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Introdução ao Dossiê Religião e Mídia

Um dos principais modos de articulação da presença do religioso na esfera pública na atualidade produz-se através da mídia e na mídia. Aspectos relacionados à mídia religiosa e à presença da religião na mídia de massa frequentemente se fazem presentes nas pesquisas sobre o campo religioso brasileiro, mas poucas vezes são assumidos como questão central de análise.

Ao produzirem mídias religiosas (músicas, vídeos, programas de TV, eventos, livros, sites e conteúdos na internet), diferentes grupos não apenas formulam expressões de um conteúdo religioso estático, pronto e acabado, para uma determinada audiência ávida por recebê-lo como forma de confirmação de suas presumidas certezas. Em lugar disso, a relação entre religião e mídia aciona um processo dinâmico de produção e reinvenção desses próprios conteúdos religiosos, de seu lugar na esfera pública, da relação entre o religioso e o secular, do surgimento de audiências (inesperadas e mesmo inusitadas), de modos de habitar e circular na cidade, da formação de subjetividades, da produção de políticas públicas, e das relações de grupos “religiosos” e “laicos” com o Estado1 1 Sobre essas temáticas, destacam-se alguns trabalhos de referência no campo, dentre eles: Meyer e Moors (2006); Hoover (2006); Hirschkind (2006); Morgan (2008); Oosterbaan (2009); Stolow (2012); Birman e Machado (2012); Machado (2013). .

Pensar a partir da articulação produtiva entre religião e mídia permite-nos ainda refletir sobre a materialidade dos meios nos diferentes contextos religiosos, sobre dimensões da sensorialidade, da estética e, principalmente, sobre questões relacionadas aos mediadores e às mediações que se destacam analiticamente segundo esse recorte de pesquisa2 2 Cf. Meyer (2009) e Stolow (2012). .

A questão da articulação entre religião e mídia, vale esclarecer, não é aqui tomada como uma questão exclusivamente contemporânea, específica de “tempos modernos” nos quais as mídias e as tecnologias estariam presentes, em contraste com um passado remoto sem mídias e mediações. Muito menos entendemos o campo midiático como um âmbito privilegiado de “ressurgimento” do religioso e do mágico na modernidade. A relação entre religião e mídia é pensada neste dossiê a partir de concepções que tomam como princípio analítico uma constituição recíproca entre as categorias “religião” e “mídia”, indo além de uma abordagem simplista que se inclina apenas sobre os “usos” de recursos tecnológicos na disseminação de mensagens e práticas religiosas.

As reflexões de Angela Zito em seu artigo Religion is Media convidam-nos a um raciocínio que aproxima a própria definição de religião da definição de mídia. Afirma Zito (2008:s/p, tradução nossa)ZITO, Angela. (2008), "Religion is Media". The Revealer – a review of religion & media, não paginado. Disponível em: http://therevealer.org/archives/2853. Acesso em: 20/07/2014.
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[...] do ponto de vista da mediação dialética da vida social, “religião” e “mídia” podem ser entendidas como funcionando de maneira surpreendentemente íntimas, de modo a configurar formas ainda mais potentes de prática social, quando deliberadamente interligadas. Ambas envolvem e mobilizam questões epistemológicas e cosmológicas da constituição do real.

Ou ainda, tal como nos instiga Stolow (apud Morgan 2008MORGAN, David (org.). (2008), Key Words in Religion, Media and Culture. New York: Routledge.:194):

Imagine qualquer forma de experiência, prática ou conhecimento religioso e veja o que sobra “sem tecnologia”. Sem instrumentos, ferramentas ou aparatos; sem arquitetura ou roupas; sem pinturas, instrumentos musicais, incensos, ou documentos escritos; sem qualquer prática disciplinar corporal de controle, tal como métodos aprendidos e performatizados de respiração, modos de sentar, gestos com as mãos – todas essas são também práticas técnicas. Até mesmo pensamentos e imagens parecem se desfazer se removermos as tecnologias representacionais da linguagem e da iconografia. A conclusão inescapável que se extrai deste exercício é que “religião”, seja como se escolha defini-la, é inerentemente e necessariamente tecnológica.

