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Cecília Mariz e a Sociologia do Pentecostalismo1 1 Texto apresentado em 30 de outubro de 2023, no ciclo de debates “Ciências Sociais na UERJ: Temas, Trajetórias e Perspectivas”, realizado em homenagem a Cecília Loreto Mariz pelo Programa de Pós-graduação em Ciências Sociais da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (PPCIS/UERJ).

Cecília Mariz and the Sociology of Pentecostalism

Resumos

Resumo: O objetivo desse texto é destacar as principais contribuições de Cecília Loreto Mariz para a sociologia do pentecostalismo brasileiro. Neste sentido, discute-se a tese da racionalização das religiões que orienta as análises da pesquisadora, bem como a concepção pentecostal de libertação e o processo de autonomização dos indivíduos que abraçam essa forma de religiosidade. Finalmente, examina-se o argumento de que a demonização realizada pelos pentecostais pode ser um instrumento de eticização da religião e veículo da modernidade ocidental nos segmentos sociais mais vulneráveis da população brasileira.

Palavras-chave:
Sociologia da religião; Pentecostalismo; Brasil; Camadas populares; Racionalização


Abstract: The objective of this text is to highlight the main contributions of Cecília Loreto Mariz to the sociology of Brazilian Pentecostalism. In this sense, the thesis of the rationalization of religions that guides the researcher's analysis is discussed, as well as the Pentecostal conception of liberation and the process of autonomy of individuals who embrace this form of religiosity. Finally, we discuss the argument that the demonization carried out by Pentecostals can be an instrument of ethicalization of religion and a vehicle of Western modernity for the most vulnerable social segments of the Brazilian population.

Keywords:
Sociology of religion; Pentecostalism; Brazil; Popular classes; Rationalization


Agradeço aos organizadores do evento pelo convite e pela oportunidade de retornar à Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ) em uma ocasião tão especial como essa, quando estamos aqui para debater as contribuições dadas por Cecília Loreto Mariz à sociologia da religião brasileira. Excelente pesquisadora, seus estudos, articulando as expressões religiosas, ora com a dimensão de classe, ora com a dimensão de gênero, ora com a dimensão geracional, a meu ver, foram muito importantes no debate acadêmico brasileiro sobre a temática da religião nas últimas quatro décadas. Com seu jeito afável, Cecília ajudou ainda a formar uma geração de novos pesquisadores na área da sociologia da religião, jovens que atualmente atuam em diferentes universidades públicas do Brasil ou institutos de pesquisa como o Instituto de Estudos da Religião (ISER).

Ao longo de sua trajetória como docente, que teve início na Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), de 1978 a 1991, passando pela Universidade Federal Fluminense (UFF), de 1992 a 1994, e culminando na UERJ em 1995, onde permanece até os dias atuais, Cecília orientou 23 alunos do curso de mestrado, 18 do doutorado, 34 graduandos em seus Trabalhos de Conclusão de Curso, 26 bolsistas de Iniciação Científica e seis alunos de cursos de especialização. Entre 2010 e 2015, supervisionou também quatro Pós-Doutorados. No ano atual, 2023, Cecília supervisiona um estágio pós-doutoral, além de realizar a orientação de quatro dissertações, uma tese de doutorado e uma bolsa de iniciação científica. Ou seja, tem demonstrado uma capacidade invejável de formar novos investigadores e de escrever artigos em coautoria com seus discentes, ajudando-os na divulgação de seus trabalhos.

Como divido esta mesa com Silvia Fernandes, uma das suas ex-orientandas de mestrado e doutorado, e com quem Cecília tem trabalhado em várias pesquisas no campo do catolicismo, optei por explorar mais as suas contribuições para os estudos do segmento evangélico. Nesse sentido, organizei minha fala em torno de três pontos que estão interligados, mas que em alguns de seus trabalhos são mais enfatizados do que os demais: 1) O processo de racionalização das religiões e, em especial, do pentecostalismo; 2) A concepção pentecostal de libertação e a autonomização dos indivíduos; 3) A demonização como instrumento de eticização da religião e veículo da modernidade ocidental.

