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Entre a sepultura e a cadeia: um olhar etnográfico sobre a conversão religiosa de usuários de crack em São Paulo

Between the grave and the jail: an ethnographic look at the religious conversion of crack addicts in São Paulo

Resumos

Resumo: Por meio de pesquisa etnográfica realizada na Cracolândia paulistana (2011-2015), este artigo aborda a conversão religiosa atrelada ao do mundo do crime e das drogas. Através da jornada de um ex-usuário de crack que se torna missionário batista, o artigo chama a atenção para como o medo da morte e do encarceramento, impostos por políticas criminais e policiais-repressivas são vetores importantes para a compreensão das escolhas e constrangimentos que norteiam o processo de conversão religiosa. Argumento que, da perspectiva de meus interlocutores, essas ameaças constantes somadas à profissionalização e oportunidades (tanto econômicas quanto afetivas) geradas pela carreira missionária apontam para a conversão como uma alternativa frente à sepultura e à cadeia, sendo uma relevante estratégia para “sobreviver na adversidade”.

Palavras-chave:
crack; Cracolândia; conversão religiosa; Batistas.


Abstract: Based on an ethnographic research carried out in São Paulo's Crackland (2011-2015), this article addresses dimensions of religious conversion linked to the world of crime and drugs. Through the journey of a former crack user who becomes a Baptist missionary, the article draws attention to how the fear of death and imprisonment, imposed by criminal and repressive policies are important vectors for understanding the choices and constraints that guide the process of religious conversion. From my interlocutors’ point of view, these constant threats added to the professionalization and opportunities generated by the missionary career point to conversion as an alternative to the grave and the jail, being a relevant strategy to “survive in adversity”.

Key words:
crack cocaine; Sao Paulo; religious conversion; Baptists.


Apresentação

O presente artigo se insere no campo de estudos etnográficos sobre a conversão religiosa na sua interface com o mundo da rua, do crime e das drogas. Com base em pesquisa etnográfica (2011-2015) realizada na região da chamada Cracolândia do centro da cidade de São Paulo, este artigo reconstrói analiticamente a jornada (Knowles 2014KNOWLES, Caroline. (2014), “Trajetórias de um chinelo: microcenas da globalização”. Contemporânea - Revista de Sociologia da UFSCar. São Carlos, vol. 4, nº 2: 289-310.) de um interlocutor, chamado aqui de Edu, que de assaltante e traficante passa a usuário de crack em situação de rua e, posteriormente, se torna missionário da Junta de Missões Nacionais (JMN)1 1 Esta pesquisa foi financiada pela Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp), nº do processo: 2014/22454-6. . Essa agência missionária da Convenção Batista Brasileira (CBB) é a criadora da Missão Batista Cristolândia, cujo nome manifesta o propósito de “transformar cracolândias em cristolândias”. O artigo chama a atenção para como o medo da morte e do encarceramento, impostos por políticas criminais e policiais-repressivas, perpassam a biografia de Edu e são vetores importantes para a compreensão das escolhas e constrangimentos que norteiam o processo de conversão religiosa. Argumento que essas ameaças constantes somadas à profissionalização e oportunidades (tanto afetivas quanto econômicas) geradas pela carreira missionária apontam para a conversão como uma relevante estratégia para “sobreviver na adversidade” (Hirata 2010HIRATA, Daniel Veloso. (2010), Sobreviver na adversidade: entre o mercado e a vida. São Paulo: Tese de Doutorado, Universidade de São Paulo.).

No tema das drogas, no Brasil, há tradicionalmente uma significativa participação evangélica no que tange ao mercado de tratamentos para a “dependência química” e uma atuação política conjunta entre diferentes denominações contra projetos de lei que visem regulamentar a venda e o consumo de substâncias psicoativas. Além disso, há um forte empenho evangélico, sobretudo pentecostal, mas não exclusivamente, em ações evangelísticas e salvacionistas voltadas para a conversão religiosa de populações marginalizadas e produção de “ex-usuários de drogas”, “ex-alcoolatras”, “ex-presidiários”, “ex-detentos”, “ex-travestis” (Cortês 2007CORTÊS, Mariana. (2007), O Bandido que virou ‘Pregador’. São Paulo: Hucitec.; Teixeira 2009TEIXEIRA, César. (2009), A construção social do “ex-bandido”: um estudo sobre a sujeição criminal e o pentecostalismo. Rio de Janeiro: Dissertação de Mestrado, Universidade Federal do Rio de Janeiro ; Galdeano 2014GALDEANO, Ana Paula. (2014), “Salmo 127, versículo 1: ativismo religioso e ordenamentos da segurança em uma periferia de São Paulo”. Religião e Sociedade, vol. 34, nº. 1: 38-60.). Mas também a conformação de identidades tal como “traficantes evangélicos” (Da Cunha 2008DA CUNHA, Christina Vital. (1998), “‘Traficantes evangélicos’: novas formas de experimentação do sagrado em favelas cariocas”. Plural, vol. 15: 13-46.; Marques 2015MARQUES, Vagner. (2015), Fé e crime: evangélicos e PCC nas periferias de São Paulo. São Paulo: Fonte Editorial.). Conforme enfatizam Birman & Machado, 2012BIRMAN, Patrícia; MACHADO, Carly. (2012), “A violência dos justos: evangélicos, mídia e periferias da metrópole”. Revista Brasileira de Ciências Sociais, 27(80): 55-69., trata-se, simultaneamente, de um projeto teológico, político e social conectado a uma percepção evangélica dos territórios e populações à margem, bem como põe em prática soluções e intervenções cristãs para “problemas sociais”.

A JMN se insere nesse esforço, o qual, inclusive, conforma um projeto de nação (Fromm 2016FROMM, Deborah. (2016), “Deus e o Diabo na Terra do Crack: A Missão Cristolândia e a cosmopolítica batista”. In: T. Rui, M. Martinez, G. Feltran (orgs.). Novas faces da vida nas ruas. São Carlos: EdUFSCar.). Com mais de 900 missionários espalhados pelo território nacional, esta agência é responsável por ações evangelísticas e humanitárias através da manutenção de mais de 400 projetos, os quais perpassam diferentes populações e territórios nacionais: indígenas, sertanejos, surdos, presidiários, refugiados, usuários de crack, dentre outros públicos-alvo. Com 42 unidades dispersas em 9 estados da federação, a Cristolândia é seu programa com maior relevância e repercussão nacional. Voltada para a evangelização de usuários de crack e cracolândias, sua primeira sede foi criada em São Paulo, em 2010, após um ano de pesquisa de campo e ações sociais realizadas por missionários e voluntários na região da Luz. Essa política batista combina serviços de assistência à população em situação de rua com um programa de tratamento para “dependentes químicos” através da internação (voluntária e gratuita) em Centros de Formação Cristã (CFCs). Com ênfase em uma pedagogia moral e cristã, o tratamento batista tem uma perspectiva que visa agregar ao físico e ao emocional, o espiritual. O saber bíblico e a valorização da conversão religiosa perpassam a totalidade do tratamento (dividido em três fases), cujo objetivo está na “reinserção social” de seus “alunos”.

Edu é um “caso de sucesso” da política missionária batista, e seu testemunho materializa a eficácia do programa de tratamento. Em 2020, Edu e sua esposa, Márcia - também missionária da Cristolândia - foram entrevistados no Programa Seja Luz, cujo slogan é “Em um Brasil em trevas, Seja Luz” transmitido semanalmente no canal do YouTube da JMN. No programa, Márcia nos conta que há 10 anos ingressou na segunda turma do Radical Brasil,2 2 “Radical Brasil é uma estratégia de envio de missionários temporários aos campos de Missões Nacionais. O objetivo é despertar vocações entre jovens e adultos, profissionais ou estudantes que queiram tomar uma atitude radical, dedicando-se voluntariamente por um ou dois anos de sua vida no campo missionário. O missionário radical passa por um período de treinamento básico e depois segue para o campo missionário, conforme o projeto para o qual se inscreveu”. por meio da campanha “Por ti darei a minha vida”, na qual a JMN desafiou jovens batistas do Brasil inteiro a doarem um ano da sua vida para evangelizar a Cracolândia. Márcia mudou-se do Centro-oeste para a cidade de São Paulo, completou um ano como voluntária e, posteriormente, foi contratada como missionária, tendo atuado em diversas unidades da Cristolândia. Em seguida, o pastor entrevistador se dirige a Edu, e o diálogo a seguir se desenrola:

Pr: Quem é [Edu]? Fala de você agora. Edu: Eu sou fruto do Projeto Cristolândia. Sou missionário. Eu passei um bom tempo, infelizmente, na drogadição. Fiquei 18 anos nas drogas. Morei na Cracolândia. Eu frequentava a Cristolândia ali no centro de São Paulo, a missão. E ali, eu tive um encontro com Jesus (...). Pr: Maravilha. É isso que eu queria destacar. Eu já tinha visto aqui o briefing da história de vocês e já sabia que você tinha vindo das ruas. Dezoito anos da sua vida foram perdidos nas drogas, e, hoje, o seu desejo é servir integralmente ao Senhor como missionário. Meus irmãos, em torno de 30% dos missionários da Cristolândia vem dos ex-alunos. É o projeto que tem transformado tanto a vida das pessoas que, quando elas se recuperam, elas dizem “eu quero entregar o resto da minha vida para Jesus. Eu não tinha vida, eu vivia no lixo, eu vivia naquelas ruas”. Não é isso [Edu]? Então, agora que Deus me deu vida, eu quero dar a vida que Ele me deu para Ele. (Programa Seja Luz, YouTube, 2020 - grifos meus)

Eu conheci Edu ainda em 2015, durante a pesquisa de campo. Quando a entrevista que se segue foi realizada, Edu trabalhava como voluntário/radical na Cristolândia, estudava Teologia e estava na expectativa da possível contratação pela JMN. Além de todo o engajamento espiritual que isso implica, a profissionalização como missionário representaria a conquista, pela primeira vez na vida, de uma estabilidade financeira e a oportunidade de ascensão social e moral. Isso tudo, ainda, sem desperdiçar a experiência adquirida em toda uma vida feita próxima dos códigos do mundo do crime e das drogas. Tal experiência, em sua atual posição de missionário, facilita seu trabalho em criar laços com o público a ser evangelizado, assim como usufruir dos vínculos que já possuía antes da sua conversão. É essa experiência em comum com os alvos da política batista, a saber, usuários de crack em situação de rua e egressos do mundo do crime, que é valorizada na profissionalização como missionário. Ao mesmo tempo em que é considerado seu entendimento sobre o contexto local para onde está direcionada a intervenção, Edu também é, supostamente, um exemplo vivo do sucesso da política batista. Para a equipe e para ele próprio, sua vida, sempre narrada em forma de testemunho, mostra a eficiência do programa e comprova a potência do evangelho para a resolução dos problemas e cura das “doenças”, sobretudo, a “dependência química”, dessa população. Pressupõe-se que se para Edu deu certo, essa é a solução para todas as outras pessoas que, na perspectiva batista, estão em uma condição semelhante a dele.

A estrutura deste artigo plasma a opção analítica e metodológica por seguir a jornada de Edu. Considero que:

Jornadas são sequências episódicas e contínuas de movimentos, definidas temporalmente. Elas possuem especificidades - quem, o que, como e por que - nas quais reside seu valor em revelar mundos sociais. Elas incorporam e revelam habilidades de navegação: o conhecimento denso sobre o mundo e como operar dentro dele. Jornadas, em outras palavras, desenham mapas das pessoas, assim como os lugares que elas passam, fornecendo, portanto, uma maneira de pensar sobre elas, a qual incorpora o espaço e o movimento. (Knowles 2014KNOWLES, Caroline. (2014), “Trajetórias de um chinelo: microcenas da globalização”. Contemporânea - Revista de Sociologia da UFSCar. São Carlos, vol. 4, nº 2: 289-310.:294)

Caroline Knowles (2014KNOWLES, Caroline. (2014), “Trajetórias de um chinelo: microcenas da globalização”. Contemporânea - Revista de Sociologia da UFSCar. São Carlos, vol. 4, nº 2: 289-310.), quando propõe a noção de jornada, está se contrapondo à noção de fluxo que permeia os estudos sobre mobilidade. Martins Jr (2020MARTINS JR., Angelo. (2020), Moving Difference: Brazilians in London. London: Routledge. ) explica que, ao contrário das metáforas hidráulicas que remetem ao movimento inerte dos líquidos, a ideia de jornada reivindica que as pessoas e coisas não fluem, simplesmente, pelo mundo. Mas, elas desenvolvem jornadas em que negociam e ressignificam, a todo momento, o movimento e seus projetos de vida. Elas vão e voltam, retornam, mudam de destino, se encontram umas com as outras, mas não fluem inercialmente de um ponto A para um ponto B. Há oportunidades e possibilidades, assim como obstáculos, limitações e constrangimentos que, juntamente com a agência dos sujeitos, conformam suas jornadas.

O artigo está dividido em três partes seguidas de uma conclusão. A jornada de Edu, como veremos, põe em relevo um movimento que conta sobre a inserção no mundo do crime, a perda de reputação no interior de tal mercado devido ao consumo, sobretudo, de crack e, posteriormente, a conversão religiosa. Dito de outra maneira, convém ressaltar aqui três deslocamentos que correspondem às três partes do artigo e que chamam atenção para o fato de que Edu vai do crime ao crack, da periferia à Cracolândia e da Cracolândia para a Cristolândia. Deslocamentos, estes, que não são só territoriais ou geográficos; trata-se de apreender tal circulação de maneira “código-territorial” (Deleuze & Partner 1998DELEUZE, Gilles; PARTNER, Claire. (1998), Diálogos. Trad. Eloisa Araújo Ribeiro, São Paulo: Escuta.; Perlongher 2012PERLONGHER, Néstor. (2012), O negócio do michê: prostituição viril em São Paulo. São Paulo: Fundação Perseu Abramo. ), isto é, apreendê-los “pelos códigos e suas superfícies de inscrição em zonas do corpo social. Territorialidade entendida não apenas como espaço físico - ainda que este também seja importante (...) -, mas no próprio espaço do código” (Perlongher 2012:159).

Associadas à jornada de Edu, emergem, então, as jornadas e biografias de personagens urbanos em disputa (ladrões, traficantes, usuários de crack, policiais e missionários evangélicos), as quais nos levarão a distintos territórios e regimes normativos (Feltran 2020). Assim, a aposta nessa opção metodológica nos ajuda a construir um contraponto a uma perspectiva estado-centrada sobre a regulação de mercados e os parâmetros de delimitação da ordem. A história de vida de Edu, mas também a de muitos outros interlocutores desta pesquisa, traz à tona deslocamentos forçados devido à convivência instavelmente pacífica, convém ressaltar, entre diversas políticas de drogas na metrópole paulistana. A criminalização das drogas e a violência policial; a expansão do Primeiro Comando da Capital (PCC) e a construção social do crack como agente desumanizador; a conversão religiosa como alternativa de vida e a guerra espiritual cotidiana são algumas das expressões da importante vigência de três matrizes discursivas (estatal, criminal e evangélica) na regulação e manutenção da ordem, de maneiras específicas, nas periferias e cracolândias de São Paulo, sobretudo, em torno do mercado de drogas Feltran 2020FELTRAN, Gabriel. (2018), Irmãos: uma história do PCC. São Paulo: Editora Companhia das Letras.). Compreender as dinâmicas e os deslocamentos produzidos por tais políticas em distintos “códigos-territórios” nos leva a uma geopolítica do crack e até mesmo da cidade. Ao apreender a conversão religiosa de usuários de crack como inserida na dinâmica urbana e na trama de seus conflitos, fica evidente que seus trajetos são marcados por circunstâncias expulsivas (Machado no preloMACHADO, Carly. (no prelo), “Presos do lado de fora: comunidades terapêuticas como zonas de exílio urbano”.) e que, nesse contexto, igrejas, comunidades terapêuticas e casas de acolhimento evangélicas são importantes refúgios. Ou, como argumenta Carly Machado (no prelo), zonas de exílio urbano e de recuperação da vida. Mas também, como ficará claro a seguir, é preciso considerar as próprias cracolândias importantes locais de refúgio para o “refugo urbano”.

Do crime ao crack

Nascido e criado em uma periferia noroeste de São Paulo, onde morou por 29 anos, Edu me diz que começou a se “envolver” (na criminalidade) quando tinha 12 anos de idade, depois de ter perdido sua mãe.3 3 A entrevista foi realizada e gravada por mim na sede da Missão Cristolândia, em São Paulo. Conheci Edu no espaço da missão, local em que fui alocada como voluntária pela equipe de missionários para poder realizar a pesquisa de campo. Para ele, foi um trauma ver o infarto da mãe no próprio colo. O pai, por sua vez, um mês depois, trouxe uma mulher para viver com eles. A traição do pai e a morte da mãe geraram muita revolta nele e no irmão, dois anos mais velho. Em tom de testemunho, Edu avalia que, por conta disso, ambos começaram a fumar maconha, roubar e traficar. Como ressalva, convém destacar que essa narrativa típica não necessariamente reflete o que se passou literalmente, mas o modo como Edu aprendeu, depois de anos de testemunhos, a produzir uma narrativa factível, com todos os elementos morais necessários para tanto - a degradação, a aceitação de Jesus e a retomada e as bênçãos (Cortês 2007CORTÊS, Mariana. (2007), O Bandido que virou ‘Pregador’. São Paulo: Hucitec.).

