Acessibilidade / Reportar erro

Percepções da diversidade étnico-racial e religiosa no Brasil e na Argentina e suas expressões político-jurídicas1 1 Este artigo resulta de projeto apoiado pela Fapesp (nº 2015/024975), à qual desde já agradecemos, e do projeto Non Religion in a Complex Future, coordenado por Lori Beaman (University of Ottawa).

Perceptions of ethnic-racial and religious diversity in Brazil and Argentina and their political-legal expressions

Resumos

Resumo: Este artigo pretende compreender como as percepções da diversidade étnico-racial e religiosa, que podem ser capturadas em instrumentos oficiais como os levantamentos censitários, se expressaram no gerenciamento da diversidade religiosa no Brasil e na Argentina, países ainda considerados hegemonicamente católicos. Temos como principais objetivos caracterizar a configuração e as conexões entre essas diversidades nos dois países e avaliar sua incorporação nos respectivos modelos jurídico-político de liberdade religiosa. Para tanto, analisaremos de modo comparativo o enquadramento constitucional dado, historicamente, à diversidade religiosa e étnico-racial e as ferramentas oficiais para descrevê-la e nomeá-la, tais como os levantamentos censitários. Demonstraremos que o modo de perceber e categorizar a diversidade se reflete nas respostas governamentais para gerenciá-la por meio de políticas de estado. Trabalharemos com a hipótese de que a diferença entre os dois países no trato da diversidade tensiona de maneira distinta as relações entre o regime de liberdade e o regime da igualdade, ainda que se notem alguns paralelismos nas configurações da desigualdade.

Palavras-chave:
diversidade étnico-racial; pluralismo religioso; liberdade religiosa


Abstract: This article aims to understand how the perceptions of ethnic-racial and religious diversity, which can be perceived in official instruments such as census surveys, were expressed in the management of religious diversity in Brazil and Argentina, countries still considered hegemonically Catholic. We have as main objectives to characterize the configuration and connections between these diversities in both countries and to evaluate their incorporation in the respective legal-political models of religious freedom. To do so, we will analyze comparatively the constitutional framework historically given to religious and ethnic-racial diversity and the official tools to describe and name it, such as census surveys. We will demonstrate that the way of perceiving and categorizing diversity is reflected in government responses to manage it through state policies. We will work with the hypothesis that the difference between the two countries in dealing with diversity strains the relations between the freedom regime and the equality regime in a different way, although some parallels in the configurations of inequality are noticeable.

Keywords:
ethnic-racial diversity; religious pluralism; religious freedom


Introdução

Em suas reflexões sobre o secularismo, Charles Taylor (2017TAYLOR, Charles. (2017), “Como definir o secularismo”. Leviathan. Cadernos de Pesquisa Política, nº 14: 128-146.) aponta para um dos problemas mais desafiadores nas sociedades modernas: como sopesar as implicações e o impacto da diversidade religiosa para a convivência democrática contemporânea. O autor considera que a expansão da diversidade religiosa, tão característica de nossa paisagem democrática, tensiona seus dois pilares clássicos: a liberdade e a igualdade. Este artigo pretende colaborar para essa reflexão introduzindo o problema da diversidade étnico-racial. Interessa-nos investigar como as conexões entre as percepções de diversidade étnico-racial e religiosa, que podem ser capturadas com base na análise de dados censitários, se expressam nas diferentes modelagens jurídicas da liberdade/igualdade religiosa no Brasil e na Argentina. Procuraremos demonstrar que o modo diferencial como esses países trataram o problema da diversidade étnico-racial se relaciona diretamente com a definição do religioso e com o modo como a liberdade religiosa foi por eles concebida e gerenciada.

Brasil e Argentina fazem parte de um contexto regional que, do ponto de vista do regime jurídico-político e de seu passado recente no que tange às relações entre Estado e religião, nos permite supor que partilham inúmeras características comuns, mas também algumas especificidades. Tomando como ponto de partida a constatação de que a diversidade se tornou mais complexa nessas duas sociedades a partir do fim de seus respectivos regimes militares (Montero, Sales 2020MONTERO, Paula; SALES, Lilian. (2020), “Laity and Secularism in Contemporary Brazilian Pluralism”. Revista Novos Estudos do Cebrap. vol. 39, nº 3: 415-436.; Mallimaci, Esquivel 2013MALLIMACI, Fortunato; ESQUIVEL, Juan C. (2013), “La tríada Estado, instituciones religiosas y sociedad civil en la Argentina contemporánea”, Amerika [En ligne], 8, mis en ligne le 09 juin 2013, consulté le 01 décembre 2021. URL: http://journals.openedition.org/amerika/3853; DOI: org/amerika/3853; DOI: https://doi.org/10.4000/amerika.3853
https://doi.org/10.4000/amerika.3853...
), privilegiaremos neste estudo comparativo identificar como Brasil e Argentina buscaram equacionar, com base em seus respectivos quadros jurídicos de laicidade e igualdade, a tensão produzida pelo progressivo reconhecimento dos segmentos raciais como parte integrante da diversidade social. Para as finalidades da comparação aqui proposta, restringiremos nossa análise a dois grandes temas: 1. Categorização oficial e gerenciamento da diversidade religiosa e étnico-racial nos dois países e 2. Semelhanças e diferenças nos regimes de gestão da liberdade/igualdade religiosa.

1. Categorização censitária e gerenciamento da diversidade étnico-racial e religiosa

Autores como Foucault (1994FOUCAULT, Michel. (1994), “La ‘governamentalité’”. In: M. Foucault. Dits et écrits: 1954-1988. Paris: Éditions Gallimard.) já chamaram nossa atenção para o fato de que os levantamentos estatísticos se constituíram, a partir do final do século XVIII, em uma tecnologia governamental própria para o governo das populações. Para o autor, as estatísticas revelaram que as populações têm suas regularidades, diversidades e especificidades que não são redutíveis ao pequeno quadro das famílias. Por outro lado, a arte de governar com base em números depende de uma escolha daqueles traços populacionais que, para os governantes, devam ser suficientemente dignos de registro de modo a subsidiar cálculos políticos (Senra 1999SENRA, Nelson de Castro. (1999), “Informação estatística: política, regulação, coordenação”. Ciência da Informação, vol. 28, nº 2: 124-135.). Medir é também uma forma de arbitrar sobre direitos que envolvem comparação e normatização (Oliveira 2016OLIVEIRA, João P. de. (2016), O nascimento do Brasil e outros ensaios. “Pacificação”, regime tutelar e formação de alteridades. Rio de Janeiro: Contra Capa.:230). Compreendidas dessa maneira, as estatísticas permitem não apenas pensar e falar sobre um domínio a ser governado, mas também agir sobre ele.

Com base nessa perspectiva, examinaremos a seguir as razões e as maneiras como a diversidade religiosa e étnico-racial foi recenseada e tornada visível (ou invisível) nas estatísticas oficiais brasileira e argentina, e como interessaram às políticas governamentais de gerenciamento dessa diversidade. A complexidade dessa tarefa, que exigiria um vasto esforço de compilação em vários tipos de documentos históricos, não cabe de maneira cabal no escopo deste artigo. Mais modestamente, tomaremos como objeto de análise, neste inciso, esta interessante documentação que são os censos e levantamentos estatísticos oficiais brasileiros e argentinos para descrever como a informação estatística foi desenhando a diversidade religiosa e étnico-racial ao longo do tempo e como a progressiva sensibilidade para as nuances dessas diferenças ecoou nos respectivos sistemas legais.

A diversidade religiosa e étnico-racial nos levantamentos censitários

Ao contrário da Argentina, que, como veremos adiante, dispõe de escassos dados censitários sobre o pertencimento religioso e composição étnico-racial de sua população, no Brasil, desde o século XIX, esses temas foram objeto de preocupação governamental. Ao lado de muitos outros temas como sexo, natalidade, migração, longevidade e saúde pública, a cor dos brasileiros e sua religião aparece, desde o primeiro Censo Demográfico Nacional2 2 A Diretoria Geral de Estatística foi fundada em 1871 e coordenou os Censos de 1872, 1900 e 1920. O IBGE, fundado em 1936, passou a coordenar os censos desde 1940 até hoje. de 1872, ainda no Império, como problema de governo. Com a transferência da Coroa portuguesa para o Rio de Janeiro, em 1808, a cor se colocou como um problema central nos debates ideológicos sobre a capacidade da população para o desenvolvimento nacional (Stepan 2004STEPAN, Nancy Leys. (2004), “Eugenia no Brasil, 1917-1940”. In: G. Hochman; D. Armus (org). Cuidar, controlar, curar: ensaios históricos sobre saúde e doença na América Latina e Caribe [online]. Rio de Janeiro: Editora FIOCRUZ, ). O fim da escravidão e a necessidade de alocação dessa população no regime de trabalho livre tornava imperativa a produção de informação sobre as principais características desse segmento. No caso argentino, percebe-se, ao contrário, que esses traços populacionais não foram tomados como dignos de registro sistemático até muito recentemente. Seu mito civilizatório, o imaginário de uma nação europeia encravada na América Latina, impactou de outro modo as formas de categorizar a população nos censos. Diferentemente do Brasil, se poderia dizer que foi a ausência de dados, a invisibilização, o traço característico, até muito recentemente, da história dos censos no que diz respeito à questão da população negra e indígena e da diversidade religiosa.

Quando observamos os dados do primeiro Censo Geral da República Argentina (Olmos 2011OLMOS, M. Fernanda (org.). (2011), “Documentos históricos. Argentina”. Estatística e Sociedade, nº 1: 213-227.), implementado pelo decreto 3.180 de 1865 do governo Mitre, nota-se uma clara preocupação em privilegiar o recenseamento das atividades econômicas. A descrição dos traços populacionais foi restringida praticamente aos temas relativos ao movimento demográfico (imigração e emigração), ao registro civil (nascimentos/casamentos e mortes) e à instrução dos argentinos. O imaginário de uma Argentina branca implicou, e ainda implica, apesar das mudanças recentes, tornar invisível a herança africana e a presença dos “povos originários”. Os dois primeiros censos nacionais (1869 e 1895) não incluíram a população indígena; no entanto, esta foi estimada com o principal propósito de calcular seu poder militar (Otero 1998OTERO, Hernán. (1998), “Estadística censal y construcción de la Nación. El caso argentino, 1869-1914”, Boletín del Instituto de Historia Argentina y Americana Dr. Emilio Ravignani, vol. 3, nº 16-17: 123-149.). Em ambos os censos ela foi calculada com base nos dados oferecidos pelos chefes dos fortins e alocada fora da categoria de “argentinos”. As perguntas incluídas no censo de 1895 e seguintes sobre essa população serviram para fundamentar e documentar o fato de que mais de 80% da população do país era de raça branca e de origem europeia (Quijada 2004QUIJADA, Mónica. (2004), “De mitos nacionales, definiciones cívicas y clasificaciones grupales. Los indígenas en la construcción nacional argentina, siglos XIX a XXI” In: W. Ansaldi (comp.). Calidoscopio Latinoamericano. Buenos Aires: Ariel Historia.). Ao longo do século XX a pergunta sobre a cor da população foi excluída da informação censitária como parte de uma política de esquecimento com relação à sua herança populacional e cultural.

A última reforma constitucional de 1994, no entanto, produz uma mudança de paradigma com relação à política estatal para com os povos originários ao se reconhecer, no artigo 75, inciso 17, “[…] a preexistência étnica e cultural dos povos indígenas argentinos”, assim como “a pessoa jurídica de suas comunidades, e a posse e propriedade comunitária das terras que tradicionalmente ocupam”. Essa reforma levou à aprovação em 1998 da Lei nº 24.956 que incorpora ao Censo de 2000 uma pergunta sobre a autoidentificação e pertencimento a comunidades indígenas.

