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“São Francisco na Maré”: religião e pacificação numa ocupação militar

“São Francisco na Maré”: religion and pacification in a military occupation

Resumos

Resumo: O objetivo deste artigo é analisar a forma como se constituiu a aproximação entre militares e religiosos no contexto da Operação São Francisco - a ocupação militar da Maré, bairro carioca composto por 16 favelas, que durou de abril de 2014 a junho de 2015 - e contribuir para as reflexões sobre as relações entre religião, pacificação e militarização. Desse modo, a partir do Rio de Janeiro, pretendo discutir a forma como militares e religiosos, mais especificamente evangélicos pentecostais, se articularam na produção de uma cidade “pacificada”.

Palavras-chave:
religião; evangélicos; militarização; pacificação; conservadorismo


Abstract: The objective of this paper is to analyze the way in which the approximation between the military and the religious was constituted in the context of Operation São Francisco - the military occupation of Maré, a Rio neighborhood made up of sixteen slums, which lasted from April 2014 to June 2015 - and contribute to reflections on the relationship between religion, pacification and militarization. Thus, from Rio de Janeiro, I intend to discuss how military and religious, more specifically Pentecostal evangelicals, articulated themselves in the production of a “pacified” city.

Keywords:
religion; evangelicals; militarization; pacification; conservatism


Deus, mesmo, se vier, que venha armado.

Guimarães Rosa

Introdução

O projeto de “pacificação” de favelas cariocas começou a ser implantado em dezembro de 2008, na favela de Santa Marta, no bairro de Botafogo, zona sul do Rio de Janeiro, como laboratório de um novo tipo de policiamento que, caso funcionasse, poderia ser levado para outras favelas. A constituição dessa experimentação como programa e política pública, mesmo precariamente sistematizada e burocratizada, passa diretamente pelo ciclo dos megaeventos que a capital carioca sediou entre os anos de 2009 e 2016. A assim chamada “pacificação” consistiu, em grande medida, na ocupação militar, territorial, de algumas favelas cariocas, ocasionando processos que apontaram para uma militarização do espaço citadino. Em pelo menos duas situações, apontadas adiante, algumas favelas eram ocupadas pelas Forças Armadas a fim de preparar a chegada das Unidades de Polícia Pacificadora, carro-chefe da “pacificação”. O modelo entra em crise em 2013 e vai sofrendo um lento processo de desmonte e críticas por sua ineficácia.1 1 Há uma vasta literatura sociológica sobre esse processo, não sendo objetivo deste texto abordá-lo. Sem pretender ser exaustivo, recomendo, para uma compreensão analítica do que foram as UPPs, os seguintes textos: para um balanço analítico de caráter mais geral, ver Rodrigues, Siqueira e Lissovsky (org.). (2012), Fridman (2014), Leite (2014), Machado da Silva (2016) e Menezes (2018); sobre as relações entre UPPs e religião, sobretudo protestantes evangélicos, ver Esperança (2012, 2013, 2014a, 2015a, 2017) e Machado, Esperança e Gonçalves (2018).

Em situações de ocupação militar, com o objetivo de estabilização ou pacificação de territórios, onde o “inimigo” se faz presente misturado junto à população, é parte fundamental da missão, como consta nos manuais militares, a aproximação com os moradores, a fim de conquistar “corações e mentes”. Dessa forma, ganhando o apoio local, enfraquecem-se os laços e as redes de proteção e atuação do inimigo. As ações humanitárias se convertem numa eficaz estratégia da nova guerra e são essenciais para o sucesso dessas missões em territórios de ocupação militar. Geralmente, antes da operação de ocupação, ou logo em seu início, os militares costumam mapear as organizações locais, escolher quais delas são mais confiáveis e dignas de uma parceria, buscando assim uma aproximação. Algumas dessas organizações veem na aproximação com os militares uma forma de visibilidade, legitimidade, angariamento de recursos ou mero exercício de poder local, enquanto outras, com medo de represálias ou por motivações ideológicas, se afastam e recusam qualquer proximidade.

Venho mapeando a forma como se constroem essas aproximações entre militares e organizações locais durante ocupações militares em favelas cariocas desde a ocupação dos Complexos do Alemão e da Penha, a chamada Operação Arcanjo, onde notei um fator peculiar: a aproximação dos militares com as redes religiosas cristãs locais, constituindo o que chamei de projeto de redenção.

Nessa operação, que durou de novembro de 2010 a junho de 2012, como sugestivamente o próprio nome da operação já parece apontar, os militares escolheram certos líderes cristãos locais - os que aceitaram seu convite para participar de reuniões de avaliação da ocupação - como os únicos mediadores legítimos dos projetos humanitários e de assistência social coordenados pelo exército durante a ocupação. Excluindo todas as outras organizações locais, como associações de moradores e ONGs, assim como qualquer outra expressão religiosa, construiu-se um projeto que transformava os religiosos em mediadores autorizados da favela e os via como os únicos capazes de expressar as demandas locais sem “contaminação” com a política e o crime.

Quando o exército sai do Complexo do Alemão, o projeto, que já definhava, se desarticula completamente. Contudo, alguns anos depois, em 2014, parte dos mesmos militares, capelães do exército, é acionada para prestar assistência religiosa na ocupação militar da Maré. Como eu já possuía essa rede de contatos, interessei-me profundamente por essa nova experiência. O mesmo Serviço de Assistência Religiosa do Exército (Sarex), contando praticamente com os mesmos capelães e a liderança do mesmo chefe do serviço religioso, esteve presente no início da nova operação, mas tudo se deu de forma bastante diferente da Operação Arcanjo. Assim, o objetivo deste artigo é analisar a forma como se constituiu a aproximação entre militares e religiosos no contexto da Operação São Francisco - a ocupação militar da Maré, comparando-a, quando possível, à Operação Arcanjo, e, contribuir para as reflexões sobre as relações entre religião, pacificação e militarização.

Dessa forma, a partir do Rio de Janeiro, pretendo discutir a forma como militares e religiosos, mais especificamente evangélicos pentecostais, se articularam na produção de uma cidade pacificada. Nesse encontro entre militarização e religião, redes evangélicas pentecostais se constituíram como verdadeiros aliados de policiais militares e militares do exército nas políticas de pacificação dos territórios de sua atuação.

O que foi a Operação São Francisco? Uma ocupação militar do território da Maré, um bairro da cidade do Rio de Janeiro, que durou de 5 de abril de 2014 até 30 de junho de 2015. Durante esse período, entre 2.500 e 3.500 militares das forças armadas brasileiras, entre 2 mil e 3 mil do Exército Brasileiro e quinhentos fuzileiros navais da Marinha do Brasil, formaram o contingente de ocupação de uma área de cerca de 7 km². A fundamentação legal dessa operação se deu por uma Garantia da Lei e da Ordem (GLO), dispositivo constitucional,2 2 Art. 142 da Constituição Federal brasileira. regulamentado em lei complementar,3 3 Lei complementar nº 97, de 9 de junho de 1999 e Decreto nº 3.897/2001, assinados pelo presidente Fernando Henrique Cardoso. que autorizava os militares à realização de ações de caráter preventivo e repressivo necessárias para assegurar o resultado da operação.

A operação foi classificada pelos militares como “um conflito moderno. Uma guerra irregular, sem fronteiras, com inimigo difuso”,4 4 General de Souza, um dos comandantes da Operação, no sítio oficial do Ministério da Defesa. Disponível em: http://www.defesa.gov.br/noticias/15254-complexo-da-mare-forcas-de-pacificacao-ja-realizaram-mais-de-65-mil-acoes. cujo objetivo era a “pacificação” da região, área de reconhecida atuação de grupos criminosos armados, para a instalação de quatro Unidades de Polícia Pacificadora (UPPs), sob o comando da Polícia Militar do Estado do Rio de Janeiro. Foram utilizados, ao todo, cerca de 23,5 mil militares, 85% deles com experiência prévia em Missão de Paz no Haiti. O custo total da operação, aos cofres públicos foi de, aproximadamente, R$ 520 milhões.5 5 Segundo o Anuário Brasileiro de Segurança Pública (Fórum Brasileiro de Segurança Pública 2017), de 2017.

Realizei pesquisa etnográfica na Maré, onde também atuei como coordenador de projeto e pesquisador em uma instituição local, nos anos de 2016 e 2017. Contudo, acompanhava os processos citados desde a ocupação militar. Entrevistei e conversei informalmente com as pessoas envolvidas nos eventos e processos delineados neste artigo. É por meio de suas vozes que me aproximo do objeto.

Analisando de forma mais global pode-se entender a constituição das relações entre militares e as redes religiosas locais, na Operação São Francisco, dividindo-a em três momentos específicos, tendo como foco da análise a atuação dos capelães militares.

Na primeira fase, os seis primeiros meses, o serviço de capelania militar era oferecido pela equipe do Sarex, ligado ao Comando Militar do Leste. Por meio de uma escala, os capelães se revezavam no cuidado espiritual das tropas e eram instados a se engajarem em outras atividades. Era esperado que capelães da polícia militar atuassem em conjunto com os do exército, mas aqueles, por alegados motivos de segurança, não participaram do serviço. A marinha, por sua vez, com os fuzileiros navais, utilizou-se de seus próprios capelães.

Na segunda fase, a partir de um batalhão vindo da região sul do Brasil, o capelão que acompanhava a tropa por lá, veio junto e assumiu o serviço religioso. A maneira como se compreendeu a figura do capelão, nesse momento, mudou bastante. Nesse período, deu-se a aproximação do comando com o coletivo cristão local “Juventude Relevante”. Com a saída das tropas do sul e a chegada de uma tropa da região nordeste, veio junto, também, o capelão da tropa, quando as relações dos militares com o coletivo começaram a se esvaziar e a ocupação viveu seus piores dias.

