Acessibilidade / Reportar erro

Uma santa budista de cemitério: a construção da devoção a uma imigrante japonesa (Assaí, 1976-2022)

A Buddhist cemetery saint: the construction of devotion to a Japanese immigrant (Assaí, 1976-2022)

Resumos

O artigo analisa a construção da devoção a uma santa de cemitério presente no Cemitério de Assaí entre o período de 1976 e 2002. O túmulo é utilizado como fonte primária, compreendido metodologicamente como manifestação da cultura material e passível de ressignificações, segundo Rede e Droogan. Foram também realizadas entrevistas abertas com diferentes figuras ligadas à devoção, partindo das proposições de Thompson. Do ponto de vista teórico, foram utilizados os conceitos de apropriação e tática sugeridos por Certeau. Como discussões, ressalta-se que a devoção parte de uma sepultura com características inerentes a uma escola específica do Budismo japonês. Entretanto, o túmulo foi apropriado pelos fiéis de diferentes formas, desenvolvendo uma devoção à santa de cemitério que articulou distintas camadas religiosas presentes na sociedade brasileira.

Palavras-chave:
Santa de cemitério; Budismo; Devoção; Assaí


This article analyzes the construction of devotion to a cemetery saint present in the Cemetery of Assaí between the period of 1976 and 2002. The grave is used as primary source, methodologically understood as a manifestation of material culture and subject to resignifications, according to Rede and Droogan. Open interviews were also carried out with different figures related to the devotion, based on propositions of Thompson. From a theoretical perspective, the concepts of appropriation and tactic suggested by Certeau were used. As discussions, it is highlighted that the devotion starts from a sepulture with characteristics inherent to a specific school of Japanese Buddhism. However, the grave was appropriated by the devotees in different ways, developing a devotion to the cemetery saint that articulated distinct religious layers present in Brazilian society.

Keywords:
Cemetery saint; Buddhism; Devotion; Assaí


Considerações iniciais

Santos de cemitério são personagens relativamente comuns nas necrópoles brasileiras. Tratam-se de figuras que, consideradas sagradas a partir das apropriações de indivíduos e grupos sociais, realizariam milagres cotidianos, tais como cura de enfermidades, resolução de problemas amorosos e sucesso profissional (Sáez 1996SÁEZ, Oscar Calavia. (1996), Fantasmas falados: mitos e mortos no campo religioso brasileiro. Campinas: Editora da UNICAMP.). Os túmulos onde estariam sepultados esses mortos muito especiais, apresentando ou não características particulares, acabam convertendo-se em sítios de devoção, recebendo ex-votos1 1 Os ex-votos são diferentes artefatos deixados, geralmente, como formas de agradecimento às graças que os devotos creem ter recebido das entidades, variando desde reproduções das partes do corpo curadas a objetos como muletas e placas de metal com mensagens para o santo (Andrade 2015). como forma de agradecimento pelas graças recebidas. Esse fenômeno costuma passar longe das instituições católicas, cujo processo de santificação oficial é consideravelmente longo, custoso e complexo.

O Cemitério Municipal de Assaí, situado em Assaí (PR), não é exceção no que diz respeito aos santos de cemitério, possuindo uma sepultura com uma característica especial, uma vez que jorraria água do túmulo, supostamente capaz de operar milagres como a cura de enfermidades (André 2011 ANDRÉ, Richard Gonçalves. (2011), Religião e silêncio: representações e práticas mortuárias entre nikkeis em Assaí por meio de túmulos (1932-1950). Assis: Doutorado em História, Unesp.). Apesar da devoção em torno de um sagrado muito próximo ser comum nas necrópoles brasileiras, um indício torna o caso singular. Na lápide, encontra-se a inscrição namu amithaba, variação de namu amida butsu 南無阿弥陀仏 que, numa tradução literal, significa “eu me refugio no Buda Amida”. A expressão é uma das recitações fundamentais das escolas budistas japonesas que possuem como base a devoção em torno de Amida, considerado o buda da luz infinita. Dentre essas vertentes, é possível destacar a Jōdo Shinshū ou Verdadeira Escola de Terra Pura.2 2 A Verdadeira Escola de Terra Pura é uma vertente criada no Japão do século XIII pelo monge Shinran, tendo como foco Amida, considerado um buda salvador e de natureza transcendental. A recitação do nenbutsu 念仏, como é chamado o namu amida butsu, é um dos principais fundamentos da escola, tendo como objetivo o renascimento do devoto na chamada Terra Pura. Esta seria uma espécie de local paradisíaco em que o renascido poderia praticar os votos budistas para alcançar a libertação final (Budismo 2013), embora a noção de Terra Pura não seja exclusiva dessa escola. Seja como for, é válido lembrar, como sugerem William Deal e Brian Ruppert (2015), que seria mais apropriado falar de “budismos”, no plural, considerando a quantidade significativa de vertentes e escolas existentes no Japão e no universo asiático de forma mais ampla.

Circunscrevendo o caso de Assaí, o presente artigo busca responder à seguinte problemática: como uma falecida japonesa e budista converteu-se numa santa de cemitério a partir das apropriações dos devotos? Como recorte temporal, é estabelecido o período entre 1976 e 2022, considerando que a devoção permanece ativa na atualidade. Sugere-se que o fenômeno em questão reflete como elementos do Budismo nipônico são apropriados em termos religiosos no Brasil.

A pesquisa se justifica considerando diversos aspectos. Em primeiro lugar, como afirma Oscar Calavia Sáez (1996SÁEZ, Oscar Calavia. (1996), Fantasmas falados: mitos e mortos no campo religioso brasileiro. Campinas: Editora da UNICAMP., 2009SÁEZ, Oscar Calavia. (2009), “O que os santos podem fazer pela Antropologia?”. Religião & Sociedade , vol. 29, nº 2: 198-219.), a produção acadêmica em torno do fenômeno religioso tem privilegiado, sobretudo, religiões organizadas em termos doutrinários, ritualísticos e institucionais. Isso é válido, inclusive, em termos de reflexões a respeito das religiões japonesas no Brasil, especialmente o Budismo, que têm sido abordadas a partir de seu processo de institucionalização no país, o que se consolidou nos anos 1950 com a construção de templos, santuários e outros locais de devoção.3 3 Vide a coletânea organizada por Frank Usarski (2002a), intitulada O Budismo no Brasil. A obra tornou-se um marco importante para as demais produções acadêmicas no Brasil a respeito do Budismo, delineando abordagens e periodizações a respeito do fenômeno. A revista Religião & Sociedade publicou, em 2006, três artigos sobre o universo budista (Usarski 2006; Nina 2006; Alves 2006). Retornando ao raciocínio proposto por Sáez (1996SÁEZ, Oscar Calavia. (1996), Fantasmas falados: mitos e mortos no campo religioso brasileiro. Campinas: Editora da UNICAMP.:59), religiosidades que se manifestam nas franjas das dimensões normativas, como é o caso dos santos de cemitério, têm sido consideradas “[...] mitologias de segunda ordem [...]” ou mesmo desvios no tocante às religiões consideradas normativas (Sáez 2009SÁEZ, Oscar Calavia. (2009), “O que os santos podem fazer pela Antropologia?”. Religião & Sociedade , vol. 29, nº 2: 198-219.). Entretanto, como será desenvolvido, essas manifestações permitem entrever, de modo difuso, a dinâmica das apropriações, usos e reconstruções de concepções e práticas num nível ordinário, isto é, do cotidiano.

Do ponto de vista da produção acadêmica, quando comparados aos santos oficiais da Igreja, os “santos oficiosos” (Andrade 2010ANDRADE, Solange Ramos de. (2010), “O culto aos santos: a religiosidade católica e seu hibridismo”. Revista brasileira de história das religiões, 7: 131-145.:133) têm sido abordados de forma mais pontual e fragmentária pelos pesquisadores. É possível destacar as investigações produzidas por Antonio Augusto Fagundes (2003FAGUNDES, Antonio Augusto. (2003), As santas prostitutas: um estudo de devoção popular no Rio Grande do Sul. Porto Alegre: Martins Livreiro.) sobre as santas prostitutas no Rio Grande do Sul; O. C. Sáez (1996SÁEZ, Oscar Calavia. (1996), Fantasmas falados: mitos e mortos no campo religioso brasileiro. Campinas: Editora da UNICAMP.), que dedica um capítulo sobre o trânsito com a Umbanda entre santos de cemitério em Campinas (SP); Solange Ramos de Andrade (2010, 2015), que analisa a devoção em torno do Menino da Tábua, santo “criança” em Maracaí (SP);4 4 Quando em vida, Antônio Marcelino, chamado posteriormente de Menino da Tábua, sofria de uma patologia que inviabilizou o crescimento de seu corpo. Apenas o rosto tomou a compleição de um homem adulto, tendo falecido aos quarenta e cinco anos. Por isso, apesar de adulto, é devotado como criança. Além disso, Marcelino possuía uma série de restrições alimentares e não aceitava roupas, permanecendo sobre uma tábua que lhe rendeu o epíteto (Andrade, 2015). Vera Irene Jurkevics (2004JURKEVICS, Vera Irene. (2004), Os santos da Igreja e os santos do povo: devoções e manifestações de religiosidade popular. Curitiba: Tese de doutorado em História, UFPR.), que investiga a devoção em torno de Maria Bueno em Curitiba (SP);5 5 Maria Bueno é uma popular santa de cemitério em Curitiba. Em 1893, a personagem teria sido assassinada brutalmente, sendo encontrada decapitada e com cortes de navalha nas mãos. Seu cadáver teria ficado exposto longamente no local do crime, próximo à então zona do meretrício da cidade (Lima 2007). Andrea de Alvarenga Lima (2007LIMA, Andrea de Alvarenga. (2007), “A saga de Maria Bueno: um retrato da alma de Curitiba”. Psicologia e argumento, vol. 25, nº 49: 173-185.), que também aborda o caso de Maria Bueno, tendo como repertório teórico a Psicologia Analítica junguiana; em artigo publicado na revista Religião & Sociedade, Hugo Ricardo Soares (2019SOARES, Hugo Ricardo. (2019), “Narrativas hagiográficas e devoção aos santos: notas sobre a (re)produção simbólica da santidade nos cemitérios”. Religião & Sociedade , vol. 39, nº 1: 36-59.) enfoca quatro figuras eclesiásticas em São José dos Campos (SP); e, entre outros pesquisadores, Eliane Tânia Freitas (2021FREITAS, Eliane Tânia. (2021), Santos feitos à mão: devoções religiosas populares em cemitérios no Rio Grande do Norte. Natal: EDUFRN.), que aborda santos de cemitério no Rio Grande do Norte. As reflexões encontram-se distribuídas, sobretudo, nos campos da Antropologia, da História e, em menor escala, da Psicologia. Todavia, no balanço dessa produção, não foram encontradas considerações a respeito de santos de cemitério nipo-descendentes ou ligados ao Budismo, o que torna legítimo o empreendimento deste artigo.

Como fonte primária, será utilizada, principalmente, a própria sepultura compreendida como cultura material. De acordo com Julian Droogan (2013DROOGAN, Julian. (2013), Religion, material culture and Archaeology. London, New York: Bloomsbury Academic.:14, tradução livre), a cultura material pode ser compreendida como os “[...] elementos manufaturados da cultura que são corporificados materialmente, tais como artefatos, arquitetura, monumentos e assim por diante [...]”. O autor critica a religião entendida de forma puramente abstrata, chamando a atenção para a necessidade de pensá-la no interior de suas manifestações materiais, o que pode incluir os próprios túmulos.

A proposta de Droogan problematiza concepções em torno da religião que, a partir de teóricos como Mircea Eliade e mesmo Rudolf Otto, concebem o fenômeno como manifestação de um “sagrado” ou mesmo um “numinoso” de caráter evanescente. A chamada “religião material” - tal como discutido por autores brasileiros como Renata Menezes e Rodrigo Toniol (2021MENEZES, Renata & TONIOL, Rodrigo (Orgs.). (2021), Religião e materialidades: novos horizontes empíricos e desafios teóricos. Rio de Janeiro: Papéis Selvagens.) - implica pensar o religioso em suas inscrições no universo tangível. Pode-se pensar em aspectos como o lugar - seja a paisagem, a região, a localidade e ou as próprias construções -, os objetos de culto, as vestimentas, os corpos e, corolário disso, mesmo os ritos como performances. Como sugere Tim Ingold (2012INGOLD, Tim. (2012), “Trazendo as coisas de volta à vida: emaranhados criativos num mundo de materiais”. Horizontes antropológicos, vol. 18, nº 37: 25-44.), seria impossível conceber as práticas dos seres humanos independentemente das coisas que as perpassam numa malha, o que é particularmente relevante no caso religioso.6 6 Ingold utiliza o conceito de “coisa” ao invés de “objeto”, chamando a atenção para o fato de que a primeira se encontra indissociavelmente entrelaçada com outros artefatos ou mesmo em sua relação com os seres humanos. Por outro lado, o termo “objeto” corroboraria, de acordo com o autor, sua cisão metafísica para com os sujeitos, ainda que ambos os componentes sejam postos em relação.

Considerando essa discussão, a cultura material pode apresentar duas dimensões importantes. Por um lado, como produto construído no interior de determinado contexto histórico, ela assume caráter de representação perpassada por finalidades funcionais e estéticas. A elaboração de um artefato envolve, por parte de seu produtor, a escolha de materiais, seu processamento e a articulação de seus elementos com o intuito tanto de servir a determinadas funções quanto de comunicar ideias e emoções. Isso é arquitetado a partir de formas, texturas, cores, qualidade de materiais, entre outros aspectos, alcançando o objeto à categoria de representação.7 7 As teorias tradicionais em torno da cultura material tendem a enfatizar a primeira dimensão apresentada, ressaltando o papel dos criadores, bem como os objetos pensados em termos de funções no universo social, voltadas, especialmente, para as dinâmicas de produção, circulação e consumo. Nesse sentido, o artefato é compreendido, de forma privilegiada, em seu aspecto funcional, especialmente no tocante à questão econômica. Ver o balanço realizado por Rede (1996).