Quanto à pergunta sobre a religião dos argentinos ela aparece no censo nacional de 1895 redigida da seguinte maneira: “se você não é católico, que religião tem?”. Essa redação subentende a excepcionalidade das pessoas não católicas. Além disso, segundo as instruções constantes no manual para recenseadores, ela só deveria ser endereçada àqueles recenseados sobre os quais o recenseador “tivesse motivos para acreditar que não fosse católico” (Ministerio de Asuntos Técnicos-Tomo I, 1947: 83). Esses motivos obedeciam ao fato de que apenas as pessoas consideradas imigrantes (procedentes da Europa) eram percebidas como potencialmente não católicas. O resultado de não católicos registrado nesse Censo foi: “protestantes”: 7 por mil e “israelitas”: 2 por mil.3 3 http://www.estadistica.ec.gba.gov.ar/dpe/Estadistica/censos/C1895-T2.pdf Ausentes nos censos posteriores, a pergunta sobre a religião voltou a ser incluída somente em 1947 e 1960.4 4 https://econtents.bc.unicamp.br/inpec/index.php/csr/article/view/13449/8806

Os resultados dos censos de 1947 e de 1960, nos quais respectivamente 93,6% e 90,05% da população se declararam católicos, contribuíram para reforçar a construção de uma Argentina majoritariamente católica e serviram de argumento para justificar a ausência dessa mensuração, por desnecessária, nos censos subsequentes. Deixar de medir a religião, assim como a raça, contribuiu para invisibilizar ambos os tipos de diversidade. Tal decisão, muitas vezes fundada em um minimalismo metodológico que se estendeu até o século XXI (com argumentos vinculados à confiabilidade e validade), teve claros efeitos homogeneizadores sobre a construção da população argentina (Otero 2011OTERO, Hernán. (2011), “El concepto de población en el sistema estadístico de Argentina, 1869-2001”. Estatistica e sociedade, vol. 1: 7-25.).

Assim, no caso argentino, a escassez de dados censitários limitou a percepção e os estudos sobre a diversidade religiosa no país até muito recentemente. Essa falta de dados permitiu, entre outras questões, que se consolidasse a ideia de que a Igreja Católica construiu um monopólio do campo religioso, deslocando e relegando às margens a existência de outras formas de vinculação ao religioso. A ideia de um monopólio católico, tal como já assinalado (Frigerio, Wynarczyk, 2008), tende a invisibilizar a diversidade religiosa como dado histórico. A isso se agrega, como será analisado mais adiante, que esse apagamento da diversidade religiosa foi útil à consolidação do mito da nação católica, que se consolidou por meio de sucessivas interrupções da democracia, a partir de 1930, ampliando os privilégios da Igreja Católica (Zanatta 1996ZANATTA, Loris. (1996). Del Estado liberal a la nación católica. Iglesia y Ejército en los orígenes del peronismo. Buenos Aires: UNQ.; Lida 2013MIRANDA, Lida. (2013), “La ‘nación católica’ y la historia argentina contemporánea”, Corpus [En línea], vol 3, nº 2, Publicado el 20 diciembre 2013, consultado el 29 noviembre 2021. URL: http://journals.openedition.org/corpusarchivos/579; DOI: org/corpusarchivos/579; DOI: https://doi.org/10.4000/corpusarchivos.579
https://doi.org/10.4000/corpusarchivos.5...
).

No caso brasileiro, ao contrário, já no primeiro e único levantamento realizado no período imperial em 1872 a população livre foi distribuída em termos de sua cor/raça (brancos, pretos e caboclos)5 5 Nos formulários de instrução dos questionários utilizados nos Censos de 1872 e 1890 a população indígena foi categorizada como “cabocla” e relacionada à sua condição de “homem livre”. A categoria “caboclo” contabilizava apenas os índios catequizados, deixando de lado os “índios bravos”, que se distinguiam radicalmente dos brasileiros e não obedeciam à autoridade nacional (Oliveira 2016:241). No censo de 1890, a categoria foi ressemantizada como um quesito do gradiente de cor ao lado de brancos, negros e pardos. Nos dois censos seguintes (1900 e 1920) os quesitos cor/raça não foram incluídos. No Censo de 1940 a distinção ressurge e eles voltam a ser designados como pardos. Somente nos levantamentos de 1991 essa população aparece como categoria separada, mas interessantemente ainda no interior do quesito cor/raça. No Censo de 2010 aparece pela primeira vez o quesito etnia e língua falada. Ao serem alocados, na maior parte dos levantamentos, na categoria de “pardos” permaneceram até muito recentemente invisíveis nas estatísticas oficiais. (Dias Jr; Verona 2018) e sua religião (católicos e acatólicos). Os escravos foram divididos em negros e pardos (mestiços de brancos ou índios) e classificados como católicos. A categoria “acatólicos” concentrou, em sua maior parte, a religião dos imigrantes alemães. Embora o item nacionalidades (brasileiros/estrangeiros) também fosse, como no Censo argentino, um item sensível na qualificação populacional, ele incluía no Brasil a grande parcela dos africanos escravos ou libertos. Note-se que não havia, então, a percepção de que eles devessem ser arrolados levando-se em conta sua origem étnica. Essa particularidade, associada ao temor que os negros livres, percebidos como perigosos e rebeldes, infundiam nas elites brancas, explica a ausência de religiões de inspiração africana nos censos até o levantamento de 2000, embora práticas dessa natureza tenham começado a organizar-se no Brasil urbano já no século XIX.

Embora marginais e perseguidas as tradições “nagôs” e “iorubas” dos candomblés e xangôs da região nordeste mereceram um positivo interesse dos estudiosos das “religiões negras” e da imprensa na primeira metade do século XX. Ainda assim, precisaram esperar o lento trabalho de sua legitimação pelos estudos acadêmicos e, em particular pela Antropologia, para que suas práticas se tornassem reconhecidas enquanto “religião afro-brasileira”. As versões mais permeadas pelo catolicismo e espiritismo que vicejaram nas regiões sul chamadas de Umbanda, macumbas ou cabulas, ou simplesmente “baixo espiritismo”, foram, por sua parte, percebidas como formas degradadas de superstição e curandeirismo que, como veremos, desde o código penal republicano de 1890, eram combatidas pela lei e repressão policial. As reformas sanitárias e higienistas buscavam erradicá-las em nome da saúde pública. Por isso, essas práticas, mesmo nos casos dos candomblés, embora presentes nas rotinas cotidianas das classes populares e objeto frequente das seções policiais dos grandes jornais, atravessaram quase oito décadas sendo recenseadas no bojo do catolicismo ou do espiritismo.

Não se trata aqui de avaliarmos a precisão dos números, as metodologias estatísticas utilizadas tampouco a adequação das categorias descritivas das populações em cada país. Muito pelo contrário, tendo em mente a dimensão sociopolítica da informação estatística, o que nos parece interessante ressaltar, para além das diferenças na história das estatísticas desses dois países, são as diferenças nas categorizações da informação censitária do Brasil e da Argentina nos temas relativos à diversidade religiosa e étnico-racial. No caso brasileiro, vimos que enquanto a categoria “pretos” aparece já nos primeiros censos, as religiões afro (e indígena) ficaram invisíveis até o levantamento de 2000. Já no caso argentino tanto a diversidade étnico-racial quanto a religiosa permaneceram silenciosas até recentemente. Essas diferenças nas categorizações censitárias nos permitem desde já afirmar que as diversidades raciais, étnicas e religiosas sempre foram consideradas, por razões que precisam merecer nossa atenção, uma estratégia de Estado.

Vejamos agora se é possível, em grandes linhas, correlacionar essas diferentes estratégias de classificação ao gerenciamento da diversidade por meio do exame de algumas políticas de Estado desenvolvidas ao longo desse período por esses dois países.

b. A diversidade étnico-racial e seu gerenciamento

Na Argentina, o mito da nação europeia impactou o gerenciamento da diversidade étnico-racial na direção de políticas de assimilação ou de extermínio da população indígena. A população afrodescendente e os povos originários foram, até muito recentemente, deslocados de seus territórios e até mesmo cancelados pelas políticas públicas. Um dos mecanismos que sustentou essa política de apagamento foi a “domesticação da questão indígena” (Roulet y Navarro Floria 2005). Ela implicou a construção de uma alteridade desprezada que se instrumentalizou de duas maneiras coordenadas entre si. Em primeiro lugar, por meio das políticas de conversão dos povos indígenas pelas mãos da Igreja católica. Um dos artigos da Constituição de 1853, por exemplo, outorga ao Congresso Nacional a faculdade de “[...] conservar o trato pacífico com os índios e promover sua conversão ao catolicismo”. Ao lado dessas políticas de apagamento por meio da assimilação cultural também foram organizadas campanhas de anexação territorial. Essas campanhas propagaram uma construção imaginária do território, ou parte dele, em particular as regiões mais densamente povoadas pelas populações indígenas (pampeanas e patagônicas), como um deserto destituído de população. A ocupação militar dessas áreas “vazias” foi apresentada como um passo necessário para a consolidação do território nacional. A chamada conquista do deserto, campanha militar desencadeada entre os anos 1878 e 1885, que anexou uma série de territórios indígenas, põe em evidência essa política estatal pensada como parte de um programa de des-indigenização (Briones y Delrio 2007BRIONES, Claudia; DELRIO, Walter. (2007), “La ‘conquista del desierto’ desde perspectivas hegemónicas y subalternas”, Runa, vol. XXVII, :23-48. Argentina, Universidad de Buenos Aires Buenos Aires. Disponível em: https://www.redalyc.org/pdf/1808/180857810008.pdf
https://www.redalyc.org/pdf/1808/1808578...
) e de extermínio da população indígena como um “genocídio não-narrado” (Perez 2011PILAR Pérez. (2011), “Historia y silencio: La Conquista del Desierto como genocidio no-narrado”, Corpus [En línea], vol. 1, nº 2, Publicado el 30 diciembre 2011, consultado el 29 noviembre 2021. URL: http://journals.openedition.org/corpusarchivos/1157; DOI: org/corpusarchivos/1157; DOI: https://doi.org/10.4000/corpusarchivos.1157
https://doi.org/10.4000/corpusarchivos.1...
).

Outro mecanismo foi a política migratória estimulada para povoar “esse deserto”. A expressão “governar é povoar” de Juan Bautista Alberdi (1810-1884), considerado o autor intelectual da Constituição Nacional (1853), resume um programa de promoção da imigração europeia para fomentar o progresso material e intelectual da nação. Alberdi priorizava países como a Inglaterra ou França, em detrimento da Espanha ou Itália, como parte de seu programa civilizatório. O artigo 25 daquela Constituição sustentava: “O governo Federal fomentará a imigração europeia; e não poderá restringir, limitar nem agravar com nenhum imposto a entrada em território argentino de estrangeiros que tragam como objeto trabalhar a terra, melhorar as indústrias, e introduzir e ensinar as ciências e as artes.” Esse projeto nacional atravessa o século XX tornando-se “senso comum” na frase de duplo sentido que ecoa até hoje, segundo a qual os argentinos “descienden de los barcos”. A dicotomia “civilização e barbárie”, título de uma obra de Sarmiento (1845SARMIENTO, Domingo Faustino. (1845), Civilización y barbarie. Vida de Juan Facundo Quiroga y aspecto físico, costumbres y hábitos de la República Argentina. Santiago. Imprenta del Progreso.), serve como metáfora da política que estruturou a conformação do estado-nação no século XIX. O bárbaro, o incivilizado, o não branco foi o foco das ansiedades estatais que atravessam a história do país. O gerenciamento da diversidade por meio de sua invisibilização caracterizou, pois, a política oficial com relação à população afrodescendente e indígena ao longo de grande parte da história argentina. Nos últimos anos, em grande medida impulsionado pelos movimentos sociais, começa a haver um reconhecimento dessa presença que também impacta as políticas censitárias. Os últimos censos do século XXI reintroduzem a diversidade indígena e negra como parte da população argentina.

Assim, a Argentina, em termos gerais, se caracteriza por uma matriz de homogeneização da diversidade étnico-racial e religiosa que oculta as políticas de exclusão e hierarquização das populações não brancas e não católicas. Como parte dessa matriz, pode-se mencionar dois tipos de articulações entre liberdade religiosa e diversidade étnico-racial. Por um lado, a liberdade religiosa (enquanto liberdade de culto) se justifica como parte de um projeto “civilizador” do imigrante europeu. A diversidade religiosa (e sua proteção) se associa a uma construção positiva do outro: o imigrante e o branco europeu. Tal articulação, que se inscreve nas normas constitucionais (garantia de liberdade de culto vs. o estado para “homens de bem que queiram habitar nosso solo”) e as formas de recensear o religioso durante o século XIX continuam presentes, ainda que de forma mais sutil. Por outro lado, de maneira similar ao Brasil, onde o religioso se vincula a raças subalternizadas (os negros e os índios), a liberdade religiosa é relativizada e até desconhecida. Na Argentina, além das políticas de extermínio, a cristianização se transforma em uma forma de “civilizar” o índio. O reconhecimento da liberdade de culto na Constituição de 1853 é acompanhado, paradoxalmente, por outro artigo que sustentava que o Congresso Nacional devia promover a conversão dos índios ao catolicismo. O grau de liberdade religiosa se vincula, pois, não apenas à autonomia e distância entre estado e igreja católica, mas também às políticas de racialização da população.