Na terceira fase, com a chegada da última tropa, vinda de Brasília, veio junto, também, seu capelão, de perfil significativamente diferente dos anteriores, que retoma e intensifica o plano da primeira fase, trazendo à dimensão do serviço religioso uma faceta explicitamente instrumental e bélica.

Neste artigo, farei uma análise da aproximação entre militares e o coletivo cristão local “Juventude Relevante”.6 6 Aprofundei as outras fases em minha tese de doutorado, defendida em 2019, no Instituto de Estudos Sociais e Políticos da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj), sob o título “São Francisco na Maré: memórias de uma ocupação militar na cidade dos megaeventos”, orientado pelo saudoso Prof. Luiz Antonio Machado da Silva e pela Prof.ª Mariana Cavalcanti.

O coletivo “Juventude Relevante”

Um evento específico, em que foi lançada uma bomba de gás dentro de uma casa, levando ao sufocamento dos moradores, entre eles uma criança de dois anos, e a posterior adicional agressão às vítimas, acabou produzindo uma importante aproximação entre o comando militar e um grupo religioso da Maré. Uma das vítimas do evento, Gabriel, era pastor de uma igreja evangélica pentecostal na Vila do Pinheiro e liderava, junto com mais um pastor, Jader, de outra igreja local, um coletivo de jovens cristãos, a maioria moradores da Maré, chamado “Juventude Relevante”.

O coletivo reunia-se em locais públicos. Segundo seus líderes, no início, o trabalho era voltado para jovens universitários, com o objetivo de que levassem a mensagem evangélica para suas universidades, mas depois o trabalho se ampliou também para adolescentes,7 7 Segundo a página, na rede social Facebook, do coletivo, eles são “um movimento cristão que instiga jovens a um estilo de vida de avivamento, gerando mudança em sua comunidade, causando transformação. Uma ação missionária nas comunidades do Rio de Janeiro”. (https://www.facebook.com/pg/juventuderelevante/about/?ref=page_internal). além de, como disse um de seus líderes, fazer com que essa galera se movimente para fazer ações pra comunidade. Após o evento na casa de um de seus pastores, o coletivo buscou o comando militar da ocupação para lhe cobrar uma posição sobre os excessos e cobrar o que eles teriam para oferecer à comunidade, além dos fuzis. Essa aproximação foi vista com bons olhos pelo então comandante da Operação.

Já trouxemos uma agenda de reclamação. Não é possível que eu vou lidar com um cara de máscara, pô. Não é possível. Não é possível que o cara vá entrar dentro da minha casa sem mandato. “Pô, tá acontecendo isso?”. “Tá”. Aí eu fui falando os locais em que tava acontecendo isso. (...) A partir desse dia, a gente passou a ser convidado, numa semana, duas vezes por semana pra ir lá. E aí, todas as vezes que a gente ia lá, a gente tinha contato direto com o general. (...) Não tinha uma ocorrência na comunidade que esse general não se dava a explicar pra gente. (...) o cara começou a fazer com que a gente se sentisse parte do processo. (Pastor Jader)

E também identificamos nas lideranças religiosas um papel fundamental porque a igreja evangélica joga um papel fundamental nessas comunidades mais pobres. Isso é notório, né. Não há mais aquela presença das religiões afro-brasileiras. A umbanda e o candomblé praticamente não existem mais nessas comunidades. A igreja católica tem uma postura mais centrada em torno do seu templo, né, aquela paróquia, que tem uma ação em torno dela, mas a igreja evangélica tem muito mais liberdade de atuação, circula muito mais facilmente (...) nós chegamos a contar quase 150 templos evangélicos. E aí, tentando circular, e conversar. Algumas lideranças comunitárias também tinham esse papel, era comum. E aí surgiu a figura do pastor Jader Cruz, que deu uma palestra aqui no círculo, que é do coletivo Juventude Relevante. Eu vi muita seriedade na conversa com ele. Não era uma conversa religiosa na essência. Eu também não queria levar para esse lado. Acho que não cabia ali. Uma liderança que buscava através de uma mensagem também de paz apresentar alternativa para aquela juventude. É tudo que a gente precisa, de criar esse diálogo. (...) (General Richard Nunes, comandante da Operação à época)

O pastor Jader elenca as reclamações: soldados usando máscaras para não serem identificados, violações de domicílios, violência desmedida. O general os escuta e, então, os convida para encontrá-lo ao menos duas vezes por semana. Nesses encontros, conversa com os pastores e justifica as ações militares. Líderes de um pequeno coletivo religioso e pastores de duas igrejas de pequena e média expressão local - Jader, naquela época, era o pastor de jovens de sua igreja, uma espécie de pastor auxiliar do pastor presidente da igreja -, sem um destacado histórico de ação comunitária local, os dois são escolhidos pela autoridade local máxima como interlocutores privilegiados, aqueles que, de alguma forma, representariam a comunidade. Coube, nesse caso, ao agente militar, arbitrariamente, escolher duas lideranças religiosas como aqueles que teriam acesso privilegiado ao comando. Na fala dos pastores, houve sempre uma enorme simpatia por essa figura militar, que conseguiu, segundo Jader, fazer com que eles se sentissem parte do processo. Três anos depois, convidado para falar em um evento militar, Jader descreveu o evento na casa do outro pastor como fruto da providência divina, que proporcionou um espaço de escuta.

Deus, abre esse diálogo aí, abre esse acesso aí. E esse acesso, por incrível que pareça, se deu através de uma granada de gás na casa do pastor Gabriel. Foi, não foi, pastor? Houve um problema de segurança na rua da casa do pastor, o fuzileiro em problema com a comunidade. Eu não sei como, irmão, mas a granada de gás voou na laje dele. Quando explodiu na casa dele lá, o sobrinho dele já sem ar, conseguiram levar para o hospital, correram para o UPA da região. E o Gabriel foi falar com eles. Tacaram gás de pimenta na casa do pastor Gabriel. Falei, cara, se o acesso era pra pagar esse preço, era você mesmo, tenho certeza disso, não era eu não. Tacaram gás de pimenta na casa dele e eles foram no batalhão para conversar lá no CPOR.8 8 Centro de Preparação de Oficiais da Reserva do Rio de Janeiro, aparelho militar que fica às margens da Avenida Brasil, fazendo fronteira com a Maré. (Cruz 2017CRUZ, Jader. (2017), “Painel 1: segurança pública no Brasil - um diagnóstico”. XVI Ciclo de Estudos Estratégicos, de 15 a 17 de maio de 2017, Rio de Janeiro, : 25-34. Disponível em: Disponível em: http://portal.eceme.eb.mil.br/eventos/index.php/CEE/XVIcee/paper/viewFile/24/72 . Acesso em: 10/12/18.
http://portal.eceme.eb.mil.br/eventos/in...
:30-31)

O general, reconhecendo o papel que lideranças evangélicas têm na Maré, viu na aproximação com esses pastores uma oportunidade de ouro para entrar nesse mundo. Viu neles um possível acesso a essa rede, além de informantes privilegiados sobre questões da própria favela. Embora tenha feito reuniões com ONGs e presidentes das associações de moradores, houve na postura do militar, embora não explícita, como foi na Operação Arcanjo, uma nítida desconfiança para com esses atores. Não há dúvida de que, à parte toda discussão sobre a representatividade de ONGs e associações de moradores, tratam-se, especialmente as associações, de instituições profundamente enraizadas nas questões locais. A escolha, contudo, de oferecer um acesso privilegiado, foi na direção de dois jovens pastores, sem grande expressão local. Sua justificativa foi ter visto neles, além da questão religiosa, que não lhe interessava,9 9 O general se afirmou católico. uma mensagem comum: a pacificação.

Projetos de redenção

No encontro do general com os pastores, do Exército Brasileiro com o coletivo religioso Juventude Relevante, encontraram-se dois projetos de redenção que pareciam ter coisas em comum.

O primeiro, militar, carregava o nome de um dos mais célebres santos da tradição católica, conhecido pelo cuidado com os pobres, a natureza e os animais, um instrumento da paz, não uma paz qualquer, mas a paz de deus. Parafraseando Guimarães Rosa, se deus vier, que venha armado, - trazendo assim o seu reino com toda a glória do estado. Sobre isso, a reflexão de Agamben (2011AGAMBEN, Giorgio. (2011), O reino e a glória: uma genealogia teológica da economia e do governo: homo sacer, II. São Paulo: Boitempo.) sobre a relação entre o poder como governo e gestão eficaz (oikonomia) e o poder como realeza cerimonial e litúrgica (glória) é de grande utilidade. Nessa obra, o autor traça um diálogo direto com o pensamento de Foucault (2008FOUCAULT, Michel. (2008), Segurança, território e população: curso dado no Collège de France (1977-1978). São Paulo: Martins Fontes.), para quem, em uma análise sobre o pastoreio, a forma de poder característica do ocidente, que inspirou a forma de governamentalidade ocidental, como uma forma específica de poder sobre os homens, uma matriz de procedimentos de governo dos homens, nasceu com o cristianismo, especialmente o medieval.