O processo de racionalização das religiões e em especial do pentecostalismo

Entrei em contato com as pesquisas de Cecília no início dos anos de 1990, quando fazia meu curso de doutorado em Sociologia no Instituto Universitário de Pesquisas do Rio de Janeiro (IUPERJ) e começava a redigir meu projeto de tese comparando os Pentecostais e Carismáticos católicos (Cf. Machado 1996MACHADO, Maria das Dores Campos. (1996), Carismáticos e Pentecostais: adesão religiosa e seus efeitos na esfera familiar. São Paulo: Editores Associados /ANPOCS.). Cecília havia retornado ao Brasil depois de quatro anos em Boston, onde defendeu sua tese de doutorado sob a supervisão de Peter Berger e começava a lecionar na UFF e na UERJ. Generosamente, ela me atendeu em sua residência e me cedeu um disquete com a versão original de sua tese, defendida em 1989, e que posteriormente seria publicada em inglês com o título Copying with Poverty: Pentecostals and Christian Base Communities in Brazil (Mariz 1994aMARIZ, Cecília L. (1994a), Copying with Poverty: Pentecostals and Christian Base Communities in Brazil. Philadelphia: Temple University Press.). Lembro que outro estudo sobre a religião nos segmentos populares no Rio de Janeiro foi realizado na mesma época pelo antropólogo e brasilianista Jonh Burdick, que defendeu sua tese em 1990 nos EUA e a publicou em português no livro intitulado Procurando Deus no Brasil (Burdick 1999BURDICK, Jonh. (1999), Procurando Deus no Brasil. Rio de Janeiro: Mauad. ).

Com reconhecido mérito no campo dos estudos sobre o pentecostalismo nos EUA e no Brasil, o livro da socióloga Cecília Mariz, lamentavelmente, nunca foi traduzido para o português. No entanto, suas teses centrais sobre o processo de racionalização levado a cabo nas Comunidades Eclesiais de Base (CEBs) e nas igrejas pentecostais passaram a ser debatidas entre nós pelos artigos e comunicações realizadas pela autora em congressos e fóruns especializados.

Em uma área acadêmica com forte presença dos/as antropólogas, a perspectiva weberiana adotada por Cecília para estudar os grupos religiosos retomava uma linha de estudos realizados em São Paulo nos anos de 1970 por Procópio Ferreira de Camargo e Beatriz Muniz Souza, e seus então alunos, Antônio Flávio Pierucci e Reginaldo Prandi. Estabeleço esse paralelo porque, assim como nos trabalhos de Procópio (Camargo 1973CAMARGO, Cândido Procópio Ferreira. (1973), Católicos, Protestantes, Espíritas. Petrópolis: Vozes.) e posteriormente do seu discípulo Pierucci (Pierucci 2005PIERUCCI, Antônio Flávio. (2005), O desencantamento do mundo: todos os passos do conceito em Max Weber. São Paulo: Editora 34.; Pierucci & Prandi 1996PIERUCCI, Antônio Flávio & PRANDI, Reginaldo. (1996), A realidade social das religiões no Brasil. São Paulo: Hucitec.), as investigações realizadas por Cecília Mariz revelam não só uma forte influência weberiana, mas também demonstram sua grande atração pela perspectiva comparativa, assim como pela combinação das metodologias quantitativas e qualitativas. Sua habilidade para as investigações empíricas e análises de surveys ficaria mais clara quando integrou a equipe que realizou o projeto do Novo Nascimento do ISER nos anos 90 (Cf. Fernandes et al. 1998FERNANDES Rubem César et al. (1998), Novo Nascimento: os evangélicos em casa, na igreja, e na política. Rio de Janeiro: Mauad . ).

Devo registrar ainda que a entrada da Cecília na UERJ, e sua vinculação à linha de pesquisa Religiões e Movimentos Sociais, constituída majoritariamente por antropólogos/as, proporcionou aos alunos dessa universidade uma visão mais sociológica do fenômeno religioso e um conhecimento maior da perspectiva weberiana. Uma linha de pesquisa que se pretendia multidisciplinar realmente ganhou muito com a sua presença e sua leitura weberiana das religiões cristãs.