No caso brasileiro, não existiam as mesmas condições materiais e históricas que permitissem a nação pensar-se como europeia ou branca. Os levantamentos censitários demonstravam que grande parte da população era mesmo negra ou racialmente miscigenada. Nesse sentido, a construção da nação no século XIX e início do XX esteve às voltas com o problema de como governar um povo miscigenado tido pelas teorias eugenistas da época como pouco propenso ao trabalho e intelectualmente incapacitado.

Ao lado das políticas endereçadas às populações indígenas desenvolvidas já no período do império que, por demais complexas, não serão tratadas neste texto,6 6 As políticas indigenistas brasileiras também se apoiaram na Igreja católica para assimilar essas populações. No entanto, apesar de as políticas de ocupação territorial terem sido também marcadas pela violência, o Estado brasileiro pautou-se, desde a República, em uma legislação voltada para a proteção e tutela das populações indígenas (Ver Gagliardi 1989). as principais políticas públicas desenvolvidas nas primeiras décadas do período republicano para lidar com a miscigenação inspiraram-se na linguagem da eugenia. Ela floresceu entre as elites governantes no Brasil como ciência do “aprimoramento racial” (Stepan 2004STEPAN, Nancy Leys. (2004), “Eugenia no Brasil, 1917-1940”. In: G. Hochman; D. Armus (org). Cuidar, controlar, curar: ensaios históricos sobre saúde e doença na América Latina e Caribe [online]. Rio de Janeiro: Editora FIOCRUZ, ). No Brasil, o casamento inter-racial não foi proibido pela lei. Isso porque, ao contrário da Argentina, onde, segundo Stepan (2004:282), os debates eugênicos das décadas 1920 e 1930 “giraram em torno de qual fração da ‘raça’ europeia melhor representaria a nacionalidade argentina”, no Brasil, a mestiçagem foi estimulada como um caminho para o branqueamento da população. Assim, em vez de medidas voltadas para a segregação racial ou esterilização em massa, percebidas como moralmente dissonantes pela Igreja Católica, adotaram-se políticas de reformas sociais e higiene pública. Muito cedo na história republicana o gerenciamento da questão racial se organizou por meio do controle estatal da família e da vida sexual das mulheres. Parte das preocupações eugênicas que emanaram dos acadêmicos e cientistas reunidos em torno da Comissão Brasileira de Eugenia acabaram por ter influência na legislação e políticas públicas brasileiras de imigração e educação da sexualidade ao longo do século XX, sobretudo na Era Vargas (1930-1945).

Se as ideias eugênicas não levaram no Brasil a normas legais destinadas à segregação racial, elas impactaram, no entanto, as políticas de imigração. Miguel Couto, um dos pais da medicina no país, defendeu, nos anos 1930, uma política de imigração que tivesse como objetivo melhorar geneticamente o povo brasileiro. A preocupação com a assimilação cultural e racial dos imigrantes já havia sido objeto de acirrados debates na Assembleia Nacional Constituinte de 1934. Pela primeira vez uma lei de imigração estabelece cotas raciais e provas de adequação econômica e cultural para a entrada no país. A imigração branca era consensualmente percebida pelas elites como uma política pública eficiente para aumentar rapidamente a proporção desse segmento da população. Já em 1912, com base nos dados do censo, João Batista Lacerda, diretor do Museu Nacional do Rio de Janeiro, havia calculado que, por volta de 2012, a população negra teria desaparecido e os mulatos estariam reduzidos a apenas 3% (Stepan 2004STEPAN, Nancy Leys. (2004), “Eugenia no Brasil, 1917-1940”. In: G. Hochman; D. Armus (org). Cuidar, controlar, curar: ensaios históricos sobre saúde e doença na América Latina e Caribe [online]. Rio de Janeiro: Editora FIOCRUZ, :358). Esse entendimento nos dá a dimensão da importância política da distinção e mensuração da categoria “pardos” nos censos brasileiros.

Para além das ideologias racistas que davam suporte a essas legislações e políticas públicas, o movimento eugênico conferia legitimidade ao crescente controle burocrático/administrativo do Estado sobre a reprodução da população, retirando poderes da Igreja católica no controle das famílias. Embora o esforço de eugenistas mais radicais em prol da legalização do aborto e do controle da natalidade tenham sido obstaculizados pelas forças católicas, as medidas varguistas de seguridade social, de ampliação do auxílio às mulheres grávidas, os benefícios à maternidade para incentivar a formação de grandes famílias, entre outras reformas legais, ainda que não envolvessem seleção de raças, foram saudadas como aprimoramentos eugênicos autônomos com relação aos valores religiosos. Essas reformas ilustram como o discurso científico, como ideologia de Estado, ainda que contido pela resistência do pensamento moralizador católico, desempenhou um importante papel no processo de autonomização do poder estatal no Brasil. A participação de médicos, antropólogos e sanitaristas no grande debate eugenista sobre raças e unidade nacional contribuiu, em grande parte, para consolidar a respeitabilidade dos argumentos científicos seculares e instituí-los como princípios norteadores das iniciativas governamentais de gestão da família e de sua reprodução. Esse deslocamento para a gestão secular e racional da vida privada foi facilitado pelo caráter reformista do movimento eugênico brasileiro que, por sua dimensão mais pedagógica e moralizante do que propriamente racial, não encontrou resistências entre as forças católicas.

Como veremos adiante, a tensão entre Igreja Católica e o Estado na disputa pelo controle da família de nacionais e estrangeiros, mas também dos negros e pardos no caso brasileiro, se expressou no modo diferencial de gerenciar a liberdade religiosa nos dois países.

c. A diversidade religiosa e seu gerenciamento

Na Argentina, o mito da nação católica (Zanatta 1996ZANATTA, Loris. (1996). Del Estado liberal a la nación católica. Iglesia y Ejército en los orígenes del peronismo. Buenos Aires: UNQ.) foi central na sustentação de uma política que não apenas privilegiou o catolicismo, como também, como vimos anteriormente, tendeu a tornar invisível a diversidade religiosa do país. Como a maior parte dos países da região, a Igreja Católica teve um papel preponderante na conquista e na colonização que se plasmou, entre outras coisas, no desenho constitucional vigente até hoje, no qual o governo federal se compromete a “sustentar o culto católico, apostólico, romano”. A primeira constituição republicana, de 1853, exigia que o presidente e o vice-presidente, para serem eleitos, professassem o catolicismo, artigo revogado apenas em 1994. Ela também considerava que corresponde ao presidente indicar os Bispos para as Igrejas Catedrais, com base em uma lista tríplice proposta pelo Senado. Esses incisos legais evidenciam a estreita dependência entre Estado e Igreja no arcabouço institucional argentino que, se teve diversos momentos de tensão e reformas, perdurou durante grande parte do século XX.

Ainda assim, com o objetivo de potencializar a política de povoamento orientada para a chegada de imigrantes de países europeus não católicos, os artigos 14 e 20 da Constituição de 1853 os incorporam explicitamente na liberdade de culto, como medida para favorecer a imigração europeia e a relação com outros estados. Em contrapartida, a Constituição também inclui uma série de artigos que garantiam a centralidade do catolicismo, fragilizando o princípio da igualdade entre os cultos.

Também no caso brasileiro, a questão da imigração protestante desafiou a supremacia católica desde a vinda da família real portuguesa em 1808. O Decreto de Abertura dos Portos para as Nações Amigas, do mesmo ano, ao abrir as relações comerciais estimulou a vinda de imigrantes protestantes oriundos da Inglaterra, Alemanha e Estados Unidos.7 7 Os primeiros a chegar foram os anglicanos ingleses. Em 1824 chegaram os luteranos com os imigrantes alemães, em 1855 os calvinistas, em 1859 os presbiterianos, os metodistas em 1867 e batistas em 1871 com os americanos. Desde então, se estabelece a liberdade religiosa para os não católicos, embora, como no caso argentino, submetida a severas restrições.8 8 A liberdade de culto para os anglicanos ingleses, desde que no âmbito privado, foi garantida em tratado de 1810. Com a independência em 1822 essas restrições se tornaram menos severas. A Constituição de 1824 definiu o Catolicismo como religião oficial do Império, reiterando as concessões legais garantidas anteriormente aos estrangeiros e colonos protestantes. Do ponto de vista jurídico a Carta constitucional do Primeiro Reinado (1822-1831) assegurou o princípio formal da liberdade religiosa. Ela permitia a permanência protestante no território nacional e a ministração de cultos apenas para estrangeiros e nas línguas desses, mantendo suas práticas religiosas restritas ao âmbito privado. Os locais de celebração ritual não poderiam ter a aparência exterior de templos e os rituais públicos eram proibidos. O artigo 95 impedia a elegibilidade dos protestantes a cargos públicos. Tampouco podiam ser sepultados em cemitérios públicos que estavam sob a guarda da Igreja católica nem contrair legalmente o matrimônio, considerado um sacramento reservado aos católicos.

Vemos, pois, que a diversidade de religião, ao lado da escravidão, foi no caso brasileiro um tema extremamente divisivo e politicamente sensível. Como dissemos anteriormente, na estratégia brasileira de invisibilização das práticas negras, a categoria “acatólicos” estava povoada não pelos africanos escravos ou libertos, “convertidos” ao catolicismo por obrigação legal, mas, sim, pelos imigrantes e suas crenças. Os conflitos que opunham protestantes e católicos também dividiam as autoridades públicas, juristas e elites políticas. A tendência geral de alguns escalões mais altos da hierarquia política administrativa, que cultivavam um reconhecido sentimento anticlerical, associado à maçonaria, ao livre-pensamento e ao republicanismo, foi a de se opor às exigências dos grupos católicos mais conservadores e ultramontanos com relação à repressão aos protestantes. Por outro lado, além dos movimentos abolicionistas, muitos prelados envolvidos nas estratégias administrativas da coroa contribuíram para disseminar uma cultura política não religiosa mesmo antes da ruptura republicana. O pensamento e visão de mundo das elites letradas da segunda metade do século XIX e primeiras décadas do século XX caracterizava-se por um espectro amplo que ia de um liberalismo conservador aliado ao pensamento católico a grupos minoritários anticlericais estimulados pela maçonaria, abolicionistas, anarquistas, socialistas e protestantes. A eles também se associavam os positivistas e os espíritas. Já as práticas associadas aos negros, percebidas como perigosas para a ordem pública, mereceram, como veremos adiante apenas a força da lei.

A primeira Constituição republicana brasileira de 1891 rompeu com o exclusivismo católico. Inspirada no modelo americano de separação entre os poderes político e religiosos consagrou o conceito de “liberdade religiosa” prevista na Constituição anterior. No entanto, tratava-se agora, menos de proteger a liberdade de culto dos protestantes do que limitar os poderes administrativos da Igreja para governar populações. Quando se examina o primeiro censo republicano de 1890, percebe-se que o campo dos não católicos começa a povoar-se de novas categorias: aparecem os protestantes, os israelitas, os positivistas (interessantemente recenseados como religiosos ainda que cientificistas), e, de maneira surpreendente em uma sociedade tão predominantemente religiosa, o segmento dos “sem culto professado”.

Como vimos, os espíritas e os segmentos afro tiveram que esperar várias décadas antes de serem reconhecidos como grupos religiosos. Introduzido no Brasil na década de 1860 por imigrantes franceses e organizado em sociedades acadêmicas, o espiritismo rapidamente contou com a simpatia de membros da elite imperial além de ter sido abraçado por segmentos profissionais como médicos, advogados, funcionários públicos jornalista e militares (Lewgoy 2008LEWGOY, Bernardo. (2008), “A transnacionalização do espiritismo kardecista brasileiro: uma discussão inicial”. Religião e Sociedade, vol. 28, nº 1: 84-104.). Nas primeiras décadas da República, se expande por essas camadas médias urbanas e letradas como uma religiosidade laica, sem templos, ritos, sacerdotes ou ministérios. Além de sensível aos desafios do projeto de construção nacional, o ideário espírita também estava afinado com o espírito científico ilustrado e modernizante então imperante e em clara oposição à religiosidade tradicional e familiar do catolicismo. Talvez em razão dessa sintonia com a cultura política das elites letradas, e sua organização em sociedades acadêmicas privadas, que se reuniam nas residências particulares, o espiritismo não tenha sido contado inicialmente como uma religião, mas, sim, como uma filosofia moral. Mas a medida em que as práticas terapêuticas que muitos deles exerciam se popularizam, começam a ser identificados com a magia dos curandeiros, rezadeiras, feiticeiros, e mais tantas outras figuras do povo perseguidas pelas autoridades do campo médico em formação. Tendo sido incorporado ao código penal de 1890 como crime contra a saúde pública (Giumbelli 1997GIUMBELLI, Emerson. (1997), O cuidado dos mortos. Uma história da condenação e legitimação do espiritismo. Rio de Janeiro: Arquivo Nacional.), o espiritismo não pôde, evidentemente, figurar no censo daquele ano como religião. Apenas quando as práticas legais de advogados, delegados e juízes, em negociação com o esforço da Federação Espírita Brasileira (FEB), foram construindo um consenso em torno da necessidade de distinguir entre “falso ou baixo espiritismo”, retratado pela grande imprensa como “curandeirismo” ou exploração da credulidade pública, e o “verdadeiro espiritismo” voltado para a caridade e assistência, a religião espírita passa a figurar no censo de 1940. Já as práticas afro demoraram ainda mais para serem aceitas como religiosas e sair das páginas policiais.