Primeiro, claro, vai haver, entre o poder pastoral da igreja e o poder político, uma série de interferências, de apoios, de intermediações, toda uma série de conflitos, evidentemente, (...), de modo que o entrecruzamento do poder pastoral e do poder político será efetivamente uma realidade histórica no ocidente. (Foucault 2008FOUCAULT, Michel. (2008), Segurança, território e população: curso dado no Collège de France (1977-1978). São Paulo: Martins Fontes.:204)

Assim, em Foucault, a pastoral cristã faz parte do pano de fundo da formação do estado moderno, quando a governamentalidade se torna uma prática política calculada e refletiva, um verdadeiro governo dos homens. Agamben (2011AGAMBEN, Giorgio. (2011), O reino e a glória: uma genealogia teológica da economia e do governo: homo sacer, II. São Paulo: Boitempo.) parte dessa premissa, mas propõe ir além. Deve-se, segundo ele, olhar para um ponto negligenciado pela filosofia política, e que vai além do governo e da gestão eficaz: a relação entre a oikonomia e a Glória “como que a estrutura última da máquina governamental do Ocidente” (Ibid. :10).

A análise das doxologias e das aclamações litúrgicas, dos ministérios e dos hinos angélicos, revelou-se, assim, mais útil para a compreensão da estrutura e do funcionamento do poder do que muitas análises pseudofilosóficas sobre a soberania popular, o Estado de direito ou os procedimentos comunicativos que regem a formação da opinião pública e da vontade política. (...) um dos resultados de nossa pesquisa foi precisamente que a função das aclamações e da Glória, na forma moderna da opinião pública e do consenso, continua presente no centro dos dispositivos políticos das democracias contemporâneas. Se os meios de comunicação são tão importantes nas democracias modernas, isso não se deve ao fato de permitirem o controle e o governo da opinião pública, mas também e sobretudo porque administram e dispensam a Glória, aquele aspecto aclamativo e doxológico do poder que na modernidade parecia ter desaparecido. A sociedade do espetáculo - (...) - é, desse ponto de vista, uma sociedade em que o poder em seu aspecto “glorioso” se torna indiscernível com relação à oikonomia e ao governo. (Ibid.)

Dessa forma, Agamben parece propor uma solução para a aporia entre a sociedade disciplinar e de controle de Foucault e a sociedade do espetáculo de Debord (1997DEBORD, Gui. (1997), A sociedade do espetáculo. Rio de Janeiro: Contraponto.). Sem negar o primeiro, sua ênfase recai, neste trabalho, no segundo. Uma das teses que Agamben procura demonstrar é que, da teologia cristã, surgem dois paradigmas políticos que se relacionam: a teologia política, que fundamenta em Deus a transcendência do poder soberano; a teologia econômica, “que substitui aquela pela ideia de uma oikonomia, concebida como uma ordem imanente - doméstica e não política em sentido estrito - tanto da vida divina quanto da vida humana” (Ibid. :13). Da teologia política, derivam a filosofia política e a teoria moderna da soberania, como apontou Carl Schmitt: “todos os conceitos centrais da moderna teoria do Estado são conceitos teológicos secularizados” (2009SCHMITT, Carl. (2009), Teología política. Tradução de Francisco Javier Conde e Jorge Navarro Pérez. Madrid: Editorial Trotta.:37). Da teologia econômica, bem no sentido foucaultiano, “a biopolítica moderna até o atual triunfo da economia e do governo sobre qualquer outro aspecto da vida social” (Agamben 2011:13). Para Agamben, a teologia cristã, ao contrário do que pensou Schmitt, em relação a esse ponto, é, desde a sua origem, econômico-gerencial, e não político-estatal. A diferença entre ambos pode estar no fato de que Schmitt se atém, especialmente, sobre a teologia e o pensamento político a partir de Bodin, quando Agamben vai até o Novo Testamento e dialoga com a Patrística e os teólogos medievais, particularmente na constituição das doutrinas da santíssima trindade e da providência de deus. “Providência é o nome da oikonomia, na medida em que esta se apresenta como governo do mundo” (Ibid. :127). Assim, o dispositivo providencial “contém algo como o paradigma epistemológico do governo moderno” (Ibid. :158).

Quando os militares vão ocupar os Complexos do Alemão e da Penha, em 2010, após as internacionalmente famosas cenas de fuga pela mata de criminosos da Vila Cruzeiro para o Complexo do Alemão, formou-se um gigantesco aparato de guerra e de exibição de poder e glória do estado, na preparação de uma batalha que nunca houve. A ocupação foi negociada, e os principais criminosos saíram com apoio de policiais, pagando caro por isso. Não houve a resistência esperada, mas as cenas de ocupação foram uma ufanista exibição de poderio bélico, culminando na fixação da bandeira nacional no topo de um dos morros do Complexo do Alemão. Como na extraordinária descrição do estado-ritual de Negara, feito por Geertz (1980GEERTZ, Clifford. (1980), Negara: the theatre state in nineteenth-century Bali. New Jersey: Princeton University Press.), naquele espetáculo ritual de poder militar na cidade e na favela, o estado brasileiro se tornava vivo e concreto para aqueles que o assistiram e enviava uma mensagem para os investidores que poderiam desacreditar do Rio de Janeiro como a nova capital dos megaeventos internacionais. Como em Negara, foi uma situação em que status, no sentido de posição, condição; pompa, no sentido de esplendor, exibição, dignidade; e governo, no sentido de reinado, regime, domínio, senhorio - se interconectam, numa grande exibição pública. O nome dado à ocupação militar foi Operação Arcanjo. Agamben (2011AGAMBEN, Giorgio. (2011), O reino e a glória: uma genealogia teológica da economia e do governo: homo sacer, II. São Paulo: Boitempo.) estava certo mais uma vez ao apontar que a angelologia coincide imediatamente com uma teoria do poder e que o anjo seja a figura por excelência do governo do mundo. Na tradição religiosa, o arcanjo é o anjo da mais alta ordem da hierarquia celeste e um mensageiro divino, uma espécie de príncipe entre os anjos, um anjo de poder.

Quatro anos depois, já consolidada a cidade dos megaeventos, prestes a receber a Copa da Fifa, a ocupação da Maré deixou de lado a glória da referência aos arcanjos e escolheu um santo mais manso, organizador de uma ordem religiosa que perdura há séculos. A Operação São Francisco foi bastante diferente. Anunciada com antecedência, não esperou e não enfrentou resistência inicial. A entrada foi mais discreta, sem o triunfalismo e a pompa da Arcanjo. Se esta foi marcada pelo paradigma da glória, aquela pelo paradigma do governo. Logo que ocupou a Maré, o exército começou sua produção de informações, levantamentos e estratégias para o sucesso da missão. O mapeamento dos templos religiosos confirmou o que já fora aprendido no Alemão: o importante papel que as redes religiosas evangélicas desempenham e como elas se configuram como uma alternativa à vida no crime, especialmente para os jovens.

De volta ao encontro entre essas duas esferas, o segundo projeto de redenção tem caráter civil, representado pelo coletivo Juventude Relevante.10 10 Faço essa análise com base em entrevistas com seus pastores líderes e da análise das redes sociais, tanto dos pastores quanto do coletivo. Muito diferente de percepções passadas, quando protestantes, especialmente os de tradição pentecostal, traziam um discurso de separação para com o mundo, que os levava, por vezes, a se tornarem grupos mais fechados em suas igrejas, refratários à participação em espaços públicos não religiosos, aos espaços acadêmicos e à política, seus líderes têm um forte discurso inclusivo, gostam de se envolver em questões públicas, estimulam os jovens ao desenvolvimento profissional e à entrada na faculdade, são ativos nas redes sociais e usam habilmente instrumentos que misturam psicologia, empreendedorismo, marketing, coaching e compêndios de autoajuda para seus ministérios pastorais. Com o passar dos anos - acompanhei suas redes num período de mais de cinco anos - passaram a disputar nas redes sociais questões polêmicas, especialmente as que envolviam discussões sobre aborto, gênero, em um viés abertamente conservador e com muitas acusações ao que chamam de “esquerdismo”, representado pelo Partido dos Trabalhadores (PT) e o Partido Socialismo e Liberdade (Psol). Apoiaram a campanha e celebraram efusivamente a eleição de Jair Bolsonaro à presidência da república, mantendo o apoio a ele nos primeiros meses de governo.

Afinidades eletivas, religião e militarização

A questão central desta análise é mapear e tentar compreender quais as afinidades eletivas que unem evangélicos e militares, um discurso religioso e um discurso de segurança, religião e militarização. As pesquisas que empreendi em três diferentes lugares ocupados militarmente - Batan, Complexo do Alemão e Maré -, não me autorizam a construir uma ampla teoria sobre essa relação, mas me permitem fazer apontamentos que podem contribuir para uma elucidação dessa questão, que entendo ser uma das mais urgentes para as ciências sociais brasileiras na atualidade. Antes de buscar esses elementos, porém, passo a apresentar como, efetivamente, se deu a aproximação entre o coletivo religioso e os militares, no contexto da Operação São Francisco.

Além dos encontros duas vezes por semana com os pastores, foram organizados dois fóruns, chamados Fóruns de Reflexão e Ação, abertos à participação de todos os moradores; as ações sociais promovidas pelos militares passaram a ser apoiadas e divulgadas pelo coletivo; foi realizado um culto evangélico dentro da base da força de pacificação, com a presença de uma pastora e cantora gospel famosa; outra ação que realizaram foi voltada para o Parque Ecológico da Maré, uma pequena área verde dentro da favela, onde fizeram um dia de semear esperança, e plantaram, apoiados pelo exército, mudas de árvores no local.

O primeiro fórum foi realizado numa base militar, o que teria contribuído, segundo eles, para o pouco comparecimento. A ostensiva presença militar teria contribuído também para que as pessoas ficassem intimidadas em comparecer.