Gostaria de voltar ao argumento central do livro de Cecília (Mariz 1994aMARIZ, Cecília L. (1994a), Copying with Poverty: Pentecostals and Christian Base Communities in Brazil. Philadelphia: Temple University Press.). Ou seja, de que, assim como nas Comunidades Eclesiais de Base, era possível identificar uma dimensão racionalizadora no sistema de crenças e rituais pentecostais que se difundiam na periferia urbana do Rio de Janeiro e Recife. Na interpretação da autora, a adesão de mulheres e homens às CEBs e igrejas pentecostais seria uma estratégia desses atores sociais para lidar com a pobreza. O que diferenciaria CEBs e o pentecostalismo, Cecília afirmava na conclusão de seu livro, seria

o grau em que eles oferecem racionalização e autonomia de organização e que, não obstante suas visões e valores políticos básicos, o grau de racionalização e o grau de autonomia de suas organizações são os determinantes mais importantes das atitudes e comportamentos dos seguidores (Mariz 1994aMARIZ, Cecília L. (1994a), Copying with Poverty: Pentecostals and Christian Base Communities in Brazil. Philadelphia: Temple University Press.:162).

No caso do pentecostalismo, em grande parte dos que se declaravam como pentecostais da década de 1980, a autonomização e individuação começavam com a decisão dos fiéis em romper com a tradição católica de seus pais e experimentar novas formas de religiosidade. Mas seguiria de forma processual com os/as fiéis abraçando um ethos ascético centrado no princípio do livre arbítrio. Ou seja, na sociologia do pentecostalismo desenvolvida por Cecília, os homens e mulheres que aderiam a movimento religioso agiam de forma racional, mesmo que ele valorizasse a magia e a emoção. Isso está em sintonia com os tipos ação racional desenvolvidos por Weber, os quais, relidos por Cecília, nos ajudaram a compreender o trânsito religioso que se acentuaria nos anos 90 e a questionar as visões estereotipadas dos pentecostais como alienados.

E aqui passo ao segundo ponto, que é mais claramente evidenciado no trabalho intitulado “Libertação e ética”, publicado como capítulo na coletânea Nem Anjos Nem Demônio (Mariz 1994bMARIZ, Cecília L. (1994b), “Libertação e ética”. In Alberto Antoniazzi et al. (org.) Nem anjos nem demônios: interpretações sociológicas do pentecostalismo. Petrópolis: Vozes .), e na resenha “A Teologia da Batalha Espiritual: Uma Revisão da Bibliografia” (Mariz 1999).

A concepção pentecostal de libertação e a autonomização dos indivíduos

No texto “Libertação e ética”, Cecília argumentava que a ênfase no demônio e a concepção de guerra espiritual no pentecostalismo tinham uma força modernizadora e reforçava a autonomização do indivíduo através do carisma. Nessa linha de interpretação, a concepção de libertação dos grupos pentecostais ajudava a construir um conceito de indivíduo autônomo e contribuía para o desenvolvimento de um tipo de individualismo nos segmentos sociais mais vulneráveis. O argumento central desse trabalho é que o sucesso pentecostal não decorria fundamentalmente do seu universo mágico, mas sim da forma como essa expressão religiosa articulava a magia e o sobrenatural com a ética. E seria através do conceito pentecostal de libertação que essa forma de articulação entre magia e ética se tornava possível. Nas palavras da autora,

ao oferecer uma libertação do mal, o pentecostalismo leva o crente a se conceber como um indivíduo, com determinado grau de autonomia e poder de escolha, e a rejeitar a concepção de pessoa, ou seja, de sujeito que se restringe aos papeis tradicionalmente prescritos e que é incapaz de escolher o seu destino (Mariz 1994bMARIZ, Cecília L. (1994b), “Libertação e ética”. In Alberto Antoniazzi et al. (org.) Nem anjos nem demônios: interpretações sociológicas do pentecostalismo. Petrópolis: Vozes .:205).

Os elementos mágicos presentes nas sessões de libertação favoreceriam o processo de racionalização entre os frequentadores das igrejas pentecostais, construindo uma ponte entre a pessoa e o indivíduo. Segundo a autora, “Enquanto um procedimento mágico, que não tem origem no universo do pensamento racional, a ideia de libertação pressupõe que os sujeitos são fracos; não escolhem o mal, mas são dominados por ele” (Mariz 1994bMARIZ, Cecília L. (1994b), “Libertação e ética”. In Alberto Antoniazzi et al. (org.) Nem anjos nem demônios: interpretações sociológicas do pentecostalismo. Petrópolis: Vozes .:205). Entretanto, uma vez realizada a libertação, caberia aos indivíduos escolherem adotar um novo ethos e “seguir uma moralidade clara, regida por leis inexoráveis” ou retomar o padrão de conduta anterior e seguir vivendo num “mundo de regras particularistas e flexíveis” (Mariz 1994bMARIZ, Cecília L. (1994b), “Libertação e ética”. In Alberto Antoniazzi et al. (org.) Nem anjos nem demônios: interpretações sociológicas do pentecostalismo. Petrópolis: Vozes .:205). Nessa linha de interpretação, o pentecostalismo oferece “uma ordem, uma lógica” a um grande contingente populacional que vive em uma sociedade marcada pela desigualdade econômica e pela marginalidade social e política.