No caso argentino, os privilégios exclusivos da Igreja Católica se mantiveram e se ampliaram no regime republicano, sustentando-se na imagem da nação racialmente homogênea e majoritariamente católica. Embora, como mencionado anteriormente, leis tenham sido aprovadas no final do século XIX ampliando a autonomia e a separação entre Estado e Igreja, a sucessão de ditaduras militares iniciada nos anos 1930 reforçou privilégios da Igreja católica. Por exemplo, em 1946, por decreto do poder executivo, foi criado o Registro Nacional de Cultos, que, pelo menos no início, tinha como missão controlar as religiões não católicas e, consequentemente, restringir sua liberdade.

Embora nas últimas décadas estudos tenham demonstrado que o mito da nação católica se desfaz com o crescimento do pentecostalismo e o de pessoas que se declaram não religiosas (Mallimacci et al. 2020MALILIMACI, Fortunato; BELIEVEAU, Giménez; ESQUIVEL, Juan C. (2020), “Religiones y creencias en Argentina (2008-2019)”. Resultados de la Segunda Encuesta Nacional de Creencias y Actitudes Religiosas en Argentina. Sociedad y Religión 30 (55). Disponible en: http://www.ceil-conicet.gov.ar/ojs/index.php/sociedadyreligion/article/view/805.
http://www.ceil-conicet.gov.ar/ojs/index...
), o Registro Nacional de Cultos permanece vigente e o código civil, reformado em 2015, ratificou a condição da Igreja Católica como uma pessoa de Direito Público a ser subsidiada pelo Estado. No entanto, essa diversidade do campo religioso não implica necessariamente uma pluralização ou, dito em outros termos, uma valoração positiva da diversificação (Beckford, 2003BECKFORD, James. (2003), Social theory and religion. Cambridge: Cambridge University Press.; Frigerio e Wynarczyk 2008). Ao contrário, como assinalam alguns estudos, a visibilização dessa diversidade pode se fazer acompanhar de um “recrudescimento da regulação social” (Frigerio e Wynarczyk 2008) e/ou de uma crescente estigmatização pública (Fidanza e Galera 2014).

Vejamos mais detalhadamente, a seguir, como essas diferenças se expressaram nos respectivos delineamentos legais da liberdade religiosa desses dois países.

2. Regimes de gestão da liberdade e diversidade religiosa

Caracterizar a diversidade étnico-racial e religiosa nesses dois contextos nacionais em suas conexões com os respectivos modelos jurídico-político implica, primeiramente, nos interrogarmos sobre os regimes de gestão da própria liberdade religiosa em cada uma dessas sociedades. Esse, digamos, “passo atrás” justifica-se tendo em vista a impertinência em se considerar a aplicação de um princípio universal de liberdade religiosa. O que importa, ao contrário, é averiguar como e por quais processos o religioso é definido e redefinido de modo situado e histórico, e como se dão as relações dos grupos religiosos com o Estado. Os estudos já realizados por Giumbelli (2001GIUMBELLI, Emerson. (2001), “Liberdade religiosa no Brasil contemporâneo: uma discussão a partir do caso da Igreja Universal do Reino de Deus”. In: R. Kant de Lima (org.). Antropologia e direitos humanos. Niterói: EdUFF.; 2016GIUMBELLI, Emerson; SCOLA, J. Marcos. (2016), “Legislativos de regulação do religioso no Brasil: Estatuto da Igualdade Racial, Acordo Brasil-Vaticano e Lei Geral das Religiões”, Numen Revista de estudos e pesquisa da religião, vol.19, nº 2: 65-85.; 2017) sobre a regulação do religioso nos será útil para caracterizarmos a liberdade religiosa na Argentina e no Brasil e compreendermos como ela se relaciona - seja ao limitá-la, seja ao favorecê-la - com a questão da diversidade étnico-racial e religiosa.

O exercício comparativo se voltará para dois vetores centrais: o primeiro diz respeito ao status constitucional de que a liberdade religiosa se reveste em cada país; o segundo, relacionado ao primeiro, refere-se aos mecanismos que dão concretude a tal liberdade, mormente no seu viés de liberdade de organização religiosa.

No Brasil: liberdade religiosa irrestrita, mas à deux vitesses

No Brasil, a configuração constitucional atual da liberdade religiosa se inscreve em linha de continuidade com o que, desde 1891, estabeleceu-se como eixo norteador das relações entre Estado e religião. Na Constituição Federal de 1988 (CF), a liberdade religiosa se refere, por um lado, a uma liberdade individual que impõe ao Estado o dever de recuo ou limitação,9 9 Art. 5º, VI da CF/1988: É inviolável a liberdade de consciência e de crença, sendo assegurado o livre exercício dos cultos religiosos e garantida, na forma da lei, a proteção aos locais de culto e a suas liturgias. tendo em vista a inviolabilidade da esfera individual de ação do sujeito de direitos; por outro lado, ela veda a associação direta entre a pessoa política do Estado e as entidades religiosas.10 10 Art. 19 da CF/1988: É vedado à União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios: I - estabelecer cultos religiosos ou igrejas, subvencioná-los, embaraçar-lhes o funcionamento ou manter com eles, ou seus representantes, relações de dependência ou aliança, ressalvada, na forma da lei, a colaboração de interesse público. A Constituição de 1824 foi a única a confundir poder político e poder religioso ao instituir o catolicismo como a religião oficial do Império. As demais constituições resguardaram, com algumas nuances entre elas, a separação estrita prevista na Constituição republicana, bem como consagraram a liberdade religiosa geral e irrestrita para toda forma de culto.

Instituído o princípio da separação entre Estado e religião, o período republicano assistiu à transferência da gestão dos cemitérios para o Estado, a supressão do ensino religioso nas escolas públicas, ou ainda, a invalidação dos efeitos jurídicos do casamento religioso, efeitos que, sob a pressão da Igreja católica, foram posteriormente repatriados aos textos constitucionais seguintes.

A despeito dessa configuração legal e da então auspiciosa nota “laicizante” instaurada pela Constituição de 1891, alguns trabalhos cuidaram de desvelar contradições nos bastidores da passagem do Estado confessional ao Estado laico (Montero 2006MONTERO, Paula. (2006), “Religião, pluralismo e esfera pública no Brasil”. Novos Estudos Cebrap, nº 74: 47-65.; 2009; Giumbelli 2002GIUMBELLI, Emerson. (2002), O fim da religião: dilemas da liberdade religiosa no Brasil e na França. São Paulo: Attar.; 2008GIUMBELLI, Emerson. (2008), “A Presença do religioso no espaço público: modalidades no Brasil”. Religião & Sociedade, vol. 28, nº 2: 80-101.) realçando o papel da Igreja católica como ator central para a manutenção engenhosa de alguns privilégios. Assim, sob a inspiração católica - tida, até então, como o “referente naturalizado do religioso” (Montero 2018) - foi edificado um sistema jurídico que reconhecia as associações religiosas em geral como pessoa jurídica de direito privado, dispondo de uma liberdade alargada quanto à gestão de seu patrimônio, bem como de seu modo de criação e funcionamento. Ao mesmo tempo principal prejudicada e artesã dessa passagem, a Igreja foi capaz de manter sua posição privilegiada até muito recentemente. O problema colocou-se quando tais privilégios foram relidos, a partir dos textos legais de 1988, como direitos, agora extensíveis a outras religiões, inaugurando, assim, o marco do pluralismo religioso no Brasil. Como veremos a seguir, referido sistema, embora tenha facilitado a abertura de novas igrejas, colocou um ônus desigual no esforço de angariar o reconhecimento estatal de práticas populares e racialmente demarcadas como sendo religiosas.

A naturalização do referente cristão será de suma importância tanto para a definição do religioso no Brasil, e, portanto, para a definição de qual liberdade seria necessário proteger, quanto para a configuração dos limites da atuação da Igreja católica no espaço público (Montero 2006MONTERO, Paula. (2006), “Religião, pluralismo e esfera pública no Brasil”. Novos Estudos Cebrap, nº 74: 47-65.; 2009MONTERO, Paula. (2009), “Secularização e espaço público: a reinvenção do pluralismo religioso no Brasil”. Revista Etnográfica, volume 13, número1:7-16.; Oro et ali. 2012ORO, Ari Pedro; STEIL, Carlos. Alberto; CIPRIANI, Roberto; GIUMBELLI, Emerson. (Org.). (2012), “A Religião no espaço público - atores e objetos”. São Paulo: Terceiro Nome. ; Giumbelli 2002GIUMBELLI, Emerson. (2002), O fim da religião: dilemas da liberdade religiosa no Brasil e na França. São Paulo: Attar.; 2008MALLIMACI, Fortunato. (2008), “Nacionalismo católico y cultura laica en Argentina”. In: R. Blancarte (coord.). Los retos de la laicidad y la secularización en el mundo contemporáneo. México: El Colegio de México. http://www.rafagentili.com.ar/content/uploads/Mallimaci_-cultura_laica_en_Arg.pdf
http://www.rafagentili.com.ar/content/up...
). O catolicismo foi o molde ao qual as demais expressões coletivas deveriam se adaptar para ser reconhecidas como religiões propriamente ditas, sob pena de perseguição e deslegitimação social. Ao longo do século XX, a Igreja católica defendeu, junto de intelectuais, juristas, policiais, acadêmicos e imprensa, a perseguição policial às práticas populares de cura e às expressões coletivas da população negra, em nome da ordem social e da construção da pátria nascente. Assim, embora a lei garantisse o livre exercício de culto e sua expressão pública, práticas espíritas e de matriz africana ora por serem consideradas supersticiosas, ora por afrontarem os bons costumes e ameaçarem a ideia de identidade e nacionalidade em construção, ora por corromperem a moral social, com práticas tidas como lascivas, e mesmo selvagens (Montero 2006; 2018), não foram percebidas como “cultos” merecedores de proteção estatal. Já no plano das religiões reconhecidas como tal, como no caso dos protestantes e judeus, a Igreja católica, nem sempre com sucesso, usou seu prestígio e poder político para que lhe fossem recusados os direitos de expressão pública acusando-as de heréticas ou falsas religiões.

A definição do religioso foi tão estritamente associada ao catolicismo que, para persistirem, as outras práticas procuraram amalgamar-se a esse referente de modo a angariarem reconhecimento. Nesse contexto compreende-se a aporia apontada por Montero (2018MONTERO, Paula. (2018) “Syncretism and Pluralism in the Configuration of Religious Diversity in Brazil”, Mecila: Working Papers Series, vol. 4: 1-16.) segundo a qual, ainda que o Estado brasileiro tivesse renunciado à regulação do religioso e optado por um marco de liberdade religiosa quase irrestrita, a regulação se fazia, na prática, pela via do controle da expressão pública e da repressão policial das manifestações coletivas de negros e pobres percebidas como perigosas. A tipificação de práticas espíritas como supersticiosas e, portanto, um crime contra a saúde pública, e a tipificação de qualquer reunião de negros como um atentado à ordem pública seriam exemplos da combinação de vetores que controlavam a definição do “religioso” no Brasil e, consequentemente, a extensão do direito à liberdade religiosa. Exemplos como esses demonstram a relação intrínseca existente entre o tipo de regulação oficial da liberdade religiosa e a produção do religioso propriamente dito.

Os marcos normativos de liberdade religiosa se desdobraram, como veremos a seguir, em regulações infraconstitucionais visando conferir efetividade à liberdade religiosa. A análise do formato de tais regulações é susceptível de indicar, para além das formas de constituição jurídica de diferentes coletivos religiosos, como as dinâmicas e sensibilidades presentes no processo histórico de construção da liberdade religiosa são também geradoras de desigualdade. Analisaremos a seguir como, a despeito da aspiração igualitária da Constituição Federal de 1988, nas regulações infraconstitucionais posteriores as dinâmicas promotoras de desigualdade religiosa continuaram atuantes.