O campo de estudos de Religião e Mídia fortalece-se a partir dos anos 1990 e reúne diferentes pesquisadores ao redor do mundo. O primeiro artigo deste dossiê, de autoria de Jeremy Stolow, apresenta-nos uma visão geral desse campo de pesquisas, suas principais questões epistemológicas, metodológicas e temáticas. Partindo do princípio de que esse é um campo eminentemente interdisciplinar, Stolow desenvolve uma leitura interessada acerca dos principais desafios desse esforço de investigação pautado no inevitável e indispensável diálogo entre diferentes áreas disciplinares, como a sociologia, a antropologia, a comunicação e as ciências da religião, dentre as principais. Em seu artigo, o autor propõe-se ainda a inspirar pesquisadores, sugerindo e indicando temáticas relevantes e pertinentes ao campo de pesquisa em religião e mídia, bem como modos de abordá-las, evidenciando interesses tanto em temas e campos que demandam abordagens mais históricas (o que confirma a ideia de que “religião e mídia” configuram uma temática não exclusivamente “moderna”), quanto em objetos de pesquisa pertinentes à efervescência das questões mais acaloradas da cena pública contemporânea no Brasil e no mundo. Destacam-se, na abordagem de Stolow ao campo de religião e mídia, sua ampla leitura do conjunto de estudos realizados sobre a temática, sua contribuição significativa ao sistematizar esse panorama internacional, tal qual o modo como apresenta esse cenário de forma imaginativa e provocadora.

Como verificaremos ao longo deste dossiê, grande parte da produção sobre religião e mídia no Brasil trata da relação entre as religiões cristãs e as mais diferentes estratégias midiáticas de projetos católicos e evangélicos. Ao abordar em sua análise um grupo que propõe uma releitura de “tradições africanas”, De Witte oferece-nos um material diferenciado que escapa às religiões cristãs, o que oxigena o campo, ao mesmo tempo em que com aquelas se relaciona intrinsecamente. A autora analisa em seu artigo as práticas da “Afrikan Traditional Religion” em Gana, levando em consideração suas estratégias midiáticas, as dinâmicas internas ao grupo religioso, sua relação com a cena pública e política, e o modo como as práticas e discursos dinamizam redes de poder que participam da produção de uma disputada concepção de “cultura” e “identidade” africanas em Gana e em todo continente africano.

No Brasil, diferentes pesquisadores já vêm contribuindo nos últimos anos de forma significativa com produções importantes para o campo de pesquisas em Religião e Mídia3 3 Cf. Machado (2003); Birman (2006); Cunha (2007); Paula (2007); Rosas (2013); Maranhão Filho (2013); Birman e Machado (2012); Machado (2013); dentre outros. . Este dossiê reúne novos nomes ao campo, fomentando assim outros diálogos, novas articulações temáticas e possíveis combinações entre diferentes áreas de interesse das Ciências Sociais. Na fina análise de Mariana Côrtes sobre o “mercado pentecostal de pregações e testemunhos” articulam-se no campo de religião e mídia elementos de uma sociologia do trabalho, do consumo e do mercado. O foco da análise da autora são as práticas dos pregadores itinerantes: sujeitos que agenciam seus passados no “pecado” enquanto “mercadoria simbólica”, sob a forma de apresentações ao vivo de seus testemunhos e de DVDs e CDs vendidos em um novo mercado religioso que, tal como apresentado por Côrtes, oferece não apenas respostas milagrosas para as aflições, mas também opções reais de carreira a esses pregadores. Os “ex-tudo” (ex-bandidos, ex-macumbeiros, ex-traficantes, etc.) são pensados pela autora tanto em sua relação com esse novo mercado, quanto a partir das estratégias de subjetivação que acionam, especificamente no campo do que Côrtes analisa como “gestão do sofrimento”, no qual a história de vida se torna mercadoria.

Se, através do artigo de Côrtes, é possível abordar a temática do trabalho e do mercado tratando do campo de religião e mídia, o modo como Sant’Ana discute a dimensão política é um diferencial de sua produção nesse campo. O artigo de Sant’Ana trata da relação entre som e poder, produzindo uma discussão sobre paisagem sonora na qual o evento público da Marcha para Jesus participa da formulação na esfera pública de uma categoria geral de “evangélicos”, sua relação com a cidade, o Estado e a política. Em sua análise, a ocupação sonora das ruas pela Marcha para Jesus configura-se uma ocupação política, mercadológica e religiosa, afirmando assim um projeto “evangélico” de cidade e nação em franca disputa na esfera pública brasileira.