Esse é um ponto importante, pois vejo aí um argumento que, embora pouco debatido por nós na época, reaparece nas análises socioantropológicas sobre o apoio dos evangélicos a Bolsonaro nas eleições de 2018. Christina Vital da Cunha foi uma das autoras que enfatizou a mobilização do medo e da desordem social nos discursos de campanha de Bolsonaro nas eleições presidenciais daquele ano (Cunha 2020CUNHA, Christina Vital da. (2020), “Retórica da perda e os aliados evangélicos na política brasileira”. In: J. L. P. Guadalupe & B. Carranza (orgs.). Novo ativismo político no Brasil: os evangélicos do século XXI. Rio de Janeiro: Konrad Adenauer Stiftung.). Isso é interessante, pois, ainda que os pentecostais dos anos 80 enfatizassem a desordem individual, que se expressa na doença, no desemprego, no alcoolismo e em outras formas de comportamentos desviantes associados à intervenção demoníaca, Cecília já reconhecia no ideário hegemônico nas igrejas pentecostais uma certa crítica à sociedade. Essa dimensão ganhará mais visibilidade com a difusão da teologia da guerra espiritual e da concepção dos demônios territoriais no meio pentecostal brasileiro.

De modo que, se o converso pentecostal dos anos 80 buscava a ordem oferecida por um Deus moral (Mariz 1994bMARIZ, Cecília L. (1994b), “Libertação e ética”. In Alberto Antoniazzi et al. (org.) Nem anjos nem demônios: interpretações sociológicas do pentecostalismo. Petrópolis: Vozes .:220), eu acrescentaria que o converso dos anos iniciais do século XXI atua em várias esferas da vida social e política em busca de uma ordem social que siga os princípios cristãos, especialmente no campo da família e da sexualidade humana. Se a agência dos fiéis pentecostais na década de 1980 ficava mais restrita às questões privadas, hoje ela também se revela no ativismo social e político neoconservador. Em outras palavras, a capacidade de agência desses pentecostais se ampliou com as mudanças na cultura e na política do país, principalmente com a representação cada vez maior desse segmento religioso na população brasileira. A teologia do domínio fornece o combustível para a guerra espiritual nas diferentes esferas da vida social com o objetivo de garantir que a “nação brasileira seja uma nação cristã”.

Em um artigo que Cecília Mariz, Brenda Carranza e eu escrevemos para o Dossiê “Trump e a direita religiosa: Estados Unidos, Brasil, Peru e Guatemala”, da revista Ciências Sociais e Religião, analisamos como essa agência se revela também nas relações dos políticos e lideranças religiosas pentecostais com o Estado de Israel e como isso foi, de certa forma, capitalizado por Bolsonaro (Machado, Mariz & Carranza 2021MACHADO, Maria das Dores Campos; MARIZ, Cecília & CARRANZA, Brenda. (2021), “Articulações político-religiosas entre Brasil-USA: direita e sionismo cristãos”. Ciencias Sociales y Religión/Ciências Sociais e Religião, vol. 23. Disponível em: Disponível em: https://periodicos.sbu.unicamp.br/ojs/index.php/csr/article/view/8670269/29464 . Acesso em 29/10/2023.
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)

A demonização como instrumento da eticização da religião e veículo portador da modernidade