Jader contou que o segundo fórum, embora tenha tido muito maior participação, para além do Juventude Relevante, foi mais tenso que o primeiro, por causa da pessoa do general De Souza,11 11 O general que sucedeu o general Richard, promotor da aproximação. mais seco, mais general. O general Richard teria construído, a seu ver, um discurso de aproximação e empatia, o que De Souza não se esforçou em fazer, embora tenha liberado recursos.

O segundo foi general, na essência, meu irmão. (...) “você falou aí de falta de direitos. (...) ah, mas se a gente impor a lei (...), não existe direito, a gente tem que entrar e resolver. O exército tem que entrar e resolver”. Coisas do tipo, assim. Foi meio que mostrando assim, “oh, eu ainda posso piorar essa parada”. Aí, foi meio que mostrando a força. “Não, a gente tá aqui pra respeitar a comunidade, mas também não pode ser desrespeitado. Uma vez que atiram uma munição, eu atiro cem. Uma vez que tacam...”. Aí foi falando. “Se tacarem uma granada, eu tenho tanque pra acabar com uma guerra”. (...) “Todos os dias vocês tão dizendo que a gente tem violência contra a comunidade, mas e a violência contra o militar?”. Aí ele começou a falar dos casos de violência contra o militar. (Pastor Jader)

Embora a aproximação tenha tido continuidade, na forma do fórum, o pastor reclama da diferença de tratamento em relação ao anterior. As mudanças de tropa implicavam numa quase total reconfiguração das relações. Cada general, por sua vez, trazia uma missão específica e adotava sua forma de gestão do território. Se a relação com De Souza foi distante, o seguinte, general Negraes, segundo Jader, nem quis se aproximar.

“Minha operação aqui é desmobilização, pastor, mas enquanto tivermos o pé aqui, se necessário for, a gente vai reagir com a força da lei”. Eu olhei, falei: “esse discurso não é maneiro andar com ele, não.” Até porque eles tavam tentando articular a ideia da gente combinar, a partir de então, com a UPP, teoricamente tava vindo. (...) falei: “pô, não dá não.” Joguei aberto, na moral, com a polícia militar. Como é exército, é possível caminhar, porque historicamente o exército não é inimigo do tráfico. Pontualmente, tá sendo, mas existe uma molecada, ainda, militar que não tá sendo cobrada por isso. A polícia militar não tá não. “Não posso fazer mobilização de aproximação de vocês, porque não dá, não dá.” E fui mostrando. Desse casamento, aconteceu o divórcio a partir do Negrais. Um cara super duro, seco. (Pastor Jader)

A possibilidade de manter essa mesma proximidade com a polícia militar produziu o recuo dos pastores, a fim de se preservarem de represálias dos criminosos locais, que os monitoravam a todo o momento e a quem tinham que, periodicamente, prestar conta de suas ações. A percepção final, em relação à Operação São Francisco, foi de desapontamento.

Começamos a recuar a partir do momento que começamos a nos frustrar com a ideia de que não haveria continuidade daquele um bilhão investido. “Cara, realmente, não vai ter não.” O que a gente ouvia lá atrás e o que, de certa forma, a gente tentava ponderar era a ideia de que isso era pra, era uma mobilização sem fruto, vamos dizer assim, era real. A gente não acreditava, a gente queria algo que fosse pra frente. Graças a deus, a gente entrou e saiu desse processo sem se queimar com a bandidagem. (...) era operação pura e simples, pra abafar pra Copa. A impressão que a gente tem é exatamente essa. Não tem nenhum morador aqui que não acredite nisso. (Pastor Jader)

Além dos fóruns e da mobilização no Parque Ecológico, houve a realização, no final da Operação, de um culto evangélico, organizado pela capelania militar, na base da força de pacificação, no CPOR, que contou com a presença da pastora e cantora evangélica Fernanda Brum, uma celebridade no meio evangélico. Além dos militares, foram convidados os integrantes do coletivo religioso e outras lideranças religiosas locais. Para o setor de “assuntos civis” do exército, essa foi a oportunidade de fazer contato com líderes religiosos que ainda não haviam se aproximados dos militares. A imagem de Fernanda Brum vestida com roupas militares,12 12 Carly Machado (2013) etnografou um show gospel ocorrido no contexto da Operação Arcanjo, no Complexo do Alemão, onde houve a apresentação do grupo Diante do Trono. Sua líder, Ana Paula Valadão, em vídeo produzido dois anos depois, em um congresso para mulheres, entrou no culto fardada com roupas do exército, num encontro entre as estéticas gospel e militar, entre o Ministério Diante do Trono e o Ministério da Defesa. A autora conclui que “Se o ethos militar neste culto para mulheres poderia ser lido exclusivamente pelo víeis da ‘metáfora’ da guerra espiritual, a imagem do show de Ana Paula Valadão dois anos antes cercado por tanques do Exército e seus soldados no Alemão nos faz pensar em imbricamentos mais complexos de discursos, práticas e instituições neste contexto, para além das metáforas” (Ibid. :24). para o culto, é bastante sugestiva e me permite construir algumas impressões e apontamentos sobre a relação entre militarização e religião, especialmente os evangélicos, no Rio de Janeiro. Afinal, como já, precisamente, apontou Carly Machado (2013MACHADO, Carly Barboza. (2013), “‘É muita mistura’: projetos religiosos, políticos, sociais, midiáticos, de saúde e segurança pública nas periferias do Rio de Janeiro”. Religião e Sociedade, 33(2): 13-36.), “o som da pacificação é a música evangélica” (Ibid. :15).

Figura 1
Fernanda Brum vestida com roupas militares.

Modelos de cidadania

Seguindo a observação de Carly Machado (2015MACHADO, Carly Barboza. (2015), “Morte, perdão e esperança de vida eterna: ‘ex-bandidos’, policiais, pentecostalismo e criminalidade no Rio de Janeiro”. In: P. Birman; M. Leite; C. Machado; S. Carneiro. (org.). Dispositivos urbanos e trama dos viventes: ordens e resistências. Rio de Janeiro: FGV Editora, :451-472.), em pesquisa sobre a igreja Assembleia de Deus dos Últimos Dias (ADUD) e o Ministério Tropa de Louvor, formada por policiais evangélicos do Bope, identifico no trabalho do coletivo13 13 É importante frisar neste ponto que, na prática, o grupo não funciona como um coletivo, mas, sim, como um grupo hierarquizado liderado pelos pastores Jader e Gabriel, que permanecem sempre como o centro das atenções e das decisões. Juventude Relevante um tipo de missão voltada para uma espécie de conversão à cidadania. Como frisou um de seus líderes, o objetivo de reunir jovens e adolescentes em espaços públicos era o de fazer com que se engajassem em ações sociais voltadas para a favela. Na prática, pouca coisa realmente saiu da intenção, mas a palavra dos pastores e as orientações que prestavam eram no sentido de construir no grupo um modelo específico de cidadania, em que a conversão a Cristo era acompanhada de uma conversão ao estado e a certo tipo de modelo de cidadão. Assim, além das mobilizações para o replantio de mudas e campanhas para doação de sangue, havia o incentivo e a divulgação para a realização de cursos e a busca por emprego. Antes de se aproximarem dos militares, a mensagem pastoral era de que o exército deveria ser bem acolhido, que mudanças ocorreriam e os cristãos deveriam, além de apoiar a ocupação, orar pela pacificação. Todos deveriam, também, andar com seus documentos em dia - e caso não o tivessem, providenciar. Exercer esse tipo de cidadania “modelar” serviria como exemplo para que outras pessoas se aproximassem da mensagem cristã.

Se, no caso da Adud, como observou Machado, a conversão simultânea a Cristo e à cidadania promovia a transformação de bandidos, agora ex-bandidos, em cidadãos, aquilo que o estado continuamente fracassou em fazer, no Juventude Relevante, o objetivo parece se sustentar num tripé: a proposta de um caminho alternativo à vida no crime, para os que estão de fora (se a Adud tem como foco de sua missão evangelizadora o criminoso, o Juventude Relevante tem como foco o adolescente e o jovem antes que ele ingresse na vida criminosa); a constituição de uma religião de caráter cívico, para os que estão dentro, engajada em lidar com certas questões sociais identificadas como marcas desse engajamento; uma proposta alternativa de engajamento e cidadania, que contrasta com a de outras organizações locais, o que leva à próxima observação.

Ao contrário da Adud que opera, e isso explica parte de seu “sucesso”, em um campo onde há um enorme déficit institucional, o Juventude Relevante não opera em um espaço de fracasso de outras iniciativas. Entre as propostas que envolvem aspectos de cidadania, o coletivo disputa um espaço e o mesmo público com muitas organizações locais. Pode-se dizer que, quando o grupo religioso entrou na água, já havia organizações locais nadando a braçadas. Há diversas ONGs, na Maré, que trabalham com juventude. Algumas bastante reconhecidas, como a Redes, o Observatório de Favelas, o Ceasm, o Conexão G, o Luta pela paz, o Instituto Vida Real. Isso não significa que elas consigam realizar todo o trabalho possível, evidentemente, mas, na Maré, qualquer adolescente ou jovem interessado, consegue ingressar em algum projeto dessas instituições, seja de esporte, reforço escolar, comunicação, dança, pré-vestibular, entre outros. Inclusive, como seria de se esperar, essas organizações trabalham com muitos adolescentes e jovens evangélicos. Mais algumas observações podem ser feitas a partir desse ponto.

