de ainda envolvido com elementos associados ao mal, o traficante se apresenta em um processo de mudança, em que o tráfico seria temporário e apenas um trabalho, que não se confundiria com sua pessoa.

Assim, com relatos contundentes, a autora completa seu argumento, demonstrando que as convergências entre a batalha espiritual e o ethos da guerra do próprio tráfico permitiram uma apropriação da gramática pentecostal pelos traficantes, mais profundo em alguns casos (incorporando de fato as concepções de pessoa e de bem e mal dessa teologia), mais mimético em outros (mobilizando apenas as palavras e jargões dos evangélicos sem necessariamente remeter a toda a visão de mundo em que se insere) . Essa apropriação seria resultado da expansão pentecostal na favela em geral, mas também fortaleceria a percepção local de que é nessas igrejas que se encontra a proteção e o poder. As igrejas, por sua vez, não se contaminam nesse processo, já que buscam o enfrentamento do mal e não da pessoa do traficante, que se quer libertar.

Finalizada em 2009, a pesquisa se adiantou aos apontamentos, hoje numerosos, acerca da influência do crescimento evangélico para além de seus membros em uma “cultura evangélica”, como querem alguns, ou na figura do “evangélico genérico” como apontam outros. No livro, o“traficante evangélico”perde o tom de alarme que ganhou em jornais e disputas políticas, surgindo como parte das transformações nas gramáticas que orientam a vida nas periferias. Nesse sentido, constitui uma contribuição urgente, não apenas ao debate acadêmico, mas à arena pública como um todo.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Dez 2017
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