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A relacionalidade da ruptura pentecostal: conversão, natalidade e parentesco espiritual em Gana

The relationality of Pentecostal rupture: conversion, natality, and spiritual kinship in Ghana

Resumos

Resumo: O artigo explora o processo dialógico de deliberação, crítica e intervenção em torno da conversão pentecostal em Gana. Argumento que, sob esta ótica imanente, o tropo Paulino da natalidade cristã (metanoia) tende a ser modulado de acordo com orientações éticas que chamo de evangelística e apostólica, as quais enfatizam, respectivamente, evento e processo, renascimento e maturação espirituais, projetando a conversão em uma temporalidade não linear. Destaco três eixos de realinhamento que caracterizam a maturação espiritual e examino algumas funções e articulações possíveis do parentesco espiritual, que entendo ser a unidade relacional mínima da pedagogia pentecostal. Concluo mostrando que a especificidade cristã dos vínculos de parentesco espiritual tende a ser dissolvida pela articulação dominante, na antropologia do cristianismo, entre descontinuidade temporal e desconexão individualista, e demonstro a sua capacidade de “fazer diferença” na teoria.

Palavras-chave:
pentecostalismo; conversão; parentesco; ética; antropologia do cristianismo


Abstract: The article explores the dialogic process of deliberation, critique and intervention around Pentecostal conversion in Ghana. It argues that, from this immanent point of view, the Pauline motif of Christian natality (metanoia) is modulated according to two ethical stances, which I call evangelistic and apostolic. They emphasize respectively event and process, spiritual rebirth and maturation, and project conversion into a non-linear temporality. I highlight three axes of realignment that characterize spiritual maturation and examine some possible functions and articulations of spiritual kinship, which I understand to be the relational unity of Pentecostal pedagogy. I conclude by showing how the Christianity of spiritual kinship tends to be dissolved by the dominant focus of anthropologists of Christianity on individualistic disconnection, and demonstrate its capacity to “make a difference” in anthropological theory.

Keywords:
pentecostalism; conversion; kinship; ethics; anthropology of Christianity


Introdução

Meu objetivo no presente artigo é refletir sobre o trabalho ético (Daswani 2013DASWANI, Girish. (2013), “On Christianity and ethics: Rupture as ethical practice in Ghanaian Pentecostalism”. American Ethnologist, 40:467-479) que sustenta a conversão pentecostal em Gana: normas, práticas de cuidado de si, formas de reflexividade e deliberação pública e principalmente redes de relações envolvidas na produção de sujeitos “renascidos em Cristo”. Nesse sentido, não pretendo utilizar a conversão cristã como meio para representar um contexto sociocultural. Não faltam trabalhos compreensivos dedicados a pensar as correspondências entre o crescimento pentecostal neste país, ou seja, o apelo da conversão, e fenômenos como a globalização (Gifford 2004GIFFORD, Paul. (2004), Ghana’s new Christianity: Pentecostalism in a globalizing African economy. Bloomington: Indiana University Press.), o individualismo e empreendedorismo neoliberal (Freeman 2012), a esfera pública e a indústria cultural (Meyer 2015MEYER, Birgit. (2015), Sensational Movies. Video, Vision and Christianity in Ghana. Berkeley: University of California Press .), assim como possíveis continuidades entre as espiritualidades pentecostal e tradicional africana (Asamoah-Gyadu 2005ASAMOAH-GYADU, Kwabena. (2005), African charismatics current developments within independent indigenous Pentecostalism in Ghana. Leiden: Brill.). Talvez por reconhecer a ampla atração exercida por esse tipo de abordagem para a sensibilidade secular das ciência sociais, minha estratégia será inversa: utilizar-me desse contexto (incluindo os fatores já expostos) com o propósito de debater a conversão pentecostal, o que me situaria, pelo menos a priori, no campo da antropologia do cristianismo.

A proposta de Joel Robbins (2003ROBBINS, Joel. (2003), “What is a Christian: Notes Toward an Anthropology of Christianity”. Religion 33(3): 191-199.) de uma antropologia do cristianismo “não apenas em si, mas também para si” (2003:92) inspirou-se na antropologia do Islã e seu reconhecimento mais robusto da capacidade desta tradição transnacional de produzir mundos sociais e culturais e não apenas refleti-los, gerando uma comunidade acadêmica que orbita em torno de temas que atravessam localidades. Em um artigo programático, Robbins (2007) destaca que a conversão, ou a promessa de “uma ruptura na linha do tempo da vida de uma pessoa que a divide em antes e depois, separados por um momento de desconexão” (2007:11), seria um desses diacríticos potenciais no estudo comparativo do cristianismo. No entanto, Robbins nota que a temporalidade disjuntiva da conversão tenderia a ser ofuscada pelo tempo das teorias antropológicas. Assim, quando cristãos reivindicam descontinuidades com seus passados, os antropólogos não raramente reagem a contrapelo, escavando continuidades mais ou menos visíveis com culturas nativas, como nas diversas teorias da indigenização e do sincretismo. Quando admitem que tal ruptura de fato ocorre, a tendencia é equalizar a conversão cristã com uma conversão à modernidade, logo diluir o cristianismo na hegemonia Ocidental. Assim, para Comaroff e Comaroff:

A conversão protestante moderna, naturalmente, é em si mesma uma construção ideológica enquadrada no imaginário burguês da crença racional e do eu reflexivo; de uma economia moral baseada na escolha individual, que ecoa, no plano espiritual, a economia material do mercado livre. (1989COMAROFF, Jean; COMAROFF, John. (1989),“The colonization of consciousness in South Africa”. Economy and Society,18(3): 267-296. :289)

Nota-se que ambas as vertentes tenderiam a dar pouca ou nenhuma atenção ao cristianismo ou, nos termos de Robbins, a ignorar seu “conteúdo cultural próprio” (2007ROBBINS, Joel. (2007), “Continuity thinking and the problem of Christian culture: belief, time, and the anthropology of Christianity”. Current Anthropology, 48(1): 5-38.:56), aquilo que se convencionou chamar neste campo hoje estabelecido de “diferença cristã”.

A defesa de Robbins do estudo do cristianismo em si e para si só pode ser polêmica, visto que o cristianismo é ele mesmo um conceito polêmico ou “um argumento sob disfarce de categoria” (Klassen 2013KLASSE, Pamela. (2013), “Christianity as a Polemical Concept”. In: A Companion to the Anthropology of Religion. Ed. J. Boddy e M. Lambek. p. 344-62. Oxford: Willey.:346). Considerando a mutabilidade histórica dessa tradição, sua relação privilegiada com as próprias categorias seculares e trans-históricas de “crença” e “religião” (Asad 1993ASAD, Talal. (1993), Genealogies of religion: discipline and reasons of power in Christianity and Islam. Baltimore: Johns Hopkins University Press.), e seus vínculos genealógicos e estratégicos com a modernidade Ocidental (Anidjar 2009ANIDJAR, Gil. (2009), “The idea of an anthropology of Christianity”. Interventions, 11(3): 367-393.), a proposta pode soar inocente ou simplificadora, como de fato sustentam alguns críticos (Hann 2007HANN, Chris. (2007), “The Anthropology of Christianity per Se”. European Journal of Sociology, 48(3):383-410.). Acredito que Robbins, no entanto, não postula a descontinuidade temporal da conversão como um dado a ser reconstituído, mas sobretudo como um problema antropológico a ser debatido.1 1 Por esse debate no contexto brasileiro, veja-se Campos e Reesink (2014) e Mauricio Júnior (2015). A validade de tal atitude inquisitiva é evidenciada pelos trabalhos etnograficamente densos e comparativos que tem encorajado, e não apenas sobre a conversão.

Apesar de reconhecer seus vários méritos, admito que a antropologia do cristianismo visualizada por Robbins permanece refém de outros limites da tradição culturalista, principalmente a tendência antropológica longeva apontada por Asad de “[e]m vez de tomar a produção de ‘significados essenciais’ (na forma de discurso autoritativo) em determinadas sociedades históricas como o problema a ser explicado”, tomar “a existência de significados essenciais (na forma de ‘discurso autêntico’) como o conceito básico para definir e explicar sociedades históricas” (1979:623). Um de seus efeitos tem sido expropriar, ao longo da tradução antropológica, a autoridade nativa de definir-se, por exemplo, ao assumir questões de cunho teológico como “O que é um cristão?” (Robbins 2003) em vez de traçar como as fronteiras deste objeto histórico são definidas de maneira imanente (Garriott & O’Neill 2008GARRIOTT, William; O’NEILL, Kevin. (2008), “Who is a Christian?” Anthropological Theory 8(4): 381-398.), por meio das práticas, agências, autoridades e historicidades mobilizadas ao longo da busca por “perfomances aptas” (Asad 1986ASAD, Talal. (1986), The idea of an anthropology of Islam. Occasional Paper Series, Center for Contemporary Arab Studies. Washington: Georgetown University.:14).