Ao optar pelo princípio de liberdade religiosa irrestrita em suas constituições, o Brasil não elegeu critério ou categoria jurídica para a definição do religioso. Se tal definição ocorreu, ela se fez e faz por outros meandros como mostramos anteriormente. Segundo a legislação brasileira atual, o reconhecimento pelo Estado de um coletivo como religioso depende apenas do acesso e mobilização de um conjunto de exigências formais de registro. A frouxidão da exigência cartorária, bem como a extensão, no plano jurídico, dos benefícios que dela advêm (manutenção de templos, isenções fiscais, recebimento de recursos, previdência social para os oficiantes etc.) já foram objeto de inúmeras críticas, dentro e fora do campo do direito (Pierucci 1996PIERUCCI, A. FO. (1996), “Liberdade de cultos na sociedade de serviços”. Novos Estudos CEBRAP, São Paulo, nº 44: 3-11.).

A obtenção de personalidade jurídica por grupos religiosos é feita via constituição do que é chamado atualmente de “organização religiosa”. Tal processo de constituição conheceu modificações ao longo de sua história, até configurar-se no modelo atual, no qual não há centralização registral, tampouco existência de aparato específico para registro e controle. Para ser reconhecida como organização religiosa, basta a um coletivo religioso cumprir as formalidades previstas na lei, tais como registro em Cartório civil de pessoas jurídicas, obtenção de Cadastro nacional de pessoas jurídicas (CNPJ) junto à Receita Federal e inscrição na prefeitura municipal de origem.

O controle exercido no passado sobre a Igreja católica, e largamente flexibilizado a partir do Código Civil de 1916 em nome da proteção da liberdade religiosa, foi revisto com a nova edição do código em 2002. De claro viés secularizante (Mariano 2006MARIANO, Ricardo. (2006), “A reação dos evangélicos ao novo Código Civil”. Civitas - Revista de Ciências Sociais, vol. 6, nº 2: 77-99.) e incomparavelmente mais rígido, por visar a ampliação do controle político-jurídico do Estado sobre as organizações religiosas, tal código sofreu resistência ferrenha de setores religiosos, mormente evangélicos, já enraizados à época de modo sólido no parlamento brasileiro. Ele foi acusado por esses atores, em razão de seu “intervencionismo”, como um atentado à laicidade e à liberdade religiosa. A partir de um processo de discussão que contou com o entusiasmo da Igreja católica, o Código civil de 2002 foi alterado em 2003 pela Lei nº 10.825, tendo como resultado a criação de um tipo novo e particularista de associação, a já mencionada “organização religiosa”, favorecida de plena autonomia de gestão e funcionamento. O principal interesse dessa mudança no código civil foi liberar os coletivos religiosos dos mesmos controles que pesam sobre os atos de uma associação civil, seja ela de bairro, clubes de futebol, entidades filantrópicas, entre outras (Mariano 2006; Giumbelli e Scola 2016GIUMBELLI, E. (2016), “Regulação do religioso: discussões conceituais e panorama da situação em quatro países latino-americanos”, Ciencias sociales y religión (Online), vol. 18:14-37.).

Em resumo, para o que nos propomos aqui, isto é, examinar o status constitucional e as disposições para a efetivação da liberdade religiosa, pode-se afirmar que as organizações religiosas gozam, em tese, no Brasil, de ampla liberdade, sem necessidade de autorização prévia para funcionamento ou monitoramento específico por parte do Estado. Se tais condições são suscetíveis de contribuir para o aumento do número de organizações religiosas no Brasil,11 11 Levantamento da Receita Federal aponta que de janeiro de 2010 a fevereiro de 2017 foram registradas como organizações religiosas uma média de uma nova igreja a cada hora no Brasil. Cf. https://oglobo.globo.com/brasil/desde-2010-uma-nova-organizacao-religiosa-surge-por-hora-21114799 Por outro lado, o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) aponta que em média 14 mil igrejas evangélicas são abertas anualmente. Cf. https://www.nexojornal.com.br/externo/2019/12/09/O-crescimento-da-f%C3%A9-evang%C3%A9lica sua relação com o incremento da diversidade religiosa e de sua proteção legal carece de análise mais acurada. Ainda que não se adotem critérios de definição do religioso e que as exigências legais beirem o mero registro documental, os números apontam certa disparidade de armas entre grupos religiosos diversos para fazer valer seu reconhecimento como organizações religiosas. Exemplos concretos recentes, como veremos a seguir, indicam que a recusa em reconhecer, no passado, alguns grupos como religiosos, particularmente os racialmente demarcados, parece reeditar-se no presente, embora de outro modo. Se comparados à facilidade nas formas de criação e proteção das organizações religiosas claramente enquadradas no modelo cristão historicamente consagrado como os evangélicos, os direitos de grupos que se separam dessa matriz, em particular aqueles racialmente demarcados, ainda são tidos como duvidosos.

Dar concretude à liberdade religiosa parece ser, até o presente, um obstáculo considerável para as religiões de matriz africana. Problemas no acesso à imunidade tributária, dificuldade ou impossibilidade para ministros religiosos em obter inscrição no sistema de seguridade social, recusa na atribuição de validade aos casamentos celebrados no candomblé, invasão de templos por agentes de segurança pública, sem mandado judicial, seja de dia ou de noite, seriam, segundo Silva Júnior (2007SILVA JUNIOR, Hédio. (2007), “Notas sobre o Sistema Jurídico e Intolerância”. In: V. Silva (org.). Intolerância Religiosa: impactos do neopentecostalismo no campo-religioso brasileiro. São Paulo: EDUSP: 303-331.) e Silva (2007aSILVA, Vagner Gonçalves da. (2007a), “Entre a gira de fé e Jesus de Nazaré: relações sócio-estruturais entre neopentecostalismo e religiões afro-brasileiras”. In: V. Silva (org.). Intolerância Religiosa: impactos do neopentecostalismo no campo-religioso brasileiro . São Paulo: EDUSP : 191-260.), algumas das desventuras vividas pelas comunidades afro-religiosas no Brasil. A elas se soma a multiplicação de episódios de ofensa verbal e atos de violência física propriamente dita, que enfrentam dificuldades de toda sorte para serem reconhecidos como crime de intolerância religiosa (Nicácio 2020NICÁCIO, Camila Silva. (2020), “A formalização da intolerância religiosa em registros policiais: retrato de um problema em (des)construção”. Contemporânea - Revista de Sociologia da UFSCar, vol.10, nº 2: 557-583.). O mesmo pode ser dito das Campanhas da Igreja Universal do Reino de Deus, tais como a “guerra santa” ou “cruzada” que, tal como a Igreja católica no passado, tratam como “falsa religião” os ritos e práticas afro-brasileiros (Silva 2007bSILVA, Vagner Gonçalves da; Rodgers, David Allan. (2007b), “Neo-Pentecostalism and Afro-Brazilian religions: explaining the attacks on symbols of the African religious heritage in contemporary Brazil”. Mana, nº 3.).

A reivindicação de irrestrita defesa da liberdade religiosa como pressuposto e fundamento jurídico da laicidade pode falsear o debate acerca de seu alcance em um contexto em que a lei também protege a igualdade dos cultos. No momento atual, não se trata mais, como no passado, do não reconhecimento pelo Estado dos mais diversos grupos como religiosos, mas, sim, de efetivar, na prática, os direitos que lhe são garantidos pela Constituição e pelo código civil. Essas dificuldades se tornam evidentes quando se alude a religiões racial e etnicamente demarcadas. O cenário acima descrito aponta, pois, para uma liberdade religiosa à deux vitesses, que sufoca as condições de igualdade para a proteção da diversidade religiosa. Como observado anteriormente, a diversidade religiosa foi construída com base em um longo processo de reconhecimento seletivo, no qual o medo das “classes perigosas”, especialmente quando racial e etnicamente demarcadas, se associava às exigências inerentes ao controle dessas populações. O reconhecimento legal de suas expressões coletivas como religiosas em 1988 impôs novos desafios. A sua salvaguarda veio acompanhada da proteção de muitos outros pluralismos (étnico, racial, de gênero etc.). No entanto, embora as condições legais da liberdade religiosa já estejam dadas, e lhe sejam amplamente favoráveis, a expansão das garantias de proteção da diversidade instituída de jure em 1988 parece sugerir que dinâmicas tais como a mobilização seletiva da própria liberdade acabam por se tornar um obstáculo à implementação dos direitos inerentes ao pluralismo.

Na Argentina: liberdade religiosa “vigiada”

Para os fins da comparação a que nos propusemos, analisaremos nesta seção a configuração da liberdade religiosa na Constitución de la Nación Argentina (CNA) e o regime de sua aplicação nas leis infraconstitucionais. De saída, adiantamos nosso argumento. O Brasil adotou a separação estrita entre Estado e Igreja Católica sem definir critérios normativos de definição do religioso. Desse modo, a neutralidade estatal ou liberdade irrestrita tinha como garantia implícita a naturalização do catolicismo como única religião verdadeira e das práticas racialmente demarcadas como criminosas. Já a Argentina produziu um marco normativo constitucional que atribuiu explicitamente primazia à Igreja católica em sua relação com o Estado e, embora previsse a liberdade de cultos para outras religiões, estabeleceu um sistema de registro de cultos para defini-las. Desse modo, no caso brasileiro, a aplicação das garantias da liberdade religiosa se deu de modo seletivo e dependente dos processos sócio-políticos de reconhecimento de práticas racialmente demarcadas como religiosas. Já a Argentina colocou nas mãos da burocracia estatal a decisão de definir oficialmente o que deve ou não ser reconhecido como religioso. A invisibilização da diversidade étnico-racial associada à primazia da Igreja Católica fez com que esse processo de definição se concentrasse no controle da ortodoxia católica, como no caso, que descreveremos adiante, das devoções populares. A esse modo de regular a diversidade religiosa demos o nome de liberdade religiosa “vigiada”. Passemos à descrição e análise de suas principais características.

Inúmeras similaridades podem ser encontradas nos marcos históricos e constitucionais de Argentina e Brasil relativamente à interface Estado e religião. Por essa razão os enquadramentos legais constituem, a nosso ver, um lócus privilegiado para investigarmos as “acomodações recíprocas” que Esquivel (2003ESQUIVEL, Juan. (2003), “Igreja católica e Estado na Argentina e no Brasil. Notas introdutórias para uma análise comparativa”. Ciencias Sociales y Religión/Ciências Sociais e Religião, ano 5, nº 5: 191-223.) apontou em seu estudo comparado das relações entre Igreja e Estado no Brasil e na Argentina. Para o autor, ao longo desse processo, nos dois países, Estado e Igreja se valeram um do outro, aquele em busca de uma “fonte fornecedora de sentido”, esta, de garantias para a reprodução de seu aparelho burocrático e de seu programa pastoral (2003). Ainda assim, os arranjos jurídicos que se deram para essa finalidade foram distintos.

Datada de 1853, a Constituição argentina vigente já passou por várias reformas, a mais recente em 1994. Nela estão insculpidos princípios tais como o pluralismo político, a igualdade e a liberdade de iniciativa, e ainda recursos a remédios constitucionais contra lesão a direitos, a exemplo da acción de amparo, similar ao mandado de segurança brasileiro. De matriz liberal como a brasileira, a Constituição argentina é resultado da prevalência, na discussão constituinte, de um ideal abrangente de liberdade religiosa (“todos são livres para praticar seu culto”, art. 14), ainda que relativo, haja vista a manutenção da submissão indígena à conversão católica.

Embora o principal interesse da Igreja Católica em 1853 - ser reconhecida como religião oficial - tenha sido rechaçado, ela conquistou uma saída negociada, que foi chamada de “pacto” (Di Stefano 2011DI STEFANO, Roberto. (2011), “Por una historia de la secularización y de la laicidad en la Argentina”. Revista Quinto Sol, Instituto de Estudios Socio-Históricos, vol. 15, nº 1: 1-15.): ao passo em que era excluída das funções que passaram a ser reservadas ao Estado, à Igreja foi oferecido um lugar privilegiado no trato com o Estado e, ao catolicismo, o status de culto “cuasi oficial”, que redundava, na prática, no subsídio estatal à sua manutenção e funcionamento. Esse tratamento jurídico diferencial, amparado em termos pela percepção comum da inexistência de outras religiões, compôs, ao contrário da Constituição brasileira, uma desigualdade “de origem”, que marcaria em profundidade as relações entre o político e a diversidade religiosa.