Por outro lado, ainda que possua determinado sentido, o objeto não permanece circunscrito às intenções de seu criador. Como algo que potencialmente transcende a vida biológica de seus autores, os artefatos são passíveis de apropriações e ressignificações por parte dos usuários, que podem subverter os sentidos originalmente propostos. Esses usos podem deixar marcas na cultura material, tanto do desgaste quanto da inserção de novos elementos, como é o caso de ex-votos em túmulos de santos de cemitério. Mesmo que algumas formas de recepção não demarquem um lugar propriamente dito, os objetos são passíveis de releituras, usos imprevisíveis e mesmo de afetos que marcam a biografia do artefato (Rede 1996REDE, Marcelo. (1996), “História a partir das coisas: tendências recentes nos estudos de cultura material”. Anais do Museu Paulista, 4: 265-282.) 8 8 A segunda dimensão no tocante à cultura material, voltada especialmente para os processos de apropriação, tendem a ressaltar não apenas o aspecto funcional, mas também o afetivo. Para além dos usos pragmáticos, os objetos encontram-se ligados a sentidos concebidos por parte dos usuários que envolvem mesmo dimensões identitárias. Não coincidentemente, afirma-se que os artefatos possuem uma biografia independente daquela de seus produtores e, portanto, aberta aos processos de ressignificação. A teoria ator-rede, construída a partir das proposições de Bruno Latour (1994), ressalta o papel de agência desempenhado pela cultura material no sentido de gerar práticas numa relação que envolve artefatos e seres humanos. Mais recentemente, autores como Ingold (2012) têm criticado a teoria, enfatizando, como afirmado, o caráter ainda dicotômico e metafísico da dualidade entre objeto e sujeito. .

Para registrar a cultura material abordada no decorrer do presente artigo, foram produzidas fotografias em diferentes momentos a respeito do túmulo abordado, bem como de alguns artefatos deixados no local. Compreende-se que as imagens não são neutras, constituindo, antes, representações construídas por aquele que as produz (Burke 2004BURKE, Peter. (2004), Testemunha ocular: História e imagem. Bauru: EDUSC.). Contudo, por uma questão de recorte, os elementos analisados restringem-se à dimensão da materialidade registrada e não da fotografia propriamente dita9 9 Compreende-se que a imagem não substitui o objeto, ainda que ela própria possa ser um artefato. . Ainda no tocante à dimensão imagética, as fotografias foram inseridas sempre que necessário para fins analíticos, afastando-se, portanto, de usos ilustrativos.

Além da cultura material, são utilizadas como fontes primárias entrevistas abertas realizadas com familiares e devotos da santa de cemitério abordada, além dos próprios funcionários ligados ao Cemitério Municipal de Assaí, como os coveiros. As entrevistas foram produzidas e analisadas conforme as proposições de Paul Thompson (1992THOMPSON, Paul. (1992), A voz do passado: história oral. Rio de Janeiro: Paz e Terra.). A familiar de Kiku Hase, mais especificamente sua neta (doravante “interlocutora 1”10 10 Optou-se aqui pelo termo “interlocutor/a” ao invés de depoente considerando que o ato de contar uma história envolve uma dimensão performática, em que elementos de um repertório são apropriados para criar a narrativa que, todavia, é construída no próprio ato de fala. A noção de depoente é limitada tendo em vista que sugere a ilusão segundo a qual um saber é apenas comunicado verbalmente, quando, antes, a prática em si é perpassada de significado, como ressalta Cardoso (2012). A autora abordou a narrativa em torno de Maria Padillha, uma das pomba-giras existentes no repertório das religiões afro-brasileiras, a partir da performance de uma mãe de santo específica. ), é uma senhora de setenta e cinco anos que reside atualmente em Cascavel (PR)11 11 Por questões éticas, a identidade da entrevistada será mantida no anonimato, bem como dos outros interlocutores citados. . Entre 1947 e 1963/1964, ela residiu em Assaí, tendo convivido com Hase na infância até o falecimento da avó em 1953. Para a entrevista, foi elaborado um questionário com o intuito de orientar a conversa, permitindo, entretanto, que a depoente construísse sua narrativa de forma relativamente livre. Isso é particularmente importante tendo em vista o objeto de pesquisa delineado, a construção de uma devoção por intermédio, em parte, do discurso dos fiéis (Sáez 1996SÁEZ, Oscar Calavia. (1996), Fantasmas falados: mitos e mortos no campo religioso brasileiro. Campinas: Editora da UNICAMP.:18). A entrevista com a neta de Hase foi realizada remotamente, utilizando de transmissão via Google Meet. A gravação foi posteriormente transcrita, sendo enviada para a autora e revisada por ela.

No caso dos demais devotos e dos funcionários do Cemitério Municipal de Assaí, as entrevistas foram realizadas de forma mais pontual e localizada. Foi elaborado um questionário, não obstante mais reduzido quando comparado àquele aplicado à neta de Hase, sendo utilizado nos trabalhos de campo feitos em diferentes ocasiões, ou seja, o Dia de Finados de 2010; uma ocasião em 2022 não relacionada a uma data comemorativa ou litúrgica em específico; o aniversário de falecimento de Hase em 15/10/2022 e, por fim, o Finados de 2022. As entrevistas, de modo mais espontâneo, foram relativamente curtas, com duração média de dez minutos, sendo documentadas em caderno de campo.12 12 Além do próprio túmulo e das entrevistas, foi consultado também o livro de registro de cemitérios disponível na Prefeitura Municipal de Assaí.

Do ponto de vista teórico, mobiliza-se o conceito de apropriação e tática propostos por Michel de Certeau (1994CERTEAU, Michel de. (2014), A invenção do cotidiano: artes de fazer. Petrópolis: Vozes.). Segundo o historiador, diante de um texto concebido com determinadas intencionalidades por parte de seus autores, o leitor pode apropriar-se seletivamente de elementos, relacioná-los à própria experiência e, portanto, ressignificá-los a partir de formas originalmente imprevisíveis. Entretanto, para Certeau, o texto pode ser compreendido de forma ampla, envolvendo não apenas o livro, como também saberes culinários e mesmo a organização urbana. Seria possível pensar o próprio túmulo como texto passível de ressignificação, como sugere o conceito de cultura material proposto por Rede.

Para Certeau, as apropriações seriam táticas, na medida em que o leitor, também em sentido lato, desenvolveria formas de reagir aos modelos impostos. Estes seriam derivados das próprias representações que, concebidas por um ou mais autores, remeteriam às estratégias de convencimento (ou mesmo dominação) do outro. Nesse sentido, a cultura material (e, em específico, uma sepultura) é arquitetada originalmente como representação estratégica, marcando um lugar inscrito em sua própria dimensão física, sendo aberta, contudo, às apropriações táticas, seja de um devoto de santo de cemitério, seja de um observador ordinário.

Considerando a importância da atuação dos fiéis para a construção da devoção, tendo em vista que se apropriam de objetos da cultura material e elaboram ressignificações, a presente pesquisa dialoga, em certo sentido, com a noção de etnobiografia proposta por Marco Antonio Gonçalves, Roberto Marques e Vânia Zikan Cardoso (2012GONÇALVES, Marco Antonio, MARQUES, Roberto & CARDOSO, Vânia Zikan. (2012). “Etnobiografia: esboços de um conceito”. In: M. A. Gonçalves, R. Marques & V. Z. Cardoso (orgs.). Etnobiografia: subjetivação e etnografia . Rio de Janeiro: 7letras .). Segundo os autores, o conceito opera com base em dois pilares: a experiência dos sujeitos e suas percepções culturais. Em primeiro lugar, mesmo no anonimato do “homem ordinário” de Certeau (1994CERTEAU, Michel de. (2014), A invenção do cotidiano: artes de fazer. Petrópolis: Vozes.), os atores sociais operam no interior de uma experiência particular e irredutível a uma concepção de representação coletiva, ainda que dialogando com temas sociais candentes. Em segundo, a partir dessa experiência, os sujeitos elaboram percepções - relacionadas, por sua vez, à apropriação - que compõem o emaranhado da tessitura cultural existente em determinado contexto histórico. Nesse sentido, o presente artigo busca compreender como o processo de significação foi arquitetado pelos atores em cena (Chiesa 2012CHIESA, Gustavo Ruiz. (2012), “Pai Valdo: fragmentos de uma religião em movimento”. In: M. A. Gonçalves, R. Marques & V. Z. Cardoso (orgs.). Etnobiografia: subjetivação e etnografia . Rio de Janeiro: 7letras .), longe de enquadrá-lo nos limites das religiões normativas13 13 Gustavo Ruiz Chiesa (2012) aborda o caso de Pai Valdo, um ex-padre de Salvador que, após uma série de experiências espirituais, abandonou a batina e constituiu um terreiro de Umbanda. Um dos pontos abordados pelo autor é justamente como Pai Valdo constrói significados em torno da religião afro-brasileira, distanciando-se de um sistema normativo fechado. Como será discutido mais adiante, os sentidos produzidos pelos devotos não são apenas a consequência da devoção, mas a própria (re)criação do fenômeno constantemente (Soares 2019SOARES, Hugo Ricardo. (2019), “Narrativas hagiográficas e devoção aos santos: notas sobre a (re)produção simbólica da santidade nos cemitérios”. Religião & Sociedade , vol. 39, nº 1: 36-59.).

Assaí e a constituição de uma colônia japonesa no Brasil

Delineados os objetivos, as fontes primárias e as escolhas teóricas e metodológicas que embasam o artigo, busca-se agora situar historicamente Assaí. Localizada no Norte do Paraná, a cidade foi fundada por uma empresa japonesa, a Brasil Takushoku Kumiai ブラジル拓殖組合 (literalmente, Corporação de Colonização do Brasil, geralmente denominada como BRATAC), que adquiriu do governo paranaense uma área de 18.340 alqueires. A região foi loteada com o intuito de vender propriedades para imigrantes japoneses que viriam para o Brasil. Entretanto, entre 1932 e 1939, houve a comercialização de lotes para apenas onze imigrantes diretos (Handa 1987HANDA, Tomoo. (1987), O imigrante japonês: história de sua vida no Brasil. São Paulo: T.A. Queiroz Editor, Centro de Estudos Nipo-Brasileiros.). Considerando a situação, a BRATAC reorganizou suas metas e passou a focar imigrantes japoneses já estabelecidos em outras regiões do país (principalmente nos estados de São Paulo e Paraná) que trabalhavam em sistema de parceria (Handa 1987).

Em outras regiões do país, principalmente no estado de São Paulo, o sistema de parceria era caracterizado pelo custeio parcial da viagem e da hospedagem dos imigrantes pelo proprietário de terra. Os indivíduos, geralmente integrando famílias compostas minimamente por três pessoas, eram empregados por contratos de trabalho que duravam em média três anos. Uma vez estabelecidos na propriedade do patrão, destituídos, portanto, da posse da terra, os imigrantes deveriam pagar suas dívidas por meio do trabalho (Maesima 2012MAESIMA, Cacilda. (2012), Japoneses, multietnicidade e conflito na fronteira: Londrina, 1930/1958. Niterói: Tese de doutorado em História, UFF.), geralmente nas fazendas de café, considerando que o produto foi o principal gênero de exportação no Brasil até a primeira metade dos anos 1970.

Entretanto, tendo em vista o progressivo endividamento desses trabalhadores, que deveriam comprar os víveres em armazéns costumeiramente ligados aos próprios fazendeiros, a situação tornava-se particularmente difícil. É necessário acrescentar ainda os maus tratos sofridos pelos imigrantes. Na região que viria a tornar-se Assaí na década de 1930, a BRATAC reconstruiu seu discurso publicitário e passou a direcioná-lo a esses imigrantes já estabelecidos e que passavam por situações difíceis em outras regiões do país. A iniciativa da empresa enquadra-se no que foi denominado por Célia Sakurai (2000SAKURAI, Célia. (2000), “Imigração japonesa para o Brasil: um exemplo de imigração tutelada (1908-1941)”. In: B. Fausto. Fazer a América: a imigração em massa para a América Latina. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo.:202) como “imigração tutelada”, na medida em que foram reconstruídas na região certas características da sociedade japonesa. Em primeiro lugar, a BRATAC permitiu que esses indivíduos, por intermédio da compra, fossem convertidos em proprietários de terras (André 2011 ANDRÉ, Richard Gonçalves. (2011), Religião e silêncio: representações e práticas mortuárias entre nikkeis em Assaí por meio de túmulos (1932-1950). Assis: Doutorado em História, Unesp.). Em segundo, a empresa distribuiu lotes em diferentes seções baseadas no sistema de vilas rurais japonesas (mura 村), tais como as seções Central, Peroba e Bálsamo, que foram batizadas, em geral, com nomes de árvores. Cada mura possuía à sua frente seus respectivos representantes, os murachō 村長 (Asari 1992ASARI, Alice Yatiyo. (1992), “… E eu só queria voltar ao Japão” (colonos japoneses em Assai). São Paulo: Tese de Doutorado em Geografia, USP.). Em terceiro lugar, corolário da questão anterior, foram constituídas certas estruturas de amparo a esses imigrantes em diferentes sentidos, como associações (nihonjinkai 日本人会), escolas (gakkō学校), bancos e cooperativas (Sato 1999SATO, Lilian Hissami. (1999), A imigração japonesa para o Norte do Paraná: Assaí - 1930-1980. Londrina: Especialização em História Social, UEL.).