Os limites deste culturalismo latente apareceram de maneira bastante enfática nos meus quinze meses de trabalho de campo em Gana, onde me deparei com comunidades pentecostais extremamente cética sobre narrativas de ruptura biográfica ao estilo “Paulo na estrada de Damasco”.2 2 Minha pesquisa de doutorado foi baseada em 15 meses de trabalho de campo, realizado entre 2009 e 2011, a maior parte em Acra. O foco central da pesquisa foram escolas bíblicas pentecostais, instituições de aprendizado dedicadas aos treinamento de pastores, com ênfase maior em Anagkazo Bible and Ministry Training Center, uma instituição total associada à denominação Lighthouse Chapel International. Durante esse tempo, também realizei uma série de projetos suplementares em programas de discipulado de outras denominações, como a International Central Gospel Church (aqui citada); escolas bíblicas populares e mais precárias, atreladas a pequenas igrejas de cunho profético; e retiros de oração. Por motivos materiais, minha relação com o campo tem sido mantida desde então por encontros virtuais e telefonemas com amigos e interlocutores. Como destaco a seguir, essa atitude é fruto paradoxal do próprio sucesso quantitativo do reavivamento pentecostal neste país. Por ora, resta-nos perguntar: Como lidar com o ceticismo sobre o “conteúdo cultural próprio” (Robbins 2007ROBBINS, Joel. (2007), “Continuity thinking and the problem of Christian culture: belief, time, and the anthropology of Christianity”. Current Anthropology, 48(1): 5-38.:57) ao cristianismo quando este é suscitado pelos próprios conversos, ou seja, quando ele não é apenas um problema antropológico-epistemológico, preocupado com a correspondência entre representação e realidade, mas parte de uma problematização ética nativa, preocupada com a correspondência entre diagnóstico e intervenção? (Foucault & Rabinow 1999FOUCAULT, Michel; RABINOW, Paul. (1999), “Política da Verdade: Paul Rabinow entrevista Michel Foucault”. In: P. Rabinow. Antropologia da Razão: ensaios de Paul Rabinow. Rio de Janeiro: Relume Dumará. ). Ética aqui refere-se não a códigos morais - regras que podem ser impostas, seguidas ou resistidas -, mas à relação formativa e deliberativa construída entre sujeito e aparato prescritivo no interior de uma trajetória teleológica ou projeto de vida (Foucault 1997FOUCAULT, Michel. (1997), Ethics, Subjectivity and Truth. The Essential Works of Foucault, 1954-1984, vol. 1. (P. Rabinow, ed.). Nova York: The New Press. ). Esse modelo tem ajudado autores ligados à “virada ética” na antropologia a evitar a tendência durkheimiana a “equiparar ética ou moralidade com ‘o social’, concebido como uma ordem de regularidade causal existente em um ‘nível’ coletivo”, assim como a correspondência relativista entre moralidade e padrão cultural (Laidlaw 2013LAIDLAW, James. (2013), “Ethics”. In: A Companion to the Anthropology of Religion . Ed. J. Boddy e M. Lambek. p. 171-188. Oxford: Willey .:172). Sob essa ótica, mais do que um sistema de símbolos, identidade, noção de pessoa ou ontologia, ser cristão indicaria antes de tudo preocupar-se com a pergunta “o que é um cristão?” e agir (sobre si e sobre o mundo) a partir dessas respostas.3 3 O filósofo moral Alasdair MacIntyre, que tem influenciado o trabalho de Talal Asad sobre o Islã como uma “tradição discursiva”, articula opinião semelhante quando argumenta que “o que constitui uma tradição é um conflito de interpretações dessa tradição, um conflito que por si só tem uma história suscetível de interpretações rivais. Se eu sou judeu, tenho que reconhecer que a tradição do judaísmo é parcialmente constituída por uma discussão contínua sobre o que significa ser judeu” (1977:460-461).

No que segue, traço algumas modulações do tropo cristão da natalidade em Gana contemporânea que ganham visibilidade quando a conversão é tratada como um problema cristão. Noto que a concepção Paulina de conversão (metanoia) como “renascimento espiritual” (Hadot 2014HADOT, Pierre. (2014), “Conversão”. In: Exercícios Espirituais e Filosofia Antiga. 203-16. São Paulo: É Realizações.) tende a ser laminada em evento e processo, projetando a conversão em um tempo não linear, prospectivo e retrospectivo. Argumento que esse modo de conceber a conversão se faz imperativo em um contexto em que o pentecostalismo encontra-se eivado por tensões normativas, muitas delas frutos de sua própria estrutura cindida de autoridade, que apresento na primeira seção. Analiso alguns componentes do equipamento (Foucault 2005; Marshall 2009MARSHALL, Ruth. (2009), Political spiritualities the Pentecostal revolution in Nigeria. Chicago: University of Chicago Press. ) ético pentecostal e destaco especialmente a força desagregadora e reagregadora do parentesco espiritual, uma forma pedagógica de relacionalidade (Carsten 2004CARSTEN, Janet. (2004), After kinship. Cambridge: Cambridge University Press .) apontada pelos meus interlocutores como seminal para o seu “amadurecimento espiritual”. Concluo mostrando como a especificidade cristã desses vínculos tende a ser dissolvida pela articulação dominante na antropologia do cristianismo entre descontinuidade temporal e desconexão individualista, disposição teórica que aborta a capacidade do parentesco espiritual de “fazer diferença” na teoria ao projetá-lo como uma força exógena ao cristianismo.

Duas orientações éticas: a conversão entre o evangelístico e o apostólico

Em uma das reuniões dominicais em massa da Lighthouse Chapel International (LCI) em Acra, em abril de 2010, o bispo Dag Heward-Mills realizou um “chamado do altar” após o fim de seu sermão. Ele convidou visitantes que tivessem sentido, ao longo do culto, o “desejo de receber Cristo” a se levantar e caminhar em direção ao púlpito. Após reunir um grupo de cerca de 150 homens e mulheres sobre um pano de fundo musical solene, o bispo os guiou através da seguinte recitação:

Repitam comigo: Jesus, eu não sou ninguém. Já cometi muitos erros em minha vida. Eu sou pequeno e insignificante. Eu não consigo me salvar. Papai, você morreu por mim na cruz e ressuscitou para me salvar. Venha habitar em mim. Seja meu Senhor e salvador pessoal [repetem 3x aumentando a intensidade]. Obrigado Jesus [3x diminuindo a intensidade]. Amém? [Resposta: Amém]. Vocês foram abençoados. Vocês são uma nova criação agora. Vamos bater palmas para eles [a congregação aplaude efusivamente].

Essa prática altamente ritualizada, denominada “oração do pecador”, é reconhecida como a porta de entrada oficial para o “renascimento espiritual”. Devido à sua natureza altamente formalizada e transponível, ou seja, entextualizada (Urban 1996URBAN, Greg. (1996), “Entextualziation, replication, and power”. In: M. Silverstein and G. Urban. ed. Natural histories of discourse. p. 21-44. Chicago: University of Chicago Press .), essa oração poderia ter acontecido em qualquer templo pentecostal de Gana ou de outro país, e mesmo fora dele, em um ônibus, na rua, em casa, por intermédio de um agente evangelizador face a face ou midiatizado. Segundo a teologia arminiana da salvação adotada pela maior parte desse movimento religioso, os indivíduos que seguiram o bispo naquele dia e recitaram essa oração escolheram conscientemente converter-se e unir-se ao Reino de Deus. Essa economia da graça é alheia a ansiedades calvinistas relativas à “eleição”, já que a pressupõe superabundante, resultado do sacrifício do Cristo na cruz, que “lava” o pecado do mundo e abre passagem para uma relação viva com a presença de Deus através do Espírito Santo. Cristo quer salvá-lo e fazê-lo um “vaso” cheio do Espírito. De fato, ele já o salvou, contanto que você “aceite” tal dádiva já virtualmente dada, a ponto de o bispo afirmar com convicção: “Vocês são uma nova criação agora.”

O uso do tempo presente pelo bispo parece dotar a “oração do pecador” de uma automaticidade quase mágica, mas acredito que essa verbalização deve ser entendida como parte da retórica pentecostal, o arsenal de técnicas oratórias utilizado para incitar e encarnar a mudança de vida (Harding 2001HARDING, Susan. (2001), The book of Jerry Falwell: fundamentalist language and politics. Princeton: Princeton University Press.). Os “chamados do altar” compartilham uma série de traços com o que Connolly (2011CONNOLLY, William. (2011), A world of becoming. Durham: Duke University Press.) denomina “momentos grávidos” (2011:69), eventos de crise, trauma, surpresa ou esperança “em que camadas do passado e da antecipação futura reverberam” (ibidem). Um exemplo corriqueiro seria o momento de realização e desejo repentino de parar de fumar ao ler uma reportagem gráfica sobre os males do cigarro ou assistir a um documentário sobre as artimanhas da indústria tabagista. Evangelistas são especialmente hábeis em orquestrar atmosferas afetivas propícias para a eclosão desses microeventos de crise e redenção antecipada. Essas atmosferas desencadeiam uma falta momentânea de autodomínio, tirando o sujeito de seus horizontes convencionais de autorreconhecimento e transportando-o para uma durée opaca e excessiva, na qual emerge a possibilidade do novo.

Mudemos agora de cena, para uma conferência interdenominacional realizada em março de 2011 na igreja International Central Gospel Church (ICGC). Pregando sobre a transformação cristã, o fundador da igreja, o pastor Mensah Otabil testemunhou sobre a sua própria conversão do seguinte modo:

Eu renasci em Cristo entre 1970 e 1972. Digo isso porque eu renasci durante um certo período [risos da audiência]. Demorou muito tempo. Foi um processo. Respondi aos “chamados do altar” cerca de 40 vezes. Em qualquer momento que houvesse um chamado ao altar: “Dê sua vida a Jesus”, eu ia lá para receber Cristo. Fiz isso durante cerca de 2 anos. Tenho certeza de que uma dessas orações me salvou, então parei de ir adiante […] Na época em que eu estava nascendo de novo, o cristianismo evangélico e carismático era muito periférico […] Ninguém realmente nos levava a sério, então acreditávamos que se aumentássemos em número, haveria mudanças em nosso país. Aqui estamos nós, aumentamos em número e não tivemos nenhuma mudança radical. A pergunta é: que tipo de aumento tivemos? [...] Onde está Cristo? Onde Ele está? Onde está a mudança?

Se comparado com o evento anterior, o curioso “antitestemunho” de Otabil choca por sua trivialização do poder transformador da conversão. Após a conferência, perguntei a um amigo zeloso que me acompanhava, o evangelista Agyeman, se a fala de Otabil o havia ofendido, considerando seu tom jocoso. Ele imediatamente repudiou essa possibilidade: “Não! Eu fui realmente abençoado! Isso é o que os grades pregadores fazem. Eles sabem que a familiaridade não é boa para os cristãos. É por isso que às vezes eles dizem essas coisas.” Agyeman destacou a finalidade pedagógica da fala de Otabil, e a cena exemplifica o que Garriott e O’Neill (2008GARRIOTT, William; O’NEILL, Kevin. (2008), “Who is a Christian?” Anthropological Theory 8(4): 381-398.) chamam de “qualidade dialógica do cristianismo”, o infindável ciclo de negociação de fronteiras com agentes internos e externos que faz com que o cristianismo permaneça “um fenômeno emergente, feito e refeito através de momentos de interação e encontro, ao invés de um objeto cultural dotado de um conteúdo particular” (2008:388).