Logo foram pegos pela polícia. Aos 15 anos, Edu foi preso com seu irmão enquanto assaltavam o motorista de um caminhão, dentro da favela. Isso foi em 1996, antes da expansão do PCC nas periferias de São Paulo: “Na época minha e do meu irmão, era normal você roubar as coisas dentro da favela, entendeu? Não tinha esse negócio que hoje em dia tem de PCC. O PCC hoje em dia não admite. Mas, antigamente, era terra sem lei. Era a lei da sobrevivência, a lei do mais forte. (...)”, me explicou.4 4 Muito já foi produzido por pesquisadores paulistas sobre a expansão do PCC, nos presídios e periferias de São Paulo. Ver: Feltran (2011, 2010, 2012, 2014), Hirata (2010), Biondi (2010), Malvasi (2012) e Marques (2015). Os dois irmãos passaram apenas um dia na antiga Febem (Fundação Estadual para o Bem-Estar do Menor). Mas a liberdade de seu irmão não durou muito. Aos 18 anos, foi preso em flagrante, também em um assalto, e hoje, depois de algumas idas e vindas, continua no cárcere. Eles perderam todo o contato. Edu tem poucas notícias do irmão, mas sabe que ele é “irmão” do PCC e, me diz que, caso ele próprio tivesse sido preso, também teria se “batizado” no PCC. “Graças a Deus não fui preso, Deus me livrou do cárcere.”

O debate

Se você entra na cadeia, é lamentável, principalmente aqui em São Paulo. Na minha época, quando o PCC surgiu, quando eu roubava e fazia as coisas erradas, muitos de nós queria virar do Comando. Muitos, quando o Comando expandiu na comunidade, muita gente estava sendo presa e queria virar PCC. Então, era normal a pessoa virar do PCC. Era algo que os vagabundos desejavam, entendeu? (...) Eu trabalhava com um cara do Comando, eu conheci vários caras do PCC. (...) os caras queriam que eu fizesse parte do Comando. E eu não queria fazer parte disso aí. Aí tanto dos caras ficarem perturbando a minha mente, eu falei assim ó: “Se eu for preso, eu viro do Comando!” Eu pensava assim do Comando porque era algo que todo mundo desejava naquela época, virar do Comando, quando expandiu o PCC. Porque era mais fácil você conseguir arma, tráfico de drogas, você conseguir uma biqueira na favela, entendeu? E querendo ou não, você tinha um respeito na favela. Se você é do Comando, ninguém metia a cara com você na favela. (...) Se alguém me batizasse, eu virava do Comando. Se eu ramelei na favela, eles têm obrigação. O teu padrinho tem como pegar o seu papel, rasgar o seu papel, seu estatuto e você ser cobrado. O seu padrinho tem que cobrar você. Eu já presenciei várias cenas lá em (...) do Comando. Eu presenciei uma cena que aconteceu assim lá: um irmão do PCC matou um pai de família. (...) Aí fizemos uma reunião. E no estatuto que tem do PCC, está errado. Ele não podia ter feito isso, matar o pai de família. Tem que trocar uma ideia ou pedir permissão. Sempre que for matar alguém na favela hoje em dia, você precisa pedir permissão pro Comando. Não é assim só chegar e matar. Na minha época era assim. Se o cara chegasse e te ameaçasse de morte, você chegava lá e derrubava o cara, entendeu? (...) Hoje em dia não é assim não. Mudou tudo. (...) O Comando que mudou. Então, esse cara matou o pai de família. Aí chamaram o padrinho dele, que foi quem batizou ele. O padrinho dele veio, e na reunião decretaram a morte dele. (...) O Comando, os monstrão decretaram a morte dele. Falaram ó já que ele matou o pai de família sem pedir permissão pra nós, não quis saber do que estava acontecendo, não quis saber de trocar uma ideia... Aí o Comando passa a missão pro padrinho. “Você [padrinho] vai ter que matar ele. Você não batizou ramelão? Então, mata ele!” (...). (Trecho entrevista, 2015 - grifos meus)

Como Edu nos conta, algumas coisas mudaram em seu bairro com a expansão do PCC, principalmente no que se refere à proibição de roubos e ao consumo de crack na comunidade, além das inferências sobre a vida e a morte. A partir dos anos 2000, portanto, o Comando consolida-se como uma importante instância de regulação de conflitos nas periferias do estado, principalmente àqueles relacionados ao comércio de drogas e outras atividades criminais - tal como o roubo de cargas, o tráfico de armas ou o assalto a bancos (Hirata 2010HIRATA, Daniel Veloso. (2010), Sobreviver na adversidade: entre o mercado e a vida. São Paulo: Tese de Doutorado, Universidade de São Paulo.; Malvasi 2012MALVASI, Paulo. (2012), Interfaces da vida loka: um estudo sobre jovens, tráfico de drogas e violência em São Paulo. São Paulo: Tese de Doutorado, Universidade de São Paulo.; Biondi 2010BIONDI, Karina. (2010), Junto e misturado: uma etnografia do PCC. São Paulo: Terceiro Nome.). Esse dispositivo passa a operar uma específica forma de pacificação que, inclusive, foi capaz de diminuir as taxas de homicídio em todo o estado de São Paulo (Feltran 2012FELTRAN, Gabriel de Santis. (2012), “Governo que produz crime, crime que produz governo: o dispositivo de gestão do homicídio em São Paulo (1992-2011)”. Revista Brasileira de Segurança Pública, vol. 6:232-255.), a partir, sobretudo, dos chamados “debates”, já amplamente trabalhados por essa bibliografia (Telles & Hirata 2010TELLES, Vera da Silva; HIRATA, Daniel Veloso. (2010), “Ilegalismos e jogos de poder em São Paulo”. Tempo Social, vol. 22:39-59.). Nesta direção, a partir da etnografia da dinâmica de um ponto de venda de drogas em uma periferia de São Paulo, Daniel Hirata (2010) constata que:

O PCC transformou-se na entidade responsável pela arbitragem dos grandes conflitos, os grandes problemas, as chamadas “fitas”, os problemas que pela matéria em questão, envolvem necessariamente soluções de vida e de morte: acertos entre biqueiras rivais, problemas que envolvem grupos que disputam território, coisas que deram errado por “trairagem” em esquemas maiores, enfim, o que envolve uma criminalidade um pouco mais estruturada. Através do debate, instituição importante há alguns anos nas periferias paulistanas, estes conflitos são mediados a partir da figura do “disciplina” do PCC[...] (Hirata 2010HIRATA, Daniel Veloso. (2010), Sobreviver na adversidade: entre o mercado e a vida. São Paulo: Tese de Doutorado, Universidade de São Paulo.: 292 - grifos meus)

Com o lema de Paz, Justiça, Liberdade e Igualdade, esse coletivo expande-se pelos presídios e periferias de São Paulo, se fazendo presente (seja corporificado em seus “disciplinas”, seja a partir das suas disseminadas ideias que viajam) inclusive entre os jovens em conflito com a lei internados na Fundação Casa (Mallart 2014MALLART, Fábio. (2019), Cadeias dominadas: a Fundação CASA, suas dinâmicas e as trajetórias de jovens internos. São Paulo: Editora Terceiro Nome.) e também, de maneira específica, em cenas urbanas de uso e venda de crack (Rui 2014RUI, Taniele Cristina. (2014), Nas tramas do crack: etnografia da abjeção. São Paulo: Editora Terceiro Nome . ). Interessa chamar atenção aqui que tal lema não se materializa em valores buscados e prezados universalmente; ao contrário, está fundamentado em uma perspectiva consolidada perante um conflito político nas fronteiras tênues entre “nós” e “eles”; ricos e pobres; pretos e brancos; periféricos e playboys; ladrões e policiais. Nesse sentido, “Paz, Justiça, Liberdade e Igualdade” para “dentro”, entre os pares, e o acirramento da guerra para “fora”, contra o sistema e contra a polícia, são chaves para que possamos compreender como a expansão do PCC em São Paulo impacta decisivamente nas jornadas urbanas de usuários intensivos de crack das periferias dos anos 2000, como Edu.