A formação desse coletivo pode ser interpretada como, simplesmente, uma iniciativa de dois amigos, pastores em duas igrejas da Maré, que desejaram criar um espaço de convivência para os jovens de sua igreja, com um caráter de atuação voltado, como vimos, para a promoção da cidadania. Esgotar a explicação nesse ponto faz, contudo, perder de vista um aspecto mais sutil e complexo. Na conversa que tive com os pastores e no acompanhamento de suas redes sociais e as do coletivo, apareceu o ponto que, talvez, seja o nodal: a aproximação com outras organizações locais era feita com reservas porque eles identificavam nelas, segundo suas próprias palavras, uma “ideologia esquerdista”, que contrastava com seu “conservadorismo”. Essa “ideologia esquerdista” era percebida na forte crítica, feita por algumas dessas organizações, ao estado em sua atuação na Maré, especialmente em relação à violência policial, além do apoio a políticas identitárias, raciais e de gênero. Em outras palavras, algumas das mais atuantes organizações locais desenvolvem projetos, eventos e intervenções locais em uma perspectiva antirracista, tendem a ser libertárias em questões de gênero,14 14 A liderança feminina é notável em parte dessas instituições. Há, também, na Maré, uma organização voltada para a defesa das pessoas LGBTQ+, o Conexão G, liderado por uma mulher transsexual, Gilmara, que tem um significativo histórico de engajamento local. mantém relações próximas com alguns políticos da esquerda carioca, especialmente aqueles ligados às questões de direitos humanos, desenvolvem projetos artísticos ousados e críticos, ou seja, atuam em uma perspectiva que desagrada aqueles que têm uma visão mais conservadora de mundo ou, mais precisamente, que se enquadram nessa nova onda do ultraconservadorismo brasileiro.

O Juventude Relevante se apresentaria, assim, como um espaço alternativo, onde esses jovens poderiam se engajar em um modelo de cidadania conservadora, não contestatória. Entre as mensagens pastorais estavam a defesa da virgindade antes do casamento, a defesa das restrições ao aborto, a crítica a manifestações artísticas que envolvessem nudez e àquilo que entendiam se tratar de um ataque à moral sexual cristã. Os responsáveis por esses ataques ao cristianismo eram os “esquerdistas”. A “ideologia esquerdista” estava, a seu ver, então, ligada a pautas morais e de costumes e a uma perspectiva, na área da política de segurança, contestatória, contrária ao estado. Assim, o Juventude Relevante almejou ocupar um espaço de promoção de engajamento juvenil que não estivesse “contaminado” com elementos que poderiam afastar os adolescentes e jovens da (conservadora) mensagem cristã.15 15 A própria ideia inicial dos pastores de trabalhar com jovens cristãos universitários aponta para a percepção da universidade como um espaço perigoso para a mentalidade cristã conservadora e onde os jovens têm contato com outras realidades que, em muitos casos, os levam a serem mais críticos e questionadores. Essa questão, que já aparece com força em 2014 e 2015, se intensifica com o passar do tempo. Em 2018, como apontei, os pastores se engajaram, como muitos outros grupos evangélicos, não somente nos ataques ao “esquerdismo”, mas no apoio ao, então candidato a presidente, Jair Bolsonaro.

Esse recorte político é, a meu ver, fundamental para se compreender a aproximação entre o coletivo religioso e os militares. Havia entre eles muitas afinidades eletivas. Não quero afirmar, evidentemente, que houve entre o Juventude Relevante e o exército uma explícita aliança política de interesses comuns e de enfraquecimento de certos grupos locais, mas que houve uma aliança de interesses comuns, de inevitáveis implicações políticas, que só foi possível por haver entre as lideranças, de ambas as partes, muitas afinidades. Para os militares, o coletivo trazia uma mensagem de paz que se enquadrava no projeto estatal de pacificação, como uma gestão de almas e de corpos convertidos a uma cidadania submissa e não contestatória.16 16 Para se pensar sobre o conservadorismo militar, sugiro dois textos seminais: Huntington (1996) e Janowitz (1967). Pensando no caso brasileiro, ver Sodré (1987, 2010) e Silva (1984). Os religiosos não traziam a aguda crítica à ocupação militar em si, que algumas organizações desenvolviam, mas apenas cobravam questões pontuais que, na visão do exército, eram legítimas e contribuíam para o sucesso da missão. As críticas não eram dirigidas à legitimidade da operação nem aos processos de militarização e controle armado do território, mas ao modus operandi das abordagens aos moradores, quando feitas de forma abusiva e autoritária.

Poderiam, então, tornar-se informantes privilegiados e instrumentos de propaganda para as ações e os benefícios que a operação trazia. Além disso, não eram imbuídos de qualquer perspectiva antiestatal ou antimilitarização e, especialmente, tinham uma visão de mundo conservadora, simpática ao autoritarismo e avessa ao “esquerdismo”. Por fim, não carregavam as marcas de “contaminação” de relações com políticos ou os grupos criminosos armados, cuja suspeita recaía sempre, pelo olhar militar, sobre as ONGs e as associações de moradores.

Para os religiosos, ao menos em sua esperança inicial, antes de frustrarem-se com o fracasso da pacificação, as forças armadas seriam um instrumento de deus para uma transformação da Maré. Jader chegou a interpretar a granada que caiu na casa de Gabriel como ato da providência divina. Ao ocupar o território, mais do que simplesmente cuidar da questão da segurança, a fim de evitar que a Maré se transformasse num problema para a Fifa17 17 Federação Internacional de Futebol. e para o COI,18 18 Comitê olímpico Internacional. os militares se empenharam em uma gestão que ia muito além, administrando também a circulação, a sociabilidade, especialmente a juvenil, a moral (especialmente em relação ao funk e ao uso de drogas ilícitas) e, por meio de suas ações cívico-sociais (Acisos), com produção de documentos, balcão de empregos, acesso à justiça, cuidados médicos, atrações educativas para crianças e casamentos coletivos, uma verdadeira gestão social e política da população local, ou seja, na percepção de Foucault, uma gestão pastoral.

Houve, assim, na Operação São Francisco uma perspectiva de missão civilizatória que almejava converter os “incivilizados” da Maré à cidadania, ou melhor, a um modelo de cidadania. Esse “novo cidadão de bem” não deve circular sem seus documentos, pessoais ou de seus automóveis; não deve circular de madrugada, a não ser indo ou voltando do trabalho; os jovens devem estudar ou trabalhar, não ficando nas ruas da favela, ociosos, porque isso é um sinal de conivência com o crime, quando não a própria marca da criminalidade; não deve consumir drogas ilícitas, porque consumi-las transforma o indivíduo em suspeito e o degrada moralmente; os eventos locais devem ser ordenados, não utilizando indevidamente o espaço público e respeitando os horários e o volume de aparelhos sonoros - de preferência que não toquem funk; deve ter acesso à justiça para regularizar suas pendências; deve ter emprego de carteira assinada; os comerciantes devem ter seus comércios regularizados; deve cuidar de sua saúde, especialmente quanto aos cuidados básicos em relação à pele, aos dentes, à pressão arterial e a diabetes; as crianças devem ver no soldado um herói, para isso, revistinhas militares infantis são distribuídas, e atrações feitas para conquistar-lhes a admiração e a simpatia; para evitar o “amaziamento” e a “promiscuidade”, os casamentos coletivos dão o aval e a bênção do estado e da religião (cristã) às famílias locais, que viviam “irregulares” ou “em pecado”; por fim, não devem subverter a lei e a ordem, sendo obedientes às autoridades, evitando ações contestatórias e manifestações públicas contra essa ordem, imposta militarmente pelo estado.

Essa versão da cidadania é perfeitamente compatível com a proposta pelos evangélicos em questão, e a maior parte dos evangélicos brasileiros, em geral. O projeto de cidadania cristã engajada do Juventude Relevante é praticamente o mesmo da gestão pastoral militar. A empatia dos pastores com a liderança militar, especialmente com o general Richard, é uma empatia de projetos e afinidades. De alguma forma, Jader, Gabriel e Richard são todos pastores de corpos e almas. Os primeiros são instrumentos religiosos da conversão a Cristo e à cidadania, tendo como arma a palavra de deus, “viva e eficaz, mais afiada que qualquer espada de dois gumes”.19 19 Hebreus 4:12. Bíblia Nova Versão Internacional. Disponível em: https://www.bibliaonline.com.br/nvi/hb/4. O segundo é instrumento estatal da conversão à cidadania (e por que não a Cristo, ou mais precisamente, um modelo de cidadania cristã?), tendo como armas o fuzil e o tanque de guerra, mas também todos os instrumentos do estado de cuidado para com os corpos e de criação da cidadania, pela distribuição de documentos e a administração da vida.

Esse general, e especificamente esse general, trazia, além das armas e do acesso aos bens da cidadania, uma postura ainda mais pastoral, circulando pela Maré, conversando com as pessoas, criando espaços de escuta e acolhimento e um discurso mais empático e suave. Quando o comando é trocado e vêm outros generais, com outros modelos de ação, mais militarizados e menos pastorais, “mais generais”, os pastores sentem a diferença, decepcionam-se e começam a se afastar, ou serem afastados, da presença do comando.