Nota-se que para um converso experiente como Agyeman, a fala desarmada de Otabil é tão retórica quanto a oração altamente entextualizada de Heward-Mills. Como tal, ambas devem ser julgadas de acordo com a missão persuasiva a que se propõem, e não em termos de isomorfismo entre estado interior e expressão pública, como nos casos de falas orientadas para a “sinceridade” ou “autenticidade” (Keane 2006KEANE, Webb. (2007), Christian moderns. Berkeley: University of California Press.). As cenas anteriores não tratam, portanto, de duas versões para o pentecostalismo: uma primeira, que encarna rupturas radicais, reduz as demandas da fé e antecipa seus ganhos de modo a ampliá-la quantitativamente; um outra, preocupada com a qualidade da fé individual e a coerência entre confissão e prática. Otabil também profere “orações do altar” em meio a atmosferas igualmente grávidas aos domingos, e escutei muitas vezes Heward-Mills abraçar o mesmo tom crítico durante encontros semanais, conferências de pastores ou “acampamentos” dedicados ao treinamento de líderes laicos.

Meu argumento é que essas vozes distintas não indicam necessariamente contradição, operando justamente como um meio discursivo de se buscar coerência no pentecostalismo: oscilar constantemente entre duas orientações éticas consideradas igualmente legítimas.4 4 Uso “orientações éticas” no sentido de ethical stances, de Keane (2016). Chamarei a orientação quantitativa e orientada para a ruptura de evangelística. Seu público ideal é o “visitante” e o converso menos engajado, conhecido em Gana como “espiritualmente imaturo”. Essa voz encarna o dever escatológico cristão de disseminar o evangelho até o retorno de Jesus, o que implica em tornar a pertença ao Reino de Deus atrativa para sujeitos que se encontram “no mundo”. Chamarei a orientação qualitativa e orientada para o processo de apostólica. Ela atualiza o dever cristão do discipulado, de aprofundar a relação entre o fiel e Deus por meio da exemplaridade, e inclui crítica e admoestação. Como destaquei, ambas orientações éticas contêm públicos e contextos específicos de enunciação. Ambas se tornam “infelizes” (Austin 1976AUSTIN, John. (1975), How to do things with words. Cambridge: Harvard University Press.) quando anunciadas em contextos não correspondentes. Uma igreja cuja voz é exclusivamente evangelista pode ser vista como superficial e pouco edificante para conversos experientes, uma “igreja de passagem”, que introduz, mas não estabelece conversos. Por sua vez, uma fala exclusivamente apostólica pode “afastar as ovelhas” ao tornar o cristianismo inacessível e excessivamente prescritivo.

Esse modelo compósito do discurso e da ética pentecostal pode ser utilizado para se entender a própria história de crescimento e crise da terceira onda do Reavivamento em Gana, da qual Heward-Mills e Otabil são expoentes. Asamoah-Gyadu (2005) destaca as origens apostólicas desse movimento religioso. Seu objetivo era converter “cristãos nominais” - a maioria deles membros das igrejas de origem missionária (presbiterianos, católicos, metodistas) - em autênticos cristãos “renascidos em Cristo”. Esse movimento se espalhou sobretudo por meio de irmandades não denominacionais, que visavam promover a oração, a santificação, a leitura da Bíblia e a operação de dons espirituais, e mobilizou modos centrífugos de associação baseados no “sacerdócio de todos os crentes”. Não se tratava de uma religião institucionalizada, uma categoria ainda frequentemente negada por pentecostais em Gana, mas principalmente uma revolução na fé individual, que poderia até ser sobreposta a antigas lealdades institucionais (Adubofour 1994ADUBOFOUR, Samuel. (1994), Evangelical parachurch movements in Ghanaian Christianity: c. 1950 to Early 1990s’. Edinburgh: Ph.D. dissertation, University of Edinburgh.).

Tal configuração mudou visivelmente nos anos 1990, a medida em que o movimento expandiu seu alcance, absorveu novas influências teológicas (confissões positivas, teologias da prosperidade e da batalha espiritual) e abraçou os ministérios de mídia como principais ferramentas de proselitismo, entrando em um forte ciclo evangelístico. Outrora centrífuga, a espiritualidade carismática sedimentou-se rapidamente em vários tipos de instituições orientadas de maneira centrípeta para “homens de Deus”, cujos ministérios articulam o cristianismo com valores modernistas, tais como empreendedorismo, globalidade e sucesso. Eles se tornaram cabeças de grandes aparatos eclesiásticos, midiáticos e de bem-estar social, que prosperaram ao ocupar o vácuo material e moral deixado pelo estado-nação em uma era neoliberal. Como parte de um movimento de massa, essas igrejas inevitavelmente absorveram uma série de “caronas” [free-riders] (Asamoah-Gyadu 2005: 89), pessoas desejosas pelo bônus dos milagres e mudança de vida sem se comprometerem com o ônus da piedade pessoal, levando Gifford (2004GIFFORD, Paul. (2004), Ghana’s new Christianity: Pentecostalism in a globalizing African economy. Bloomington: Indiana University Press.) a diagnosticar que elas teriam se tornado meras provedoras de serviços espirituais.

Além disso, a mediatização, logo, mercantilização da cultura cristã tornou os estilos e a estética pentecostal-carismática profundamente enredados com a cultura popular ganense em geral (Meyer 2015MEYER, Birgit. (2015), Sensational Movies. Video, Vision and Christianity in Ghana. Berkeley: University of California Press .), compartilhando sua baixa normatividade e tornando-se imprevisível em termos de categorização. Em suma, ao propor uma maior adaptação evangelística “ao mudo” de modo a ampliar seu impacto, essas igrejas foram invadidas por suas vicissitudes. Principalmente na região metropolitana de Acra, onde se estima que quase metade da população seja renascida em Cristo, nota-se um visível esgotamento por saturação do potencial disjuntivo da conversão. Durante meu trabalho de campo, fui exposto à curiosa situação de conviver com um grupo religioso cuja autocrítica muitas vezes me parecia até mais radical do que a crítica de seus opositores.

Entre evento e processo: amadurecimento espiritual

Considerando o ambiente instável apresentado anteriormente, creio ser importante distinguir a crítica epistemológica da crítica imanente (Ahmad 2011AHMAD, Irfan. (2011), “Immanent critique and Islam: anthropological reflections”. Anthropological theory, 11(1):107-132.; Reinhardt 2016aREINHARDT, Bruno. (2016a), “‘Don’t make it a doctrine’: material religion, transcendence, critique”. Anthropological Theory. 16(1): 75-97.) a uma tradição. A crítica epistemológica toma o não pertencimento como garantia de imunidade ética, o que a autorizaria a dissecar seu objeto em componentes essenciais e desvios situacionais. Já a crítica imanente atualiza-se como um modo de reclamar pertencimento e visa produzir algum tipo de intervenção autoritativa, operando como uma espécie de dobra normativa. Sob uma ótica externa, o estado de crise referido na seção anterior tende a ser abordado em termos de autêntico e inautêntico, assim como fazem acadêmicos como Gifford, geralmente baseados em uma representação sociológica inteiramente centrada na orientação evangelística dessas igrejas. Sob uma ótica interna, por sua vez, tal crise gerou entre meus interlocutores uma evocação constante de falta de equilíbrio entre as duas orientações acima referidas: os deveres de ampliar e qualificar o Reino de Deus. Sua resposta para tal estado anômico não era uma rejeição da orientação evangelística, mas a busca por um estado de equilíbrio normativo denominado “amadurecimento espiritual”. Gostaria de explorar como o acoplamento entre renascimento e amadurecimento espirituais produz mudanças mais gerais no tropo da natalidade cristã.

Após assistir ao “chamado do altar” anteriormente reproduzido, em que Heward-Mills declarou convictamente que aqueles homens e mulheres haviam se tornado “uma nova criação, agora”, eu pude acompanhá-los, no domingo seguinte, ao curso de “iniciantes” oferecido pela igreja. Esse é o primeiro estágio da vasta rede apostólica da Lighthouse Chapel International, que reconstituo em outros lugares (Reinhardt 2018REINHARDT, Bruno. (2018), “Discipline (and Lenience) Beyond the Self”. Social Analysis: The International Journal of Anthropology, 62(3): 42-66., 2021). Logo de início, o grupo foi introduzidos pelo líder leigo que ministrava o curso a uma versão alternativa para o renascimento espiritual: “Vocês são recém-nascidos agora, bebês espirituais, então a nossa missão é dar a vocês os princípios básicos da fé cristã, o leite que os ajudará a sobreviver e a começar a crescer na fé.” O instrutor corroborou seu ponto de vista com uma escritura “Como bebês recém-nascidos, almejem o leite espiritual puro, para que por ele possam crescer em sua salvação” (Pedro 2:2).

O que era renascimento-ruptura no registro evangelístico foi rapidamente reenquadrado como renascimento-infância no registro apostólico, início da “caminhada com cristo”. Como se vê, o foco aqui recai sobretudo na “carreira de conversão”, um ciclo de vida cristão caracterizado pela “passagem de membros dentro de seu contexto social e cultural, por níveis, tipos e fases de participação religiosa” (Gooren 2010GOOREN, Henri. (2010), Religious conversion and disaffiliation: tracing patterns of change in faith practices. New York: Palgrave Macmillan.: 48). Antes de opor-se à ruptura do evento de conversão, o processo de maturação espiritual visa sedimentar retrospectivamente a força prospectiva desse momento grávido, o que torna a temporalidade da conversão não linear e reversível. Cristãos podem “perder a salvação” e sua própria manutenção enquanto evento passado é fruto de um trabalho permanente.5 5 Veja-se Corrêa (2020) por uma análise refinada das microdinâmicas da convicção em uma carreira de conversão no Rio de Janeiro. Muitos dos meus interlocutores tiveram de se “recomprometer com Jesus” após desvios, geralmente passando por várias “orações do pecador”. Gostaria de destacar de maneira analítica e geral três eixos de amadurecimento que pude discernir de um arquivo amplo de carreiras de conversão que pude compilar durante meu trabalho de campo.