Perda de status no crime

Edu já fumava maconha e cheirava cocaína com regularidade quando conheceu o crack. Suas primeiras experiências, ainda na adolescência, foram com o mesclado (cigarro de maconha misturado com crack). Quando começou a usar crack, não conhecia o cachimbo. Edu conta que tinha muito respeito na favela. Fazia parte de uma “banca” forte na região, em torno de 30 amigos que sempre andavam juntos, se protegiam mutuamente em brigas e confusões e faziam assaltos, sobretudo “saidinha de banco”, e roubos de carga. “Nós era considerado, respeito mesmo (...). Aonde a gente ia, nós arrastava.”

Segundo ele, a situação começou a mudar quando conheceu o cachimbo através de um amigo seu, depois de 14 anos convivendo com o crime, sendo uma década sob a lógica PCC. Nessa época, estava trabalhando em umabiqueira” (ponto de venda de drogas) e sempre mandava alguém ir comprar a droga para ele em outra “biqueira” para não ser visto, com a finalidade de que seus pares não descobrissem o seu consumo de crack. Conforme me explicou, entre “os ladrão”,5 5 Palavra êmica com sentido interno positivado, ver: Karina Biondi (2010). maconha e cocaína eram toleradas, mas, à época, o crack não. Edu me conta que, em um dia em que a abstinência foi muito forte, ele mesmo foi buscar a droga. O gerente da “biqueira”, seu amigo de infância, não acreditou que ele consumia “pedra” e só vendeu a droga depois de muita insistência. Edu conta:

Eu trabalhava em uma biqueira e vendia droga com os caras. Era respeitado lá na biqueira. Do fato que eu viciei tanto no crack, o crack é uma droga que você vicia, entendeu?! Vicia rápido! Quando eu comecei a usar o crack, comecei a fumar no cachimbo, eu mandava alguém buscar pra mim a droga. (...) Porque se eu fosse lá os caras iam saber que eu estava usando crack. Os caras já estavam sabendo entre aspas, mas nem todo mundo na favela estava sabendo que eu estava fumando crack. (...) Aí teve um dia que me injuriei, não tinha ninguém pra ir buscar, eu estava com dinheiro e querendo fumar o crack. O crack, nossa! Bate uma abstinência demoníaca em você! (...) Não tinha ninguém pra ir buscar, aí eu desci na favela. (...) Eu desci na favela aquele dia estava o M., era o gerente da biqueira. Aí eu cheguei nele e falei “Ó, me dá uma pedra de crack!” Ele: “Oxê, tu ta fumando crack, meu? E aí mano? Qual é que é essas ideias aí mano?” Ele começou a debater comigo na biqueira. Eu falei: “Não, M., me dá aí, eu estou comprando com o meu dinheiro. Eu quero a droga, me dá o crack aí.” Aí ele me deu. Ele vendeu depois de muito custo pra mim. Ele “Oxê, muleque, você é dahora! Soma com a gente, meu! Vai ficar fumando essa porcaria aí, meu?” Eu tinha um conceito no meio dos vagabundos, dos ladrão. E quando eles viram que eu estava fumando crack, eles me deram conselho para eu sair das drogas. (...) Esse moleque que era gerente da biqueira eu conhecia ele desde moleque. Convivemos junto, nós começamos no crime juntos. A gente ia roubar junto. Ele fazia parte da minha banca. (...) E quando apareceu o crack na minha vida e eu fui pegar a droga na mão dele, ele não admitiu isso aí. Porque eu tinha um conceito. Eu roubava. (...) o crack foi tão forte na minha vida que acabou me dominando. Aí eu já não queria mais cheirar cocaína, fumar maconha. (...). O ladrão não admite você fumar crack, ninguém admite isso aí. Você fumou crack, você é excluído, você é afastado. O crack te afasta das pessoas. Na biqueira, você usou o crack, você é tirado como noia. (...) Entre os vagabundo você fumou crack, você é noia. Você perde o respeito, perde sua identidade e seu RG.(...) Você pode ser o que for, o maior bandidão, o maior PCC, você fumou crack acabou! (Trecho entrevista, 2015 - grifos meus)

Como sua até então bem-sucedida carreira criminal ficou comprometida pelo seu intenso consumo de crack, Edu já não socializava mais com a “banca” e ficava entocado em barracas, na favela, onde se podia fumar. A disciplina local, sob a égide do PCC, não recomendava que se consumisse o crack em locais públicos, de passagem, na frente das crianças e trabalhadores, segregando territorialmente os usuários intensivos em “mocós” (localizados geralmente em escombros e ruínas de construções ou barracas).

Edu parou de vender drogas e fazer assaltos e, progressivamente, foi se tornando um “noia”, no ponto de vista de seus amigos de infância e ex-colegas de crime. Tendo se afastado dessa rede de negócios, começou a trabalhar com carga e descarga de mercadorias para sustentar o próprio uso. Não queria mais se envolver, pois tinha muito medo de ser morto, sobretudo por um novato que, segundo ele, às vezes quer ganhar status entre “os ladrão” e pode cometer uma injustiça sem pensar. Em suas palavras,

E quando você chega em um ponto de usar tanta droga... Eu tinha muita treta, muita treta que eu tinha cometido lá [na favela]. E o crack faz você perder seu RG e seu caráter. Eu acabei perdendo isso aí. E o crack deixa você com medo. O crack traz lembranças no seu pensamento. Você fica lembrando muita coisa que você já fez errada. Então você sente medo. Eu me sentia com medo de alguém chegar e me matar, entendeu? (...) Porque eu tava já em uma situação fumando crack e pros vagabundo eu era noia. (...) Eu já nem colava mais na banca, eu me afastei. Eu ficava entocado nos barracos, entendeu? Onde os caras usavam crack eu ia lá usar com os caras. Tinha os lugares certos para eu usar o crack, entendeu? Eu não ficava mais com os vagabundos. Eu ia na biqueira só para pegar droga e usar. (...) Mas, sempre naquela, com medo de alguém querer fazer algum mal para mim. Alguém querer me matar. Eu aprontei muito, fiz muita coisa errada. (Trecho entrevista, 2015 - grifos meus)

O crime na favela mudou muito desde 1996. Essa cena se passava em meados de 2010, e o aval para punições tinha que vir da “biqueira”, em geral, em casos de roubo dentro da favela. “E eu ficava na minha. Não roubava mais nada dentro da favela, trabalhava pra sustentar meu vício. (...) Meu dinheiro era só pra usar droga”, afirma Edu. Porém, como fica claro na fala anterior de Edu, sua permanência na favela já estava comprometida, não só pelo seu consumo de crack, mas, sobretudo, por “já ter feito muita coisa errada”, “ter muitas tretas”, “ser considerado noia pelos vagabundos”.

A Cracolândia como refúgio

Nesse momento, Edu vivia um dilema: sua vida inteira havia passado na favela, sua família e seu porto seguro estavam lá, porém a passagem de uma condição de “ladrão considerado” para “noia” e as implicações cotidianas que isso gerava, desde o sentimento de vergonha até o medo de ser assassinado, lhe levaram a questionar a sua permanência em seu bairro de origem. A perda de status entre os pares, além da vontade de buscar tratamento, foram as motivações de Edu resolver ir para o centro da cidade.

Um dia, pegou o trem e foi até a Estação da Luz. Tinha nenhum dinheiro no bolso e nenhum pertence, só a roupa do corpo e duas latinhas de cerveja que encontrou abandonadas dentro do trem. Já na Estação, fez amizade com um homem que o ajudou a vender as duas latas de cerveja por um real cada. Segundo ele,

Aí eu falei pro cara: poxa mano, só tenho dois reais, dá nem pra pegar um crack pra gente fumar, né? Ele respondeu na hora: “Lógico que tem! Vem aqui!” Aí eu fui com ele! (...) Demorou um pouquinho e chegamos no meio da Cracolândia. Eu nunca tinha visto aquilo! Estava lotado de traficante e de gente usando droga! Lotado! Onde eu morava não podia usar droga assim à vontade! Nossa, to em casa!! Aqui pode usar droga no meio da rua, to em casa! (Trecho entrevista, 2015 - grifos meus)

Edu ficou surpreso de como que com os dois reais que haviam conseguido com a venda das cervejas já podiam comprar dois tragos. Na favela, precisava de no mínimo cinco reais para conseguir a droga. A dinâmica do comércio na Cracolândia torna comum o ato de comprar uma pedra de crack, dividi-la em múltiplos pedaços pequenos e vendê-los a partir de R$ 0,50, a depender do tamanho das lascas. Esse é um meio eficaz de fazer dinheiro e bancar seu próprio consumo, mas também um modo de produzir mais dinheiro com a mesma quantidade de droga. Ao comprar uma pedra de 10 reais é possível dividi-la em 20 lascas e vender cada uma por 1 real. Com isso, é gerado um lucro de 10 reais. Os 20 reais conquistados já possibilitam a compra de mais duas pedras: uma, por exemplo, pode ser usada para o próprio consumo e com a outra realizar o mesmo procedimento de fragmentação e venda. O traficante final se torna intermediário, o mercado se capilariza para atingir até os mais despossuídos.