A literatura sobre o tema indica que o projeto católico, apoiado pelos conservadores quando da Constituinte de 1853, era sobremaneira mais ambicioso. Segundo Maisley (2016MAISLEY, Nahuel. (2016), “La libertad religiosa en la Argentina”. In: R. Gargarella & S. Güidi (coord.). Comentarios de la Constitución de la Nación Argentina. Jurisprudencia y doctrina: una mirada igualitaria. Buenos Aires: La Ley.), tal projeto, derrotado pelo predomínio liberal, previa erigir o catolicismo como “única e verdadeira” religião, submeter a população ao seu culto compulsório e condicionar o ingresso no emprego público à adesão à Igreja católica, condições estas que, no caso brasileiro, vigeram apenas no período monárquico (1822-1889).

Essa derrota dos conservadores teria sido o primeiro “limiar” do processo de laicização na Argentina (Di Stefano 2011). Em outros momentos cruciais do referido processo, a pretensão liberal igualitária se fez novamente sentir. Na senda aberta pela Constituição de 1853, uma série de normativas legais (leyes laicas) foi aprovada pelo Congresso, no final do século XIX, aprofundando a diretriz igualitarista do texto constitucional e acentuando a separação Estado e Igreja, a exemplo das leis sobre o registro e o casamento civis e sobre a educação pública não confessional. A retirada de efeitos jurídicos ao casamento religioso, reservando-os apenas ao Estado, é assinalada com destaque pela literatura, uma vez que salientou tanto a igualdade entre cultos diversos quanto entre religiosos e não religiosos (Maisley 2016MAISLEY, Nahuel. (2016), “La libertad religiosa en la Argentina”. In: R. Gargarella & S. Güidi (coord.). Comentarios de la Constitución de la Nación Argentina. Jurisprudencia y doctrina: una mirada igualitaria. Buenos Aires: La Ley.).

O interregno do avanço laicizante no período militar argentino demonstrou a renitência do poder eclesiástico em manter-se influente: dos anos 1930 aos 1950 (Zanca 2006) ou até os 1980 (Malimacci 2008), a partir de uma aliança com as forças armadas, a Igreja católica apresentou-se como “depositária” dos valores da nação e como símbolo de um “nacionalismo de substituição”, oferecendo-se como via de escape ao dualismo entre liberalismo e comunismo então em expansão (Mallimaci, Cucchetti & Donatello 2006MALLIMACI, Fortunato; CUCCHETTI, Humberto y DONATELLO, Luis Miguel. (2006), “Caminos sinuosos: nacionalismo y catolicismo en la Argentina Contemporánea”. In: F. Colom; A. Rivera; Á. Rivero (ed.). El altar y el trono. Estudios sobre el catolicismo político iberoamericano. Barcelona: Editorial Antrophos.). O fim da última ditadura militar em 1983 inaugurou um período de expansão da visibilidade da diversidade religiosa e social, com surgimento da militância afro-argentina, do crescente peso público das igrejas evangélicas e da participação de ativistas a favor do Estado laico (dentre eles feministas, integrantes da comunidade LGBTI e defensores dos direitos humanos). A transição democrática representou igualmente uma inflexão no plano das decisões da Suprema Corte, com a afirmação gradual da liberdade religiosa e da neutralidade do Estado em assuntos religiosos. No entanto, como afirmamos anteriormente, essa expansão da visibilização não significa, necessariamente, uma pluralização do campo religioso como legitimação das diferenças raciais, étnicas ou religiosas (Frigerio, Wynarczyk 2008).

Ao seu turno, a reforma constitucional de 1994 é reconhecida por amplificar a dimensão liberal-igualitária do direito à liberdade religiosa, ao retirar do texto constitucional quase todos os índices de primazia das instituições católicas. Caíram por terra menções ao padroado, à obrigatoriedade de o presidente e seu vice serem católicos, bem como à evangelização e conversão de indígenas, agora reconhecidos em sua “preexistência” étnica e cultural, ao passo em que foram integradas na ordem constitucional argentina normativas internacionais de regulação dos direitos humanos (Maisley 2016MAISLEY, Nahuel. (2016), “La libertad religiosa en la Argentina”. In: R. Gargarella & S. Güidi (coord.). Comentarios de la Constitución de la Nación Argentina. Jurisprudencia y doctrina: una mirada igualitaria. Buenos Aires: La Ley.).

A despeito desses avanços, o famigerado Art. 2º, relativo ao custeio do culto católico por parte do governo nacional não foi retirado. Lido como uma “figura exótica” (Maisley 2016MAISLEY, Nahuel. (2016), “La libertad religiosa en la Argentina”. In: R. Gargarella & S. Güidi (coord.). Comentarios de la Constitución de la Nación Argentina. Jurisprudencia y doctrina: una mirada igualitaria. Buenos Aires: La Ley.), referido artigo é interpretado, majoritariamente, como uma forma de controle estatal do financiamento destinado à preservação de igrejas como monumentos históricos, aos salários de bispos, padres e seminaristas, às ações sociais promovidas por grupos católicos ou ainda ao sustento de escolas confessionais e não confessionais. Há, contudo, desde 2018, previsão de que tal apoio financeiro comece a ser revisto pela Igreja Católica, que lançou um plano econômico para incrementar sua autonomia financeira e renunciar de forma progressiva ao apoio estatal.12 12 https://www.cronista.com/economiapolitica/La-Iglesia-lanza-una-reforma-economica-para-renunciar-a-los-aportes-del-Estado-20200303-0024.html https://www.vaticannews.va/es/iglesia/news/2020-07/episcopado-argentino-lanza-programa-fe-ayuda-a-la-iglesia.html

Embora o Art. 2º venha sendo interpretado no sentido apenas de custeio econômico, sua presença no texto constitucional, por si só, pode ser compreendida como uma contradição à luz do conjunto normativo do texto, colocando seus intérpretes, a cada caso concreto, na posição ingrata de ter que reafirmar a separação entre Estado e Igreja, e sustentar a liberdade e igualdade religiosa e, ao mesmo tempo, o tratamento preferencial à Igreja católica. As formulações acerca do que se chamou “laicidade subsidiária” (Esquivel 2003ESQUIVEL, Juan. (2003), “Igreja católica e Estado na Argentina e no Brasil. Notas introdutórias para uma análise comparativa”. Ciencias Sociales y Religión/Ciências Sociais e Religião, ano 5, nº 5: 191-223.; 2010) refere-se a essa contradição e dá conta do longo processo de autonomização gradual e ainda em curso dos campos político e religioso, no qual o Estado, apesar dos avanços no campo da laicidade, ainda recorre, sobretudo em momentos de crise, à Igreja católica como fonte de legitimação dos processos políticos, auferindo, com esse proceder, ganhos “extra-políticos” (Esquivel 2010).

Em estudo no qual explora as relações entre Estado e instituições católicas no que concerne às políticas públicas e normas em matéria de educação, educação sexual, culto e direitos sexuais e reprodutivos, Esquivel (2010ESQUIVEL, Juan. (2010), “Notas sobre la laicidad en Argentina”. Revista Debates do NER, ano II: 149 -171.) aponta para uma tensão entre o incentivo oferecido à Igreja na gestão das políticas públicas e sua presença naturalizada nas discussões legislativas, e o aumento de demandas pela expansão de direitos civis que, não raro, confrontam a doutrina católica. Nem laico nem confessional, o Estado argentino, ao contar com a Igreja como um fiador político, parece também abrir-se às reivindicações crescentes do pluralismo social, mas com reserva.

A despeito da discussão acerca do teor do art. 2º, o status privilegiado atribuído à Igreja Católica pela Constituição terá reflexos também no plano infraconstitucional, no qual diferenças de tratamento entre instituições religiosas são tangíveis.

É no Código civil argentino e na Lei nº 21.745/1978 que se encontram tais elementos de diferenciação. Enquanto o Código, em seu art. 146-C, trata a Igreja católica como pessoa jurídica de direito público, as demais são consideradas como pessoas jurídicas de direito privado, ou seja, como organizações da sociedade civil, com tudo o que a distinção implica a título de formalização, gestão do patrimônio, responsabilidade civil e administrativa. Embora esse código tenha sido reformado em 2015, reafirmou-se a condição da Igreja Católica como pessoa jurídica de direito público, status compartilhado com os Estados provinciais - o que parece alçar seus interesses aos interesses do Estado (Maldonado 2016MALDONADO, Adrián. (2016), “Personalidad Jurídicas de las Iglesias y entidades religiosas en Argentina”. Derecho, Estado y Religión. Vol. 2: 39-87.), criando condições político-estruturais de desigualdade em relação às outras entidades religiosas. Em consonância com esse status, o Registro nacional de cultos, regulado atualmente pela Lei 21.745/1978, exime a Igreja Católica do dever de inscrever-se, ao contrário dos demais cultos.

Assim disposto, referido regime registral parece estar, ao nosso ver, de saída, fadado a criar situações desiguais ou mesmo discriminatórias. A doble inscripción (Arlettaz 2018ARLETTAZ, Fernando. (2018 a), “El Estatuto de los grupos religiosos en el proyecto de ley de libertad religosa y sus implicaciones constitucionales”. En Letra - año V, nº 9: 213-240.a) imposta para grupos religiosos, exceção feita à Igreja católica, exige que primeiramente se proceda à criação de uma associação de direito privado de tipo genérico, obtendo personalidade jurídica, e, em seguida, se solicite autorização de funcionamento à Direção Geral do Registro Nacional de Cultos, órgão estatal específico (Giumbelli 2017GIUMBELLI, Emerson. (2017), “A vida jurídica das igrejas: considerações sobre minorias religiosas em quatro países (Argentina, Brasil, México e Uruguai)”. Religião e Sociedade, vol. 37, nº 2: 121-143.). Esse procedimento burocrático opera como um filtro que, amparado pela cultura política argentina e seu próprio ordenamento jurídico, produz o religioso nos balcões das repartições públicas. Giumbelli (2017) nos mostra como os meandros das decisões tomadas por parte da Direção Geral do Registro Nacional de Cultos podem ser discricionárias. Em um dos exemplos apresentados pelo autor o órgão nega o registro solicitado por um coletivo de culto a San La Muerte, de traços católicos. Se a primeira negativa se deu sobretudo em função de falhas no preenchimento adequado dos protocolos de requerimento, a segunda é incisiva em afirmar que o culto não pode ser considerado propriamente uma “religião”, mas um “movimento de devoção popular” ou uma versão “deformada das crenças cristãs, sobretudo católicas” (Giumbelli 2017:125). Como analisado por Fidanza e Galera (2014LOPES, Fidanza Juan Martin; GALERA, María Cecilia. (2014). “Regulaciones a una devoción estigmatizada: Culto a San la Muerte en Buenos Aires”. Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Departamento de Antropologia; Debates do NER; 15; 25; 8-2014; 171-196.), a negativa formal do registro também reflete (ou deve ser analisado conjuntamente com) as resistências e os conflitos sociais. Trata-se claramente, nesse exemplo, de manter o controle da hierarquia religiosa sobre as crenças populares.

Segundo Bossio (2018BOSSIO, María Pilar García. (2018). “La laicidad problematizada. Su uso para pensar organismos estatales”. Religião y Sociedade, 38(2): 148-173. https://dx.doi.org/10.1590/0100-85872018v38n2cap05
https://dx.doi.org/10.1590/0100-85872018...
), essa regulação ultrapassa o mero plano do favoritismo estatal, conjugando-se também com o plano da visibilidade e legitimidade social. A autora assinala a importância simbólica do registro para muitos coletivos religiosos, uma vez que ele implica o reconhecimento da entidade como agente legítimo, por parte do Estado, além de diminuir as pressões advindas da regulação social, seja via estigmatização midiática ou preconceitos sociais.

Arlettaz analisa em dois trabalhos (2018ARLETTAZ, Fernando. (2018 b), “Régimen legal de las comunidades religiosas en el derecho argentino”. Revista Electrónica, Instituto de Investigaciones Ambrosio L. Gioja, Nº 20, junio-noviembre:186-222.a; 2018bARLETTAZ, Fernando. (2018 b), “Régimen legal de las comunidades religiosas en el derecho argentino”. Revista Electrónica, Instituto de Investigaciones Ambrosio L. Gioja, Nº 20, junio-noviembre:186-222.) projetos legislativos que visam reestruturar o regime de regulação do religioso na Argentina. Embora, até o presente momento, não tenha prosperado a discussão acerca de nenhum deles, o autor afirma que, à luz dos projetos, verifica-se tendência de manutenção do status privilegiado da Igreja Católica, com concomitante extensão, em favor das demais comunidades religiosas, de alguns dos direitos de que ela gozou de modo exclusivo ao longo da história do país. Essa tendência parece justificar a expressão cunhada pelo autor de “reconhecimento multiconfessional assimétrico”, segundo a qual, embora o país não viva mais em um “esquema de preeminência da Igreja Católica próximo ao confessionalismo” (2018b:188), a igualdade entre as religiões ainda está por ser conquistada, haja vista que o que se pretende é “aproximar, ainda que não igualar totalmente, o regime da Igreja Católica e o regime das demais comunidades religiosas” (2018b:188).