Tendo em vista esses empreendimentos, foram criadas em Assaí as condições mínimas para que as famílias reconstruíssem, a despeito das diferenças culturais existentes no Brasil, certas características do universo pré-migratório japonês. Não se tratava de um transplante das estruturas preexistentes, considerando as características particulares da sociedade receptora, mas de uma reconstrução baseada nessas próprias diferenças (André 2011 ANDRÉ, Richard Gonçalves. (2011), Religião e silêncio: representações e práticas mortuárias entre nikkeis em Assaí por meio de túmulos (1932-1950). Assis: Doutorado em História, Unesp.). De qualquer forma, Assaí foi constituída como uma comunidade nipônica com características distintas quando comparada a outras regiões do Brasil com presença de japoneses e descendentes, ainda que houvesse paralelos com outros locais como Uraí, também no Paraná, e Bastos, em São Paulo. Isso se refletia na preponderância do uso da língua japonesa no local, superando a média nacional (Suzuki 1969SUZUKI, Teiti. (1969), The Japanese immigrant in Brazil. Tokyo: University of Tokyo Press.).

Em termos religiosos, a primeira metade do século XX pode ser considerada período de “silêncio” (André 2011 ANDRÉ, Richard Gonçalves. (2011), Religião e silêncio: representações e práticas mortuárias entre nikkeis em Assaí por meio de túmulos (1932-1950). Assis: Doutorado em História, Unesp.). Segundo Takashi Maeyama (1967MAEYAMA, Takashi. (1967), O imigrante e a religião: estudo de uma seita religiosa japonesa em São Paulo. São Paulo: Dissertação de Mestrado em Sociologia Política, FESPSP.), nesse interstício, não teria havido condições para a emergência de religiões japonesas institucionalmente estabelecidas. As próprias autoridades nipônicas recomendavam que os imigrantes não realizassem proselitismo religioso no Brasil, sugerindo, por outro lado, que as famílias se convertessem ao Catolicismo. Nesse sentido, foram criados empecilhos para a imigração de monges budistas, sacerdotes xintoístas e pregadores das novas religiões japonesas.

Durante o período do silêncio religioso, houve algumas exceções no que se refere à construção de templos. A cidade de Assaí comportou duas delas, já que, em 1946, Shigeji Ikeda (1946IKEDA, Shigeji. (1946), 20º aniversário da fundação da Colônia Três Barras. S.l: s.e.), num livro comemorativo dos vinte anos de fundação da Colônia Três Barras (como era chamada a localidade originalmente), ressalta que o Templo Shoshinji, pertencente à Verdadeira Escola de Terra Pura, havia sido construído em 1939, ao passo que, em relação à Honmon Butsuryūshū, havia um grupo de leitura.14 14 A Honmon Butsuryūshū, constituída no final do século XIX japonês, foi criada por Seifū Nagamatsu, também conhecido como Nissen Shōnin. Trata-se de uma vertente budista que enfatiza a necessidade de recitar o daimoku 題目, isto é, o namu myohō rengekyô 南無妙法蓮華經 (literalmente, “eu me refugio no Sutra do Lótus”) com o intuito de alcançar a libertação. A Honmon foi originada a partir da Escola Nichiren que, assim como a Verdadeira Escola de Terra Pura, foi constituída no século XIII. O Sutra do Lótus é um dos principais corpus textuais do Budismo, sendo bastante difundido no Japão, afirmando, principalmente, que todos os seres poderiam alcançar a libertação. Além disso, é importante ressaltar que a Honmon Butsuryūshū desempenhou papel importante no Brasil, pois constituiu o primeiro templo institucionalmente estabelecido nas imediações de Lins (SP) nos anos 1930. O monge à frente do local foi Genjū Ibaragui, que imigrou para o Brasil em 1908 no navio Kasato Maru. Ele é considerado pelos adeptos um dos fundadores da Honmon Butsuryūshū em território brasileiro e, por isso, passou a ser cultuado em templos da escola paralelamente aos patriarcas da religião (Nakamaki 1993; Elias 2016). É válido ainda ressaltar que a emergência de templos ligados a determinadas vertentes encontra-se relacionada à presença de devotos desses grupos em Assaí, que provavelmente vieram do Japão com esse repertório religioso. De fato, tanto a Verdadeira Escola de Terra Pura quanto a Nichiren (da qual a Honmon Butsuryūshū faz parte) são até hoje dois dos ramos mais populares do Budismo no Japão. No período da imigração, a influência budista encontrava-se, sobretudo, nas áreas rurais (Usarski 2002bUSARSKI, Frank. (2002b), “O Budismo no Brasil: um resumo sistemático”. In: F. Usarski, O Budismo no Brasil . São Paulo: Editora Lorosae .), principal lócus do qual os imigrantes deslocaram-se nos primeiros anos desse movimento populacional.

O Cemitério de Assaí

O Cemitério de Assaí é uma necrópole bastante particular quando comparada às demais existentes no Brasil. Considerando que a cidade foi originalmente fundada a partir da ação de uma companhia japonesa, o cemitério em questão, concebido em 1934 (dois anos depois da fundação de Assaí em 1932), apresenta certo padrão de uma necrópole étnica (André 2011 ANDRÉ, Richard Gonçalves. (2011), Religião e silêncio: representações e práticas mortuárias entre nikkeis em Assaí por meio de túmulos (1932-1950). Assis: Doutorado em História, Unesp.). De fato, embora não exista uma estatística precisa, há túmulos de famílias não descendentes, mas que constituem minoria numérica quando comparados àqueles pertencentes a grupos nipo-brasileiros. Isso é diferente, por exemplo, de cidades como Londrina (PR), região de caráter multiétnico, em que o Cemitério São Pedro também comporta sepulturas de japoneses e descendentes, porém de forma balanceada em relação a outros segmentos.

A necrópole em Assaí, por outro lado, aproxima-se de cemitérios de cidades como Uraí e Álvares Machado (SP), ambas fundadas por japoneses, em que há preponderância de túmulos étnicos. No Cemitério de Assaí, é comum a presença de sepulturas com inscrições em japonês, algumas delas ao lado de dizeres em português, embora não seja a regra. Além disso, não é incomum a utilização nesses túmulos de brasões de duas ordens: em primeiro lugar, os kamon 家紋, símbolos em formato ovalado remetendo ao pertencimento familiar dos falecidos (Morikawa 2009MORIKAWA, Inês Kiyomi Koguissi. (2009), Kamon de famílias com ascendência japonesa em Assaí (PR): um estudo a partir da escola. Londrina: Especialização em Religiões e Religiosidades, UEL.); em segundo, brasões que indicam a relação da família com alguma religião japonesa ou mesmo divisões de escolas no caso do Budismo.

Tanto as preferências linguísticas quanto a mobilização de brasões são dados importantes, pois indicam que a identidade ostentada nesses jazigos enfatiza o vínculo com o Japão. A representação é voltada para dentro da comunidade (ou mesmo do grupo familiar), não para fora. Isso é condizente com a formação em Assaí de uma colônia que buscava reproduzir no Brasil os elementos das comunidades rurais nipônicas. Uma antiga residente de Assaí, Naomi Saiki, ressalta que começou a aprender a língua portuguesa apenas com onze anos, na medida em que o japonês era a base de comunicação no interior da estrutura social assaisense (Luiz 2022LUIZ, Leonardo Henrique. (2022), O espírito de Yamato: o Xintoísmo de Estado e o Kyōiku Chokugo na formação do nacionalismo japonês e a imigração para o Brasil (1890-1980). Porto Alegre: Editora Fi.). Também em Assaí, a própria interlocutora 1 afirma que, quando criança, comunicava-se em japonês em esfera doméstica, utilizando o português apenas na escola, tendo em vista que a primeira língua era um valor para o avô, marido de Kiku Hase (Entrevista com interlocutora 1, neta de Kiku Hase, 2022Entrevista com interlocutora 1, neta de Kiku Hase, 2022.). Entretanto, no decorrer das gerações, houve decréscimo da proficiência linguística entre nipo-brasileiros, a ponto de haver membros de terceira e quarta geração que não mais falam, leem ou escrevem em japonês, o que também ocorre em diferentes regiões do país

Apesar da característica étnica presente no Cemitério de Assaí, isso não quer dizer que se trate de uma necrópole homogênea. Há diversos tipos tumulares que podem ser discriminados em quatro categorias: 1) sepulturas budistas, contendo arquitetura específica (dotada, geralmente, de uma longa saliência vertical), passagens de sutras, brasões etc.; 2) sepulturas católicas; 3) sepulturas híbridas, articulando componentes geralmente budistas e cristãos e, por fim, 4) sepulturas que não apresentam indícios de pertença religiosa (André 2011 ANDRÉ, Richard Gonçalves. (2011), Religião e silêncio: representações e práticas mortuárias entre nikkeis em Assaí por meio de túmulos (1932-1950). Assis: Doutorado em História, Unesp.).

Camadas discursivas: estrato budista

No presente item, busca-se analisar o que será denominado como primeira “camada discursiva” que envolve o fenômeno analisado, referente ao estrato budista. O túmulo de Hase encontra-se na porção sudoeste do Cemitério de Assaí, relativamente próximo à entrada da necrópole. Na figura 1, verifica-se uma fotografia da sepultura em questão. Trata-se de um jazigo em granito marrom, mas que não remete à arquitetura comum de um túmulo budista, com uma longa saliência que se destaca. Há quatro indivíduos sepultados, como indicado pelos nomes dos falecidos, dois deles inscritos na própria pedra (nas partes esquerda e direita), ao passo que os restantes se encontram indicados em placas de metal em língua portuguesa. Além disso, há três retratos em preto e branco emoldurados em metal. Na parte central e superior da sepultura, também grafada verticalmente na pedra, percebe-se a seguinte inscrição em japonês: namu amithaba (vide introdução); logo abaixo, horizontalmente, apresenta-se o nome da família também em japonês: Hase ke 長谷家, isto é, família Hase. À frente do túmulo, há recipientes também em granito para a inserção de flores. Um pouco mais abaixo, na parte esquerda, nota-se a presença de um pequeno cano de água. No patamar inferior do túmulo, dois nichos para a queima de velas e talvez incensos - embora isso não tenha sido observado nas visitas

Os componentes que caracterizam o túmulo da família Hase oferecem indícios para compreendê-lo como uma espécie de narrativa que, como tal, remete a certa história. Em primeiro lugar, trata-se de uma sepultura concebida por um grupo social com boas condições econômicas, tendo em vista a arquitetura tumular elaborada e a utilização de materiais relativamente nobres como o granito. Isso é corroborado pela própria interlocutora 1, que ressalta que o pai, filho de Kiku Hase, era, na época do falecimento da mãe, proprietário da Viação Ouro Branco, empresa bastante popular no Norte do Paraná e que dispunha de uma ampla frota de ônibus intermunicipais e mesmo interestaduais.

Figura 1:
Túmulo da família Hase

Para situar temporalmente a devoção, há dois indícios em potencial. Em primeiro lugar, é possível basear-se na própria inscrição existente na placa de metal em que é registrada a data de morte de Hase, 15/10/1953, tendo falecido com cinquenta e oito anos.15 15 A informação corresponde àquela gravada em granito na parte traseira do túmulo, mas escrita em japonês: 「昭和廿十八年十月十六日」, isto é, “Shōwa jūhachi nen jū gatsu jūrokunichi” (“Ano 28 da Era Shōwa, 16 de outubro”). Aqui, diferentemente da placa em português, aparece o dia e o mês de falecimento, mas não a idade da falecida. Utiliza-se como base o calendário imperial, que se inicia a cada ascensão ao trono de um novo imperador, no caso Shōwa 昭和 (Hirohito). A Era Shōwa começou em 1926 e, somados aos vinte e oito anos indicados, equivale a 1953. A utilização do calendário imperial é relativamente comum em língua japonesa e não significa necessariamente formas de devoção ao imperador por parte da família ou da falecida, embora o nacionalismo em torno de Hirohito tenha sido intenso entre certos grupos de imigrantes e descendentes de japoneses. Além disso, trata-se de um túmulo mais tardio quando comparado àqueles construídos nos primeiros anos de ocupação de Assaí pelos imigrantes e descendentes de japoneses.

A devoção somente começou após o falecimento de Hase, embora isso não queira dizer que coincida necessariamente com a data. As informações presentes no livro Registro do cemitério (Prefeitura Municipal de Assaí 1952-1955PREFEITURA MUNICIPAL DE ASSAÍ. (1952-1955), Registro do cemitério.) oferecem indícios adicionais para situar a periodização. Trata-se de um livro arquivado na Prefeitura Municipal de Assaí e que pertence a uma série que registra informações sobre sepulturas e falecidos, disponibilizando dados como a) numeração do túmulo, b) nome do morto, c) filiação, d) data de falecimento, e) nacionalidade e f) causa da morte.

No registro referente a Hase, consta que seus restos mortais foram transladados para a sepultura em 15/06/1971, mas, no caso, não foram deslocados de um túmulo situado em outro ponto do cemitério. Aparentemente, como se percebe na figura 1, a porção inferior do jazigo é mais antiga e construída com outro material, o concreto. O translado foi realizado entre a arquitetura antiga e a nova. Contudo, na entrevista realizada com a interlocutora 1, afirma-se que a sepultura já possuía essas características em 1953, sendo adicionados posteriormente apenas os novos sepultados, bem como as placas de metal com informações de nascimento e falecimento. Aqui as fontes oferecem leituras potencialmente distintas, embora não conclusivas. Como a história oral depende das flutuações da memória, cuja narrativa é construída a posteriori, é possível que o dado em torno da datação do túmulo seja impreciso, considerando que a interlocutora 1 era criança quando do falecimento da avó. Seja como for, o cano de água, elemento importante na análise a seguir, é bastante posterior.