Edu afirma que foi para o centro em busca de tratamento, queria uma internação, mas, ao chegar na Cracolândia, se depara com um local em que seu consumo de crack não seria tão estigmatizado nem combatido pela lógica do crime local. Ali, o código era outro. Poderia realizar seu uso de crack com mais tranquilidade e facilidade, tendo em vista a dinâmica descrita acima, a maior disponibilidade de recursos presentes no centro da cidade e a permissão de consumir livremente a substância. Sentindo-se acolhido e com maior liberdade e proteção para consumir a sua droga, Edu permaneceu pelo centro. De manhã, catava materiais recicláveis e de noite fazia pequenos assaltos a pedestres na Av. Paulista, área nobre da cidade. Assim sobrevivia e mantinha o seu consumo. Se havia perdido status na favela, no novo contexto, fez amigos e voltou a ser valorizado na sua habilidade para os assaltos. Se sua socialização pregressa no crime lhe fazia falta (Edu fala sempre “da sua época”), era momento de retornar a ter satisfação e reconhecimento pessoal no tráfico de drogas.

De volta ao tráfico

Edu sempre conseguia dinheiro com os assaltos. Depois de iniciar um relacionamento amoroso com uma mulher que era dona de uma barraca de venda de drogas da Cracolândia, ele entrou no ramo da venda de crack local e assumiu os negócios da namorada. Os novos contatos que a namorada lhe passou e sua experiência pregressa no mercado de drogas lhe foram de grande valia. Segundo ele, vendiam cerca de trezentas pedras de crack por dia e tinham dois capangas armados com facas para proteger a mercadoria. No novo contexto, conseguiu recuperar o status antes perdido na favela.

Além do fluxo periferia-centro, a fala de Edu chama a atenção para as diferenças na regulação do consumo nesses distintos códigos-territórios. No novo contexto, a saber na Cracolândia, além de ter mais liberdade para consumir o crack, Edu não precisava se afastar dos negócios do mercado de drogas. Sua condição de usuário não era um problema e, de certo modo, as fronteiras entre usuário e traficante são ali distintas daquelas da sociabilidade criminal nas periferias. Sua expertise como operador de tal mercado, em seu bairro de origem, podia agora novamente ser posta em prática no novo contexto.

É interessante notar que a expansão discursiva do chamado mundo do crime em São Paulo, mencionada anteriormente, se dá no mesmo período da disseminação do consumo de crack na capital paulista, entre as décadas de 1990 e anos 2000. Em um contexto de tentativa de regular e pacificar os conflitos internos aos “pretos, pobres, periféricos”, o consumo de crack emerge como algo problemático para a manutenção da ordem também nas políticas internas ao “crime”, inclusive sendo interditado por elas nas cadeias do estado dominadas pelo PCC (Biondi 2010BIONDI, Karina. (2010), Junto e misturado: uma etnografia do PCC. São Paulo: Terceiro Nome.).

O crack, de certa maneira, é recorrentemente visto, na perspectiva dos atores criminalizados, como catalizador de conflitos, dada sua suposta (e muito comentada em campo) potência de produzir “vício”, “perda do autocontrole e do cuidado de si” em comparação com outras drogas. Nesse sentido, a substância teria uma maior agência6 6 Me inspira aqui a reflexão do antropólogo Maurício Fiore (2013) sobre os distintos agenciamentos das substâncias em paralelo com a produção de hierarquizações morais a respeito do consumo de cada uma. na produção da degradação moral de seus consumidores e também no acirramento dos conflitos em torno das dívidas entre estes e traficantes. Dada uma maior atribuição à substância de agência na produção de endividamento, de degradação moral (expressa nos tipos ideais do “noia” ou do “verme”), ou de “perda da dignidade/ da identidade”, como afirma Edu, a gestão do consumo de crack me parece central na chave de regulação das condutas e dos conflitos empreendida pelo PCC nesses territórios.

Há, inclusive, uma gestão diferencial implicada nesta política do crime em cada território, para a qual Edu nos chama atenção quando afirma: “Onde eu morava não podia usar droga assim à vontade! Nossa, to em casa!! Aqui [na Cracolândia] pode usar droga no meio da rua, to em casa!” Convém ressaltar o que afirmou Biondi (2011), sobre o fato de que a ênfase dessa política não está na substância em si, mas nas condutas, nas definições sobre o que é “certo”. Mas, mais do que isso, como afirmou Rui (2014RUI, Taniele Cristina. (2014), Nas tramas do crack: etnografia da abjeção. São Paulo: Editora Terceiro Nome . ):

[...] se as apreciações morais excluem o noia como um outro, as relações comerciais (justo elas que parecem tão autoexplicativas) o incluem e, minimamente, os restituem como um sujeito. Assim, na mesma medida em que é a alteridade radical fundada em uma aparente exclusão, em um aparente descarte, o noia também desempenha um papel importante, que ainda precisa ser pesquisado: o de oferecer os contornos do certo. (Rui 2014RUI, Taniele Cristina. (2014), Nas tramas do crack: etnografia da abjeção. São Paulo: Editora Terceiro Nome . :192 - grifos meus)

Por isso, todo o empenho de Edu em não ser associado por seus pares à figura do “noia”, do “viciado”, quando ainda estava na periferia. Ele tentou encobrir ao máximo o seu consumo e, quando descoberto, afastou-se das atividades criminais em seu bairro para, por fim, se deslocar ao centro e buscar refúgio na Cracolândia. A chegada ali, ao contrário do que comumente se imagina, não foi o “fim da linha”, mas justamente o momento de reestruturação da carreira criminal (geração de renda, recuperação de status) no mundo do crime.

Em suma, Edu nos narra a sua perda de status em diversas esferas da vida social das periferias, a partir do consumo intensivo de crack, e suas consequências típicas, dada a valoração negativa de tal substância no meio do crime e as distintas regulações centro-periferia do mercado de drogas regulado, nesse período, pelo PCC. Quanto a essa regulação, Taniele Rui sintetiza:

[...] 1) autovigilância para os que não querem perder o respeito dos pares; 2) vigilância constante dos que já o perderam, o que, por sua vez, implica em limitar a circulação e o consumo no espaço, bem como ser ríspido durante as negociações; e 3) em casos de usos extremos, interdição, o que, no limite, pode resultar na expulsão dos bairros. Juntos, mas avaliados caso a caso, são esses os princípios que orientam a gestão dos noias em bairros marcados pelo tráfico de drogas e nos quais circulam as ideias do PCC. (Rui 2014RUI, Taniele Cristina. (2014), Nas tramas do crack: etnografia da abjeção. São Paulo: Editora Terceiro Nome . :178 - grifos meus)

É o deslocamento categorial - de “vagabundo considerado”, Edu passa a ser tido comonoia” - no interior do código do crime em seu bairro de origem, além da ameaça de morte, que induz ao deslocamento para o centro, onde Edu pode se recolocar no mercado da droga. A ida para a Cracolândia foi uma forma de Edu se reterritorializar na geopolítica do chamado mundo do crime e voltar a exercer suas habilidades nos assaltos e no tráfico de drogas em outro local, o qual é compartilhado por pessoas, muitas vezes, com a trajetória também perpassada pela impossibilidade de retorno aos seus bairros de origem, sobretudo, devido a dívidas e relações conturbadas com o tráfico.