A liberdade religiosa à deux vitesses no Brasil e a liberdade religiosa “vigiada” na Argentina fazem convergir duas experiências nacionais singulares: a afirmação constitucional da irrestrita liberdade religiosa na Constituição brasileira (art. 5º, VI, CF/1988) ou da plena liberdade de culto na Constituição argentina (art. 14, CNA/1853) não garantem, per si, condições para a diversidade e o pluralismo religioso no plano das organizações religiosas. Tampouco a reiteração categórica da laicidade irrestrita (art. 19, CF/1988) faz do Brasil um país mais laico do que a Argentina, a despeito de sua confessada afirmação da diferença católica (art. 2º da CNA/1853).

Tudo indica ser, preferencialmente, no campo aberto das disputas sociais que noções como liberdade religiosa e laicidade vão sendo desenhadas e reivindicadas segundo estratégias e interesses diversos, envolvendo o difícil processo de reconhecimento da diversidade de grupos religiosos racial e etnicamente demarcados.

Considerações finais

Ainda que incipiente, o esforço comparativo realizado até aqui parece nos permitir, ao mesmo tempo, avançar algumas conclusões preliminares e traçar um roteiro para investigações ulteriores.

Ao tentarmos compreender a configuração das relações entre a diversidade religiosa e a étnico-racial no Brasil e na Argentina, fomos levados a investigar como em cada país, e com base em quais processos específicos, a liberdade religiosa, como condição de possibilidade da própria diversidade, foi moldada na longa duração. Assim, concluímos que o apagamento da diversidade étnico-racial, no caso argentino, e a mistura com hierarquia, no caso brasileiro, definiram os contornos da diversidade dos estados-nação então em construção ao mesmo tempo em que estabeleceram, sob o marco do exclusivismo oficial no caso argentino e da hegemonia católica no caso brasileiro, os limites de uma diversidade religiosa desde sempre controlada. Tal modelagem foi feita via uma larga gama de intervenções do Estado, partindo do controle das populações, seja por meio de políticas sanitárias eugênicas e de intervenção nos regimes de matrimônio raciais como foi o caso brasileiro, seja no caso de ocupação e domínio territorial no que toca à Argentina, ou ainda pelo controle do fluxo e da qualidade da migração, tal como se verificou em ambos os países.

A liberdade religiosa, tanto no Brasil quanto na Argentina, significou, por muito tempo, enfrentar as questões relativas às reivindicações de desregulação dos controles estatais sobre a Igreja católica mais do que construir as garantias legais para a expressão pública de religiões não católicas. Em resposta a essa pressão, o Brasil precocemente inseriu a neutralidade estatal como elemento central de seu modelo de laicidade, não desenvolvendo um aparato específico para a definição e registro da variedade religiosa que, quando demarcada racialmente, demorou quase um século para ser efetivamente reconhecida enquanto tal. Na aplicação desse modelo desenvolveu um modus operandi burocrático lasso para a oficialização das organizações religiosas concedendo-lhes liberdade religiosa irrestrita, mas à deux vitesses. O histórico controle da temida população negra pós-abolição tornava impensável algo como uma religião negra dotada de liberdade irrestrita. Os negros foram, pois, tidos como católicos e, com efeito, passaram a compartilhar as igrejas. Na ausência de um regime legal de segregação racial as relações de hierarquia foram absorvidas pela linguagem de fraternidade, igualdade humana e unidade eclesial. Foi preciso esperar o lento trabalho de deslocamento da referência racial para a cultural - a construção do legado afro - para que as práticas racialmente demarcadas como negras passassem a ser recenseadas como religiosas. Ainda assim, no momento “de fazer existir essas igrejas”, na feliz expressão de Giumbelli (2017GIUMBELLI, Emerson. (2017), “A vida jurídica das igrejas: considerações sobre minorias religiosas em quatro países (Argentina, Brasil, México e Uruguai)”. Religião e Sociedade, vol. 37, nº 2: 121-143.:121), e dar concretude aos direitos implicados nessa liberdade, novamente as desigualdades, de fato, reaparecem.

A Argentina, em termos gerais, caracteriza-se por uma matriz de homogeneização da diversidade racial e religiosa que permite invisibilizar (e, assim, potencializar) a exclusão e marginalização da população não branca e não católica. Como parte dessa matriz, a liberdade religiosa se institui amarrada ao projeto civilizador que, ao mesmo tempo que hierarquizava o imigrante europeu e suas crenças, apagava (e até mesmo exterminava) as populações não brancas. Desse modo, a Argentina manteve um regime de liberdade vigiada, pelo qual o aparato estatal se arrogou o direito de definir as fronteiras do religioso, decidindo o que podia ou não se caracterizar como religião, e de colaborar com a hierarquia católica na custódia de sua ortodoxia. O país não fez, assim, da neutralidade a garantia da sua laicidade, mas, ao contrário, preferiu manter nas mãos do Estado a regulação do religioso via a manutenção dos salários e subsídios à Igreja Católica, explicitando sua primazia no acesso a direitos. Na falta de uma paisagem étnico-racial e religiosa construída historicamente como claramente diversa, essa estratégia parecia suficiente para dar conta do gerenciamento da maior parte da população nacional e dos estrangeiros. Nesse modelo histórico de “compenetração eclesiástico-estatal” ainda em vigor (Esquivel 2009ESQUIVEL, Juan. (2009), “Cultura política y poder eclesiástico. Encrucijadas para la construcción del Estado Laico en Argentina”. Archives de sciences sociales des religion. nº 146: 41-59. :56), a questão da diversidade religiosa parece vir a reboque de uma liberdade religiosa ainda modulada pelo referencial católico como critério de definição e legitimação do religioso, seja nos bastidores das instituições burocráticas, seja na normatividade explícita da diferença no plano jurídico.

Mais perto de nós, ainda que o marco do exclusivismo religioso católico tenha sido abandonado, identifica-se a reedição, pela interposição de obstáculos da burocracia estatal, da dificuldade de expansão e de reconhecimento institucional de religiões racialmente demarcadas. Esses impedimentos evidenciam uma tensão entre liberdade religiosa assegurada legalmente, seja ela “irrestrita” como no modelo brasileiro ou “vigiada” como no caso argentino, e as garantias à igualdade de direitos no trato da diversidade religiosa, quando operada no plano fático. Pelo menos no que se refere ao segmento afro-religioso, mas também poderíamos acrescentar o caso indígena, pode-se especular sobre a persistência da demarcação racial (e étnica, embora invisível até o censo de 2010) no processo de reconhecimento da diversidade religiosa e de seus direitos no contexto do pluralismo: impossíveis de serem consideradas como “religião” no marco do exclusivismo religioso do passado, as religiões afro-brasileiras penam para se firmar como religiões à part entière também no marco do pluralismo religioso nesses países em que a presença negra e indígena foi ou apagada ou objeto de um branqueamento pela metade. Novas investigações estarão, pensamos, aptas a verificar e aprofundar tais relações, em um momento no qual a expansão dos direitos relativos à diversidade religiosa e étnico-racial atualiza a discussão sobre as formas como os Estados gerenciam a liberdade religiosa no contexto do pluralismo, questão-chave que se impõe como problema central a ser enfrentado para a convivência democrática contemporânea.