Em entrevista realizada com o atual coveiro do Cemitério Municipal de Assaí, foi afirmado que, quando assumiu o cargo em 1995, a devoção já existia. A própria interlocutora 1 afirma que tomou conhecimento da devoção em 1994 enquanto trabalhava como decasségui no Japão.16 16 A rigor, a expressão decasségui remete, no próprio Japão, aos indivíduos que migram para outras regiões para trabalhar, inclusive no interior do próprio país (Elias 2016). Todavia, no Brasil, o termo tornou-se popular para designar os brasileiros que passaram a viajar, residir e trabalhar no Japão a partir dos anos 1980. Coincidentemente, a entrevistada encontrou um conterrâneo de Assaí na fábrica em que trabalhava, relatando-lhe o seguinte:

[...] vocês estão sabendo que no túmulo da sua baachan [avó] verte água no meio das pedras de mármore? O pessoal vai lá e busca, porque não é aquela água que jorra, é uma água que verte não se sabe de onde. Junta-se aquele filete de água e o pessoal colhe aquilo com uma seringa de injeção, leva para casa, e quando tem males que não têm como curar, que os médicos não dão conta, as pessoas vão lá e bebem, passam no lugar onde dói ou onde está o machucado e se curam. Então a fama de que aquela água fazia milagres tomou a região. […] (Entrevista com interlocutora 1, neta de Kiku Hase, 2022Entrevista com interlocutora 1, neta de Kiku Hase, 2022.).

Em primeiro lugar, a passagem auxilia a inserir a devoção no tempo. Em segundo, o discurso remete às principais características da devoção atual, o que será mais bem desenvolvido adiante. Em terceiro, o depoimento oferece um indício importante segundo o qual a família desconhecia a devoção até o período, isto é, o fenômeno não surgiu em função do grupo familiar, mas da própria prática dos devotos.

A interlocutora 1 trabalhou no Japão como decasségui, retornando ao Brasil apenas em 2005. Neste ano, visitou o túmulo da avó no Dia de Finados com o intuito de limpá-lo. Segundo a entrevistada, mesmo após a higienização da sepultura, o local continuou jorrando água. Na ocasião, a interlocutora encontrou uma senhora branca, loira e não descendente de japoneses que afirmava ter sido curada de uma doença estomacal após beber a água milagrosa (Entrevista com interlocutora 1, neta de Kiku Hase, 2022Entrevista com interlocutora 1, neta de Kiku Hase, 2022.). O episódio será retomado mais adiante, pois o importante no momento é situar a devoção no tempo.

Porém, a narrativa de um dos devotos entrevistados no Finados de 2022 permite recuar a temporalidade, pelo menos, até 1976, afirmando que a própria mãe, falecida há quarenta e seis anos, já conhecia o túmulo que operaria milagres. Relatos de outros fiéis apontam para a continuidade da devoção em 1985 (Entrevista com coveiro do Cemitério de Assaí, 2022Entrevista com coveiro do Cemitério de Assaí, 2022.). Em 2010, o túmulo permanecia sendo visitado pelos devotos, como é possível perceber por intermédio de um trabalho de campo realizado no Finados no período. Em 2022, o quadro permanece o mesmo, como indicado pelos ex-votos presentes na sepultura, o que será desenvolvido adiante.

A análise da devoção em termos sincrônicos, voltada sobretudo para a atualidade, encontra-se em terreno relativamente confortável. Por outro lado, a abordagem diacrônica é mais difusa, contando apenas com certos pontos no tempo (1953, 1971, 1976, 1985, 1994, 1995, 2005, 2010 e 2022) que oferecem pistas para a compreensão dessa religiosidade historicamente. A data mais antiga da qual se dispõe para periodizar a devoção é 1976, mas o fenômeno pode ser anterior. Seja como for, o ano encontra-se próximo a 1971, quando da reestruturação tumular, de acordo com o livro de registro de cemitérios, o que fortalece a hipótese de emergência da devoção nos anos 1970.

Retomando os fios da narrativa tumular, embora não possua a arquitetura de uma sepultura budista, há elementos que permitem situar o artefato no interior desse repertório religioso, inclusive em termos de escolas. O elemento central diz respeito à inscrição namu amitabha, uma variação de namu amida butsu que, como sugerido, significa “eu me refugio no Buda Amida”. Chamada de nenbutsu, essa passagem é utilizada, principalmente, nas escolas amidistas, especialmente a Verdadeira Escola de Terra Pura.

A presença do nenbutsu na sepultura de Hase é significativa, na medida em que permite situar a narrativa tumular no interior do Budismo e, também, de uma escola em particular, considerando que havia outras, inclusive em Assaí, como a Honmon Butsuryūshū.17 17 No caso dos adeptos falecidos da Honmon Butsuryūshū, os túmulos geralmente apresentam a principal recitação da escola, o daimoku. Portanto, a existência de passagens como o nenbutsu ou o daimoku oferece pistas para compreender a situação religiosa do defunto e, às vezes, da própria família, tendo em vista que são os vivos que constroem túmulos para os mortos. Outro indício importante relacionado ao pertencimento budista na narrativa tumular diz respeito ao termo hômyô 法名 utilizado antes dos nomes escritos em japonês no granito. A expressão pode ser traduzida como “nome budista”, “nome póstumo” ou mesmo “nome monástico”. No Budismo nipônico, compreende-se que, após o falecimento do indivíduo, é realizada uma série complexa de ritos que permite transformar o morto (a princípio uma entidade impura e potencialmente perigosa) num ancestral (senzo 先祖) (Fujii 1983FUJII, Masao. (1983), “Maintenance and change in Japanese traditional funerals and death-related behavior”. Japanese journal of religious studies, vol. 10, nº 1: 39-64.). Isto é, o morto converte-se numa entidade que se torna protetora da família, sendo cultuado, principalmente, nos oratórios budistas (Rambelli s.d.RAMBELLI, Fabio. (s.d.), “Home buddhas: historical processes and modes of representation of the sacred in the Japanese Buddhist family altar (butsudan)”. Japanese religions, vol. 35, nº 1-2: 63-86.). Nesse sentido, o falecido ganha um hōmyō como forma de indicar que houve a passagem de uma condição secular para monástica (Kenney & Gilday 2000KENNEY, Elizabeth & GILDAY, Edmund T. (2000), “Mortuary rites in Japan”. Japanese journal of religious studies , 27/3-7: 163-178.).18 18 É possível pensar a transformação do falecido em ancestral a partir dos conceitos propostos por Arnold Van Gennep (2011) em torno dos procedimentos de separação, liminaridade e incorporação. Trata-se de um rito de passagem, na medida em que o indivíduo é convertido numa entidade diferente de seu estado original. A princípio, durante um período de quarenta e nove dias - o que pode variar de acordo com os casos -, o sujeito seria separado da condição - mas não do local - dos viventes, vagando dentro de casa ou sobre o telhado (Fujii 1983). O falecido entraria numa situação de liminaridade e, portanto, fronteira entre o mundo dos vivos e dos mortos. Uma vez que os ritos sejam devidamente realizados, por fim, ele seria incorporado ao universo dos ancestrais.

Tendo em vista os dois indícios, é possível situar a falecida e o grupo familiar no interior do repertório da Verdadeira Escola de Terra Pura (não obstante o segundo aspecto seja utilizado em diferentes escolas). Nesse quesito, as fontes primárias de diferentes matrizes corroboram o lugar religioso da família Hase. A interlocutora 1 afirma que a avó era uma devota budista, frequentando todas as quartas-feiras o Templo Shoshinji, a mesma instituição fundada em 1939 em Assaí e ligada à Verdadeira Escola de Terra Pura. Além disso, Kiku possuía em casa um oratório budista. Segundo a entrevistada:

Todo santo dia [Kiku realizava rito diante do oratório]. Todo santo dia, e eu ia junto. Ficava sentada do lado [...]. Ela lia [sutras e hinos]. Podia dizer que era a bíblia do Higashi19 19 O Higashi Honganji é uma das duas subdivisões da Verdadeira Escola de Terra Pura, ao lado do Nishi Honganji. Trata-se de uma cisão institucional, mas não necessariamente doutrinária. [...]. Depois ela falava: namu amida butsu, namu amida butsu, namu amida butsu. Aí ela batia no [sino]. Esse era do tempo dela. (Entrevista com interlocutora 1, neta de Kiku Hase 2022Entrevista com interlocutora 1, neta de Kiku Hase, 2022.).

A narrativa oferece possibilidades interessantes, sugerindo a prática cotidiana de Kiku, seja frequentando o templo budista, seja realizando reverência doméstica aos ancestrais. Aliás, parte da recitação feita diante do oratório, namu amida butsu, é o mesmo nenbutsu inscrito na parte central da sepultura.

Camadas discursivas: estrato devocional

Atentando para outros aspectos que compõem a narrativa tumular, existe a possibilidade de perceber a forma como a sepultura foi apropriada pelos devotos da santa de cemitério. Compreendido como manifestação da cultura material, o jazigo articula a dimensão tangível e intangível, na medida em que expressa determinados sistemas simbólicos, como o próprio Budismo, como visto, mas também permite a articulação de outros. Isso demonstra a possibilidade de constituição de diferentes significados a partir de um único artefato, que se converte num canal de articulação entre distintos indivíduos e grupos, produzindo múltiplas e, às vezes, contraditórias camadas de sentido (Rede 1996REDE, Marcelo. (1996), “História a partir das coisas: tendências recentes nos estudos de cultura material”. Anais do Museu Paulista, 4: 265-282.).

Essa tessitura de significados nem sempre permanece intangível, manifestando-se também na dimensão propriamente material, remetendo a práticas em potencial. Como visto na figura 1, na parte intermediária da sepultura de Hase, há um cano que permite o escoamento de água que jorra de dentro do túmulo. Não é pertinente à presente pesquisa saber a proveniência do líquido, mas sim os sentidos atribuídos pelos devotos, bem como os usos da substância. Como é possível observar com mais detalhes na figura 2, além do cano, nota-se que a água deixou, ao longo do tempo, marcas sobre a parte inferior da sepultura, diferentemente de outras áreas do objeto. Não é possível saber precisamente quem anexou o cano, mas não teriam sido os familiares (Entrevista com interlocutora 1, neta de Kiku Hase, 2022Entrevista com interlocutora 1, neta de Kiku Hase, 2022.). A neta afirma que, provavelmente, foram os devotos que o fizeram, havendo uma outra camada de periodização referente à cultura material: o túmulo jorrava água desde, pelo menos, 1976, mas o cano foi inserido após 2005, quando a interlocutora visitou a sepultura ao retornar do Japão. A própria modificação remete à agência do fiel em relação à prática devocional, na medida em que a água jorraria antes da anexação do objeto. Na primeira camada discursiva, há componentes budistas inseridos pela família; na segunda, elementos devocionais que remetem à ação dos fiéis.

Figura 2:
Cano de água inserido no túmulo

As entrevistas realizadas permitiram entrever alguns dados sociográficos, geográficos e devocionais, possibilitando adicionar alguns aspectos para complexificar a etnobiografia dos interlocutores. Em trabalhos de campo realizados em quatro ocasiões (duas em 2010 e três em 2022), foi possível entrevistar in loco alguns indivíduos ligados de diferentes formas à prática devocional. Em 2022, o coveiro afirmou que, desde 1995, quando assumiu a função junto à necrópole, observa a visita de diversas pessoas ao túmulo. De acordo com ele, a maioria desses devotos não é descendente de japoneses, o que constitui dado importante, uma vez que sugere que, a despeito das características nipônicas do túmulo, a apropriação é realizada, sobretudo, fora do círculo étnico (Entrevista com coveiro do Cemitério de Assaí, 2022Entrevista com coveiro do Cemitério de Assaí, 2022.). Como afirmado, quando da visita da interlocutora 1 ao túmulo em 2005, a devota encontrada era uma não descendente e que afirmava ter sido curada de uma doença gástrica. Dos dezenove devotos observados no aniversário de morte e no Finados de 2022, apenas quatro eram nipo-descendentes, havendo quinze não descendentes (Entrevista com coveiro do Cemitério de Assaí, 2022Entrevista com coveiro do Cemitério de Assaí, 2022.).

Outro dado relevante diz respeito à proveniência dos devotos, que se deslocam de outras cidades do Paraná (foram citadas Maringá, Londrina, Apucarana e Curitiba) e mesmo do Estado de São Paulo (Entrevista com coveiro do Cemitério de Assaí, 2022Entrevista com coveiro do Cemitério de Assaí, 2022.).20 20 Os locais citados são caracterizados por forte presença nipo-brasileira, embora os próprios devotos de Hase não sejam, em sua maioria, japoneses e descendentes. No caso paranaense, a presença étnica é mais visível na região norte (Maesima 2012), embora Curitiba também tenha recebido grupos japoneses na primeira metade do século XX, como sugerem Cláudio Seto e Maria Helena Uyeda (2002). O estado de São Paulo, por sua vez, especialmente a região oeste, foi o principal lócus para o qual a imigração dirigiu-se inicialmente (Lesser, 2001). A questão também foi afirmada por um devoto de Hase em 2010Entrevista com devoto de Kiku Hase, 2010., um idoso não descendente entrevistado durante o Dia de Finados desse ano. O público externo visita a necrópole com conhecimento da devoção à santa, buscando informações entre os funcionários do cemitério sobre a localização da sepultura (Entrevista com coveiro do Cemitério de Assaí, 2022Entrevista com coveiro do Cemitério de Assaí, 2022.). Em primeiro lugar, como visto, existe preponderância de não descendentes. Em segundo, não obstante o túmulo de Hase se encontre no Cemitério de Assaí, a devoção envolve uma espacialidade mais ampla, abarcando o Paraná e as cidades paulistas. Um devoto chegou a citar casos do Ceará (Entrevista com coveiro do Cemitério de Assaí, 2022Entrevista com coveiro do Cemitério de Assaí, 2022.).