Um dos principais projetos evangélicos em disputa pela hegemonia religiosa no Brasil desde os anos 1990 é aquele conduzido pela Igreja Universal do Reino de Deus (IURD), sendo a mídia uma de suas principais estratégias. Responsável por emissoras de rádio, televisão, editoras, websites, dentre outros veículos, a IURD reúne no conjunto de suas ações inúmeras mídias próprias, bem como se orienta abertamente para um tensionamento mais amplo das mídias de massa estabelecidas. O artigo de Jacqueline Teixeira toma por recorte específico dentro desse universo as mídias da IURD voltadas para o público feminino. Teixeira aborda a relação entre mídia e performances de gênero no projeto “Godllywood”, frente midiática da IURD que congrega um conjunto de estratégias voltadas para a produção de um modelo de gênero que atinge as mulheres nos mais variados âmbitos de sua vida – casamento, família, finanças, trabalho, estética, etc. Ao articular estudos de religião, gênero e mídia, Teixeira contribui para o campo de pesquisas em religião e mídia no Brasil, e seu artigo completa este dossiê de forma primorosa.

Assim, é com muito prazer que compartilhamos com os leitores este conjunto de trabalhos. Em nossa compreensão, o campo de estudos em religião e mídia aqui destacado, mais do que um tema em si, ou “ensimesmado”, opera no campo de estudos mais amplo sobre religião como um cenário de debates de questões diversificadas, como poder, política, gênero, mercado, cidade, Estado, secularização, laicidade, espaço público, dentre outros temas clássicos das Ciências Sociais. Nosso intuito, portanto, não é o de circunscrever ou delimitar um campo, mas destacá-lo a fim de colocá-lo em relação com outros campos de pesquisa e, sobretudo, com a produção mais ampla das Ciências Sociais. Esperamos ter alcançado esse objetivo.

Notas

  • 1
    Sobre essas temáticas, destacam-se alguns trabalhos de referência no campo, dentre eles: Meyer e Moors (2006)MEYER, Birgit e MOORS, Annelies. (2006), Religion, Media and the Public Sphere. Bloomington and Indianapolis: Indiana University Press.; Hoover (2006)HOOVER, Stewart. (2006), Religion in the Media Age. New York: Routledge.; Hirschkind (2006)HIRSCHKIND, Charles. (2006), The Ethical Soundscape: Cassette Sermons and Islamic Counterpublics. New York: Columbia University Press.; Morgan (2008)MORGAN, David (org.). (2008), Key Words in Religion, Media and Culture. New York: Routledge.; Oosterbaan (2009)OOSTERBAAN, Martijn. (2009), "Sonic Supremacy: Sound, Space and Charisma in a Favela in Rio de Janeiro". Critique of Anthropology, nº 29: 81-104.; Stolow (2012)STOLOW, Jeremy (ed.). (2012), Deus in Machina: Religion, Technology, and the Things in Between. New York: Fordham University Press.; Birman e Machado (2012)BIRMAN, Patricia; MACHADO, Carly. (2012), "A violência dos justos: evangélicos, mídia e periferias da metrópole". RBCS, v. 27, nº 80: 55-69.; Machado (2013)MACHADO, Carly. (2013), "'É muita mistura': projetos religiosos, políticos, sociais, midiáticos, de saúde e segurança pública nas periferias do Rio de Janeiro". Religião e Sociedade, v. 33, nº 2: 13-36..
  • 2
    Cf. Meyer (2009)MEYER, Birgit. (2009), Aesthetic Formations: Media, Religion, and the Senses. New York: Palgrave Mac-Millan. e Stolow (2012)STOLOW, Jeremy (ed.). (2012), Deus in Machina: Religion, Technology, and the Things in Between. New York: Fordham University Press..
  • 3
    Cf. Machado (2003)MACHADO, Maria das Dores Campos. (2003), "Existe um estilo evangélico de fazer política?". In: P. Birman (org.). Religião e Espaço Público. São Paulo: Attar Editorial.; Birman (2006)BIRMAN, Patricia. (2006), "Future in the Mirror: media, evangelicals and politics in Rio de Janeiro". In: B. Meyer e A. Moors (eds.). Religion, Media and the Public Sphere. Bloomington and Indianapolis: Indiana University Press.; Cunha (2007)CUNHA, Magali do Nascimento. (2007), A explosão gospel: um olhar das ciências humanas sobre o cenário evangélico no Brasil. Rio de Janeiro: Mauad X.; Paula (2007)PAULA, Robson de. (2007), "Os Cantores do Senhor: Três Trajetórias em um Processo de Industrialização da Música Evangélica no Brasil". Religião e Sociedade, v. 27, nº 2: 55-84.; Rosas (2013)ROSAS, Nina. (2013), "Religião, Mídia e Produção Fonográfica: o Diante do Trono e as Disputas com a Igreja Universal". Religião e Sociedade, v. 33, nº 1: 167-193.; Maranhão Filho (2013)MARANHÃO FILHO, Eduardo M. (org.). (2013), Religiões e religiosidades no (do) ciberespaço. São Paulo: Fonte Editorial.; Birman e Machado (2012)BIRMAN, Patricia; MACHADO, Carly. (2012), "A violência dos justos: evangélicos, mídia e periferias da metrópole". RBCS, v. 27, nº 80: 55-69.; Machado (2013)MACHADO, Carly. (2013), "'É muita mistura': projetos religiosos, políticos, sociais, midiáticos, de saúde e segurança pública nas periferias do Rio de Janeiro". Religião e Sociedade, v. 33, nº 2: 13-36.; dentre outros.