O amadurecimento espiritual é o processo pedagógico de superação da fé heterônoma que caracteriza os “bebês espirituais”, cuja devoção e relação pessoal com Deus tende a ser delegada para seus pastores por tempo indeterminado. Isso implica absorver os próprios fundamentos da autoridade ministerial, primeiramente, o conhecimento bíblico. De acordo com Engelke “os tipos de conversão que enfatizam uma ruptura com o passado não se referem apenas a uma renúncia à cultura ou tradição de cada um (como discursivamente definida). Muitas vezes também se trata de alinhar o próprio eu em relação a uma história cristã existente e imaginada” (2008ENGELKE, Matthew. (2010), “Past Pentecostalism: notes on rupture, realignment, and everyday Life in Pentecostal and African Independent Churches”. Africa 80(2):177-199.:179). Harding (2001HARDING, Susan. (2001), The book of Jerry Falwell: fundamentalist language and politics. Princeton: Princeton University Press.) caminha em direção similar quando argumenta que “a conversão transfere autoridade narrativa (...) para o novo fiel, assim como os meios de narrar a sua vida em termos cristãos” (2001:34). O acesso a essas competências discursivas, no entanto, requer aprendizado, já que os pregadores, donos de grande habilidade retórica, tenderiam a “ocupar a lacuna” [stand in the gap] entre a narrativa bíblica e a linguagem cotidiana dos fiéis (2001:12).

O amadurecimento da relação entre fiel e texto sagrado geralmente começa com uma imersão tipológica (Reinhardt 2019REINHARDT, Bruno. (2019), “Palavras-Chave: Hermenêutica”. In: Dossiê “Pensando com Saba Mahmood”. Debates do NER, 35(2): 201-210.) na narrativa, ou seja, a adoção de algum personagem preferencial que permite ao converso acessá-la “por dentro”, tornando um texto que consideram eterno e histórico em sua Verdade também pessoal e íntimo. A Bíblia fornece uma gama imensa de personalidades tipificadas, modelos que medeiam e textualizam a relação entre o eu e o si mesmo na prática cotidiana. Eles são selecionados ou melhor “encontrados” (reconhecendo a força providencial que pentecostais atribuem a coincidência) através de paralelismos biográficos, o que pode se dar em termos de gênero, profissão, gosto, personalidade, conflitos, fraquezas, vícios ou bênçãos conquistadas e desejadas. A primeira imersão ativa dos meus interlocutores na narrativa bíblica se deu em ampla maioria através de uma leitura tipológica, centrada na vida de algum personagem, para daí ampliar seu campo de competências.

A aquisição de intimidade com o texto sagrado é também o início da encorporação da narrativa, indo além da hermenêutica do “eu” e incluindo um verdadeiro processo de devir-texto, geralmente referido em Gana através da gramática da comensalidade: a bíblia-leite, como no caso anterior, ou a bíblia-mel ou pão, tropos baseados em Ezequiel (3:3-4) e Mateus (4:4). A memorização de passagens é tida como essencial para o amadurecimento, um modo de “digerir” o texto e assim “pensar e falar biblicamente”, ou seja, desenvolver um habitus bíblico,6 6 Utilizo o conceito aristotélico de hexis/habitus aqui de acordo com a tradição maussiana (Asad 1997, Hirschkind 2021), ou seja, sem submeter esse conceito, como faz Bourdieu, ao problema da reprodução de estruturas sociais. Esse foco nas técnicas corporais ou tecnologias do sujeito com base no interior de tradições discursivas tem sido um traço distintivo da antropologia da ética (Laidlaw 2013). tornar-se uma caixa de ressonância para a palavra de Deus. Escrituras mais simples são definidas como “mingau”, e devem ser servidas para os iniciantes, enquanto passagens complexas, como as do Apocalipse, são “banku”, comida tradicional fermentada, tida como pesada e de difícil digestão, devendo ser reservadas para cristãos maduros. O motivo da digestão e ruminação do texto sagrado tem uma longa valência histórica no cristianismo (Carruthers 2008CARRUTHERS, Mary. (2008), The book of memory: a study of memory in medieval culture. Cambridge: Cambridge University Press .). No caso de Gana, ela também contraefetua a comensalidade negativa associada à bruxaria, cuja agência opera por meio do consumo espiritual predatório. Sob esta lógica, estar “cheio da Palavra” é também visto como um modo de selar-se para a agência voraz do mal.

Um segundo eixo de maturação é a prática habitual de exercícios espirituais. Harding (2001HARDING, Susan. (2001), The book of Jerry Falwell: fundamentalist language and politics. Princeton: Princeton University Press.) equipara a conversão a um processo de aprender uma nova língua ou dialeto, mas é importante lembrar que o elemento comunicativo e significativo da conversão é parte de um remodelamento muito mais amplo do habitus crente. Como destaquei antes, a própria prática de memorização da Bíblia excede a absorção do significado dos textos, figurando como uma tecnologia de si. “Comer a bíblia” é um meio para “agir e pensar biblicamente”, equacionar norma e desejo de maneira consubstancial, logo não mais externa e coercitiva. Enquanto o ato de conversão através da “oração do pecador” pode ser entendido como um gesto de “escolha” e declaração de consentimento a determinadas proposições ou “crenças” - “Jesus é o filho de Deus”, “Ele tem o poder de me salvar”, etc. - sob a ótica do amadurecimento, a conversão é um processo lento de remodelamento das disposições, paixões e desejos daquele que um dia “escolheu” e que já não está mais lá. Isso se dá pelo cultivo de habilidades religiosas via exercícios espirituais.

Cristãos imaturos, por exemplo, são definidos como aqueles que recorrem à oração como uma “pílula”, uma solução para momentos difíceis, quando não simplesmente delegam seu dever de orar para um pastor, que intercede por eles. Cristão maduros, por outro lado, exercitam seus “músculos de oração” de maneira metódica, e desenvolvem “estamina de oração”, capacidade de orar por longas horas, e mesmo sem motivo aparente (Reinhardt 2017aREINHARDT, Bruno. (2017a), “Praying until Jesus returns: commitment and prayerfulness among charismatic Christians in Ghana”. Religion, vol. 47, p. 51-72, 2017.). Eles oram para “glorificar a Deus” e “passar tempo no Espírito” e são definidos como sujeitos “orantes” (prayerful), ou seja, que transformaram uma prática em uma qualidade pessoal, um modo de ser. Eles praticam a oração através de um número crescente de métodos: em “línguas naturais”, em glossolalia extática e barulhenta (só ou em grupos) ou em meditação silenciosa. Esses são modos de afinar o vaso sensorialmente (Hirschkind 2006HIRSCHKIND, Charles. (2006), The Ethical Soundscapes: Cassette Sermons and Islamic Counterpublics. Nova York: Columbia University Press.) para os movimentos do Espírito Santo em todos os seus modos afetivos, dos mais exuberantes aos mais íntimos. Como destaca Frimpong, membro da Lighthouse Chapel, ao descrever o cultivo da habilidade ético-espiritual de escutar a voz de Deus:

A maturidade difere. Você pode ver duas pessoas que nasceram de novo no mesmo dia. Em um ano, você verá uma diferença enorme. [...] Essas duas pessoas receberam o Espírito Santo no mesmo dia, mas a comunhão com o Espírito Santo traz maturidade. Quando você deseja fazer algo pecaminoso, o Espírito Santo o impulsiona para o outro lado. Mas alguns cristãos ignoram esse sinal, vão em frente e fazem o que querem. Mas se você seguir o Espírito Santo, com o tempo, a compreensão entra em seu coração. A santificação torna-se mais fácil, e então você percebe que está vivendo em comunhão. Ele fala conosco o tempo todo, mas você tem que ceder. (...) Quanto mais você escuta o Espírito Santo em você, melhor é sua compreensão de seus movimentos e direções, e ele flui naturalmente no final. As revelações vêm o tempo todo. Se você não ouvir o Espírito, chegará a um momento em que ele estará gritando e você não o ouvirá. (...) A obediência é a chave. É isso que a meditação faz: ela aumenta esta comunhão, esta conexão.

A fala de Frimpong demonstra que o remodelamento moral da volição em uma espiritualidade carismática é em si um modo de afinamento sensorial, que encanta a percepção e a apercepção simultaneamente. Um dos seus efeitos paradoxais é tornar o miraculoso ordinário. Enquanto o converso imaturo associa o poder do Espírito Santo exclusivamente a eventos fantástico de cunho evangelista, como profecias e curas, o converso em maturação tende progressivamente a percebê-lo como uma força cotidiana, um Outro interno e um meio de navegação de si mesmo e do mundo, reclamando assim autoridade espiritual.

Um terceiro eixo de maturação são as comunidades de prática, definidas por Wenger (1999WENGER, Etienne. (1999), Communities of practice: learning, meaning, and identity. Cambridge: Cambridge University Press .:73-84) como empreendimentos conjuntos produzidos e reproduzidos dinamicamente através de um envolvimento contínuo entre atores e entre estes e um repertório compartilhado de competências desejáveis. O resultado é um ambiente geral no qual fazer significa simultaneamente aprender e transformar-se. Conversos imaturos articulam-se com a igreja quase que exclusivamente de forma vertical, através do pastor e dos cultos, o que os impede de acessar essas comunidades. Acredito que Gifford generaliza esse tipo de membro ou visitante em seu diagnostico de que as igrejas pentecostais-carismáticas “não são comunidades ou irmandades de forma alguma” (2003:185). Conversos que entram no ciclo da maturação, por sua vez, o fazem através de uma abertura horizontal para os setores laicos da congregação, seja através de ministérios temáticos, seja através de redes informais de amizade e discipulado. Testemunhos de cristãos em maturação são povoados por outros significativos que não o pastor, como o caso de Kweku, 28 anos, membro da ICGC:

Quando me mudei para a ICGC, vindo da igreja metodista, fiz novos amigos, especialmente nas várias aulas de Bíblia [programa de discipulado] que eles oferecem. Também encontrei aqui alguns amigos que conhecia da escola, mas que não interagiam muito comigo naquela época. Agora pertencemos à mesma família, a família de Deus. Nós nos divertimos juntos, e gostamos de compartilhar a Palavra de Deus, orar, e fazer evangelismo juntos. [...] Percebi que ouvir o testemunho de outros cristãos me ajuda muito em minha própria caminhada com Cristo. E eu também trago o meu testemunho. [...]. Acredito que você tem que se conectar com pessoas que são como você quer ser, pessoas que já receberam de Deus o que você deseja. Você quer rezar por longas horas? Caminhe com alguém que faça isso. Você quer memorizar mais escrituras? Caminhe com alguém que seja uma “Bíblia ambulante” [cristãos com grande capacidade de memorizar escrituras]. O mais importante é ter um pai espiritual, ter um mentor, que pode lhe dar conselhos e direções. Interceder por você. Eu não tinha nenhuma dessas coisas quando estava na igreja metodista, então eu estava na igreja, mas ainda pertencia ao mundo.