A extensão geográfica e populacional dos devotos dos santos de cemitério pode ser relativamente grande. No caso da cidade paulista de Maracaí, a devoção ao Menino da Tábua passou a atrair romeiros que são provenientes de diversas cidades mineiras, paulistas e paranaenses (Andrade 2015ANDRADE, Solange Ramos de. (2015), Santo de cemitério: a devoção ao Menino da Tábua (1978-1994). Maringá: EDUEM.). Em Curitiba, a figura de Maria Bueno também atrai devotos de múltiplas regiões. Tanto no caso de Maria Bueno quanto do Menino da Tábua, é notável a repercussão que ambos os santos de cemitério ganharam, aparecendo em canções, livros e outras obras culturais (Andrade 2015; Lima 2007LIMA, Andrea de Alvarenga. (2007), “A saga de Maria Bueno: um retrato da alma de Curitiba”. Psicologia e argumento, vol. 25, nº 49: 173-185.). Embora Kiku Hase não alcance essa expressão midiática, não tendo sido encontradas menções à sua personagem em outras fontes primárias, a atração de fiéis de múltiplas espacialidades encontra eco nas demais manifestações de santidade de cemitério.

A geografia da devoção pode ser pensada também de outras formas. Como ressalta Sofia Boesch Gajano (2002GAJANO, Sofia Boesch. (2002), “Santidade”. In: J. Le Goff & J-C. Schmitt. Dicionário temático do Ocidente medieval. São Paulo: EDUSC; Imprensa Oficial do Estado.) considerando santos oficiais da Igreja Católica, é possível destacar o local de passagem dessas entidades em vida (ou, pelo menos, em suas narrativas hagiográficas), a transformação mística dos lugares e o local do corpo ou mesmo das relíquias como ponto de peregrinação. Os dois últimos aspectos são relevantes para a compreensão da santidade de cemitério, apesar da distância temporal entre os santos medievais de Gajano e o caso de Hase na passagem dos séculos XX para o XXI. Primeiramente, mesmo após a morte, a falecida teria sido capaz de transmutar a sepultura em fonte de água. Em segundo lugar, o túmulo converteu-se em lugar de peregrinação envolvendo diferentes cidades paranaenses e paulistas.

Como destacado, a devoção ao Menino da Tábua, a Maria Bueno e a Kiku Hase constituem polos significativos de atração populacional numa escala geográfica que transcende a cidade que comporta seus túmulos. Contudo, enquanto o caso de Hase permanece num percurso mais informal e aparentemente invisível considerando veículos de comunicação como a imprensa, a devoção em torno do Menino da Tábua foi construída a partir da organização formal de romarias, embora não pela Igreja. Os fiéis deslocam-se para Maracaí, seja de forma particular, seja por intermédio da ação de grupos de turismo religioso, sugerindo que a devoção alcançou um nível de organização mais amplo (Andrade 2015ANDRADE, Solange Ramos de. (2015), Santo de cemitério: a devoção ao Menino da Tábua (1978-1994). Maringá: EDUEM.), entrando formalmente no mapa religioso e marcando um lugar em sentido certeauniano. A santidade de Hase, por sua vez, é mais fragmentária e descontínua, deixando poucos lugares de devoção que possam ser identificados e analisados.

Seja como for, é importante pensar esses deslocamentos espaciais não como uma migração temporária de caráter profano, mas, antes, como rito religioso propriamente dito e que é orientado por aspectos culturais. No caso dos santos oficiais, há um repertório institucional que informa os procedimentos que envolvem a peregrinação. Em relação aos santos de cemitério, ainda que haja apropriação de aspectos da santidade institucional, as noções pertencentes às mitologias mínimas embasam os deslocamentos geográficos. Os devotos peregrinam para locais em que reconhecem, a partir de múltiplas fontes, a realização de milagres - como a cura de enfermidades - ou que permitiriam o fortalecimento da fé. A peregrinação implica o sacrifício de certo bem-estar, na medida em que o devoto precisa deslocar-se a longas distâncias, renunciando aos afazeres cotidianos - incluindo o trabalho (Andrade 2015ANDRADE, Solange Ramos de. (2015), Santo de cemitério: a devoção ao Menino da Tábua (1978-1994). Maringá: EDUEM.) - para dedicar-se à busca pelo lugar miraculoso (Turner & Turner 1978TURNER, Victor & Turner, Edith. (1978), Image and pilgrimage in Christian culture: anthropological perspectives. Oxford: Blackwell.). No caso de Hase, a sociografia preliminar permite delinear alguns componentes da prática devocional. Um dos elementos que aparece nas entrevistas diz respeito à proveniência da água, que seria gerada considerando a ação da própria Kiku, na medida em que o fluxo sairia de seu lado do túmulo. A ênfase sobre o lado de proveniência do líquido é sintomática, ressaltando as qualidades miraculosas que caracterizam a santa.

Na mística que envolve os santos oficiais ou cemiteriais, o corpo desses indivíduos é visto como local de manifestação do sagrado, conectando o divino ao terreno. Por isso, existem noções como a incorruptibilidade do corpo dos santos, bem como a preservação especial de relíquias (Gajano 2002GAJANO, Sofia Boesch. (2002), “Santidade”. In: J. Le Goff & J-C. Schmitt. Dicionário temático do Ocidente medieval. São Paulo: EDUSC; Imprensa Oficial do Estado.). No caso de Hase, embora a questão da incorruptibilidade e das relíquias esteja ausente das narrativas, é o corpo da imigrante, bem como sua localização precisa do lado esquerdo da sepultura, que permitiria transmutar o espaço em fonte de água.

Outro aspecto que é ressaltado nas entrevistas diz respeito à forma de coleta e aos usos da água. De acordo com o coveiro atualmente à frente do cemitério, o fluxo do líquido varia de acordo com as épocas, sendo ora mais intenso, ora mais esporádico. De qualquer forma, um ponto recorrente é que a água jamais secaria, mesmo nos períodos de estiagem. Dependendo da ocasião, a água é ingerida, coletada em recipientes, como copos e garrafas, ou por intermédio de esponjas umidificadas e seringas. Algumas pessoas levam essa água embora e a aplicam de diferentes formas. Seja como for, segundo os entrevistados, a água é aplicada nas áreas do corpo comprometidas por ferimentos ou enfermidades, como pernas, braços, barriga e olhos. Um dos devotos observados no Finados de 2022, sem parar no túmulo, apenas passou a mão pela fonte de água, molhando os dedos, levantando a camisa e aplicando o líquido nas costas (Entrevista com coveiro do Cemitério de Assaí, 2022Entrevista com coveiro do Cemitério de Assaí, 2022.).

Em relação à cura, as narrativas ganham contornos mais complexos, uma vez que o entrevistado de 2010 enfatizou a existência de uma espécie de reversão de milagre: uma mulher curada do “pescoço torto” teria debochado da santa após a cura milagrosa, o que a fez retornar à condição anterior. Andrade (2015ANDRADE, Solange Ramos de. (2015), Santo de cemitério: a devoção ao Menino da Tábua (1978-1994). Maringá: EDUEM.) enfatiza a relação contratual estabelecida entre devoto e entidade, havendo implicações da quebra desse compromisso. A reversão do milagre inerente à relação contratual não nega seu princípio motriz. Pelo contrário, o poder miraculoso é discursivamente reforçado, ressaltando o efeito de legitimidade da narrativa.21 21 Claude Lévi-Strauss (1970), analisando práticas de cura realizadas por povos originários americanos, ressalta que sua eficácia é derivada da inserção num sistema simbólico em que não apenas os curados acreditam no tratamento, bem como os próprios grupos sociais que consagram o fenômeno. Utilizando o raciocínio proposto pelo antropólogo, para os devotos de Hase, o problema seria o sofrimento em si e destituído, portanto, de significado, isto é, a dor pela dor. No entanto, ao solicitar a cura para a entidade, a dor seria ressignificada no interior de um sistema simbólico definido pelas mitologias mínimas em torno dos santos de cemitério.

A reversão de milagre é acompanhada por outras narrativas que sublinham o poder da santa de cemitério, que teria sido capaz de curar mesmo um devoto cego (Entrevista com devoto, 2010Entrevista com devoto de Kiku Hase, 2010.). Os fios discursivos podem remeter, hipoteticamente, a referências cristãs presentes no Novo Testamento, em que Jesus teria curado um cego (dois, no caso do Evangelho de Marcos) a partir da fé (Marcos 10:46-52; Mateus, 20:29-34; Lucas 18:35-43), embora não haja referência, no caso em específico, à água como substância miraculosa. Entretanto, é necessário ressaltar que as referências que embasam as práticas devocionais não operam como arquétipo de um inconsciente coletivo, cujo efeito generalizador implica em uma a-historicidade. O fenômeno dos santos de cemitério constitui uma expressão religiosa geralmente não sistematizada em termos institucionais, o que poderia ser chamado de fenômeno de código aberto (Sáez 1996SÁEZ, Oscar Calavia. (1996), Fantasmas falados: mitos e mortos no campo religioso brasileiro. Campinas: Editora da UNICAMP.). Nesse sentido, a questão poderia ser enquadrada na noção de mitologia mínima, já que seria codificada por elementos de um repertório fragmentário, difuso e não necessariamente sistematizado e que, mesmo assim, ofereceria um fundo cultural para permitir a emergência de práticas diferenciadas (Sáez 1996SÁEZ, Oscar Calavia. (1996), Fantasmas falados: mitos e mortos no campo religioso brasileiro. Campinas: Editora da UNICAMP., 2009SÁEZ, Oscar Calavia. (2009), “O que os santos podem fazer pela Antropologia?”. Religião & Sociedade , vol. 29, nº 2: 198-219.). Por isso, a narrativa de devotos de diferentes estratos da sociedade, operando com matrizes religiosas igualmente variadas, adiciona novas e aparentemente contraditórias camadas à devoção. Portanto, tratam-se de sentidos construídos partindo de apropriações socialmente localizadas e não de um fundo mental ou psicológico comum que perpassaria a sociedade.

Outra potencial referência da devoção cemiterial diz respeito à atribuição de poderes miraculosos à água (Andrade 2015ANDRADE, Solange Ramos de. (2015), Santo de cemitério: a devoção ao Menino da Tábua (1978-1994). Maringá: EDUEM.). Não obstante essas concepções estejam presentes em outros países, no Brasil elas são bastante populares. É o caso da água benta no interior do repertório católico, lembrando que um dos padres mais populares no cenário nacional, Marcelo Rossi, realizava uma espécie de benzimento do líquido por intermédio de transmissões radiofônicas. Outra possível referência remete à água fluidificada no tocante ao universo espírita, que ganhou popularidade em território brasileiro, destacando-se figuras como o médium Chico Xavier. Mesmo no interior do Budismo japonês, há utilização da água como oferenda diante dos oratórios e em determinados ritos em certas escolas.22 22 Na própria Honmon Butsuryūshū, há uma prática em torno do okōzui 香水 (ou okōsui), água que ganharia propriedades especiais. O líquido, situado no altar do templo, é submetido a uma sessão de recitações do daimoku. Sobre o okōzui, ver Aleksânder Nakaóka Elias (2016). Embora seja difícil precisar as referências que mobilizam as ações dos fiéis da santa de cemitério em questão, a prática ocorre dentro de um universo de expressões religiosas em que a água desempenha papel importante.

No caso de Hase, parece ter sido o afluxo de água que criou condições para a emergência dessa santidade, tendo em vista os diferentes estratos religiosos existentes no Brasil. Mesmo entre outros santos de cemitério, como o Menino da Tábua, a água desempenha papel importante na devoção. Ainda que seu túmulo não seja uma fonte de água espontânea, o líquido passou a ser canalizado pela Prefeitura de Maracaí com o intuito de permitir que os fiéis o coletassem como uma substância potencialmente miraculosa pelo fato de passar por um local sagrado (Andrade 2015ANDRADE, Solange Ramos de. (2015), Santo de cemitério: a devoção ao Menino da Tábua (1978-1994). Maringá: EDUEM.). Seja canalizada ou espontânea, a água é fundamental nessas devoções.

As práticas em torno dos poderes miraculosos da santa de cemitério em questão são também refletidas na forma de ex-votos deixados pelos fiéis no túmulo. Eles são constituídos por pequenas placas de metal em que o devoto agradece o milagre realizado (havia duas placas em 2022). Na figura 3, em caixa alta, lê-se “AGRADEÇO A DONA KIKO PELAS GRAÇAS ALCANÇADAS S-N-P”. Segundo o coveiro entrevistado, havia mais ex-votos nesse sentido, mas, como se tratam de placas de metais, acabaram sendo furtadas. A interlocutora 1 afirma que, no Finados de 2005, havia encontrado duas placas.

Figura 3:
Placa de agradecimento

Os ex-votos implicam não apenas em leituras imateriais sobre a cultura material, mas na própria transformação desta, tendo em vista um princípio dinâmico. Por isso, o túmulo analisado não constitui objeto estático, alterando-se, por outro lado, de acordo com o fluxo de devotos, que visitam o local com mais assiduidade no Dia de Finados. É possível afirmar que as mitologias mínimas em torno das santidades cemiteriais oferecem base para a constituição da cultura imaterial, articulada a partir de concepções e saberes fragmentários e descontínuos, mas que influem de diferentes formas sobre a materialidade. Esta se manifesta tanto no túmulo propriamente dito quanto nos ex-votos, bem como na própria performance - como será discutido mais adiante - dos devotos quando da interação para com o objeto.

Outro aspecto interessante referente aos ex-votos diz respeito à linguagem utilizada: apesar da pouca variação discursiva, mais voltada para o estilo de letra (cursiva, forma, caixa alta ou baixa), todos eles encontram-se escritos em português. Não se verificou, por exemplo, placas em japonês, distanciando-se, portanto, da própria linguagem verbal utilizada no túmulo. Os ex-votos refletem talvez a própria composição dos devotos, cuja maioria, na sociografia delineada, são não descendentes de japoneses. Por fim, nota-se que os fiéis utilizam somente as iniciais de seus respectivos nomes, mantendo-se no anonimato.