Disso decorre uma suposta mudança no perfil da chamada população em situação de rua, muito comentada em campo, sobretudo, entre os funcionários que atuam nos serviços voltados para esse público, mas também entre as lideranças do Movimento Nacional da População de Rua (MNPR) e na própria bibliografia específica sobre esse segmento social (Melo 2016MELO, Tomás. (2017), “Mundos que refugam, ruas como refúgio: reconfigurações no perfil social da população em situação de rua”. In: G. Feltran; E. Cruz. “Dossiê Derivas e Vidas”. Revista Florestan, nº 5: 2017.; Oliveira 2012OLIVEIRA, Luciano Márcio Freitas. (2012), Circulação e fixação: o dispositivo de gerenciamento dos moradores de rua em São Carlos e a emergência de uma população. São Carlos: Dissertação de Mestrado, Universidade Federal de São Carlos.; Rui, Martinez & Feltran, 2016RUI, Taniele; MARTINEZ, Mariana; FELTRAN, Gabriel (orgs.). (2016), Novas faces da vida nas ruas . São Carlos: EdUFSCar .; Telles, 2017TELLES, Vera da Silva. (2017). “Em torno da cracolândia paulista: apresentação”. Ponto Urbe. Revista do núcleo de antropologia urbana da USP , (21).). Se de um lado, entre os anos 1990, as pesquisas antropológicas e sociológicas apontam para um perfil social que não conseguiu se adaptar às lógicas do mercado de trabalho e de venda da sua força produtiva. Por outro lado, na virada para os anos 2000, o fenômeno se reconfigura, passando esta população a ser composta por parcelas cada vez mais jovens (entre 18 e 30 anos) que sequer um dia fizeram parte do mercado de trabalho (Melo 2016).7 7 Uma mudança central também se deu no consumo de drogas. O álcool era a droga mais usada entre os moradores de rua adultos, nos anos 1990, frente prevalência do uso de crack entre os jovens em situação de rua nos anos 2000. Ver: Melo, 2016; Rui, Matinez & Feltran 2016) Segundo Tomás Melo (2016:2):

Trata-se de um segmento mais jovem (...), pessoas que passaram grande parte de suas vidas em domicílios, em regiões periféricas das cidades, designadas como favelas. Em grande medida, avaliam ter boas relações com seus familiares, mas afirmam que foram obrigados a abandonar o núcleo familiar e a localidade em que residiam, seja porque se envolveram diretamente em atividades ilícitas, no comércio varejista de entorpecentes, ou ainda, em virtude de ameaças à vida, devido a dívidas contraídas no mercado de drogas, ou à necessidade de deslocamento territorial pelas regras de consumo de crack estabelecidas nos territórios de favela. (grifos meus)

Essas pessoas buscam, por fim, refúgio nas ruas e cracolândias da cidade. Esse é o caso de Edu que, diferentemente de seu pai trabalhador, desde seus 12 anos, está inscrito no diagrama de relações do crime e sequer chegou a tentar pleitear uma vaga no mercado de trabalho legal-formal. Nesse sentido, a jornada de Edu e seu deslocamento da periferia ao centro da cidade, refúgio de diversas marginalidades urbanas, vão na mesma direção do que argumenta Melo (2016:3): “O mercado ilícito de drogas, referenciado por moralidades, regras, condutas e etiquetas próprias, também começa a produzir refugo de suas fileiras.”

Da Cracolândia à Cristolândia

A Operação

Edu diz que quando foi para o centro estava em busca de tratamento: “Eu queria internação, mas acabei ficando naquele inferno.” Ele permanece em situação de rua, na Cracolândia, por quase um ano, durante 2011. Até que uma grande operação policial o induz a errância novamente. É nesse momento que ele se engaja em um novo movimento de desterritorialização e, posterior, reterritorialização em um novo código-território.

No dia 3 de janeiro de 2012, com a promessa de “acabar com a Cracolândia” a chamada Operação Sufoco foi deflagrada no território. Edu estava lá e frente à violência policial e à iminência de ser preso, durante entrevista, me conta que foi na Missão Cristolândia que conseguiu refúgio. Ainda em 2011, no meio de dezembro, houve, segundo Edu, uma invasão da Divisão Estadual de Narcóticos (Denarc) e, posteriormente, foi deflagrada a Sufoco:

Depois que o Ano Novo passou, passou alguns dias quem invadiu a Cracolândia foi a Polícia Militar.. Tropa de Choque invadiu a Cracolândia. Nunca vi tanta polícia na minha vida. Mais de 50 viaturas da Força Tática. Tinha muita viatura, muita viatura. Aí a Força Tática chegou daquele jeito, dando tiro de borracha, usando o cassetete. Tirou todo mundo de lá. Quebrou a Cracolândia no meio. E muita gente espalhou. Aí foi quando espalharam. (...) Espalhou a Cracolândia. Acabou a Cracolândia, tirou ela de lá. (...) Eu desci aqui pra Cristolândia. (Trecho entrevista, 2015 - grifos meus)

Nesse contexto, não havia “acerto” possível com a polícia. Dada a magnitude da operação, assim como as distintas forças e poderes envolvidos, Edu só poderia fugir e se deslocar para escapar da violência policial e da possibilidade de ser preso. Após a operação, já havia perdido toda a sua mercadoria, estava sem dinheiro e perdeu o contato com a sua namorada. Nunca mais a viu.

A Cristolândia como refúgio

Eu gostaria de trazer pros irmãos nessa manhã, o livro de Ezequiel, capítulo 37, que diz assim: “Eis sobre mim a mão do Senhor. E ele me levou pelo espírito do senhor. Me deixou no meio de um vale que estava cheio de ossos. Me fez andar ao redor deles. Eram muito numerosos na superfície do vale. Estava sequíssimo, então me perguntou: filho do homem, acaso poderão reviver esses ossos? Respondi: Senhor Deus, tu o sabes. Disse-me ele: profetiza estes ossos. E disse-lhe: Osso seco, ouve a palavra do Senhor. Assim diz o Senhor Deus, a estes ossos, eis que farei entrar o espírito em vós e viverei, porei respiração sobre vós, farei crescer carne sobre vós, sobre vós colocarei peles e porei em vós o espírito e viverei. E sabereis que eu sou o Senhor.” Amém?! Senhor nosso Deus eterno, ô Pai, muito obrigado pela tua palavra. Que, em nome de Jesus, as pessoas que estão aqui, hoje, diante do seu altar, que elas possam abrir o coração nessa manhã para ouvir a sua palavra. É isso que eu te oro e agradeço no precioso nome do seu filho Jesus Cristo amado. Amém. Irmão, aqui é uma visão de Ezequiel, no Vale dos Ossos Secos.(...) E eu vejo irmão, aqui esse texto equiparo com a minha vida. Eu estava nesse Vale dos Ossos Secos. Vocês estão no Vale dos Ossos Secos. A Cracolândia é um Vale dos Ossos Secos. Muitas pessoas ali estão debilitadas, estão lá usando droga. O crack faz você perder as forças, perder energia. Faz perder a sua identidade, o seu caráter. E vocês fazem parte desses ossos secos. (Pregação, Edu, 2015 - grifos meus)

Edu diz essas palavras no culto anterior ao café da manhã servido ao “povo da rua” pela equipe da Missão Cristolândia. Além de potente recurso retórico e performático, a história bíblica de Ezequiel serve de ferramenta analítica para Edu compreender a sua própria jornada e se posicionar como um profeta da palavra de Deus, empenhado na salvação dessas pessoas e desse território, do qual um dia ele já se sentiu parte. Em um primeiro momento, ele estava em condição semelhante a das pessoas, as quais agora ele profetiza e equipara a “ossos secos”; metáfora que explicita o limiar entre a vida e a morte que supostamente estariam vivenciando. Até que alguém o profetizou, ali mesmo, na sede da Missão Batista, e ele foi liberto. Já convertido, ele reivindica para si o papel, tal como Ezequiel, de profetizar os que ainda estão presos no chamado Vale dos Ossos Secos, ou seja, na Cracolândia. Birman e Machado (2012BIRMAN, Patrícia; MACHADO, Carly. (2012), “A violência dos justos: evangélicos, mídia e periferias da metrópole”. Revista Brasileira de Ciências Sociais, 27(80): 55-69.) enfatizam que a ação divina no mundo exige mediadores. Além disso, as autoras interpretam como os usos discursivos da metáfora do “vale dos ossos”, recorrente em pregações evangélicas direcionadas aos marginalizados, explicitam que “as pessoas ali presentes são simbólica e socialmente consideradas mortas e lhes é ofertada pela Igreja [e seus mediadores], a oportunidade de nascer de novo. (idem, p 61)

Em sua pregação, Edu ressignifica a sua experiência na Cracolândia após sua conversão religiosa. Se na entrevista, ele narra o dia de chegada na Cracolândia e conecta essa territorialidade com sentimentos de identificação, acolhimento e liberdade (“me senti em casa”), agora na sua atual posição de evangelizador aspectos sombrios e dolorosos da experiência da vida nas ruas e nas drogas ganham maior ênfase durante suas performances.