Sobre uma “visão conservadora de mundo”

Cabe aqui uma melhor explicação do que chamei de “visão conservadora de mundo” em relação ao coletivo religioso. Esse conservadorismo deve ser visto com base em dois aspectos. O primeiro é de caráter propriamente religioso. Há tempos que o pentecostalismo clássico, e aqui me refiro ao antigo modelo das igrejas Assembleia de Deus, especialmente nas grandes metrópoles, produziu uma nova versão de si mesmo, abandonando a velha separação entre a igreja e o mundo, visto como “mundanidade”, e engajou-se em ações políticas e projetos de intervenção de caráter propriamente político,20 20 Não quero afirmar que a forma mais tradicional de ascetismo e não envolvimento com “questões mundanas” tenha acabado, mas deixou de ser predominante, especialmente nas grandes metrópoles. do interesse de sua denominação e dos “valores cristãos”. A partir da década de 1980, passaram a eleger políticos e, de forma crescente, apoiaram a incursão de seus membros, e pastores, a cargos públicos. Esse engajamento já era experimentado pelas chamadas igrejas neopentecostais, ou de terceira onda (Mariano 2005MARIANO, Ricardo. (2005), Neopentecostais: sociologia do novo pentecostalismo no Brasil. 2º ed. São Paulo: Edições Loyola.), o que levou a, pelo menos nesse aspecto, uma maior uniformização do pentecostalismo, alcançando inclusive as igrejas do protestantismo histórico. Especialmente nos últimos vinte anos, agentes ligados a igrejas pentecostais, disputam com outros agentes, o lugar de “mediadores da relação entre populações marginalizadas e projetos de cidadania, especialmente nas periferias urbanas brasileiras, produzindo um repertório próprio de intervenção e de relação com essas populações” (Machado 2017MACHADO, Carly Barboza. (2017), “Conexões e rupturas urbanas: projetos, populações e territórios em disputa”. RBCS, vol. 32, nº 93.:4). Assim, o Juventude Relevante é uma expressão desse movimento de engajamento para produção de certo modelo de cidadania, de caráter conservador.

Embora muitos grupos cristãos tenham apoiado a candidatura de Lula e o governo do Partido dos Trabalhadores, ao menos em um primeiro momento, paulatinamente o apoio foi se desvanecendo, alcançando o ápice de rejeição durante o primeiro mandato de Dilma Rousseff. Uma série de mudanças na sociedade, que começou na década de 1980, com a ascensão de novos movimentos sociais e a explosão das ONGs na década seguinte, foi vista por grupos religiosos como uma afronta ao cristianismo e um ataque organizado à sua existência. Especialmente pautas de gênero, discussões sobre o aborto, projetos educacionais que tratassem dessas temáticas, entre outras discussões menores, foram alçados, por esses grupos, a proporções de prioridade como questões públicas e, aos poucos, foi se constituindo um inimigo comum a seus interesses “cristãos”: os políticos e grupos de esquerda, o chamado “esquerdismo”. Esses grupos religiosos passaram a se organizar com cada vez maior eficiência na pauta de defesa dos valores tradicionais de gênero, de família e de valores educacionais. Esse conservadorismo assumiu-se contestatório quando o governo foi qualificado como inimigo, pois era “esquerdista”.

O segundo aspecto relaciona-se a um tipo de conservadorismo típico de certos estratos da sociedade brasileira. Se os pastores tentavam produzir, em jovens e adolescentes, um modelo cristão de cidadania, ou de civismo, esse modelo, nas questões fundamentais, em pouca coisa diferia de um modelo de cidadania conservadora historicamente cultivado em certos grupos de nossa sociedade.

Esse conservadorismo, manifesto na ideia de uma ordem social hierarquizada e sujeita às autoridades, foi o bastião da conservação das simpatias populares à militarização da sociedade e às soluções autoritárias. Esses pastores, na liderança do coletivo, refletiam, assim, esse modelo conservador porque viam nas forçar armadas a ordem, a hierarquia, a moralidade a autoridade que faltavam à Maré e à sociedade, em geral. Juntam-se a isso mais dois fatores. O pai de Jader, segundo ele mesmo relatou, foi fuzileiro naval. Tecnicamente, o pastor fazia parte, então, da família militar (Castro 2004CASTRO, Celso; D’ARAUJO, Maria Celina (org.). (2004), O Espírito militar: um antropólogo na caserna. Rio de Janeiro: Jorge Zahar. ; Silva: 2009SILVA, Cristina Rodrigues da. Explorando o “mundo do quartel”. (2009), In: C. Castro; P. Leirner. (org.). Antropologia dos militares: reflexões sobre pesquisas de campo. Rio de Janeiro: Editora FGV.). Tanto ele, quanto Gabriel, pela posição que ocupavam na favela, poderiam ser classificados como membros de uma classe média favelada, ambos com educação universitária em andamento,21 21 À época da entrevista, Jader cursava Psicologia na Unisuam e Gabriel estudava na Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ). exercendo funções de liderança religiosa. Esses fatores, o pertencimento de um dos pastores à família militar e o pertencimento de ambos a um estrato social urbano - classe média baixa urbana e evangélica - onde, pelo menos no Rio de Janeiro, apresenta fortes traços conservadores, podem também contribuir para o refinamento da análise.

O encontro entre os militares da Operação São Francisco e os religiosos do Juventude Relevante alçou um inexpressivo coletivo religioso local à condição, temporária, de protagonismo na gestão pastoral-militar do território, o que acabou levando, inevitavelmente, a queixas dos presidentes das associações, que se sentiram deslegitimados em seu papel, ao serem postos na condição de coadjuvantes. Se na Operação Arcanjo, a aliança entre militares e religiosos locais descambou para um megalomaníaco projeto de conversão do Complexo do Alemão para Jesus, conduzido pelo fuzil e pela cruz, o que me levou, naquela ocasião a evocar a discussão sobre laicidade e secularização, na Maré, de forma bem diferente, houve a conjugação entre dois projetos com fins comuns, uma aliança religiosa-militar de caráter cívico, onde o cívico expressou um modelo de cidadania que coadunou uma versão militar e uma versão religiosa em um projeto político de gestão pastoral militarizada do território.

Pode-se avaliar a colaboração entre militares e evangélicos na Maré como um caso típico de cooptação (Owens 2007OWENS, Michael Leo. (2007), God and government in ghetto: the politics of church-state collaboration in black America. Chicago; London: The University of Chicago Press.). Os militares, de alguma forma, capturaram com sua sedutora oferta de apoio, recursos e empoderamento das vozes de suas lideranças, o coletivo religioso, levando-o a servir aos interesses da missão. Os pastores, por sua vez, enxergaram nisso uma oportunidade de inserção nos processos decisórios locais, aos quais estavam alijados, e um caminho aberto “por Deus” para o exercício público de um modelo de engajamento conservador. Pela posição que ocuparam, foram diversas vezes seduzidos, segundo relataram, por outras forças locais, que se opunham à ocupação, para se posicionarem publicamente contra os militares nos casos de violência que protagonizaram. Contudo, mantiveram seu apoio até que, no último comando, próximo à saída do exército, a tentativa de sua aproximação com os policiais militares os levou ao afastamento, por medo de represálias, da posição de colaboradores.

A gestão pastoral da favela, promovida por uma aliança entre religião e estado não é uma novidade. A Fundação Leão XIII22 22 A Fundação Leão XIII foi criada pela Igreja Católica, em 1947, em uma parceria com a prefeitura da cidade. Seu objetivo, como bem apontou Valladares (2005), seria o de lidar com uma suposta ameaça comunista, que poderia ter nas favelas sua base de apoio revolucionária. De fato, as favelas, nessa época, começavam a despontar como locais de um novo tipo de associativismo e organização para reivindicação de direitos, o que preocupava as autoridades. A Fundação tinha por objetivo prestar “assistência social e moral” aos favelados. Na prática, exercer também controle sobre suas lideranças. e a Cruzada São Sebastião,23 23 A Cruzada São Sebastião foi criada em 1955 pelo bispo Dom Hélder Câmara e, em contraste com a Fundação Leão XIII, eminentemente conservadora, era considerada da ala de esquerda da igreja. Seu principal foco de atuação era a urbanização das favelas e a produção de novas moradias. Não há, contudo, significativa diferença entre elas no que tange à moralidade católica como modelo de cidadania. cada uma a seu modo, foram uma primeira experiência nesse sentido. A Fundação Leão XIII, de modo mais intenso, promoveu uma verdadeira gestão política, moral e civilizatória dos espaços em que atuou, produzindo um modelo de cidadania conservadora que pouco difere daquele proposto pelo coletivo pentecostal da Maré. Ela foi uma executora das políticas públicas do estado para as favelas, de modo que o estado chegava através da religião, de tal modo que separar as duas esferas é praticamente impossível. Na década de 1960, a Fundação se transformou numa autarquia estatal, fortalecendo seu viés de autoritarismo e controle, especialmente após a ditadura militar. Durante o regime militar, a Fundação foi o órgão de controle político e da gestão social das favelas.

A novidade das alianças entre religiosos e agentes estatais, em territórios objeto das políticas de “pacificação”, que analiso desde 2011, é que o agente do estado é militar, o controle social se dá por meio da explícita ameaça da violência e os agentes religiosos são, principalmente, pastores de igrejas evangélicas pentecostais locais. Essas mudanças apontam para três importantes questões. Primeiro, um processo de militarização nesse processo de gestão pastoral das favelas. Segundo, a substituição, nessa gestão civilizatória, do agente do estado, do assistente social24 24 Penso aqui numa categoria mais ampla que a do profissional de serviço social, mas em todo agente do estado que atua prestando assistência às populações faveladas. pelo soldado armado. Assim, se antes, o assistente social tinha por trás de si, garantindo sua atuação, a possibilidade de acionamento do agente armado, agora, o soldado armado vem na frente como garantidor e, ele mesmo, em muitos momentos, é, ao mesmo tempo, o soldado e o assistente social, trazendo consigo o fuzil e a assistência ou, ao menos, a garantia, pela possibilidade da violência, da assistência. Terceiro, o enfraquecimento da atuação católica, mais organizada e hierarquizada, pela atuação em rede de pastores evangélicos pentecostais, o que configura, também, um sinal visível de uma profunda mudança de orientação religiosa das favelas cariocas, sua pentecostalização.