O relato de Kweku justapõe de maneira próxima o estreitamento de seu vínculo pessoal com Deus e sua inserção mais profunda em redes cristãs de transmissão, exemplaridade e reciprocidade. Kweku converteu-se ao converter suas relações. A fronteira entre uma vida pregressa em uma vida nova pode ter sido demarcada quando ele atendeu o “chamado do altar”, mas ela foi asseverada a posteriori pela sua refiliação a uma comunidade de prática, que ele tematiza em termos de parentesco: filiação à tradição (família de Deus), filiação institucional (família ICGC), filiação comunitária (irmãos e irmãs em Cristo) e parentesco espiritual (mentor ou pai espiritual). Nota-se que o que apresento aqui como o terceiro eixo do processo de maturação deve ser entendido como a própria infraestrutura pedagógica que propicia os dois eixos mencionados. Kweku destaca como a sua transição da escuta passiva da narrativa bíblica para a fala e o habitus bíblico (primeiro eixo) foi permeada por outros próximos. Da mesma forma, sua aquisição de competências religiosas como a oração e o evangelismo (segundo eixo) se deu em meio a uma divisão do trabalho de Deus (Reinhardt 2021REINHARDT, Bruno. (2021), “Oikonomia Pentecostal: reflexões teológico-econômicas sobre religião e neoliberalismo”. Revista Brasileira de Ciências Sociais, 36(1): 1-20.). A seguir, elaboro mais sobre a última modulação do parentesco cristão mencionada por Kweku: as relações pessoais de discipulado ou parentesco espiritual, elas mesmas extremamente plásticas.

As variedades do parentesco espiritual

Em uma de nossas conversas, Dede, 28 anos e membro do ministério de intercessão da LCI, me forneceu uma boa definição panorâmica da relação entre filho e parente espiritual:

Primeiro, não há apenas pais espirituais, mas também mães espirituais. Por exemplo, Tony [um conhecido comum] tem uma mãe espiritual. Essas pessoas o ajudam a crescer no Senhor. Elas te escolhem quando você se converte; algumas delas te evangelizam e te convertem, depois te discipulam para a vida cristã e te conduzem para os ministérios da igreja. Na Bíblia, Paulo era o pai espiritual de Timóteo. Eles te ajudam a crescer no Senhor, oram com você, se você tem algum problema, eles te sentam, te explicam coisas, é como sua mãe cuida de você, mas espiritualmente, eles nutrem seus filhos e filhas espirituais. Eles também são mentores, nem sempre, mas normalmente são. [...] Você pode vê-lo como um mentor. Eles basicamente o nutrem espiritualmente para crescer. Se eles têm um dom que você deseja, eles podem transmiti-lo a você, impondo as mãos. Nós acreditamos nisto: se eu tenho algo que você deseja, eu posso dá-lo a você impondo as mãos. Eles podem impartir dádivas.

Dede sintetiza algumas funções realizadas pelo parentesco espiritual pentecostal. Elas são: a exemplaridade, ou a apresentação de um modelo vivo para a vida cristã em adição aos modelos textuais; a transmissão através da performance conjunta de práticas devocionais; a intercessão, ou o uso de sua autoridade espiritual como um “escudo” para proteger o filho ou filha em sua caminhada; e a impartição, a transmissão de dádivas espirituais e unções através do contato cotidiano e da imposição de mãos. A versão apresentada por Dede é típica das grandes denominações carismáticas, como a ICGC e a LCI, onde o parentesco espiritual serve como entrada nos ministérios laicos e ajuda a tecer redes pessoais de transmissão em meio a organizações grandes e complexas. A produção de parentesco cristão preenche o vácuo existente entre o pastor-celebridade relativamente distante e a congregação ao tecer vínculos entre membros com menos e mais “idade em Cristo”. De maneira mais ampla, no entanto, as variáveis citadas por Dede são articuladas de formas muito diversas em Gana, permitindo-nos vislumbrar o parentesco espiritual como uma unidade relacional e pedagógica modular, que tanto avança quanto diferencia carreiras de conversão. Destaco algumas de suas variações.

Vínculos de parentesco espiritual são acumulativos e não excludentes, logo pode-se crescer na fé “seguindo” ou “sentando aos pés” de uma diversos pais e mães adotivos. Nesse sentido, sua lógica de emulação, transmissão e cuidado é tanto uma fonte de normatividade quanto um campo onde as lealdades dos convertidos são disputadas. Como tal, o parentesco espiritual pode inclusive ter impacto na inserção do fiel na esfera pública midiatizada. Emmanuel, pastor aspirante matriculado na Escola Bíblica da ICGC, fez questão de diferenciar seu pai espiritual de Mensah Otabil, fundador e líder da denominação, com quem ele cultiva uma relação mais midiatizada:

Se a pessoa compartilha a Palavra de Deus frequentemente com você, ou se essa pessoa lhe ensina como orar e ora com você e por você, às vezes por telefone. Se esta pessoa lhe ensina sobre Cristo e como crescer em Cristo, nós o chamamos de pai espiritual. Esse é o modelo que eu busco durante meu crescimento espiritual. Posso dizer que o Dr. Otabil é meu mentor, porque não tenho muitas interações com ele, apenas durante os sermões e através de seus vídeos e livros, e isso me ajuda muito, mas a pessoa que você interage sempre, aquela que o conhece muito bem, e você também o conhece muito bem, isso é o que eu chamo de pai espiritual.

Emmanuel preferiu distinguir com nitidez a intimidade do vínculo de parentesco espiritual do vínculo com seu “mentor” Otabil. Em muitas de minhas entrevistas, no entanto, essa linha era menos nítida, e pastores midiáticos preferenciais eram citados lado a lado com fontes de interações face a face. Como destaco em outra ocasião (Reinhardt 2020aREINHARDT, Bruno. (2020a), “Desagregando a mediação: tecnologias e atmosferas religiosas”. Mana, 26(3): 1-33.), mesmo a “impartição” ou transferência de poder carismático pode se dar via consumo midiático. Em suma, o parentesco espiritual tem o poder de personalizar e incorporar o consumo da mídia, tornando-o também mais regular e fidelizado. A esfera pública, fonte de massificação evangelística, pode assim tornar-se um espaço apostólico de nutrição religiosa, embora nunca se admita que a mídia possa simplesmente substituir as interações face a face de discipulado.

A qualidade irredutível do parentesco espiritual face a face está justamente em sua estrutura pedagógica, que, assim como as artes e os ofícios, faz vasto uso da “participação periférica legítima” (Lave & Wenger 1999LAVE, Jean; WENGER, Etienne. (1999), Situated learning legitimate peripheral participation. Cambridge: Cambridge University Press .). Esse aspecto inclui todo tipo de converso em maturação cuja habilitação religiosa inevitavelmente se dá através de uma participação progressiva na vida da igreja, transitando do periférico (varrer o chão, decorar, cumprimentar os congregantes na entrada) ao médio (instalar os aparelhos de som, proferir anúncios do púlpito, abrir orações, liderar grupos de leitura da bíblia) ao central (liderar sessões de oração, fazer parte do grupo de louvação, até pregar em cultos de dia de semana). A articulação entre parentesco espiritual e a relação de mestria aparece de maneira mais evidente nas carreira de conversão de pastores, onde seu aspecto hierárquico tende a ser enfatizado. De acordo com o mesmo Emmanuel:

Não tive apenas um pai espiritual, mas muitos. Deus me levou a muitas pessoas. Um dos mais importantes vai ao Christ Temple [quartel general da ICGC], o Sr. Joshua Ade. Ele viu o potencial em mim e começou a me encorajar. [...] Ele não é ativo no ministério. Ele é conselheiro e ajuda casais no Departamento de Aconselhamento da ICGC. Ele não está na linha de frente, mas caminhou com homens de Deus, e sabe como eles se comportam, suas fraquezas. Portanto, qualquer dúvida que eu tenha, eu vou até ele. [...] Outra pessoa com quem eu aprendi muito em termos de vida espiritual foi o Profeta Daniel. Ele está atualmente na África do Sul. Outro homem de Deus foi o Profeta Assoman, ele dirige um ministério em Dansuman. Eu o servi, então aprendi todas essas coisas com ele: jejuar, rezar por longas horas e tudo isso. Porque eu desejava o que Deus tinha dado para ele, eu me aproximei dele, indo até sua casa, passando ferro, lavando, fazendo qualquer pequeno trabalho que ele precisasse, só para ouvir dele. Essa era a única maneira de eu entrar em contato e aprender. [...] É desse serviço que estou falando. É como se Elizeu estivesse despejando água nas mãos de Elias. Tudo isso faz parte do aprendizado.

Emmanuel amadureceu na fé e encontrou o seu chamado através de uma coleção de mediadores paternais: o pastor celebridade, cujos livros ele consome e em cuja denominação ele pretende trabalhar; o ancião leigo da denominação, cujos conselhos amenizam suas ansiedades morais; o mestre de um ofício que, apesar de não pertencer à mesma denominação, é detentor de habilidades e dádivas espirituais que ele deseja, e a quem serviu com a submissão de um aprendiz, como Elizeu serviu a Elias antes de herdar seu “manto” (1 Reis, 2 Reis).