Fontes de santidade

Para além da arquitetura tumular e dos objetos deixados sobre a sepultura, é possível analisar outra camada discursiva: as narrativas produzidas sobre a santificação. Tratam-se exclusivamente de relatos produzidos oralmente e que, portanto, circulam de boca em boca. Contudo, isso não quer dizer que não possuam certa eficácia, na medida em que, como visto, a extensão geográfica da prática é expressiva. É a própria oralidade que não apenas comunica a devoção, mas a legitima socialmente como prática eficaz para a resolução de problemas, como sugere Lévi-Strauss. Os relatos sobre Hase giram em torno de duas matrizes: os feitos em vida e as circunstâncias de morte. Seja como for, embora haja certos paralelos - bem como desvios - para com os modelos eruditos de santificação do universo católico, em geral os códigos que permitem a emergência dessas santidades cemiteriais enquadram-se, como afirmado, na noção de mitologia mínima definida por Sáez (1996SÁEZ, Oscar Calavia. (1996), Fantasmas falados: mitos e mortos no campo religioso brasileiro. Campinas: Editora da UNICAMP., 2009SÁEZ, Oscar Calavia. (2009), “O que os santos podem fazer pela Antropologia?”. Religião & Sociedade , vol. 29, nº 2: 198-219.).

No primeiro caso, destaca-se a narrativa produzida pelo coveiro atual e por uma devota no Finados de 2022, afirmando que Hase teria sido uma benzedeira e que teria auxiliado diversas pessoas. Como será destacado adiante, há aparente contradição entre os relatos e a biografia da personagem. Isso, aliás, é uma das características dos próprios textos hagiográficos no caso dos santos oficiais (Gajano 2002GAJANO, Sofia Boesch. (2002), “Santidade”. In: J. Le Goff & J-C. Schmitt. Dicionário temático do Ocidente medieval. São Paulo: EDUSC; Imprensa Oficial do Estado.), mas o importante é a história da devoção como uma espécie de produção dinâmica de mitos. De qualquer forma, na narrativa, há o deslocamento da personagem de devota budista para benzedeira, embora não seja destacada no relato a matriz religiosa utilizada para a realização das bênçãos. Nessa narrativa, o que importa são os feitos em vida, que teriam condicionado a transformação de Hase em santa de cemitério. A construção dessa santidade taumatúrgica tem raízes, por sua vez, na Europa do final do século XV (Gajano 2002).

O segundo caso, entretanto, fundamenta-se nas circunstâncias de morte para explicar a origem da santa. De acordo com o devoto entrevistado no Finados de 2010, Hase teria sofrido muito antes do trespasse, motivo pelo qual teria sido convertida numa defunta santificada. As informações presentes no túmulo propriamente dito oferecem poucas pistas nesse sentido, apenas indicando que Hase teria falecido aos cinquenta e oito anos. O próprio livro Registro do cemitério não oferece vestígios interessantes nesse sentido, anotando apenas que se tratou de um falecimento sem assistência médica.

Na construção dos santos de cemitério, é relativamente comum a devoção segundo a qual as mortes violentas ou em circunstâncias especiais criariam condições para a constituição dessas figuras sagradas. Mesmo indivíduos cujas biografias não se enquadram num padrão de santidade em vida podem converter-se em santos em razão das condições de morte (Valladares1972VALLADARES, Clarival do Prado. (1972), Arte e sociedade nos cemitérios brasileiros. Volume 1. Rio de Janeiro: Conselho Federal de Cultura.; Andrade 2010ANDRADE, Solange Ramos de. (2010), “O culto aos santos: a religiosidade católica e seu hibridismo”. Revista brasileira de história das religiões, 7: 131-145.).

Entre os santos oficiais da Igreja Católica, um dos modelos para a produção desses mortos muito especiais relaciona-se ao martírio. A narrativa base diz respeito à própria morte de Cristo em circunstâncias extremas, tendo sido denunciado por um de seus discípulos, crucificado em meio a ladrões e morrido após longo sofrimento. Os santos oficiais caracterizados pelo martírio seguiriam esse padrão, tendo como fundamento o sacrifício enquadrado numa conduta cristã. O martírio constitui um hagiotema que caracteriza as hagiografias dos santos oficiais. Segundo Soares (2019SOARES, Hugo Ricardo. (2019), “Narrativas hagiográficas e devoção aos santos: notas sobre a (re)produção simbólica da santidade nos cemitérios”. Religião & Sociedade , vol. 39, nº 1: 36-59.), o conceito pode ser compreendido como microunidade hagiográfica que remete a um episódio exemplar que desempenha o papel de matriz para a construção de um modelo a ser seguido. No caso dos santos de cemitério, o martírio é conceitualmente ressignificado, envolvendo mortes em circunstâncias peculiares, ainda que não necessariamente inseridas numa vida cristã (Andrade 2010ANDRADE, Solange Ramos de. (2010), “O culto aos santos: a religiosidade católica e seu hibridismo”. Revista brasileira de história das religiões, 7: 131-145.). É por essa razão que figuras distantes do modelo eclesiástico são convertidas em sujeitos miraculosos no post mortem, malgrado a narrativa dos devotos possa inserir, posteriormente, o componente cristão do arrependimento.

O sofrimento que teria levado à morte de Hase, segundo o entrevistado de 2010, permitiria a emergência da santidade cemiterial. Porém, o martírio ganha maior complexidade no discurso de uma entrevistada no aniversário de morte da santa em 2022. A interlocutora, uma senhora evangélica na faixa dos setenta anos, afirma que, quando em vida, Kiku Hase teria sido maltratada pelo marido, que a agrediria e a manteria em cárcere num quarto e privada de água. No caso, o sofrimento infligido supostamente pelo cônjuge é enfatizado, aproximando Hase de devoções como aquelas relacionadas a Maria Bueno. No entanto, a narrativa é particularmente interessante ao adicionar a privação de água à questão do martírio, o que teria levado a santa no post mortem a curar os males justamente por intermédio do líquido.

Embora não seja possível afirmar que as narrativas constituam um reflexo da biografia dos falecidos, é notável como os temas abordados pelos devotos encontram-se parcialmente baseados em questões socialmente candentes. Sáez (1996SÁEZ, Oscar Calavia. (1996), Fantasmas falados: mitos e mortos no campo religioso brasileiro. Campinas: Editora da UNICAMP.) sugere que a devoção em torno de figuras cemiteriais como pretos velhos e pombagiras em Campinas - o que pode ser estendido a outras regiões do país - encontra condições de emergência em aspectos como o passado escravocrata brasileiro, a continuidade do racismo no país e mesmo a violência contra a mulher. No caso de Hase - e mesmo de Maria Bueno -, o último tópico ganha relevância ao revestir a devoção com camadas discursivas que envolvem a violência contra a mulher. Ainda que isso não esteja presente na biografia de Hase, é provável que esteja na experiência de vida de seus devotos, mesmo que a entrevista não ofereça maiores indícios para corroborar a hipótese.

As narrativas em torno da santidade em vida como benzedeira ou da santidade em morte pelo sofrimento contrastam com a biografia de Hase. De acordo com a interlocutora 1, a avó não teria sido uma benzedeira ou desempenhado outra atividade cotidiana que demandasse um contato excepcional para com o sagrado, com exceção das rotineiras quartas-feiras no templo budista e do culto aos ancestrais no oratório doméstico. Além disso, não houve violência doméstica. A interlocutora testemunhou o falecimento de Hase, que teria sido vítima de um infarto fulminante:

Ela morreu em 23/10/1953. [...] foi em uma quarta-feira, que ela costumava ir na igreja [templo], ela era muito devota [...]. Tomou café da manhã, levantou da mesa, minha mãe continuou na mesa e ela foi até a pia lavar a xícara dela e minha mãe percebeu que ela se sacudiu em pé e achou estranho. Minha mãe a viu derrubar a xícara na pia e ela cair no chão. Eu estava no meu quarto e escutei a mãe chamar: [...] a baachan, a baachan! Aí meu pai viu o que estava acontecendo e carregaram ela para dentro do carro e sumiram. [...] Foi uma morte [...] feliz, eu só a escutei puxar o fôlego bem grande, e pronto, não ouvi mais nada. [...] Ela foi assim, feito um passarinho. Foi uma santa criatura. [...] (Entrevista com interlocutora 1, neta de Kiku Hase, 2022Entrevista com interlocutora 1, neta de Kiku Hase, 2022.).

Embora a narrativa possua componentes religiosos - “santa criatura” e “foi [...] feito um passarinho”, isto é, como um anjo -, o relato da interlocutora 1 diz respeito a uma morte rápida e de pouco sofrimento. A narrativa afasta-se dos enunciados geralmente atribuídos à santidade cemiterial feminina que envolvem, com frequência, assassinato, infortúnios e outras violências. Entretanto, a oposição entre a biografia (que também constitui uma representação a posteriori) e as narrativas dos devotos não torna as últimas ilegítimas. Afinal, é o conjunto das representações que arquiteta o fenômeno da santidade (Sáez 1996SÁEZ, Oscar Calavia. (1996), Fantasmas falados: mitos e mortos no campo religioso brasileiro. Campinas: Editora da UNICAMP.). Onde morre a imigrante, nasce a santa.

A santidade atribuída a Hase, portanto, congrega diferentes condições que teriam levado à constituição dessa personagem miraculosa. Não há um padrão discursivo “puro”, congregando, por outro lado, diferentes narrativas que não concorrem, no campo simbólico, por hegemonias ou efeitos de verdade, como seria o caso de santos em esfera institucional. Nesse sentido, cada devoto de Hase mobiliza matrizes discursivas variadas, e que possuem diferentes historicidades, para explicar a emergência de sua santidade.

Possibilidades interpretativas

Como visto, a materialidade do túmulo, os objetos deixados e as narrativas orais permitem construir certas análises a respeito do fenômeno. Com base nisso, é possível inferir interpretações que conectam a devoção na santidade de Hase a questões mais amplas sobre a dinâmica religiosa entre japoneses, descendentes e não descendentes no Brasil.

Existe um hiato entre o Budismo e a devoção em torno da santa. O primeiro situa-se na própria posição de Hase e sua família no interior do repertório de uma religião trazida pelos imigrantes japoneses. A segunda, por sua vez, possui contornos menos precisos, mas sugere que, do ponto de vista dos devotos, pouco importa a matriz do santo, desde que seus milagres sejam operacionais (Andrade 2015ANDRADE, Solange Ramos de. (2015), Santo de cemitério: a devoção ao Menino da Tábua (1978-1994). Maringá: EDUEM.), considerando a flexibilidade das mitologias mínimas.23 23 Embora sejam mais associados ao repertório do Catolicismo, os santos de cemitério envolvem figuras que flertam com outros fundos religiosos, como as devoções de matriz afro-brasileira, como sugere Sáez (1996) ao lidar com personagens como pomba-giras e pretos velhos. O Budismo não criou empecilhos para sua santificação. A rigor, ele não importa para os devotos, que ignoram os códigos dessa religião. Nesse sentido, não houve algo como um sincretismo, em que os elementos budistas foram minimamente integrados pelos fiéis, mas sim a apropriação do túmulo para a construção da devoção.

Além disso, há paralelo entre a santificação de Hase e outros casos documentados pela literatura acadêmica sobre o fenômeno religioso entre imigrantes japoneses no país. Apenas para citar um caso, como visto, o primeiro monge budista japonês no Brasil foi Genju Ibaragui, que chegou ao país como imigrante em 1908, não obstante tenha assumido a frente de um templo apenas em 1936. Nesse hiato, o monge relata que os vizinhos brasileiros e não descendentes de japoneses o procuravam, junto com seus filhos, para a realização de cura de doenças, a despeito da distância linguística e religiosa que separava esses sujeitos (Nakamaki 1993NAKAMAKI, Hirotika. (1993), A Honmon Butsuryu-shu no Brasil. São Paulo: Religião Budista Honmon Butsuryu-shu do Brasil.).

Um segundo ponto para o qual é interessante chamar a atenção diz respeito à liminaridade do fenômeno analisado. Como Andrade (2010ANDRADE, Solange Ramos de. (2010), “O culto aos santos: a religiosidade católica e seu hibridismo”. Revista brasileira de história das religiões, 7: 131-145.) chama a atenção, o cemitério é um espaço de liminaridade em diferentes sentidos, entre o sagrado e o profano, entre as instituições e as práticas. Embora a marca das religiões perpasse certos elementos da santidade em questão, há distância das instituições desempenhando papel de controle sobre a religiosidade. Hase não é uma santa canônica do Catolicismo, assim como o Budismo de Verdadeira Escola de Terra Pura não exerce nenhum papel sobra a prática que se desenvolveu em torno dessa personagem. Longe das instituições, o fenômeno desdobrou-se de forma relativamente livre, articulando elementos a partir de leituras “selvagens”. No caso de Hase, o jogo de significações foi reconstruído de modo contínuo, inclusive de maneira aparentemente contraditória, pelos devotos leigos e que, portanto, não contaram com constrangimentos de ordem eclesiástica.

A relação entre a narrativa dos fiéis e as hagiografias nem sempre é contraditória, na medida em que os santos de cemitério analisados por Soares (2019SOARES, Hugo Ricardo. (2019), “Narrativas hagiográficas e devoção aos santos: notas sobre a (re)produção simbólica da santidade nos cemitérios”. Religião & Sociedade , vol. 39, nº 1: 36-59.) implicam a apropriação por parte dos devotos de aspectos intrínsecos aos relatos hagiográficos. No caso de Hase, emerge a questão do martírio, ainda que distante da morte pela fé presente nas hagiografias. Contudo, apesar de haver aproximações, a perspectiva dos devotos implica uma flexibilidade que frequentemente foge ao controle das instituições, diferentemente de hagiografias oficiais que, não obstante a diversidade, caminham num sentido de progressivo controle ortodoxo.