A demonização como instrumento da eticização da religião e veículo portador da modernidade foi o argumento da socióloga apresentado na revisão bibliográfica sobre a Teologia da Batalha Espiritual, publicada na Revista BIB (Mariz 1999MARIZ, Cecília L. (1999), “A Teologia da Batalha Espiritual: Uma Revisão da Bibliografia”. BIB - Revista Brasileira de Informação Bibliográfica em Ciências Sociais, nº 47: 33-48. ), mas pouco debatido entre nós, seus colegas da sociologia e da antropologia da religião. Esse tema da demonização tem sido retomado em outras chaves analíticas nas investigações mais recentes das disputas de moralidades travadas pelos movimentos feministas e LGBTQIA+ com os grupos neoconservadores cristãos. Por isso me interessa o argumento de Cecília relacionando a demonização pentecostal dos sujeitos com a mentalidade moderna. Seguindo a perspectiva adotada por Keith Thomas, que enfatizava o papel do diabo no processo de desencantamento do mundo na idade moderna, Cecília afirma acreditar que “em alguns contextos, como nas camadas populares brasileiras” a figura do demônio ainda teria hoje um papel importante para o declínio da magia e o avanço da racionalidade moderna. Nas palavras da autora,

A demonização desencanta o mundo, em primeiro lugar, por reduzir o universo sobrenatural praticamente a apenas Deus e o(s) diabo(s). A guerra contra o diabo contribui para o declínio da magia na medida em que questiona a eficiência mágica como o critério mais importante para a adoção de um ritual ou realização de um culto. Esse discurso religioso enfatiza não apenas o poder de Deus, mas a sua piedade e justiça. Apesar de todo poder que detém, o demônio deve ser rejeitado juntamente com seus milagres. O critério moral e ético é aí mais importante do que a eficácia mágica (Mariz 1999MARIZ, Cecília L. (1999), “A Teologia da Batalha Espiritual: Uma Revisão da Bibliografia”. BIB - Revista Brasileira de Informação Bibliográfica em Ciências Sociais, nº 47: 33-48. :40).

No texto, Cecília debate especialmente com Reginaldo Prandi (1992PRANDI Reginaldo. (1992), “Perto da Magia, Longe da política: derivações do encantamento no mundo desencantado”. Novos Estudos Cebrap, nº 34: 81-91. Disponível em: Disponível em: https://repositorio.usp.br/item/000841129 . Acesso em: 25/10/2023.
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) e Alba Zaluar (1995ZALUAR, Alba (1995), “O medo e os movimentos sociais”. Proposta, FASE, vol. 23, nº 66.), autores que identificaram na teologia da guerra espiritual uma atitude apolítica e uma retração para o espaço privado. Alba, no trabalho intitulado “O medo e os movimentos sociais”, publicado em 1995, afirmara que o pentecostalismo não propunha uma ética transformadora, mas apensas uma proteção mágica. Já Prandi, no artigo “Perto da magia, longe da política: derivações do encantamento no mundo desencantado”, publicado em 1996, argumentou que o pentecostalismo “era incapaz de pensar a moralidade de modo inteiramente não privatizado, como um pós-ético às avessas” (Prandi 1992:99). A visão de Mariz, entretanto, é distinta: “O pentecostalismo não apenas propõe uma magia ética, mas atribui poder mágico à ética” (Mariz 1994: 220). Ou seja, no pentecostalismo, os elementos encantados e a prática da libertação estariam a serviço de uma ética de convicção. Essa ética é realmente distinta daquela proposta pelos movimentos sociais, mas tinha um potencial transformador nas subjetividades dos que a ele aderiam. Cecília não afirma, mas os embates ocorridos nas últimas décadas entre os segmentos pentecostalizados com os movimentos feministas e LGBTQIA+ demonstram que a ética oriunda desse processo de endemonização não é democrática.

Naquele contexto, onde os demônios hereditários eram bem mais explorados que os demônios territoriais, a transformação tinha um alcance distinto, mas o processo de politização da religião já estava em curso, embora fosse em uma direção contrária à desejada pelos movimentos sociais progressistas e pelos estudiosos como Prandi e Alba. Cecília reconhece o caráter autoritário dos discursos pentecostais, o estilo religioso bélico e de confrontação das lideranças religiosas, assim como a intolerância às outras religiões, mas não associa essas dimensões com uma atitude política conservadora. Na conclusão do artigo, a autora argumenta que distintamente dos evangelicals norte-americanos que viam “seus demônios nos costumes sexuais modernos, nas teorias científicas como o evolucionismo, ou seja, nas mudanças e naquilo que elas trazem de novo” (Mariz 1999MARIZ, Cecília L. (1999), “A Teologia da Batalha Espiritual: Uma Revisão da Bibliografia”. BIB - Revista Brasileira de Informação Bibliográfica em Ciências Sociais, nº 47: 33-48. :41), os grupos religiosos brasileiros tendiam a identificar o demônio “com aspectos de sua tradição passada” (Mariz 1999:41). Isso é importante! Na análise realizada em 1999, Cecília afirmava que no caso dos pentecostais locais existiria “uma ênfase muito maior nos demônios hereditários das religiões tradicionais do que no demônio que se poderia identificar nas novas teorias científicas e nos novos estilos de vida” (Mariz 1999:41).