Assim, reconhecendo a disputa em torno do termo “evangélico”, reconheço também que identificar a pauta conservadora como evangélica ignora um sem-número de agentes que não se identificam com essas pautas. Almeida (2017ALMEIDA, Ronaldo de. (2017), A onda quebrada - evangélicos e conservadorismo. Caderno Pagu, nº 50.), em um notável texto que analisa essa questão, precisamente destaca que “assim como nem todos os evangélicos são conservadores, a pauta conservadora vai além da pauta dos evangélicos conservadores. Dela participam também católicos, outras religiões e não religiosos” (: 25). Contudo, é inegável que, em sua atuação política, como espectro de uma religião pública,25 25 Sobre as diferenças entre uma religião cívica, religião civil e religião pública ver o artigo de Montero (2018) e o comentário de Machado (2018) sobre ele. os “evangélicos” são integrantes da chamada “onda conservadora”.

Considerações finais

Por fim, a aliança entre o coletivo religioso e o exército pode ser vista, de um lado, com base na perspectiva de um grupo evangélico local em busca de um espaço de maior participação em processos decisórios e políticos, no sentido de influenciar políticas públicas para a Maré, e, por outro lado, com base na perspectiva dos militares, que encontraram em religiosos uma parceria para o sucesso da missão, grupos que não seriam “contaminados” pela ambição política, pela perspectiva antiestatal e a postura contestatória. Ambos compartilhavam de uma visão de mundo em que a ordem, a hierarquia, a moralidade e a obediência às autoridades constituídas eram os elementos mais valorizados. Os inimigos também eram comuns: a imoralidade, as drogas ilícitas, o crime, a prostituição, a desordem, a contestação e o “esquerdismo”. Entre os pentecostais, há, por trás dessas representações da realidade terrena uma realidade espiritual que é concebida como um campo de batalha, como diz um de seus favoritos trechos bíblicos: o sexto capítulo da carta paulina de Efésios, um tratado sobre a submissão, a obediência, a não contestação da ordem do mundo e a realidade da batalha espiritual:

Filhos, obedeçam a seus pais no Senhor, pois isso é justo. “Honra teu pai e tua mãe”, este é o primeiro mandamento com promessa: “para que tudo te corra bem e tenhas longa vida sobre a terra.” Pais, não irritem seus filhos; antes criem-nos segundo a instrução e o conselho do Senhor. Escravos, obedeçam a seus senhores terrenos com respeito e temor, com sinceridade de coração, como a Cristo. Obedeçam-lhes não apenas para agradá-los quando eles os observam, mas como escravos de Cristo, fazendo de coração a vontade de Deus. Sirvam aos seus senhores de boa vontade, como ao Senhor, e não aos homens, porque vocês sabem que o Senhor recompensará a cada um pelo bem que praticar, seja escravo, seja livre. Vocês, senhores, tratem seus escravos da mesma forma. Não os ameacem, uma vez que vocês sabem que o Senhor deles e de vocês está nos céus, e ele não faz diferença entre as pessoas. Finalmente, fortaleçam-se no Senhor e no seu forte poder. Vistam toda a armadura de Deus, para poderem ficar firmes contra as ciladas do diabo, pois a nossa luta não é contra pessoas, mas contra os poderes e autoridades, contra os dominadores deste mundo de trevas, contra as forças espirituais do mal nas regiões celestiais. Por isso, vistam toda a armadura de Deus, para que possam resistir no dia mau e permanecer inabaláveis, depois de terem feito tudo. Assim, mantenham-se firmes, cingindo-se com o cinto da verdade, vestindo a couraça da justiça e tendo os pés calçados com a prontidão do evangelho da paz. Além disso, usem o escudo da fé, com o qual vocês poderão apagar todas as setas inflamadas do Maligno. Usem o capacete da salvação e a espada do Espírito, que é a palavra de Deus.26 26 Epístola de Paulo aos Efésios 6:1-17. Nova Versão Internacional. Grifos do autor.

Justifico a longa citação do texto bíblico por se tratar de um dos textos-chave para se compreender as representações pentecostais sobre a vida nesse mundo, e um dos mais lidos e citados entre eles. Pode-se perceber, na carta paulina, uma exortação à ordem, à obediência, um chamado a uma postura não contestatória da estrutura hierarquizada da ordem social. Ao falar à multidão de escravos, muitos convertidos à nova fé, que constituía a estrutura social do império romano, um possível fator de desestabilização do império, o apóstolo os exorta, “inspirado por Deus”, a exercerem uma obediência de boa vontade, como se o senhor fosse o próprio Senhor. Nada mais longe de uma postura contestatória ou questionadora. A vida cristã é concebida como uma sequência de obediências, numa estrutura social hierarquizada, que é assim pela vontade de Deus. Jamais se deve lutar contra ela, já que a luta do cristão não é contra essa realidade terrena, mas contra a realidade espiritual. O cristão é um soldado engajado em uma guerra contra um poderosíssimo exército inimigo. Suas armas são a armadura de deus, o cinto da verdade, a couraça da justiça, as sandálias do evangelho da paz, o escudo da fé, o capacete da salvação e a espada do espírito, que é a palavra de deus. Os inimigos, na concepção pentecostal, estão infiltrados no mundo e até mesmo na igreja, sendo, muitas vezes, difícil distingui-los. A batalha não é no sentido clausewitziano, mas concebida num verdadeiro conceito de guerra híbrida,27 27 Conceito de estratégia militar que se fortalece após o fim da Guerra Fria, indicando uma espécie de guerra em que o inimigo não está claramente identificado, pois está misturado à população local. Nessa guerra são utilizadas estratégias de cooptação, de guerra psicológica, estratégias de desinformação, projetos humanitários e formação de redes locais a fim de desestabilizar e combater o inimigo. muito parecido com as estratégias militares da pacificação. Em suma, o cristão é um soldado de Cristo, armado até os dentes com as armas espirituais, engajado em uma batalha contra os poderes espirituais. A ordem hierarquizada do mundo concebida por esses soldados de Cristo, que devem viver de forma fundamentalmente não contestatória, submissa e obediente, entregues à boa vontade de seus superiores que, por sua vez, devem tratá-los de forma justa e benevolente, tem muitos pontos em comum com a constituição das forças armadas (modernas) como fundamentada na ordem, na obediência e na disciplina. O modelo de cidadania conservadora, que não contesta as autoridades e é obediente aos estratos superiores, encontra aqui sua própria legitimação religiosa. Pode-se argumentar que os grupos evangélicos creem nisso como uma verdade inquestionável, mas, ao mesmo tempo, adotam estratégias práticas, políticas, para a defesa de seus interesses e valores. No mundo prático, essa batalha espiritual se encarna em uma postura contestatória quando seus interesses são prejudicados, podendo levá-los a adotar uma postura engajada e combativa, muitas vezes com questionáveis excessos, na defesa de suas pautas. Contudo, mesmo quando se engajam em lutas políticas e outras de caráter “terreno” pela defesa de seus valores, veem isso como uma faceta da batalha espiritual contra os exércitos espirituais inimigos que, mais recentemente, encarnaram-se profundamente, a seu ver, no “esquerdismo”.

Entender esse último ponto é fundamental para se ter uma compreensão da natureza, teórica e prática, da aproximação e das alianças entre a religião, mais especificamente os cristãos evangélicos, e a militarização. Mais ainda do que a militarização, ajuda-nos a entender a simpatia desses grupos às soluções autoritárias e ao virulento combate a questões classificadas como de “esquerda” (igualdade de gênero, direitos humanos, descriminalização do aborto, liberdade artística, liberdade sexual, crítica à violência de estado, financiamento do estado à cultura, feminismo, defesa dos direitos LGBTTQ+, valorização da cultura indígena e africana na educação etc.) e sua adesão ao ultraconservadorismo que ascendeu no Brasil, e especialmente no Rio de Janeiro, nos últimos anos.