Ainda no tocante à narrativa, Soares sugere que, por um lado, as devoções emergem como fruto de uma matriz religiosa difusa e fragmentária. Por outro, o que é menos evidente, a própria ação dos devotos retroalimenta o fenômeno, permitindo sua continuidade ao longo do tempo e, também, adicionando potencialmente novas camadas discursivas. Talvez seja a própria flexibilidade das mitologias mínimas que permita a longa reprodução social dessas práticas, suficientemente distantes das amarras institucionais.

Em paralelo às observações de Cardoso (2012CARDOSO, Vânia Zikan. (2012), “Marias: a individuação biográfica e o poder das estórias”. In: M. A. Gonçalves, R. Marques & V. Z. Cardoso (orgs.). Etnobiografia: subjetivação e etnografia. Rio de Janeiro: 7letras.), é possível afirmar que as narrativas dos devotos não se pretendem completas, sendo, antes, fragmentárias e abrindo uma série de lacunas. Contudo, ainda que frequentemente contraditórios, os discursos se retroalimentam por intermédio da difusão da oralidade, criando uma teia de signos que, mesmo não controlada pelas instituições, oferecem mitologias mínimas que possibilitam a devoção como performance. É essa rede mediada pela oralidade que ratifica o efeito das curas que teriam sido realizadas por Hase, transcendendo fronteiras espaciais e capilarizando-se em diferentes regiões.

Outra interpretação do fenômeno diz respeito à presença significativa dos mortos no universo social brasileiro. Sendo um pesquisador espanhol, Sáez (1996SÁEZ, Oscar Calavia. (1996), Fantasmas falados: mitos e mortos no campo religioso brasileiro. Campinas: Editora da UNICAMP.) afirma ter ficado surpreso ao familiarizar-se progressivamente com a cultura brasileira, percebendo o peso dos mortos sobre várias dimensões do cotidiano no Brasil. Seria possível ter contato com essas figuras em diferentes locais, desde centros espíritas às necrópoles propriamente ditas. Além disso, as necessidades dos devotos - que envolvem questões socialmente candentes como desigualdade social, violência e enfermidades - encontram-se entrelaçadas à lide com esse sobrenatural próximo.

Por fim, a análise dessa religiosidade permite ler de forma diferenciada a história social dos japoneses no Brasil. Na primeira metade do século XX, houve uma série de tensões sociais entre japoneses e brasileiros, fenômeno embasado em discursos racistas e que resultaram em episódios de violência e desconfiança (Lesser 2001LESSER, Jeffrey. (2001), A negociação da identidade nacional: imigrantes, minorias e a luta pela etnicidade no Brasil. São Paulo: Editora UNESP.). Por outro lado, quando se observa a esfera das práticas do cotidiano, mais capilarizadas em episódios como as mães levando seus filhos para imigrantes curandeiros ou cegos buscando curar-se com águas milagrosas de santas de cemitério, verifica-se que o terreno de trocas foi mais flexível entre japoneses e brasileiros.

Considerações finais

No decorrer do artigo, buscou-se analisar como o túmulo de uma imigrante japonesa no Cemitério de Assaí, Kiku Hase, foi convertido num lócus de devoção em torno de uma santa. A sepultura em questão é caracterizada por diversos elementos budistas. Apesar disso, o túmulo foi transformado num local de devoção pelos praticantes, cuja maioria é composta por não descendentes de japoneses, que passaram a buscar a realização de curas por intermédio da água que jorra da sepultura. A partir de um levantamento preliminar das narrativas dos devotos, percebeu-se que essa santidade envolve uma geografia não apenas em torno do jazigo, local sagrado em meio à necrópole, mas também em termos de proveniência dos indivíduos que o visitam, vindos de diferentes cidades paranaenses e paulistas. Esses sujeitos mobilizam uma série de representações religiosas para definir a santidade de Hase.

A partir da análise do túmulo e das diferentes narrativas produzidas pelos devotos, foi possível interpretar que, diferentemente dos santos oficiais da Igreja, que demandam pela inserção das hagiografias no interior do repertório cristão, a santidade de Hase foi construída independentemente da posição da personagem nesse cenário religioso. O ponto de partida do túmulo, marcado por elementos budistas, não constituiu empecilho para a construção da devoção, já que o importante, para os fiéis, é a realização do milagre independentemente de sua natureza, aproximando-a de outras figuras taumatúrgicas ligadas à imigração japonesa.

Por fim, foi sugerido que a emergência dessa santa de cemitério pode ser explicada pela própria distância das instituições. Longe dos lugares de controle, a devoção desenvolveu-se de forma livre e flexível. Embora a história social dos nipo-brasileiros seja marcada por tensões e violências, o que possuiu implicações sobre as políticas no tocante à imigração de líderes religiosos, as práticas em nível capilar ressaltam um cenário de trânsito entre sujeitos históricos e troca de elementos religiosos. Nessa camada social ao rés-do-chão, geralmente em busca de curas milagrosas, as figuras religiosas transitam sem maiores constrangimentos.