Referências Bibliográficas

  • BIRMAN, Patricia. (2006), "Future in the Mirror: media, evangelicals and politics in Rio de Janeiro". In: B. Meyer e A. Moors (eds.). Religion, Media and the Public Sphere Bloomington and Indianapolis: Indiana University Press.
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  • CUNHA, Magali do Nascimento. (2007), A explosão gospel: um olhar das ciências humanas sobre o cenário evangélico no Brasil Rio de Janeiro: Mauad X.
  • HIRSCHKIND, Charles. (2006), The Ethical Soundscape: Cassette Sermons and Islamic Counterpublics New York: Columbia University Press.
  • HOOVER, Stewart. (2006), Religion in the Media Age New York: Routledge.
  • MACHADO, Carly. (2013), "'É muita mistura': projetos religiosos, políticos, sociais, midiáticos, de saúde e segurança pública nas periferias do Rio de Janeiro". Religião e Sociedade, v. 33, nº 2: 13-36.
  • MACHADO, Maria das Dores Campos. (2003), "Existe um estilo evangélico de fazer política?". In: P. Birman (org.). Religião e Espaço Público São Paulo: Attar Editorial.
  • MARANHÃO FILHO, Eduardo M. (org.). (2013), Religiões e religiosidades no (do) ciberespaço São Paulo: Fonte Editorial.
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  • MEYER, Birgit. (2009), Aesthetic Formations: Media, Religion, and the Senses New York: Palgrave Mac-Millan.
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  • PAULA, Robson de. (2007), "Os Cantores do Senhor: Três Trajetórias em um Processo de Industrialização da Música Evangélica no Brasil". Religião e Sociedade, v. 27, nº 2: 55-84.
  • ROSAS, Nina. (2013), "Religião, Mídia e Produção Fonográfica: o Diante do Trono e as Disputas com a Igreja Universal". Religião e Sociedade, v. 33, nº 1: 167-193.
  • STOLOW, Jeremy (ed.). (2012), Deus in Machina: Religion, Technology, and the Things in Between New York: Fordham University Press.
  • ZITO, Angela. (2008), "Religion is Media". The Revealer – a review of religion & media, não paginado. Disponível em: http://therevealer.org/archives/2853. Acesso em: 20/07/2014.
    » http://therevealer.org/archives/2853

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Jul-Dec 2014

Histórico

  • Recebido
    Nov 2014
  • Aceito
    Nov 2014
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