Edu escapa da Operação Sufoco e da possibilidade do cárcere agenciando a sua internação no programa batista. Ele não foi o único a buscar proteção na Missão Cristolândia. Em fevereiro de 2012, algumas semanas após a ocorrência da intervenção policial, estive em campo e escutei as narrativas dos missionários sobre a dificuldade da equipe em dar conta do súbito aumento do interesse em ir para os centros de internação batistas. Segundo uma missionária, Cíntia, “foi uma loucura! Vixe! O atendimento triplicou. Costumávamos internar 40 por mês, na época, internamos 50 por semana”. Isso não significa que, assim como Edu, todos cumpriram com o tratamento em sua integralidade. Ao contrário, grande parte permaneceu poucos dias ou semanas com posterior regresso às ruas - o que revela a “exceção” da trajetória de Edu, não a regra.

Acompanhada desse aumento súbito da procura dos usuários, veio também uma grande demanda de programas televisivos que, após a realização dessa polêmica intervenção policial, buscavam divulgar iniciativas e supostas soluções ao problema do crack.8 8 Ver, por exemplo: vídeo “Cristolândia no Globo Repórter”, YouTube, Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=CT5a5DLR0UM&t=46s. Com isso, a Cristolândia sentiu alguns efeitos positivos da realização da operação policial. Passou a ser mais conhecida em nível nacional e receber mais doações para além dos limites das igrejas batistas ou evangélicas de São Paulo. Pessoas não crentes também passaram a contribuir. O projeto expandiu muito na passagem de 2011 para 2012 e, nesse mesmo período, foram abertas novas casas de internação em Santana, Pedra Bela, Campinas e no centro do Rio de Janeiro. Com a maior divulgação do trabalho missionário batista, também políticos de diversas cidades passaram a se interessar pelo programa. Inclusive, após a operação de 2012, a coordenação da missão foi procurada pela Prefeitura para tentar estabelecer parcerias:

Só que eles queriam fazer uma parceria que para nós não é vantagem. A parceria com o Estado eu não vi como uma parceria vantajosa. Porque o que ele me propôs foi: se eu tiro, no baixo, em uma semana, 50 pessoas da rua, o que ele me propôs foi tirar 100. Mas eu tenho estrutura para tirar 100. Mas não importa tirar 100. O que importa é que no final, depois do programa, eu preciso desaguar, escoar essas 100 pessoas. Pra eu escoar essas 100 pessoas, como que eu vou fazer? (...) eu preciso inserir essas pessoas no mercado de trabalho. Aí eles não querem fazer nenhuma parceria, eles só querem me ajudar a tirar. A tirar, eu não quero! Eu quero que ele me ajude na ponta. (Trecho entrevista, Soraya, coordenadora Cristolândia, setembro de 2013)

Com a fala de Soraya emerge mais um impasse. Ao que parece, as políticas estatais estão mais preocupadas em tirar as pessoas da Cracolândia e liberar o território do que “escoar” essa população para o mercado de trabalho ou outras possibilidades. Uma das formas do Programa Cristolândia “escoar”, como afirma Soraya, os alunos que terminaram o tratamento é a partir da contratação de missionários pela JMN. Esse é o caso, por exemplo, de Edu, o qual optou por se profissionalizar na carreira missionária. Tal profissão é uma das poucas disponíveis no mercado de trabalho em que o fato de ele ter parado os estudos aos 12 anos, ter ingressado em uma carreira criminal e, posteriormente, se tornado refugo do crime, “noia” e morador de rua não inviabilizam a sua contratação. Ao contrário. Sua história de vida pregressa à conversão religiosa não é um problema em si, mas um potencial, na medida em que uma vez ressignificada pode ser acionada para materializar e comprovar a eficiência do poder de Deus. Edu, diferente de muitos que procuraram a Cristolândia, figura, por isso, como caso exemplar e excepcional do sucesso do programa batista, corporifica a transformação redentora que tal política evangélica quer operar nos indivíduos e nos territórios das cracolândias de todo o Brasil.

Conclusão: a conversão religiosa como estratégia de “sobreviver na adversidade”

Aí eu fui e desci de lá [da Cracolândia]. Falei: “não, eu não aguento mais” e desci pra cá [para a Cristolândia]. Aí o cara pregou e falou “quem quer ir hoje pra Itaquaquecetuba [CFC] vem aqui na frente”, “quem quer aceitar Jesus hoje vem aqui na frente”. Eu não aguentava mais aquela vida. Tudo que eu já passei. Tudo que eu já tinha sobrevivido. Já tinha sobrevivido a muita coisa, já tinha visto muita coisa e eu não aguentava mais a minha vida. Se alguém tirasse a minha vida naquela época era um favor que me fazia. (...) Se eu continuasse naquela vida que eu tinha, só tinham dois caminhos pra mim: a sepultura ou a cadeia. (Trecho entrevista, 2015 - grifos meus).

Para Edu, a internação nos centros cristãos batistas apareceu como uma alternativa interessante (talvez a única naquele momento) em sua vida, na qual estava inscrito em uma dinâmica em que precisava lidar a todo momento com a ameaça de morte e do cárcere, acentuada pela violência da Operação Policial. Na sua narrativa, a conversão religiosa emerge como uma terceira via entre a cadeia e a sepultura. Sem dinheiro, sujo e em situação de rua, foi na Cristolândia que Edu encontrou um abrigo e um refúgio frente a violência policial. Edu saiu da Cracolândia e foi levado para Itaquaquecetuba, onde permaneceu por alguns meses na primeira fase do tratamento religioso. Depois passou por Bauru e Pedra Bela, segunda e terceira fase respectivamente. No desenrolar do tratamento se converteu ao evangelho e foi batizado na Igreja Batista. Em menos de um ano, já estava de volta na Cracolândia. Porém, agora, como voluntário da missão após ter passado pelos três meses de treinamento do Radical Brasil. Tinha alojamento e comida gratuita, ainda era considerado em fase de tratamento, mas já atuava no “resgate” dos usuários crack da região. Edu conseguiu uma bolsa para estudar em um Seminário Batista e, em 2015, estava quase terminando e pretendia seguir a carreira missionária. Estava de casamento agendado com Márcia e já era um dos responsáveis pelas pregações realizadas para o “povo da rua:

Na Cristolândia, eu vi uma pessoa pregar a palavra de Deus aqui. E quando a pessoa estava pregando aqui, a pessoa fez um apelo. Sempre eu vinha aqui tomar café, irmão. Tomar café, trocar de roupa, tomar um banho e ir pra fora, ir pra rua. Mas, naquele dia, Deus tocou no meu coração. (...) E faz 3 anos e 3 meses que eu estou aqui, na casa do Senhor Jesus Cristo. Saí daquele Vale dos Ossos Secos, onde eu me encontrava. (...) Então, Deus me devolveu meu RG, me devolveu minha identidade. Deus me devolveu meu caráter. Hoje, meu nome é [Eduardo]. Hoje, eu tenho nome porque antigamente eu não tinha mais nome. Perdi tudo, as drogas me tiraram tudo que eu tinha. Tirou a minha felicidade, tirou a minha alegria de viver. E, hoje, eu vivo com alegria, servindo Cristo Jesus. Saí desse Vale dos Ossos Secos. E vocês também que estão na frente de mim, meu irmão. Eu não sou melhor que ninguém que tem aqui, irmão. Todos vocês são filhos de Deus. Deus escolheu vocês. Mas, você tem que dar o primeiro passo, mulheres e homens. Vocês têm que tomar uma decisão na tua vida. (...) . Fez na minha vida e pode fazer na tua vida. Basta você acreditar nesse Cristo, que libertou muitas pessoas, que me libertou também das drogas. (Pregação, Edu, 8 de abril de 2015 - grifos meus)

Aos poucos, Edu se transformou em um dos operadores da política evangélica e defende que o caminho que ele próprio escolheu é o mesmo que os outros, que ainda estão na Cracolândia, também deveriam seguir. A pressuposição é que, se deu certo para ele, dará também para todo mundo que ali está - o que não se confirma empiricamente. A agência de cura divina assim como operou com ele, pode “salvar” e “libertar” todos das drogas. Nesse sentido, sair do crack ou da Cracolândia seria um problema do âmbito da escolha individual/espiritual. Tal pressuposto que fundamenta as suas afirmações de que “basta você dar o primeiro passo na sua vida”, “tomar uma decisão”, “basta vocês quererem”, “basta vocês terem um encontro verdadeiro com Jesus Cristo”. Trata-se de uma escolha e de uma entrega. Escolha, esta, que supostamente foi a que ele próprio fez e que lhe possibilitou mudar de condição e sair do “Vale dos Ossos Secos”, ou seja, da Cracolândia, e passar a ser um mediador na política batista. Inscrito em um novo código-território, Edu passa a operar um jogo permanente entre igualar-se e diferenciar-se daqueles que procura convencer e evangelizar. Recorre constantemente à sua experiência pregressa como vínculo para converter aqueles que ele supõe estarem na mesma condição que um dia ele esteve, tais como “escravos do crack” como sugerem suas palavras.