Bibliografia

  • ALVES, Daniel. (2006), “Sobre a transitoriedade das identidades religiosas e sua repercussão nas estatísticas: reflexões a partir de um estudo de caso numa comunidade budista”. Religião & Sociedade, vol. 26, nº 1: 62-82.
  • ANDRADE, Solange Ramos de. (2015), Santo de cemitério: a devoção ao Menino da Tábua (1978-1994) Maringá: EDUEM.
  • ANDRADE, Solange Ramos de. (2010), “O culto aos santos: a religiosidade católica e seu hibridismo”. Revista brasileira de história das religiões, 7: 131-145.
  • ANDRÉ, Richard Gonçalves. (2011), Religião e silêncio: representações e práticas mortuárias entre nikkeis em Assaí por meio de túmulos (1932-1950) Assis: Doutorado em História, Unesp.
  • ASARI, Alice Yatiyo. (1992), “… E eu só queria voltar ao Japão” (colonos japoneses em Assai) São Paulo: Tese de Doutorado em Geografia, USP.
  • BÍBLIA. Português. (2022), Bíblia de Jerusalém São Paulo: Paulus.
  • BUDISMO da Terra Pura: um guia. (2013), São Paulo: Comunidade Budista Sul Americana da Escola Jodo Shinshu Honpa Hongwanji.
  • BURKE, Peter. (2004), Testemunha ocular: História e imagem Bauru: EDUSC.
  • CARDOSO, Vânia Zikan. (2012), “Marias: a individuação biográfica e o poder das estórias”. In: M. A. Gonçalves, R. Marques & V. Z. Cardoso (orgs.). Etnobiografia: subjetivação e etnografia Rio de Janeiro: 7letras.
  • CERTEAU, Michel de. (2014), A invenção do cotidiano: artes de fazer Petrópolis: Vozes.
  • CHIESA, Gustavo Ruiz. (2012), “Pai Valdo: fragmentos de uma religião em movimento”. In: M. A. Gonçalves, R. Marques & V. Z. Cardoso (orgs.). Etnobiografia: subjetivação e etnografia . Rio de Janeiro: 7letras .
  • DEAL, William & RUPPERT, Brian. (2015), A cultural history of Japanese Buddhism Chichester: Wiley Blackwell.
  • DROOGAN, Julian. (2013), Religion, material culture and Archaeology London, New York: Bloomsbury Academic.
  • ELIAS, Alexsânder Nakaóka. (2016), “O Budismo Honmon Butsuryu-shu e o Buda Primordial”. Escritas, vol. 8 nº 1: 124-143.
  • FAGUNDES, Antonio Augusto. (2003), As santas prostitutas: um estudo de devoção popular no Rio Grande do Sul Porto Alegre: Martins Livreiro.
  • FREITAS, Eliane Tânia. (2021), Santos feitos à mão: devoções religiosas populares em cemitérios no Rio Grande do Norte Natal: EDUFRN.
  • FUJII, Masao. (1983), “Maintenance and change in Japanese traditional funerals and death-related behavior”. Japanese journal of religious studies, vol. 10, nº 1: 39-64.
  • GAJANO, Sofia Boesch. (2002), “Santidade”. In: J. Le Goff & J-C. Schmitt. Dicionário temático do Ocidente medieval São Paulo: EDUSC; Imprensa Oficial do Estado.
  • INGOLD, Tim. (2012), “Trazendo as coisas de volta à vida: emaranhados criativos num mundo de materiais”. Horizontes antropológicos, vol. 18, nº 37: 25-44.
  • GONÇALVES, Marco Antonio, MARQUES, Roberto & CARDOSO, Vânia Zikan. (2012). “Etnobiografia: esboços de um conceito”. In: M. A. Gonçalves, R. Marques & V. Z. Cardoso (orgs.). Etnobiografia: subjetivação e etnografia . Rio de Janeiro: 7letras .
  • HANDA, Tomoo. (1987), O imigrante japonês: história de sua vida no Brasil São Paulo: T.A. Queiroz Editor, Centro de Estudos Nipo-Brasileiros.
  • IKEDA, Shigeji. (1946), 20º aniversário da fundação da Colônia Três Barras S.l: s.e.
  • JURKEVICS, Vera Irene. (2004), Os santos da Igreja e os santos do povo: devoções e manifestações de religiosidade popular Curitiba: Tese de doutorado em História, UFPR.
  • KENNEY, Elizabeth & GILDAY, Edmund T. (2000), “Mortuary rites in Japan”. Japanese journal of religious studies , 27/3-7: 163-178.
  • LESSER, Jeffrey. (2001), A negociação da identidade nacional: imigrantes, minorias e a luta pela etnicidade no Brasil São Paulo: Editora UNESP.
  • LÉVI-STRAUSS, Claude. (1970), Antropologia estrutural Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro.
  • LIMA, Andrea de Alvarenga. (2007), “A saga de Maria Bueno: um retrato da alma de Curitiba”. Psicologia e argumento, vol. 25, nº 49: 173-185.
  • LUIZ, Leonardo Henrique. (2022), O espírito de Yamato: o Xintoísmo de Estado e o Kyōiku Chokugo na formação do nacionalismo japonês e a imigração para o Brasil (1890-1980) Porto Alegre: Editora Fi.
  • MAESIMA, Cacilda. (2012), Japoneses, multietnicidade e conflito na fronteira: Londrina, 1930/1958 Niterói: Tese de doutorado em História, UFF.
  • MAEYAMA, Takashi. (1967), O imigrante e a religião: estudo de uma seita religiosa japonesa em São Paulo São Paulo: Dissertação de Mestrado em Sociologia Política, FESPSP.
  • MENEZES, Renata & TONIOL, Rodrigo (Orgs.). (2021), Religião e materialidades: novos horizontes empíricos e desafios teóricos Rio de Janeiro: Papéis Selvagens.
  • MORIKAWA, Inês Kiyomi Koguissi. (2009), Kamon de famílias com ascendência japonesa em Assaí (PR): um estudo a partir da escola Londrina: Especialização em Religiões e Religiosidades, UEL.
  • NAKAMAKI, Hirotika. (1993), A Honmon Butsuryu-shu no Brasil São Paulo: Religião Budista Honmon Butsuryu-shu do Brasil.
  • NINA, Ana Cristina Lopes. (2006). “O teatro divino de Kalachakra: um estudo sobre um ritual religioso de massa do budismo tibetano”. Religião & Sociedade , vol. 26, nº 1: 32-61.
  • PREFEITURA MUNICIPAL DE ASSAÍ. (1952-1955), Registro do cemitério
  • RAMBELLI, Fabio. (s.d.), “Home buddhas: historical processes and modes of representation of the sacred in the Japanese Buddhist family altar (butsudan)”. Japanese religions, vol. 35, nº 1-2: 63-86.
  • REDE, Marcelo. (1996), “História a partir das coisas: tendências recentes nos estudos de cultura material”. Anais do Museu Paulista, 4: 265-282.
  • SÁEZ, Oscar Calavia. (1996), Fantasmas falados: mitos e mortos no campo religioso brasileiro Campinas: Editora da UNICAMP.
  • SÁEZ, Oscar Calavia. (2009), “O que os santos podem fazer pela Antropologia?”. Religião & Sociedade , vol. 29, nº 2: 198-219.
  • SAKURAI, Célia. (2000), “Imigração japonesa para o Brasil: um exemplo de imigração tutelada (1908-1941)”. In: B. Fausto. Fazer a América: a imigração em massa para a América Latina São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo.
  • SATO, Lilian Hissami. (1999), A imigração japonesa para o Norte do Paraná: Assaí - 1930-1980 Londrina: Especialização em História Social, UEL.
  • SETO, Claudio & UYEDA, Maria Helena. (2002), Ayumi: caminhos percorridos Curitiba: Imprensa Oficial do Paraná.
  • SOARES, Hugo Ricardo. (2019), “Narrativas hagiográficas e devoção aos santos: notas sobre a (re)produção simbólica da santidade nos cemitérios”. Religião & Sociedade , vol. 39, nº 1: 36-59.
  • SUZUKI, Teiti. (1969), The Japanese immigrant in Brazil Tokyo: University of Tokyo Press.
  • THOMPSON, Paul. (1992), A voz do passado: história oral Rio de Janeiro: Paz e Terra.
  • TURNER, Victor & Turner, Edith. (1978), Image and pilgrimage in Christian culture: anthropological perspectives Oxford: Blackwell.
  • USARSKI, Frank. (2002a), O Budismo no Brasil São Paulo: Editora Lorosae.
  • USARSKI, Frank. (2002b), “O Budismo no Brasil: um resumo sistemático”. In: F. Usarski, O Budismo no Brasil . São Paulo: Editora Lorosae .
  • USARSKI, Frank. (2006), “Conflitos religiosos no âmbito do budismo internacional e suas repercussões no campo budista brasileiro”. Religião & Sociedade , vol. 26, nº 1: 11-31.
  • VALLADARES, Clarival do Prado. (1972), Arte e sociedade nos cemitérios brasileiros Volume 1 Rio de Janeiro: Conselho Federal de Cultura.
  • VAN GENNEP, Arnold. (2011), Ritos de passagem Petrópolis: Vozes .
  • Entrevista com coveiro do Cemitério de Assaí, 2022.
  • Entrevista com devoto de Kiku Hase, 2010.
  • Entrevista com interlocutora 1, neta de Kiku Hase, 2022.
  • 1
    Os ex-votos são diferentes artefatos deixados, geralmente, como formas de agradecimento às graças que os devotos creem ter recebido das entidades, variando desde reproduções das partes do corpo curadas a objetos como muletas e placas de metal com mensagens para o santo (Andrade 2015).
  • 2
    A Verdadeira Escola de Terra Pura é uma vertente criada no Japão do século XIII pelo monge Shinran, tendo como foco Amida, considerado um buda salvador e de natureza transcendental. A recitação do nenbutsu 念仏, como é chamado o namu amida butsu, é um dos principais fundamentos da escola, tendo como objetivo o renascimento do devoto na chamada Terra Pura. Esta seria uma espécie de local paradisíaco em que o renascido poderia praticar os votos budistas para alcançar a libertação final (Budismo 2013BUDISMO da Terra Pura: um guia. (2013), São Paulo: Comunidade Budista Sul Americana da Escola Jodo Shinshu Honpa Hongwanji.), embora a noção de Terra Pura não seja exclusiva dessa escola. Seja como for, é válido lembrar, como sugerem William Deal e Brian Ruppert (2015DEAL, William & RUPPERT, Brian. (2015), A cultural history of Japanese Buddhism. Chichester: Wiley Blackwell.), que seria mais apropriado falar de “budismos”, no plural, considerando a quantidade significativa de vertentes e escolas existentes no Japão e no universo asiático de forma mais ampla.
  • 3
    Vide a coletânea organizada por Frank Usarski (2002aUSARSKI, Frank. (2002a), O Budismo no Brasil. São Paulo: Editora Lorosae.), intitulada O Budismo no Brasil. A obra tornou-se um marco importante para as demais produções acadêmicas no Brasil a respeito do Budismo, delineando abordagens e periodizações a respeito do fenômeno. A revista Religião & Sociedade publicou, em 2006, três artigos sobre o universo budista (Usarski 2006USARSKI, Frank. (2006), “Conflitos religiosos no âmbito do budismo internacional e suas repercussões no campo budista brasileiro”. Religião & Sociedade , vol. 26, nº 1: 11-31.; Nina 2006NINA, Ana Cristina Lopes. (2006). “O teatro divino de Kalachakra: um estudo sobre um ritual religioso de massa do budismo tibetano”. Religião & Sociedade , vol. 26, nº 1: 32-61.; Alves 2006ALVES, Daniel. (2006), “Sobre a transitoriedade das identidades religiosas e sua repercussão nas estatísticas: reflexões a partir de um estudo de caso numa comunidade budista”. Religião & Sociedade, vol. 26, nº 1: 62-82.).
  • 4
    Quando em vida, Antônio Marcelino, chamado posteriormente de Menino da Tábua, sofria de uma patologia que inviabilizou o crescimento de seu corpo. Apenas o rosto tomou a compleição de um homem adulto, tendo falecido aos quarenta e cinco anos. Por isso, apesar de adulto, é devotado como criança. Além disso, Marcelino possuía uma série de restrições alimentares e não aceitava roupas, permanecendo sobre uma tábua que lhe rendeu o epíteto (Andrade, 2015).
  • 5
    Maria Bueno é uma popular santa de cemitério em Curitiba. Em 1893, a personagem teria sido assassinada brutalmente, sendo encontrada decapitada e com cortes de navalha nas mãos. Seu cadáver teria ficado exposto longamente no local do crime, próximo à então zona do meretrício da cidade (Lima 2007).
  • 6
    Ingold utiliza o conceito de “coisa” ao invés de “objeto”, chamando a atenção para o fato de que a primeira se encontra indissociavelmente entrelaçada com outros artefatos ou mesmo em sua relação com os seres humanos. Por outro lado, o termo “objeto” corroboraria, de acordo com o autor, sua cisão metafísica para com os sujeitos, ainda que ambos os componentes sejam postos em relação.
  • 7
    As teorias tradicionais em torno da cultura material tendem a enfatizar a primeira dimensão apresentada, ressaltando o papel dos criadores, bem como os objetos pensados em termos de funções no universo social, voltadas, especialmente, para as dinâmicas de produção, circulação e consumo. Nesse sentido, o artefato é compreendido, de forma privilegiada, em seu aspecto funcional, especialmente no tocante à questão econômica. Ver o balanço realizado por Rede (1996).
  • 8
    A segunda dimensão no tocante à cultura material, voltada especialmente para os processos de apropriação, tendem a ressaltar não apenas o aspecto funcional, mas também o afetivo. Para além dos usos pragmáticos, os objetos encontram-se ligados a sentidos concebidos por parte dos usuários que envolvem mesmo dimensões identitárias. Não coincidentemente, afirma-se que os artefatos possuem uma biografia independente daquela de seus produtores e, portanto, aberta aos processos de ressignificação. A teoria ator-rede, construída a partir das proposições de Bruno Latour (1994), ressalta o papel de agência desempenhado pela cultura material no sentido de gerar práticas numa relação que envolve artefatos e seres humanos. Mais recentemente, autores como Ingold (2012) têm criticado a teoria, enfatizando, como afirmado, o caráter ainda dicotômico e metafísico da dualidade entre objeto e sujeito.
  • 9
    Compreende-se que a imagem não substitui o objeto, ainda que ela própria possa ser um artefato.
  • 10
    Optou-se aqui pelo termo “interlocutor/a” ao invés de depoente considerando que o ato de contar uma história envolve uma dimensão performática, em que elementos de um repertório são apropriados para criar a narrativa que, todavia, é construída no próprio ato de fala. A noção de depoente é limitada tendo em vista que sugere a ilusão segundo a qual um saber é apenas comunicado verbalmente, quando, antes, a prática em si é perpassada de significado, como ressalta Cardoso (2012). A autora abordou a narrativa em torno de Maria Padillha, uma das pomba-giras existentes no repertório das religiões afro-brasileiras, a partir da performance de uma mãe de santo específica.
  • 11
    Por questões éticas, a identidade da entrevistada será mantida no anonimato, bem como dos outros interlocutores citados.
  • 12
    Além do próprio túmulo e das entrevistas, foi consultado também o livro de registro de cemitérios disponível na Prefeitura Municipal de AssaíPREFEITURA MUNICIPAL DE ASSAÍ. (1952-1955), Registro do cemitério..
  • 13
    Gustavo Ruiz Chiesa (2012) aborda o caso de Pai Valdo, um ex-padre de Salvador que, após uma série de experiências espirituais, abandonou a batina e constituiu um terreiro de Umbanda. Um dos pontos abordados pelo autor é justamente como Pai Valdo constrói significados em torno da religião afro-brasileira, distanciando-se de um sistema normativo fechado.
  • 14
    A Honmon Butsuryūshū, constituída no final do século XIX japonês, foi criada por Seifū Nagamatsu, também conhecido como Nissen Shōnin. Trata-se de uma vertente budista que enfatiza a necessidade de recitar o daimoku 題目, isto é, o namu myohō rengekyô 南無妙法蓮華經 (literalmente, “eu me refugio no Sutra do Lótus”) com o intuito de alcançar a libertação. A Honmon foi originada a partir da Escola Nichiren que, assim como a Verdadeira Escola de Terra Pura, foi constituída no século XIII. O Sutra do Lótus é um dos principais corpus textuais do Budismo, sendo bastante difundido no Japão, afirmando, principalmente, que todos os seres poderiam alcançar a libertação. Além disso, é importante ressaltar que a Honmon Butsuryūshū desempenhou papel importante no Brasil, pois constituiu o primeiro templo institucionalmente estabelecido nas imediações de Lins (SP) nos anos 1930. O monge à frente do local foi Genjū Ibaragui, que imigrou para o Brasil em 1908 no navio Kasato Maru. Ele é considerado pelos adeptos um dos fundadores da Honmon Butsuryūshū em território brasileiro e, por isso, passou a ser cultuado em templos da escola paralelamente aos patriarcas da religião (Nakamaki 1993; Elias 2016ELIAS, Alexsânder Nakaóka. (2016), “O Budismo Honmon Butsuryu-shu e o Buda Primordial”. Escritas, vol. 8 nº 1: 124-143.).
  • 15
    A informação corresponde àquela gravada em granito na parte traseira do túmulo, mas escrita em japonês: 「昭和廿十八年十月十六日」, isto é, “Shōwa jūhachi nen jū gatsu jūrokunichi” (“Ano 28 da Era Shōwa, 16 de outubro”). Aqui, diferentemente da placa em português, aparece o dia e o mês de falecimento, mas não a idade da falecida. Utiliza-se como base o calendário imperial, que se inicia a cada ascensão ao trono de um novo imperador, no caso Shōwa 昭和 (Hirohito). A Era Shōwa começou em 1926 e, somados aos vinte e oito anos indicados, equivale a 1953. A utilização do calendário imperial é relativamente comum em língua japonesa e não significa necessariamente formas de devoção ao imperador por parte da família ou da falecida, embora o nacionalismo em torno de Hirohito tenha sido intenso entre certos grupos de imigrantes e descendentes de japoneses.
  • 16
    A rigor, a expressão decasségui remete, no próprio Japão, aos indivíduos que migram para outras regiões para trabalhar, inclusive no interior do próprio país (Elias 2016ELIAS, Alexsânder Nakaóka. (2016), “O Budismo Honmon Butsuryu-shu e o Buda Primordial”. Escritas, vol. 8 nº 1: 124-143.). Todavia, no Brasil, o termo tornou-se popular para designar os brasileiros que passaram a viajar, residir e trabalhar no Japão a partir dos anos 1980.
  • 17
    No caso dos adeptos falecidos da Honmon Butsuryūshū, os túmulos geralmente apresentam a principal recitação da escola, o daimoku. Portanto, a existência de passagens como o nenbutsu ou o daimoku oferece pistas para compreender a situação religiosa do defunto e, às vezes, da própria família, tendo em vista que são os vivos que constroem túmulos para os mortos.
  • 18
    É possível pensar a transformação do falecido em ancestral a partir dos conceitos propostos por Arnold Van Gennep (2011VAN GENNEP, Arnold. (2011), Ritos de passagem. Petrópolis: Vozes .) em torno dos procedimentos de separação, liminaridade e incorporação. Trata-se de um rito de passagem, na medida em que o indivíduo é convertido numa entidade diferente de seu estado original. A princípio, durante um período de quarenta e nove dias - o que pode variar de acordo com os casos -, o sujeito seria separado da condição - mas não do local - dos viventes, vagando dentro de casa ou sobre o telhado (Fujii 1983). O falecido entraria numa situação de liminaridade e, portanto, fronteira entre o mundo dos vivos e dos mortos. Uma vez que os ritos sejam devidamente realizados, por fim, ele seria incorporado ao universo dos ancestrais.
  • 19
    O Higashi Honganji é uma das duas subdivisões da Verdadeira Escola de Terra Pura, ao lado do Nishi Honganji. Trata-se de uma cisão institucional, mas não necessariamente doutrinária.
  • 20
    Os locais citados são caracterizados por forte presença nipo-brasileira, embora os próprios devotos de Hase não sejam, em sua maioria, japoneses e descendentes. No caso paranaense, a presença étnica é mais visível na região norte (Maesima 2012), embora Curitiba também tenha recebido grupos japoneses na primeira metade do século XX, como sugerem Cláudio Seto e Maria Helena Uyeda (2002SETO, Claudio & UYEDA, Maria Helena. (2002), Ayumi: caminhos percorridos. Curitiba: Imprensa Oficial do Paraná.). O estado de São Paulo, por sua vez, especialmente a região oeste, foi o principal lócus para o qual a imigração dirigiu-se inicialmente (Lesser, 2001).
  • 21
    Claude Lévi-Strauss (1970LÉVI-STRAUSS, Claude. (1970), Antropologia estrutural. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro.), analisando práticas de cura realizadas por povos originários americanos, ressalta que sua eficácia é derivada da inserção num sistema simbólico em que não apenas os curados acreditam no tratamento, bem como os próprios grupos sociais que consagram o fenômeno. Utilizando o raciocínio proposto pelo antropólogo, para os devotos de Hase, o problema seria o sofrimento em si e destituído, portanto, de significado, isto é, a dor pela dor. No entanto, ao solicitar a cura para a entidade, a dor seria ressignificada no interior de um sistema simbólico definido pelas mitologias mínimas em torno dos santos de cemitério.
  • 22
    Na própria Honmon Butsuryūshū, há uma prática em torno do okōzui 香水 (ou okōsui), água que ganharia propriedades especiais. O líquido, situado no altar do templo, é submetido a uma sessão de recitações do daimoku. Sobre o okōzui, ver Aleksânder Nakaóka Elias (2016).
  • 23
    Embora sejam mais associados ao repertório do Catolicismo, os santos de cemitério envolvem figuras que flertam com outros fundos religiosos, como as devoções de matriz afro-brasileira, como sugere Sáez (1996SÁEZ, Oscar Calavia. (1996), Fantasmas falados: mitos e mortos no campo religioso brasileiro. Campinas: Editora da UNICAMP.) ao lidar com personagens como pomba-giras e pretos velhos.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    23 Fev 2024
  • Data do Fascículo
    Sep-Dec 2023

Histórico

  • Recebido
    13 Jan 2023
  • Aceito
    13 Dez 2023
Instituto de Estudos da Religião ISER - Av. Presidente Vargas, 502 / 16º andar – Centro., CEP 20071-000 Rio de Janeiro / RJ, Tel: (21) 2558-3764 - Rio de Janeiro - RJ - Brazil
E-mail: religiaoesociedade@iser.org.br