Outra variação importante concerne os vários modos de se articular parentesco espiritual e o que chamamos de parentesco “biológico”. O Rev. Ofori, da Igreja Quadrangular, e especialista em aconselhamento matrimonial com um popular programa de rádio em Acra, exemplificou um caso de acoplamento total das duas séries de parentesco. Durante uma de nossas conversas, ele me falou de seu “altar familiar”, algo que ele encoraja seu rebanho e audiência a imitar:

Ao acordar pela manhã, você deve ser capaz de reunir sua família e adorar o Senhor. Você está ensinando-os a sacrificar-se para servir a Deus, porque acordar às 4h30, 5h da manhã pode ser muito difícil. [...] Mesmo que não absorvam tudo, porque se sentem sonolentos, é uma cultura que eles estão aprendendo. Essa é também uma forma de fazer com que seus filhos saibam que Deus é a fonte de tudo, o líder da casa. Quando há problemas, eles devem ir a Deus. Você está treinando seus filhos para conhecerem a Bíblia por conta própria. Se eles já têm 5, 6, 7, você pode pedir-lhes que participem ativamente: Você pode orar por nós? Você pode ler ou citar esta passagem? Você pode quebrá-la e explicá-la? Dar exemplos de como aplicá-la? Você pode liderar a louvação hoje? [...]Isso é o que eu chamo de altar de familiar.

Como era de se esperar, um “altar familiar” não é um espaço sagrado ou uma reunião de objetos, mas uma sequência relativamente padronizada de práticas semelhantes às realizadas pela maioria das irmandades pentecostais. Ofori produz uma síntese entre rotina familiar e religiosa via participação periférica legítima, algo facilitado pela presença do cristianismo carismático em sua casa através das gerações.7 7 Esse é um grupo cada vez mais comum em Gana, dado o impacto do reavivamento entre gerações: indivíduos que de certa forma “nasceram renascidos em Cristo”. Não posso elaborar aqui sobre suas particularidades, mas basta dizer que seu cristianismo não é imune a tensões. Sobre esse tema, ver Csordas (2009). Mas a relação entre essas duas séries de parentesco pode ser altamente conflitiva, como entre conversos que cresceram em casas muçulmanas ou com assentamentos tradicionais. No último caso, tal conflito de lealdades se mostrou mais comum entre interlocutores Ewe, em que a religião tradicional, mesmo que minoritária, é mais resiliente e capilariza a sua agência espiritual nas famílias extensas. Tal situação tende a requerer uma “ruptura com o passado” (Meyer 1998MEYER, Birgit. (1998), “Make a complete break with the past”: memory and post-colonial modernity in Ghanaian Pentecostalist discourse. Journal of Religion in Africa 28(3): 316-349.) mais radical, muitas vezes gerando o autoexílio familiar e a migração.

Outra modulação possível do parentesco espiritual me foi apresentada em Kumasi. Havia viajado para a região Ashanti para conhecer as montanhas Atwea, um dos maiores retiros de oração de Gana (Reinhardt 2017bREINHARDT, Bruno. (2017b), “Temporalidade, ética e contingência na pós-colônia africana: esperando por Deus em Gana”. Ilha: Revista de Antropologia , 19(2): 175-202.). Lá conheci a profetisa Priscilla. Priscilla havia retornado sozinha a Kumasi em 2002 depois de passar 5 anos na Itália com seus pais e irmãos, que haviam migrado para a Europa em busca de uma vida melhor. Extremamente devota, Priscilla foi acometida durante sua estadia na Itália por sonhos e visões persistentes, sinais que ela interpretou como um chamado de Deus para que retornasse a sua cidade natal e assumisse o ministério em tempo integral. Ela fundou a Jesus is the Answer Family Church, em 2008, e hoje conta com cerca de duzentos membros. O título “igreja família” indica o caráter comunitário de seu ministério, em oposição, por exemplo, às diversas igrejas de Gana que, ao incluir “internacional” em seus nomes, preferem destacar a sua globalidade. A profetiza é reconhecida na cena local por sua disposição maternal e acolhedora, sendo chamada de Sweet Mother.

Figura 1
Outdoor da Jesus is the Answer Family Church, em Kumasi

Na volta de Atwea, pude passar dois dias na casa de Priscila, onde fui exposto a uma versão bem mais literal de seu conceito de “igreja familiar”. Priscila mora com doze discípulos, jovens a quem ela provê materialmente e nutre espiritualmente. O número é alusão aos apóstolos de Cristo, e suas histórias de vida encarnam as agruras do deserto pós-colonial: um ex-aprendiz de boxeador com dentes dourados e um passado criminal; uma jovem de doze anos de uma aldeia Ashanti que se viu exilada em Kumasi após ser acusada de bruxaria; cinco órfãos, entre eles um dos “guerreiros de oração” da igreja, que conheci em Atwea, que teve os pais e seu único irmão mortos durante um acidente rodoviário na fronteira com a Costa do Marfim. Todos os outros tinham acabado de decidir “servir” a profetisa, mudando-se para a sua casa e fazendo de sua vida cotidiana comum uma oportunidade para o aprendizado pastoral e para a impartição de dádivas. Todos haviam sido “conduzidos a Cristo” por Sweet Mother e desempenhavam uma variedade de tarefas em sua igreja, como evangelismo, liderar orações, instalar o sistema de som, administrar a papelada dos membros, manter os registros mensais do dízimo e administrar o ministério de crianças e jovens da igreja. A vida na casa incluía serviços domésticos, como no caso de Emmanuel, e era regrada por rotinas devocionais muito similares às referidas por Ofori. A família espiritual de Sweet Mother é uma igreja dentro da igreja, íntima e visceralmente ligada à sua autoridade matriarcal e profética.

Figura 2
Alguns Filhos Espirituais de Sweet Mother

É importante lembrar que a ligação privilegiada entre parentesco e o que Carsten (2000, 2004) chama de relacionalidade [relatedness], modos amplos de mutualidade, consubstancialidade e coparticipação que excedem a família estrita ou extensa, não é estranha aos ganenses. Isso é evidenciado pelo uso cotidiano da terminologia de parentesco como um marcador de pertença, deferência ou distinção a determinado grupo etário. Apesar da desagregação colonial e pós-colonial dos sistemas tradicionais de parentesco, há um uso constante em Gana de redes amplas de parentesco extenso e adotivo como meios de alocar e redistribuir recursos e oportunidades escassas, prática extremamente comum em toda a África Ocidental (Alber, Martin e Notermans 2013ALBER, Erdmute; MARTIN, Jeannett; NOTERMANS, Catrien. (2013), Child fostering in West Africa new perspectives on theory and practices. Boston: Brill. ). Nos anos 1970, Goody (1973GOODY, Esther. (1973), Contexts of kinship; an essay in the family sociology of the Gonja of Northern Ghana. Cambridge: Cambridge University Press .) já mostrara que um dos efeitos visíveis da delegação do cuidado nessa região é que para se acessar a biografia de alguém é necessário perguntar tanto “Quem te deu à luz?” quanto “Quem te criou?” (1973:82). Talvez essa tendência longeva tenha de fato se ampliado ao longo do tempo. O caso de Sweet Mother e sua família confirma a tese de Ferguson (2013FERGUSON, James. (2013), “Declarations of dependence: labour, personhood, and welfare in Southern Africa”. Journal of the Royal Anthropological Institute, 19(1):223-242.) de que, em um contexto neoliberal africano de precarização da vida e oclusão de utopias individualistas sobre um futuro autopossuído, a hierarquia enquanto “desigualdade social” tende a proteger os indivíduos de uma “desigualdade asocial” e anômica abrangente.

Isso nos leva ao problema de como qualificar todas essas modalidades de parentesco como cristãs. Por um lado, o parentesco é constitutivo de qualquer forma de florescimento humano (Schneider 1977; MacIntyre 1999; Sahlins 2013). Por outro, temos o que Robbins chama de “narrativas da continuidade” (Robbins 2007ROBBINS, Joel. (2007), “Continuity thinking and the problem of Christian culture: belief, time, and the anthropology of Christianity”. Current Anthropology, 48(1): 5-38.), que tenderiam a destacar a localidade dessas práticas. Por fim, temos a questão da relação entre parentesco espiritual e as vicissitudes de um contexto socioeconômico específico. Endereço esse tema na conclusão ao destacar as contribuições de meu argumento para debates correntes sobre cristianismo e individualismo.

A relacionalidade da ruptura

Neste artigo, explorei o processo dialógico de deliberação, crítica e intervenção em torno da conversão pentecostal em Gana. Argumentei que, sob esta ótica, o tropo Paulino da natalidade cristã (metanoia, Hadot 2014HADOT, Pierre. (2014), “Conversão”. In: Exercícios Espirituais e Filosofia Antiga. 203-16. São Paulo: É Realizações.) tende a ser modulado pelas orientações éticas evangelística e apostólica do pentecostalismo, que enfatizam, respectivamente, evento e processo, renascimento e maturação espirituais. A visão dupla do renascido em Cristo como “novo homem” e “bebê espiritual” inviabiliza a definição da conversão enquanto simples reorientação de uma crença para outra ou da descrença para a crença. O mesmo vale para abordagens em termos de eficácia ritual (Tambiah 2018TAMBIAH, Stanley. (2018),“Forma e significado dos atos mágicos”. In: Cultura, Pensamento e Ação Social: uma Perspectiva Antropológica. p. 71-96. Petrópolis: Vozes.), já que a felicidade pragmática de marcadores rituais da ruptura, como a “oração do pecador”, excede de longe seu contexto de enunciação. Por ser sobretudo pedagógico, esse modelo não oferece uma definição unitária para a conversão, logo, também para a questão “O que é um cristão?” (Robbins 2003ROBBINS, Joel. (2003), “What is a Christian: Notes Toward an Anthropology of Christianity”. Religion 33(3): 191-199.). Ele tanto demarca o cristianismo quanto multiplica seu interior com diversos tipos de cristãos, muitos deles estáticos, outros em diversos estágios de sua “caminhada com Cristo”.

Destaquei três eixos de realinhamento que fundamentam essa caminhada, cada um deles enquadrando a conversão à sua maneira: como aprendizado de uma nova língua (no caso da aquisição da autoridade bíblica), como habilitação ético-espiritual (no caso da aquisição do habitus crente e encorproação [embodiment] da autoridade carismática) e como refiliação a comunidades de prática (no caso da participação periférica legítima em redes cristãs institucionais ou não). Apontei para algumas funções e articulações possíveis do parentesco espiritual, entendido como a unidade relacional mínima da pedagogia pentecostal, e tracei como ele gesta e anima carreiras de conversão com diferentes profundidades, estilos, e dinâmicas de autoridade. Gostaria de concluir destacando como as redes associativas que meus interlocutores consideraram um aspecto determinante de sua conversão tendem a ser invisibilizadas pelo foco dominante de antropólogos do cristianismo em uma associação estreita entre conversão cristã e desconexão individualista.8 8 Veja-se Bialecki e Daswani (2015) por uma revisão.