Referências

  • ARLETTAZ, Fernando. (2018 a), “El Estatuto de los grupos religiosos en el proyecto de ley de libertad religosa y sus implicaciones constitucionales”. En Letra - año V, nº 9: 213-240.
  • ARLETTAZ, Fernando. (2018 b), “Régimen legal de las comunidades religiosas en el derecho argentino”. Revista Electrónica, Instituto de Investigaciones Ambrosio L. Gioja, Nº 20, junio-noviembre:186-222.
  • BECKFORD, James. (2003), Social theory and religion Cambridge: Cambridge University Press.
  • BOSSIO, María Pilar García. (2018). “La laicidad problematizada. Su uso para pensar organismos estatales”. Religião y Sociedade, 38(2): 148-173. https://dx.doi.org/10.1590/0100-85872018v38n2cap05
    » https://dx.doi.org/10.1590/0100-85872018v38n2cap05
  • BRIONES, Claudia; DELRIO, Walter. (2007), “La ‘conquista del desierto’ desde perspectivas hegemónicas y subalternas”, Runa, vol. XXVII, :23-48. Argentina, Universidad de Buenos Aires Buenos Aires. Disponível em: https://www.redalyc.org/pdf/1808/180857810008.pdf
    » https://www.redalyc.org/pdf/1808/180857810008.pdf
  • DI STEFANO, Roberto. (2011), “Por una historia de la secularización y de la laicidad en la Argentina”. Revista Quinto Sol, Instituto de Estudios Socio-Históricos, vol. 15, nº 1: 1-15.
  • DIAS JR., Claudio Santiago; VERONA, Ana Paula. (2018), “Os indígenas nos censos demográficos brasileiros pré-1991”. Revista Brasileira de Estatística Populacional, ano 35, nº 3:1-9.
  • ESQUIVEL, Juan. (2003), “Igreja católica e Estado na Argentina e no Brasil. Notas introdutórias para uma análise comparativa”. Ciencias Sociales y Religión/Ciências Sociais e Religião, ano 5, nº 5: 191-223.
  • ESQUIVEL, Juan. (2009), “Cultura política y poder eclesiástico. Encrucijadas para la construcción del Estado Laico en Argentina”. Archives de sciences sociales des religion nº 146: 41-59.
  • ESQUIVEL, Juan. (2010), “Notas sobre la laicidad en Argentina”. Revista Debates do NER, ano II: 149 -171.
  • FOUCAULT, Michel. (1994), “La ‘governamentalité’”. In: M. Foucault. Dits et écrits: 1954-1988. Paris: Éditions Gallimard.
  • GAGLIARDI, José Mauro. (1989), O indígena e a república São Paulo: Hucitec.
  • GIUMBELLI, Emerson. (1997), O cuidado dos mortos Uma história da condenação e legitimação do espiritismo Rio de Janeiro: Arquivo Nacional.
  • GIUMBELLI, Emerson. (2001), “Liberdade religiosa no Brasil contemporâneo: uma discussão a partir do caso da Igreja Universal do Reino de Deus”. In: R. Kant de Lima (org.). Antropologia e direitos humanos Niterói: EdUFF.
  • GIUMBELLI, Emerson. (2002), O fim da religião: dilemas da liberdade religiosa no Brasil e na França São Paulo: Attar.
  • GIUMBELLI, Emerson. (2008), “A Presença do religioso no espaço público: modalidades no Brasil”. Religião & Sociedade, vol. 28, nº 2: 80-101.
  • GIUMBELLI, Emerson; SCOLA, J. Marcos. (2016), “Legislativos de regulação do religioso no Brasil: Estatuto da Igualdade Racial, Acordo Brasil-Vaticano e Lei Geral das Religiões”, Numen Revista de estudos e pesquisa da religião, vol.19, nº 2: 65-85.
  • GIUMBELLI, E. (2016), “Regulação do religioso: discussões conceituais e panorama da situação em quatro países latino-americanos”, Ciencias sociales y religión (Online), vol. 18:14-37.
  • GIUMBELLI, Emerson. (2017), “A vida jurídica das igrejas: considerações sobre minorias religiosas em quatro países (Argentina, Brasil, México e Uruguai)”. Religião e Sociedade, vol. 37, nº 2: 121-143.
  • LEWGOY, Bernardo. (2008), “A transnacionalização do espiritismo kardecista brasileiro: uma discussão inicial”. Religião e Sociedade, vol. 28, nº 1: 84-104.
  • LOPES, Fidanza Juan Martin; GALERA, María Cecilia. (2014). “Regulaciones a una devoción estigmatizada: Culto a San la Muerte en Buenos Aires”. Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Departamento de Antropologia; Debates do NER; 15; 25; 8-2014; 171-196.
  • MAISLEY, Nahuel. (2016), “La libertad religiosa en la Argentina”. In: R. Gargarella & S. Güidi (coord.). Comentarios de la Constitución de la Nación Argentina. Jurisprudencia y doctrina: una mirada igualitaria Buenos Aires: La Ley.
  • MALLIMACI, Fortunato. (2008), “Nacionalismo católico y cultura laica en Argentina”. In: R. Blancarte (coord.). Los retos de la laicidad y la secularización en el mundo contemporáneo México: El Colegio de México. http://www.rafagentili.com.ar/content/uploads/Mallimaci_-cultura_laica_en_Arg.pdf
    » http://www.rafagentili.com.ar/content/uploads/Mallimaci_-cultura_laica_en_Arg.pdf
  • MALLIMACI, Fortunato; CUCCHETTI, Humberto y DONATELLO, Luis Miguel. (2006), “Caminos sinuosos: nacionalismo y catolicismo en la Argentina Contemporánea”. In: F. Colom; A. Rivera; Á. Rivero (ed.). El altar y el trono. Estudios sobre el catolicismo político iberoamericano Barcelona: Editorial Antrophos.
  • MALLIMACI, Fortunato; ESQUIVEL, Juan C. (2013), “La tríada Estado, instituciones religiosas y sociedad civil en la Argentina contemporánea”, Amerika [En ligne], 8, mis en ligne le 09 juin 2013, consulté le 01 décembre 2021. URL: http://journals.openedition.org/amerika/3853; DOI: org/amerika/3853; DOI: https://doi.org/10.4000/amerika.3853
    » https://doi.org/10.4000/amerika.3853
  • MALILIMACI, Fortunato; BELIEVEAU, Giménez; ESQUIVEL, Juan C. (2020), “Religiones y creencias en Argentina (2008-2019)”. Resultados de la Segunda Encuesta Nacional de Creencias y Actitudes Religiosas en Argentina Sociedad y Religión 30 (55). Disponible en: http://www.ceil-conicet.gov.ar/ojs/index.php/sociedadyreligion/article/view/805
    » http://www.ceil-conicet.gov.ar/ojs/index.php/sociedadyreligion/article/view/805
  • MALDONADO, Adrián. (2016), “Personalidad Jurídicas de las Iglesias y entidades religiosas en Argentina”. Derecho, Estado y Religión Vol. 2: 39-87.
  • MARIANO, Ricardo. (2006), “A reação dos evangélicos ao novo Código Civil”. Civitas - Revista de Ciências Sociais, vol. 6, nº 2: 77-99.
  • MIRANDA, Lida. (2013), “La ‘nación católica’ y la historia argentina contemporánea”, Corpus [En línea], vol 3, nº 2, Publicado el 20 diciembre 2013, consultado el 29 noviembre 2021. URL: http://journals.openedition.org/corpusarchivos/579; DOI: org/corpusarchivos/579; DOI: https://doi.org/10.4000/corpusarchivos.579
    » https://doi.org/10.4000/corpusarchivos.579
  • MONTERO, Paula. (2006), “Religião, pluralismo e esfera pública no Brasil”. Novos Estudos Cebrap, nº 74: 47-65.
  • MONTERO, Paula. (2009), “Secularização e espaço público: a reinvenção do pluralismo religioso no Brasil”. Revista Etnográfica, volume 13, número1:7-16.
  • MONTERO, Paula. (2018) “Syncretism and Pluralism in the Configuration of Religious Diversity in Brazil”, Mecila: Working Papers Series, vol. 4: 1-16.
  • MONTERO, Paula; SALES, Lilian. (2020), “Laity and Secularism in Contemporary Brazilian Pluralism”. Revista Novos Estudos do Cebrap vol. 39, nº 3: 415-436.
  • NICÁCIO, Camila Silva. (2020), “A formalização da intolerância religiosa em registros policiais: retrato de um problema em (des)construção”. Contemporânea - Revista de Sociologia da UFSCar, vol.10, nº 2: 557-583.
  • OLIVEIRA, João P. de. (2016), O nascimento do Brasil e outros ensaios. “Pacificação”, regime tutelar e formação de alteridades Rio de Janeiro: Contra Capa.
  • OLMOS, M. Fernanda (org.). (2011), “Documentos históricos. Argentina”. Estatística e Sociedade, nº 1: 213-227.
  • ORO, Ari Pedro; STEIL, Carlos. Alberto; CIPRIANI, Roberto; GIUMBELLI, Emerson. (Org.). (2012), “A Religião no espaço público - atores e objetos”. São Paulo: Terceiro Nome.
  • OTERO, Hernán. (1998), “Estadística censal y construcción de la Nación. El caso argentino, 1869-1914”, Boletín del Instituto de Historia Argentina y Americana Dr. Emilio Ravignani, vol. 3, nº 16-17: 123-149.
  • OTERO, Hernán. (2011), “El concepto de población en el sistema estadístico de Argentina, 1869-2001”. Estatistica e sociedade, vol. 1: 7-25.
  • QUIJADA, Mónica. (2004), “De mitos nacionales, definiciones cívicas y clasificaciones grupales. Los indígenas en la construcción nacional argentina, siglos XIX a XXI” In: W. Ansaldi (comp.). Calidoscopio Latinoamericano Buenos Aires: Ariel Historia.
  • SENRA, Nelson de Castro. (1999), “Informação estatística: política, regulação, coordenação”. Ciência da Informação, vol. 28, nº 2: 124-135.
  • PIERUCCI, A. FO. (1996), “Liberdade de cultos na sociedade de serviços”. Novos Estudos CEBRAP, São Paulo, nº 44: 3-11.
  • PILAR Pérez. (2011), “Historia y silencio: La Conquista del Desierto como genocidio no-narrado”, Corpus [En línea], vol. 1, nº 2, Publicado el 30 diciembre 2011, consultado el 29 noviembre 2021. URL: http://journals.openedition.org/corpusarchivos/1157; DOI: org/corpusarchivos/1157; DOI: https://doi.org/10.4000/corpusarchivos.1157
    » https://doi.org/10.4000/corpusarchivos.1157
  • SARMIENTO, Domingo Faustino. (1845), Civilización y barbarie. Vida de Juan Facundo Quiroga y aspecto físico, costumbres y hábitos de la República Argentina Santiago. Imprenta del Progreso.
  • SILVA JUNIOR, Hédio. (2007), “Notas sobre o Sistema Jurídico e Intolerância”. In: V. Silva (org.). Intolerância Religiosa: impactos do neopentecostalismo no campo-religioso brasileiro São Paulo: EDUSP: 303-331.
  • SILVA, Vagner Gonçalves da. (2007a), “Entre a gira de fé e Jesus de Nazaré: relações sócio-estruturais entre neopentecostalismo e religiões afro-brasileiras”. In: V. Silva (org.). Intolerância Religiosa: impactos do neopentecostalismo no campo-religioso brasileiro . São Paulo: EDUSP : 191-260.
  • SILVA, Vagner Gonçalves da; Rodgers, David Allan. (2007b), “Neo-Pentecostalism and Afro-Brazilian religions: explaining the attacks on symbols of the African religious heritage in contemporary Brazil”. Mana, nº 3.
  • STEPAN, Nancy Leys. (2004), “Eugenia no Brasil, 1917-1940”. In: G. Hochman; D. Armus (org). Cuidar, controlar, curar: ensaios históricos sobre saúde e doença na América Latina e Caribe [online]. Rio de Janeiro: Editora FIOCRUZ,
  • TAYLOR, Charles. (2017), “Como definir o secularismo”. Leviathan. Cadernos de Pesquisa Política, nº 14: 128-146.
  • VIEIRA, Dilermando Ramos. (2007), O processo de reforma e reorganização da igreja no Brasil (1844-1926). São Paulo: Editora Santuário.
  • ZANATTA, Loris. (1996). Del Estado liberal a la nación católica. Iglesia y Ejército en los orígenes del peronismo Buenos Aires: UNQ.
  • 1
    Este artigo resulta de projeto apoiado pela Fapesp (nº 2015/024975), à qual desde já agradecemos, e do projeto Non Religion in a Complex Future, coordenado por Lori Beaman (University of Ottawa).
  • 2
    A Diretoria Geral de Estatística foi fundada em 1871 e coordenou os Censos de 1872, 1900 e 1920. O IBGE, fundado em 1936, passou a coordenar os censos desde 1940 até hoje.
  • 3
    http://www.estadistica.ec.gba.gov.ar/dpe/Estadistica/censos/C1895-T2.pdf
  • 4
    https://econtents.bc.unicamp.br/inpec/index.php/csr/article/view/13449/8806
  • 5
    Nos formulários de instrução dos questionários utilizados nos Censos de 1872 e 1890 a população indígena foi categorizada como “cabocla” e relacionada à sua condição de “homem livre”. A categoria “caboclo” contabilizava apenas os índios catequizados, deixando de lado os “índios bravos”, que se distinguiam radicalmente dos brasileiros e não obedeciam à autoridade nacional (Oliveira 2016:241). No censo de 1890, a categoria foi ressemantizada como um quesito do gradiente de cor ao lado de brancos, negros e pardos. Nos dois censos seguintes (1900 e 1920) os quesitos cor/raça não foram incluídos. No Censo de 1940 a distinção ressurge e eles voltam a ser designados como pardos. Somente nos levantamentos de 1991 essa população aparece como categoria separada, mas interessantemente ainda no interior do quesito cor/raça. No Censo de 2010 aparece pela primeira vez o quesito etnia e língua falada. Ao serem alocados, na maior parte dos levantamentos, na categoria de “pardos” permaneceram até muito recentemente invisíveis nas estatísticas oficiais. (Dias Jr; Verona 2018DIAS JR., Claudio Santiago; VERONA, Ana Paula. (2018), “Os indígenas nos censos demográficos brasileiros pré-1991”. Revista Brasileira de Estatística Populacional, ano 35, nº 3:1-9.)
  • 6
    As políticas indigenistas brasileiras também se apoiaram na Igreja católica para assimilar essas populações. No entanto, apesar de as políticas de ocupação territorial terem sido também marcadas pela violência, o Estado brasileiro pautou-se, desde a República, em uma legislação voltada para a proteção e tutela das populações indígenas (Ver Gagliardi 1989GAGLIARDI, José Mauro. (1989), O indígena e a república. São Paulo: Hucitec.).
  • 7
    Os primeiros a chegar foram os anglicanos ingleses. Em 1824 chegaram os luteranos com os imigrantes alemães, em 1855 os calvinistas, em 1859 os presbiterianos, os metodistas em 1867 e batistas em 1871 com os americanos.
  • 8
    A liberdade de culto para os anglicanos ingleses, desde que no âmbito privado, foi garantida em tratado de 1810. Com a independência em 1822 essas restrições se tornaram menos severas.
  • 9
    Art. 5º, VI da CF/1988: É inviolável a liberdade de consciência e de crença, sendo assegurado o livre exercício dos cultos religiosos e garantida, na forma da lei, a proteção aos locais de culto e a suas liturgias.
  • 10
    Art. 19 da CF/1988: É vedado à União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios: I - estabelecer cultos religiosos ou igrejas, subvencioná-los, embaraçar-lhes o funcionamento ou manter com eles, ou seus representantes, relações de dependência ou aliança, ressalvada, na forma da lei, a colaboração de interesse público.
  • 11
    Levantamento da Receita Federal aponta que de janeiro de 2010 a fevereiro de 2017 foram registradas como organizações religiosas uma média de uma nova igreja a cada hora no Brasil. Cf. https://oglobo.globo.com/brasil/desde-2010-uma-nova-organizacao-religiosa-surge-por-hora-21114799 Por outro lado, o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) aponta que em média 14 mil igrejas evangélicas são abertas anualmente. Cf. https://www.nexojornal.com.br/externo/2019/12/09/O-crescimento-da-f%C3%A9-evang%C3%A9lica
  • 12
    https://www.cronista.com/economiapolitica/La-Iglesia-lanza-una-reforma-economica-para-renunciar-a-los-aportes-del-Estado-20200303-0024.html https://www.vaticannews.va/es/iglesia/news/2020-07/episcopado-argentino-lanza-programa-fe-ayuda-a-la-iglesia.html

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    09 Mar 2022
  • Data do Fascículo
    Sep-Dec 2021

Histórico

  • Recebido
    15 Nov 2021
  • Aceito
    10 Dez 2021
Instituto de Estudos da Religião ISER - Av. Presidente Vargas, 502 / 16º andar – Centro., CEP 20071-000 Rio de Janeiro / RJ, Tel: (21) 2558-3764 - Rio de Janeiro - RJ - Brazil
E-mail: religiaoesociedade@iser.org.br