Passados 24 anos dessa publicação, a influência crescente dos evangelicals norte-americanos e, em particular a difusão da teologia do domínio no meio pentecostal brasileiro, deixariam mais evidentes que o pentecostalismo não restringiria a atuação do fiel ao interior da comunidade de culto, como pensava Prandi (1992PRANDI Reginaldo. (1992), “Perto da Magia, Longe da política: derivações do encantamento no mundo desencantado”. Novos Estudos Cebrap, nº 34: 81-91. Disponível em: Disponível em: https://repositorio.usp.br/item/000841129 . Acesso em: 25/10/2023.
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). Ao contrário, ele poderia e vem fazendo com que os pentecostais se interessem pela política, participem de manifestações públicas e disputem os espaços nos conselhos tutelares, nas entidades que controlam o exercício profissional e na política partidária. A política tem matiz conservador e excludente, mas é política (Machado 2020MACHADO, Maria das Dores Campos (2020), “O neoconservadorismo cristão no Brasil e na Colômbia”. In F. Biroli, M. D. C. Machado & J. M. Vaggione (org.). Gênero, neoconservadorismo e Democracia. São Paulo: Boitempo.). Ou seja, os “profetas” pentecostais mergulharam de cabeça na política desafiando as ciências sociais e políticas brasileiras.

Os embates ocorridos nas últimas décadas entre os segmentos pentecostalizados e os movimentos feministas e LGBTQIA+ também demonstram que o processo de endemonização não se restringe mais às religiões tradicionais, mas envolve os novos estilos de vida e as novas teorias científicas, como, por exemplo, os estudos de gênero. A meu ver, a ética oriunda desse processo de endemonização dos evangélicos neoconservadores não é uma ética democrática. Ao contrário, como vários autores têm assinalado (Cf. Machado 2020MACHADO, Maria das Dores Campos (2020), “O neoconservadorismo cristão no Brasil e na Colômbia”. In F. Biroli, M. D. C. Machado & J. M. Vaggione (org.). Gênero, neoconservadorismo e Democracia. São Paulo: Boitempo.; Natividade 2016NATIVIDADE, Marcelo. (2016), Margens da política: estado, direitos sexuais e religiões. Rio de Janeiro: Garamond. ; Natividade & Oliveira 2013NATIVIDADE, Marcelo & OLIVEIRA, Leandro. (2013), As novas guerras sexuais: diferença, poder religioso e identidades LGBT no Brasil. Rio de Janeiro: Garamond . ), essa ética desumaniza os sujeitos que pensam e agem de forma distinta e favorece a difusão do discurso de ódio na sociedade brasileira. Os pentecostais brasileiros mudaram, solapando muitas das expectativas de que o crescimento da representação dos evangélicos na nossa sociedade poderia fortalecer a democracia. Gostaria muito que Cecília pudesse, nos próximos anos, analisar e escrever sobre essas mudanças no processo de endemonização das igrejas renovadas e pentecostais e o caráter excludente dessa ética religiosa.

Ao reler esse último parágrafo, entretanto, fiquei com a sensação de estar atuando como “advogada do diabo” e amarrando minha querida amiga a esse destino. Assim, desejo, Cecília, que você faça “o que lhe der na telha” e continue sendo essa pessoa adorável que todas as pessoas presentes nesta sala aprenderam a amar.

Bibliografia

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    Texto apresentado em 30 de outubro de 2023, no ciclo de debates “Ciências Sociais na UERJ: Temas, Trajetórias e Perspectivas”, realizado em homenagem a Cecília Loreto Mariz pelo Programa de Pós-graduação em Ciências Sociais da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (PPCIS/UERJ).

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    20 Maio 2024
  • Data do Fascículo
    Jan-Apr 2024

Histórico

  • Recebido
    15 Jan 2024
  • Aceito
    04 Abr 2024
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