Para Robbins, defender o conteúdo cultural do cristianismo em si e para si significa reconhecê-lo como “incessantemente individualista” (2004ROBBINS, Joel. (2004), Becoming sinners Christianity and moral torment in a Papua New Guinea society. Berkeley: University of California Press . :293). Robbins sublinha como o sujeito pentecostal na Melanésia corporifica o individualismo escatológico das comunidades Paulinas originárias, e assim suspende a normatividade tradicional e reorienta o foco moral do converso para sua relação consigo mesmo, um processo de “tornar-se pecador”. Birgit Meyer, por sua vez, argumenta que o pentecostalismo “(...) não enfatiza os laços sociais, mas o indivíduo independente e moderno que não precisa encontrar raízes positivas no ‘passado’ para ser guiado no caminho em direção ao futuro” (1998:340). Meyer de fato demonstra como sessões de libertação em Gana são obcecadas por “pactos familiares” de natureza oculta, que, na sua visão, deterioram a promessa de descontinuidade cristã ao transformar o passado “idólatra” das famílias extensas em “antimemória”.9 9 Fiz argumento similar no passado em uma pesquisa no Brasil (Reinhardt 2007), apesar de, na época, desconhecer o trabalho de Meyer. Esse trabalho compartilha com o dela a limitação tradicional na antropologia da religião de equalizar “rituais” específicos com formas de vida muito mais complexas e multifacetadas (Asad 1993:55-82). Seu modelo da pessoa cristã é o de um indivíduo abortado, que reflete as contradições da modernidade periférica. A relacionalidade e o parentesco são admitidos dentro do pentecostalismo, mas como um persistente retorno do recalcado.

Em contraposição, minha abordagem se alinha com autores como Coleman (2009COLEMAN, Simon. (2009), “Transgressing the Self: Making Charismatic Saints”. Critical Inquiry 35(3): 417-439.), Mosko (2010MOSKO, Mark (2010), “Partible Penitents: Dividual Personhood and Christian Practice in Melanesia and the West”. Journal of the Royal Anthropological Institute 16(2): 215-240.), Werbner (2011WERBNER, Richard. (2011), “The Charismatic Dividual and the Sacred Self”. Journal of Religion in Africa, 41(2):180-205.), Bomfim (2012BONFIM, Evandro. (2012), A Canção Nova: circulação de dons, mensagens e pessoas espirituais em uma comunidade carismática. Rio de Janeiro: Tese de Doutorado, Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ).), e Gracia (2021GARCIA, Ypuan. (2021), “A ‘libertação’ entre cristãos e o conceito antropológico de ritual”. Revista de Antropologia, 64(1):1-22.), que têm explorado componentes relacionais (ou “dividualistas)” do próprio cristianismo pentecostal-carismático, como formas empáticas de consubstanciação e reciprocidade via linguagem, corpo e objetos. O fato de eles trabalharem em contextos tão distintos quanto Suécia, Botswana, Melanésia ou São Paulo indica que argumentos sobre a “localidade” dessas práticas devem ser ouvidos com precaução. De fato, acredito que essas iterações transnacionais revelam a localidade do próprio conceito universalista de cristianismo mobilizado por Robbins e Meyer, que inflam concepções calvinistas de subjetividade, autonomia e individualidade autopossuída a um modelo geral de cristianismo. Não por acaso, tendem a se apoiar em uma longa tradição de pensadores europeus (Troelcher, Weber, Dumont, Gauchet) preocupados em justificar o excepcionalismo do Ocidente em termos “cosmológicos”, projeto já provincializado pela antropologia do secularismo (Reinhardt 2020bREINHARDT, Bruno. (2020b), “Os estudos críticos da religião e do secularismo: virada ou paradigma?”. Revista Crítica de Ciências Sociais, 123(3): 97-120).10 10 Esse aspecto parece confirmar a crítica de Hann de que a antropologia do cristianismo “reforça a posição a que ostensivamente se opõe, ou seja, as suposições ocidentais profundamente enraizadas do excepcionalismo cristão” (Han 2007:407).

Os casos que reconstituí anteriormente parecem ser indiferentes a tais oposições epistemológicas entre desconexão e relacionalidade, já que seus protagonistas articulam explicitamente a sua saída do “mundo” como uma entrada adotiva em várias versões da família cristã. Eles resolvem esse aparente paradoxo ao recorrer às propriedades recursivas e acumulativas do parentesco, que os permitem justapor em vez de dividir suas lealdades. Sua filiação a Deus, à instituição, à comunidade, ao parente espiritual são tematizadas como escalas que se retroalimentam, e não como domínios da vida. Isso se dá pela dupla ênfase na natalidade cristã enquanto evento que gesta uma “nova criação” e um “bebê espiritual”. Renascidos em Cristo certamente são “indivíduos-em-relação-a-Deus” (Dumont 1983DUMONT, Louis. (1983), O individualismo: uma perspectiva antropológica da ideologia moderna. Rio de Janeiro: Rocco. ), considerando que a salvação é pessoal e inalienável, indiferente a vínculos e formas de hierarquização tidas como convencionais e alheios à Verdade. Mas, para assegurar tal descontinuidade temporal no tempo vivido, “bebês espirituais” precisam de uma família, comunidades e pessoas que os alimentem com a Palavra, ensine-os a andar com Cristo e a fortalecer seu músculos de oração, que sancionem seus erros e forneçam modelos de emulação e oportunidades para a participação ativa em comunidades. Eles corroboram Mosko quando este argumenta que “enquanto os cristãos se virem como seres totais que, pelo menos em parte, estão desconectados do divino, eles permanecem, por definição, divididos” (2015MOSKO, Mark. (2015), “Unbecoming individuals. The partible character of the Christian person”. HAU: Journal of Ethnographic Theory, 5(1):361-393.:385). Pode-se dizer que a desconexão e o individualismo pleno pertencem ao final dos tempos, não ao período pré-milenarista em que os pentecostais se encontram. Nesse estado, eles precisam da relacionalidade da ruptura, redes de florescimento humano que refratam a agência soberana da graça e do Espírito ao garantir-lhes um espaço para converter vulnerabilidades em potencial.11 11 Sobre a vulnerabilidade humana com o sustentáculo da ética e do parentesco, ver MacIntyre (1999).

Asad chama atenção para como as teorias da conversão tendem a reproduzir de maneira acrítica a gramática liberal em torno da agência, o que o leva a perguntar-se: “Por que nos parece tão importante insistir que os convertidos são ‘agentes’? Por que descontar a afirmação do convertido de que ele ou ela foi ‘transformado’ em um cristão?” (1996ASAD, Talal. (1996), “Comments on conversion”. In Peter van der Veer, ed. Conversions to modernity: the globalization of Christianity. p. 263-274. New York: Routledge.:271). A conversão muitas vezes excede a equação antropocêntrica-secular entre sujeito e agente, bem como a oposição liberal entre escolha e constrangimento e seus modos subjetivistas de ancoramento da verdade pessoal, como a sinceridade e a autenticidade.12 12 Isso se reflete nos dois tipos dominantes que regem a visão secularista sobre a conversão: a “lavagem cerebral”, em que o converso aparece como instrumento da agência manipulativa de outros (que eu chamaria de crença sincera, mas inautêntica), e a busca utilitária, que visa acessar certos ganhos materiais, sociais, terapêuticos ou políticos com a conversão (que eu chamaria de crença insincera, mas autêntica). De modo similar, Mahmood afirma que “(...) o argumento de que as pessoas são levadas a se comportar religiosamente por medo do inferno ou pela promessa de recompensas deixa inexplicável o que procura responder: especificamente, como essas emoções são adquiridas e passam a comandar a autoridade na topografia de um eu moral-passional particular” (2005:140). O trabalho de Mahmood nos ajuda a entender como a agência religiosa emerge de maneira autogenerativa (autopoiética) a partir de um aparato prescritivo de subjetivação e encorporação. Sua adaptação do postulado de Butler de que “a iterabilidade da performance já é uma teoria da agência” (1999BUTLER, Judith. (1993), Bodies that matter: on the discursive limits of “sex”. New York: Routledge .:xxiv) para os estudos da religião se encaixa no que chamei de segundo eixo da conversão, que a concebe como um processo de habilitação ética que suscita novas escolhas, logo como algo distinto daquilo que realiza as escolhas de (ou coerções sobre) um sujeito prévio supostamente autônomo.

No entanto, ao distribuir a agência da conversão em uma vasta rede relacional, minha intenção foi demonstrar que o parentesco seria o meio primário pelo qual o cristianismo “faz gente” em Gana, destacando sua própria qualidade de tecnologia do sujeito (Faubion 2001FAUBION, James. (2001), “Introduction: toward an anthropology of the ethics of kinship”. In: J. Faubion. The ethics of kinship: ethnographic inquiries. p. 1-28. Lanham: Rowman & Littlefield.). Como vimos, as narrativas de conversão de cristão maduros são povoadas pela agência de Deus assim como de outros significantes que os “conduziram” para Cristo e que por eles foram “seguidos” em uma caminhada conjunta. A intervenção desses outros em suas vidas muitas vezes assume tons providenciais, como na constatação de Emmanuel que Deus o “levou a muitas pessoas”. A ideia de que Deus guia para e trabalha através de relações indica que as normas cristãs contém não apenas uma teoria da agência, mas também sua própria “sociologia” (Milbank 1994MILBANK, John. (1995), Teologia e Teoria Social. São Paulo: Loyola). Isso me leva a considerar que as redes de parentesco espiritual são mais do que apenas uma infraestrutura social secular para o cristianismo. Elas são relações ético-espirituais, ou seja, relações cristãs.