Se foi na Cracolândia que, anteriormente, ele encontrou refúgio e conseguiu estabelecer suas relações e status em meio aos códigos do tráfico de drogas, também foi ali que ele conseguiu agenciar uma “transformação” na sua vida, na medida em que passou a acessar outras redes de ajuda e sociabilidade atrelada às Igrejas Batistas. A entrada no programa religioso, para muito além de lhe possibilitar interromper o seu consumo de crack, lhe ofereceu proteção frente aos riscos da cadeia e da morte e ainda lhe alçou a outra posição social e moral frente aos seus pares da Cracolândia, mas também frente a sua família e aos seus conhecidos e antigos parceiros da vida no crime, em seu bairro de origem. Além disso, as redes evangélicas possibilitaram que Edu agenciasse seu casamento, a continuação dos seus estudos e uma significativa melhora da sua condição material de vida frente a que vivia na Cracolândia.

Daniel Hirata (2010HIRATA, Daniel Veloso. (2010), Sobreviver na adversidade: entre o mercado e a vida. São Paulo: Tese de Doutorado, Universidade de São Paulo.), em sua etnografia feita em uma periferia de São Paulo sobre as conexões entre o mercado legal e ilegal, informal e ilícito, compreende a expressão de “sobreviver na adversidade” da seguinte maneira:

Em primeiro lugar uma experiência de enfrentamento das dificuldades imanentes às complexas e desiguais formas de distribuição de riqueza não formalizada que circulam na cidade, em segundo, para além das formas de subsistência as pessoas e suas famílias, esta experiência diz respeito à construção de formas de respeito de dignidade relacionada a um jogo de forças que pode conduzir a morte, visto como não previsível, e que, portanto, exige certo proceder nas suas formas de conduta correspondentes. (Hirata 2010HIRATA, Daniel Veloso. (2010), Sobreviver na adversidade: entre o mercado e a vida. São Paulo: Tese de Doutorado, Universidade de São Paulo.:19)

Trata-se de uma forma de conduta ativa e reflexiva de, de um lado, sobreviver à chamada “violência urbana”, que expõe a população mais pauperizada ao limiar entre a vida e a morte e, de outro lado, a expansão do mercado informal, as novas formas de precarização do trabalho e o crescimento dos chamados mercados ilegais, informais e ilícitos. Ou seja, o risco de morte violenta e a ameaça de pobreza extrema. “Entre esses dois conjuntos de fatos, uma parcela enorme da população que vive nas periferias paulistas tenta sobreviver, em um trânsito contínuo entre a defesa da vida e a busca de oportunidades de trabalho” (Hirata 2010HIRATA, Daniel Veloso. (2010), Sobreviver na adversidade: entre o mercado e a vida. São Paulo: Tese de Doutorado, Universidade de São Paulo.: 137). Em sua entrevista, Edu inclui o cárcere como mais um risco a ser administrado, dado um contexto de crescimento do encarceramento em São Paulo. Apesar de nunca ter sido preso, Edu sempre lidou com essa possibilidade bem de perto, seja pela prisão de seu irmão e de conhecidos, seja pelos “acertos” que estabeleceu com a polícia. Como ressalta Telles (2010TELLES, Vera da Silva. (2010), A cidade nas fronteiras do legal e ilegal. São Paulo: Argumentum.:169), “saber ‘sobreviver na adversidade’ supõe certa habilidade em transitar entre fronteiras”. Segundo a autora, isso implica “saber transformar esses diversos territórios em recursos de vida, vias incertas de construção de outros possíveis que lhes permitam escapar seja da morte matada, seja da pobreza extrema”.

A jornada de Edu chama atenção para a sua notória capacidade de transitar por códigos-territórios tão distintos que o tornam capaz de negociar com traficantes, policiais, usuários de drogas ou missionários evangélicos. É a partir de seus deslocamentos pelas fronteiras do mundo social que Edu pode contornar situações de extremo risco e encontrar refúgios possíveis. A conversão religiosa emergiu como uma terceira via possível entre a sepultura e a cadeia.

Referências

  • BIONDI, Karina. (2010), Junto e misturado: uma etnografia do PCC São Paulo: Terceiro Nome.
  • BIRMAN, Patrícia; MACHADO, Carly. (2012), “A violência dos justos: evangélicos, mídia e periferias da metrópole”. Revista Brasileira de Ciências Sociais, 27(80): 55-69.
  • CORTÊS, Mariana. (2007), O Bandido que virou ‘Pregador’ São Paulo: Hucitec.
  • DA CUNHA, Christina Vital. (1998), “‘Traficantes evangélicos’: novas formas de experimentação do sagrado em favelas cariocas”. Plural, vol. 15: 13-46.
  • DELEUZE, Gilles; PARTNER, Claire. (1998), Diálogos Trad. Eloisa Araújo Ribeiro, São Paulo: Escuta.
  • FELTRAN, Gabriel de Santis. (2011), Fronteiras de tensão: política e violência nas periferias de São Paulo São Paulo: Editora Unesp: CEM: Cebrap.
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  • FELTRAN, Gabriel de Santis. (2012), “Governo que produz crime, crime que produz governo: o dispositivo de gestão do homicídio em São Paulo (1992-2011)”. Revista Brasileira de Segurança Pública, vol. 6:232-255.
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  • 1
    Esta pesquisa foi financiada pela Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp), nº do processo: 2014/22454-6.

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  • 2
    “Radical Brasil é uma estratégia de envio de missionários temporários aos campos de Missões Nacionais. O objetivo é despertar vocações entre jovens e adultos, profissionais ou estudantes que queiram tomar uma atitude radical, dedicando-se voluntariamente por um ou dois anos de sua vida no campo missionário. O missionário radical passa por um período de treinamento básico e depois segue para o campo missionário, conforme o projeto para o qual se inscreveu”.

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  • 3
    A entrevista foi realizada e gravada por mim na sede da Missão Cristolândia, em São Paulo. Conheci Edu no espaço da missão, local em que fui alocada como voluntária pela equipe de missionários para poder realizar a pesquisa de campo.

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  • 4
    Muito já foi produzido por pesquisadores paulistas sobre a expansão do PCC, nos presídios e periferias de São Paulo. Ver: Feltran (2011FELTRAN, Gabriel de Santis. (2011), Fronteiras de tensão: política e violência nas periferias de São Paulo. São Paulo: Editora Unesp: CEM: Cebrap., 2010FELTRAN, Gabriel de Santis. (2010), “Crime e castigo na cidade: os repertórios da justiça e a questão do homicídio nas periferias de São Paulo”. Caderno CRH, vol. 23, nº 58: 59-73., 2012, 2014FELTRAN, Gabriel de Santis. (2014), “O valor dos pobres: a aposta no dinheiro como mediação para o conflito social contemporâneo”. Caderno CRH 27.72: 495-512.), Hirata (2010), Biondi (2010), Malvasi (2012) e Marques (2015).

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  • 5
    Palavra êmica com sentido interno positivado, ver: Karina Biondi (2010).

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  • 6
    Me inspira aqui a reflexão do antropólogo Maurício Fiore (2013FIORE, Maurício. (2007), Uso de “drogas”: controvérsias médicas e debate público. Campinas: Mercado das Letras.) sobre os distintos agenciamentos das substâncias em paralelo com a produção de hierarquizações morais a respeito do consumo de cada uma.

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    Uma mudança central também se deu no consumo de drogas. O álcool era a droga mais usada entre os moradores de rua adultos, nos anos 1990, frente prevalência do uso de crack entre os jovens em situação de rua nos anos 2000. Ver: Melo, 2016; Rui, Matinez & Feltran 2016)

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  • 8
    Ver, por exemplo: vídeo “Cristolândia no Globo Repórter”, YouTube, Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=CT5a5DLR0UM&t=46s.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    11 Jun 2021
  • Data do Fascículo
    Jan-Apr 2021

Histórico

  • Recebido
    29 Nov 2020
  • Aceito
    08 Maio 2021
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