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    » https://g1.globo.com/rj/rio-de-janeiro/eleicoes/2018/noticia/2018/10/07/rj-elege-flaviobolsonaro-para-o-senado.ghtml
  • 1
    Há uma vasta literatura sociológica sobre esse processo, não sendo objetivo deste texto abordá-lo. Sem pretender ser exaustivo, recomendo, para uma compreensão analítica do que foram as UPPs, os seguintes textos: para um balanço analítico de caráter mais geral, ver Rodrigues, Siqueira e Lissovsky (org.). (2012RODRIGUES, André; SIQUEIRA, Raíza; LISSOVSKY, Maurício. (org.). (2012), Unidades de Polícia Pacificadora: debates e reflexões . Rio de Janeiro: Comunicações do ISER.), Fridman (2014FRIDMAN, Luis Carlos. (2014), “Delegação de poder discricionário: o sonho de paz”. DILEMAS: Revista de Estudos de Conflito e Controle Social, vol. 7, nº 4: 611-623.), Leite (2014LEITE, Márcia da Silva Pereira. (2014), “Entre a ‘guerra’ e a ‘paz’: Unidades de Polícia Pacificadora e gestão dos territórios de favela no Rio de Janeiro. DILEMAS: Revista de Estudos de Conflito e Controle Social , vol. 7, nº. 4: 625-642.), Machado da Silva (2016MACHADO DA SILVA, Luiz Antonio. (2016), Fazendo a cidade: trabalho, moradia e vida local entre as camadas populares urbanas. Rio de Janeiro: Mórula .) e Menezes (2018MENEZES, Palloma Valle. (2018), “‘Vivendo entre dois deuses’: a fenomenologia do habitar em favelas ‘pacificadas’. In: J. Farias; L. Rocha; M. Leite; M. Carvalho. (org.). Militarização no Rio de Janeiro: da pacificação à intervenção . Rio de Janeiro: Mórula , vol. 1.); sobre as relações entre UPPs e religião, sobretudo protestantes evangélicos, ver Esperança (2012ESPERANÇA, Vinicius. (2012), “Aviso: não dê dinheiro ao falso profeta, ligue para a UPP: poder divino e poder armado no Batan”. In: A. Rodrigues; R. Siqueira; M. Lissovsky. (org.). Unidades de Polícia Pacificadora: debates e reflexões, Comunicações do ISER, Rio de Janeiro., 2013ESPERANÇA, Vinicius. (2013), “O fuzil e a cruz: poder armado e poder divino no Complexo do Alemão”. Revista Século XXI, vol. 3, nº 2. , 2014aESPERANÇA, Vinicius. (2014a), “O foco de todo mal”: estado, mídia e religião no Complexo do Alemão. Rio de Janeiro: Dissertação de mestrado em Ciências Sociais, Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro., 2015aESPERANÇA, Vinicius. (2015a), “O Complexo para Jesus: exército e religião na ocupação militar do Complexo do Alemão”. Métis: história e cultura. vol. 14, nº 28: 219-242., 2017ESPERANÇA, Vinicius. (2017), “O foco de todo mal: estado, mídia e religião no Complexo do Alemão ”. Rio de Janeiro: Multifoco.) e Machado, Esperança e Gonçalves (2018MACHADO, Carly Barboza; ESPERANÇA, Vinicius; GONÇALVES, Vinicius Rodrigues. (2018), “Militarização e religião: alianças e controvérsias entre projetos morais de governo de territórios urbanos pacificados”, vol. 1, :142-160. In: J. Farias; L. Rocha; M. Leite; M. Carvalho. (org.). Militarização no Rio de Janeiro: da pacificação à intervenção. Rio de Janeiro: Mórula.).
  • 2
    Art. 142 da Constituição Federal brasileira.
  • 3
    Lei complementar nº 97, de 9 de junho de 1999 e Decreto nº 3.897/2001, assinados pelo presidente Fernando Henrique Cardoso.
  • 4
    General de Souza, um dos comandantes da Operação, no sítio oficial do Ministério da Defesa. Disponível em: http://www.defesa.gov.br/noticias/15254-complexo-da-mare-forcas-de-pacificacao-ja-realizaram-mais-de-65-mil-acoes.
  • 5
    Segundo o Anuário Brasileiro de Segurança Pública (Fórum Brasileiro de Segurança Pública 2017), de 2017.
  • 6
    Aprofundei as outras fases em minha tese de doutorado, defendida em 2019, no Instituto de Estudos Sociais e Políticos da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj), sob o título “São Francisco na Maré: memórias de uma ocupação militar na cidade dos megaeventos”, orientado pelo saudoso Prof. Luiz Antonio Machado da Silva e pela Prof.ª Mariana Cavalcanti.
  • 7
    Segundo a página, na rede social Facebook, do coletivo, eles são “um movimento cristão que instiga jovens a um estilo de vida de avivamento, gerando mudança em sua comunidade, causando transformação. Uma ação missionária nas comunidades do Rio de Janeiro”. (https://www.facebook.com/pg/juventuderelevante/about/?ref=page_internal).
  • 8
    Centro de Preparação de Oficiais da Reserva do Rio de Janeiro, aparelho militar que fica às margens da Avenida Brasil, fazendo fronteira com a Maré.
  • 9
    O general se afirmou católico.
  • 10
    Faço essa análise com base em entrevistas com seus pastores líderes e da análise das redes sociais, tanto dos pastores quanto do coletivo.
  • 11
    O general que sucedeu o general Richard, promotor da aproximação.
  • 12
    Carly Machado (2013) etnografou um show gospel ocorrido no contexto da Operação Arcanjo, no Complexo do Alemão, onde houve a apresentação do grupo Diante do Trono. Sua líder, Ana Paula Valadão, em vídeo produzido dois anos depois, em um congresso para mulheres, entrou no culto fardada com roupas do exército, num encontro entre as estéticas gospel e militar, entre o Ministério Diante do Trono e o Ministério da Defesa. A autora conclui que “Se o ethos militar neste culto para mulheres poderia ser lido exclusivamente pelo víeis da ‘metáfora’ da guerra espiritual, a imagem do show de Ana Paula Valadão dois anos antes cercado por tanques do Exército e seus soldados no Alemão nos faz pensar em imbricamentos mais complexos de discursos, práticas e instituições neste contexto, para além das metáforas” (Ibid. :24).
  • 13
    É importante frisar neste ponto que, na prática, o grupo não funciona como um coletivo, mas, sim, como um grupo hierarquizado liderado pelos pastores Jader e Gabriel, que permanecem sempre como o centro das atenções e das decisões.
  • 14
    A liderança feminina é notável em parte dessas instituições. Há, também, na Maré, uma organização voltada para a defesa das pessoas LGBTQ+, o Conexão G, liderado por uma mulher transsexual, Gilmara, que tem um significativo histórico de engajamento local.
  • 15
    A própria ideia inicial dos pastores de trabalhar com jovens cristãos universitários aponta para a percepção da universidade como um espaço perigoso para a mentalidade cristã conservadora e onde os jovens têm contato com outras realidades que, em muitos casos, os levam a serem mais críticos e questionadores.
  • 16
    Para se pensar sobre o conservadorismo militar, sugiro dois textos seminais: Huntington (1996HUNTIGTON, Samuel P.. (1996), O soldado e o estado: teoria e política das relações entre civis e militares. Rio de Janeiro: Biblioteca do Exército Editora.) e Janowitz (1967JANOWITZ, Morris. (1967), O soldado profissional: um estudo social e político. Tradução de Donaldson M. Garschagen. Rio de Janeiro: Edições GRD.). Pensando no caso brasileiro, ver Sodré (1987SODRÉ, Nelson Werneck. (1987), O governo militar secreto. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil., 2010SODRÉ, Nelson Werneck. (2010), História militar do Brasil. 2º ed. São Paulo: Expressão Popular.) e Silva (1984SILVA, Hélio. (1984), O poder militar. Porto Alegre: L&PM Editores.).
  • 17
    Federação Internacional de Futebol.
  • 18
    Comitê olímpico Internacional.
  • 19
    Hebreus 4:12BIBLIA ONLINE. Hebreus 4. Disponível em: Disponível em: https://www.bibliaonline.com.br/nvi/hb/4 . Acesso em: 10/01/19.
    https://www.bibliaonline.com.br/nvi/hb/4...
    . Bíblia Nova Versão Internacional. Disponível em: https://www.bibliaonline.com.br/nvi/hb/4.
  • 20
    Não quero afirmar que a forma mais tradicional de ascetismo e não envolvimento com “questões mundanas” tenha acabado, mas deixou de ser predominante, especialmente nas grandes metrópoles.
  • 21
    À época da entrevista, Jader cursava Psicologia na Unisuam e Gabriel estudava na Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ).
  • 22
    A Fundação Leão XIII foi criada pela Igreja Católica, em 1947, em uma parceria com a prefeitura da cidade. Seu objetivo, como bem apontou Valladares (2005VALLADARES, Licia do Prado. (2005), A invenção da favela - Do mito de origem a favela.com. Rio de Janeiro: Ed. Fundação Getúlio Vargas.), seria o de lidar com uma suposta ameaça comunista, que poderia ter nas favelas sua base de apoio revolucionária. De fato, as favelas, nessa época, começavam a despontar como locais de um novo tipo de associativismo e organização para reivindicação de direitos, o que preocupava as autoridades. A Fundação tinha por objetivo prestar “assistência social e moral” aos favelados. Na prática, exercer também controle sobre suas lideranças.
  • 23
    A Cruzada São Sebastião foi criada em 1955 pelo bispo Dom Hélder Câmara e, em contraste com a Fundação Leão XIII, eminentemente conservadora, era considerada da ala de esquerda da igreja. Seu principal foco de atuação era a urbanização das favelas e a produção de novas moradias. Não há, contudo, significativa diferença entre elas no que tange à moralidade católica como modelo de cidadania.
  • 24
    Penso aqui numa categoria mais ampla que a do profissional de serviço social, mas em todo agente do estado que atua prestando assistência às populações faveladas.
  • 25
    Sobre as diferenças entre uma religião cívica, religião civil e religião pública ver o artigo de Montero (2018MONTERO, Paula. (2018), “Religião cívica, religião civil, religião pública: continuidades e descontinuidades”. Debates do NER , Porto Alegre, ano 19, nº 33: 15-39, jan./jul.) e o comentário de Machado (2018MACHADO, Carly Barboza. (2018), “Evangélicos, mídias e periferias urbanas: questões para um diálogo sobre religião, cidade, nação e sociedade civil no brasil contemporâneo”. Debates do NER, Porto Alegre, ano 19, nº 33: 58-80.) sobre ele.
  • 26
    Epístola de Paulo aos Efésios 6:1-17. Nova Versão Internacional. Grifos do autor.
  • 27
    Conceito de estratégia militar que se fortalece após o fim da Guerra Fria, indicando uma espécie de guerra em que o inimigo não está claramente identificado, pois está misturado à população local. Nessa guerra são utilizadas estratégias de cooptação, de guerra psicológica, estratégias de desinformação, projetos humanitários e formação de redes locais a fim de desestabilizar e combater o inimigo.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    06 Maio 2022
  • Data do Fascículo
    Jan-Apr 2022

Histórico

  • Recebido
    05 Set 2020
  • Aceito
    30 Mar 2021
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