Em um comentário geral sobre novas formas pentecostais de pertencimento no Zimbábue, Maxwell argumenta que “o novo foco da vida social do crente se torna a igreja: uma rodada interminável de estudos bíblicos, reuniões de oração, ensaios de coral e performances, reavivamentos, atividades evangelísticas, casamentos”, concluindo que “a igreja se torna a família estendida do crente à medida em que os laços baseados no parentesco diminuem” (Maxwell 1998MAXWELL, David. (1998), “Delivered from the spirit of poverty?”: Pentecostalism, prosperity and modernity in Zimbabwe. Journal of religion in Africa 28(3): 350-373.:353-355). Nota-se que o comentário de Maxwell ainda funciona por um contraste entre parentesco biológico e cristão, que, como argumentei, é uma possibilidade entre várias. Em sua etnografia sobre uma igreja apostólica rural em Botsuana, Klaits (2010KLAITS, Frederick. (2010), Death in a church of life moral passion during Botswana’s time of AIDS. Berkeley: University of California Press . ) vai em direção similar quando destaca que “a fé trata da qualidade do compromisso de uma pessoa com outros” (2010:20). Em uma passagem que ressoa com alguns dos relatos que reproduzi anteriormente, ele argumenta que “Para muitos membros Bitshepi, ouvir a palavra é uma questão de se tornar “filhos espirituais” de MmaMaipelo [o líder da igreja], a quem eles chamam de ‘pai espiritual’” (2010:8). No entanto, dado o aparente monopólio desse líder sobre o parentesco espiritual, Klaits tende a fundamentar sua análise da fé como relacionalidade por meio de um argumento culturalista, que destaca a localidade desta disposição.

Aqui é importante mais uma vez recorrer às operações dialógicas através das quais o cristianismo avança como discurso autoritativo (Asad 1979ASAD, Talal. (1979), “Anthropology and the Analysis of Ideology”. Man, 14(4): 607-627.; Garriott & O’Neill 2009). É revelador que meu interlocutores não apenas incorporaram parentes espirituais em seus testemunhos sobre a conversão, eles também fizeram questão de tipificar essas relações de acordo com a Bíblia. Essa forma de específica de citacionalidade (Mahmood 2005MAHMOOD, Saba. (2005), Politics of piety: the Islamic revival and the feminist subject. Princeton: Princeton University Press .) religiosa se dá através do espelhamento não apenas de figuras bíblicas individuais, mas também de relações bíblicas de discipulado, como fizeram Dede e Emmanuel ao evocarem, respectivamente, Paulo-Timóteo e Elias-Eliseu. Esse são análogos autorizados que inspiram e legitimam a “diferença cristã” dessas relações. Dinâmica similar é de fato observada por historiadores nas próprias comunidades cristãs originais, em que a conversão era tida tanto como adoção individual por uma família messiânica (filhos de Deus, irmão e irmãs em Cristo) como uma entrada hierárquica em redes cristãs de discipulado via parentesco espiritual (Castelli 1991CASTELLI, Elizabeth. (1991), Imitating Paul: a discourse of power. Louisville: Westminster/John Knox Press.; Fredriksen 2000FREDRIKSEN, Paula. (2000), From Jesus to Christ the origins of the New Testament images of Jesus. New Haven: Yale University Press. ). Ou seja, se essa prática indica, no caso africano, apenas uma justificativa a posteriori para formas locais de relacionalidade hierárquica, o mesmo deveria ser extendido ao cristianismo primitivo.

Ao levar em conta a preocupação de meus interlocutores em sublinhar a singularidade cristã do parentesco espiritual, minha intenção não é assumir a sua descontinuidade com relação a outros conjuntos de expectativas socioculturais como um dado, mas destacar que o parentesco espiritual é um dos muitos campos de problematização ética que constituem o cristianismo enquanto tal. Modelos bíblicos relacionais são centrais para a avaliação reflexiva da política da filiação cristã em Gana hoje. Eles fazem do parentesco espiritual tanto um meio de estabilização teopolítica do poder carismático em projetos pastorais altamente burocratizados (Reinhardt 2016bREINHARDT, Bruno. (2016b), “De epifania a método: a teopolítica do testemunho em um seminário pentecostal em Gana”. Religião e Sociedade, 36 (2): 44-70, 2016., 2021) quanto uma fonte de crítica e discernimento em meio a uma crise geral de normatividade. Se afirmei antes que o cristianismo contém uma teoria da agência e uma sociologia, isso me leva a concluir que ele também contém uma política, composta não por uma, mas por uma variedade de modos de conceber e implementar a influência, o poder, a hierarquia e a autoridade (Marshall 2009MARSHALL, Ruth. (2009), Political spiritualities the Pentecostal revolution in Nigeria. Chicago: University of Chicago Press. ). O parentesco espiritual seria assim um modo privilegiados de se perguntar e de se encarnar no cotidiano questões sobre o que, quem e como é um cristão.

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  • 1
    Por esse debate no contexto brasileiro, veja-se Campos e Reesink (2014CAMPOS, Roberta; REESINK, Mísia. (2014), “Conversão (in)útil”. Anthropológicas 25(1): 49-77.) e Mauricio Júnior (2015MAURICIO JUNIOR, Cleonardo. 2015. "Cristianismo e Conversão: uma breve revisão". Revista Anthropológicas, 25(1): 195-210. ).

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  • 2
    Minha pesquisa de doutorado foi baseada em 15 meses de trabalho de campo, realizado entre 2009 e 2011, a maior parte em Acra. O foco central da pesquisa foram escolas bíblicas pentecostais, instituições de aprendizado dedicadas aos treinamento de pastores, com ênfase maior em Anagkazo Bible and Ministry Training Center, uma instituição total associada à denominação Lighthouse Chapel International. Durante esse tempo, também realizei uma série de projetos suplementares em programas de discipulado de outras denominações, como a International Central Gospel Church (aqui citada); escolas bíblicas populares e mais precárias, atreladas a pequenas igrejas de cunho profético; e retiros de oração. Por motivos materiais, minha relação com o campo tem sido mantida desde então por encontros virtuais e telefonemas com amigos e interlocutores.

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  • 3
    O filósofo moral Alasdair MacIntyre, que tem influenciado o trabalho de Talal Asad sobre o Islã como uma “tradição discursiva”, articula opinião semelhante quando argumenta que “o que constitui uma tradição é um conflito de interpretações dessa tradição, um conflito que por si só tem uma história suscetível de interpretações rivais. Se eu sou judeu, tenho que reconhecer que a tradição do judaísmo é parcialmente constituída por uma discussão contínua sobre o que significa ser judeu” (1977MACINTYRE, Alasdair. (1977), “Epistemological crises, dramatic narrative, and the philosophy of science”. The Monist 60: 453-472.:460-461).

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  • 4
    Uso “orientações éticas” no sentido de ethical stances, de Keane (2016KEANE, Webb. (2016), Ethical Life: its Natural and Social Histories. New Jersey: Princeton University Press.).

5

  • 5
    Veja-se Corrêa (2020CORRÊA, Diogo. (2020), “Entre o querer e o não querer: Dilemas existenciais de um ex-traficante na perspectiva de uma sociologia dos problemas íntimos”. Tempo Social, 32(2):175-204. ) por uma análise refinada das microdinâmicas da convicção em uma carreira de conversão no Rio de Janeiro.

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  • 6
    Utilizo o conceito aristotélico de hexis/habitus aqui de acordo com a tradição maussiana (Asad 1997ASAD, Talal. (1997), “Remarks on the anthropology of the body.” In S. Coakley (ed). Religion and the body. p. 42-52. Cambridge: Cambridge University Press., Hirschkind 2021HIRSCHKIND, Charles. (2021), “Uma ética da escuta: a audição de sermões em cassete no Egito contemporâneo”. In: Debates do NER [no prelo].), ou seja, sem submeter esse conceito, como faz Bourdieu, ao problema da reprodução de estruturas sociais. Esse foco nas técnicas corporais ou tecnologias do sujeito com base no interior de tradições discursivas tem sido um traço distintivo da antropologia da ética (Laidlaw 2013).

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  • 7
    Esse é um grupo cada vez mais comum em Gana, dado o impacto do reavivamento entre gerações: indivíduos que de certa forma “nasceram renascidos em Cristo”. Não posso elaborar aqui sobre suas particularidades, mas basta dizer que seu cristianismo não é imune a tensões. Sobre esse tema, ver Csordas (2009CSORDAS, Thomas. (2009), “Growing up Charismatic: Morality and Spirituality among Children in a Religious Community”. Ethos, 37: 414-440.).

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  • 8
    Veja-se Bialecki e Daswani (2015BIALECKI, Jon and DASWANI, Girish. (2015), “What is an individual? The view from Christianity”. HAU: Journal of Ethnographic Theory 5(1):271-294.) por uma revisão.

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  • 9
    Fiz argumento similar no passado em uma pesquisa no Brasil (Reinhardt 2007REINHARDT, Bruno. (2007), Espelho ante espelho: a troca e a guerra entre o neopentecostalismo e os cultos afro-brasileiros em Salvador. São Paulo: Attar Editorial/CNPQ.), apesar de, na época, desconhecer o trabalho de Meyer. Esse trabalho compartilha com o dela a limitação tradicional na antropologia da religião de equalizar “rituais” específicos com formas de vida muito mais complexas e multifacetadas (Asad 1993:55-82).

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  • 10
    Esse aspecto parece confirmar a crítica de Hann de que a antropologia do cristianismo “reforça a posição a que ostensivamente se opõe, ou seja, as suposições ocidentais profundamente enraizadas do excepcionalismo cristão” (Han 2007:407).

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  • 11
    Sobre a vulnerabilidade humana com o sustentáculo da ética e do parentesco, ver MacIntyre (1999MACINTYRE, Alasdair. (1999), Dependent rational animals: why human beings need the virtues. Chicago: Open Court.).

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  • 12
    Isso se reflete nos dois tipos dominantes que regem a visão secularista sobre a conversão: a “lavagem cerebral”, em que o converso aparece como instrumento da agência manipulativa de outros (que eu chamaria de crença sincera, mas inautêntica), e a busca utilitária, que visa acessar certos ganhos materiais, sociais, terapêuticos ou políticos com a conversão (que eu chamaria de crença insincera, mas autêntica).

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    11 Jun 2021
  • Data do Fascículo
    Jan-Apr 2021

Histórico

  • Recebido
    24 Jun 2020
  • Aceito
    04 Maio 2021
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