Acessibilidade / Reportar erro

Paganismos, religião e atuação pública: uma comparação de discursos e práticas neopagãs no Brasil e em Portugal1 1 Esta pesquisa foi realizada com apoio da CAPES, por meio da bolsa de Estágio Sênior, com referência 99999.002709/2015-05, realizado no Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra, Portugal.

Paganism, religion, and public attitudes: a comparison between discourses and practices of neopagans in Portugal and Brazil

Resumos

Resumo: Esta pesquisa pretende elucidar algumas das características do neopaganismo no Brasil e em Portugal, especialmente no que diz respeito a sua presença no espaço público e sua influência na formação de opiniões com relação a temas sensíveis da atualidade, como o meio ambiente e as questões de gênero. A pesquisa foi desenvolvida a partir das ferramentas da observação participante e de entrevistas junto a duas associações civis que congregam neopagãos no Brasil e em Portugal. Como resultado, foi encontrada uma diferenciação nos discursos relacionados à sexualidade e ao feminismo entre os grupos neopagãos brasileiros e portugueses. Por outro lado, percebeu-se afinidades nos discursos concernentes ao tema da ecologia.

Palavras-chave:
paganismo; espaço público; feminismo; política


Abstract: This paper analyses contemporary paganism in Brazil and Portugal, particularly regarding its presence in public space and its influence in public opinion toward contemporary public debates in feminism, sexual diversity, and ecology. The research describes how pagan are organized in civil associations and how this associations act in public space in both countries. The main methodology was participant observation and interviews. As a result, a differentiation was found in discourses related to sexuality and feminism between the Brazilian and Portuguese neopagan groups. On the other hand, affinities were observed in the discourses concerning the theme of ecology.

Keywords:
paganism; public space; feminism; politics


Introdução

O presente texto baseia-se em pesquisa que teve como objetivo realizar uma análise comparativa das práticas e comportamentos de grupos neopagãos no Brasil e em Portugal. Nenhum desses dois países está no centro do movimento neopagão, que se iniciou no mundo anglófono, porém assiste-se atualmente a um expressivo crescimento do número de adeptos dessas religiões em ambos. Esta pesquisa pretendeu elucidar algumas das características do neopaganismo no Brasil e em Portugal, especialmente no que diz respeito a sua presença no espaço público e sua influência na formação de opiniões com relação a temas sensíveis da atualidade, como o meio ambiente e as questões de gênero. Esta discussão também é relevante para caracterizar melhor os neopagãos, uma minoria religiosa que, apesar de pouco expressiva numericamente, se manifesta frequentemente na esfera pública, atuando como formadores de opinião.

Tanto no Brasil quanto em Portugal o neopaganismo possui um pequeno número de adeptos, mas que vem crescendo nas últimas décadas. O avanço do neopaganismo está ligado a um contexto de modernidade religiosa, no qual as buscas pessoais adquirem importância maior do que o pertencer a instituições religiosas tradicionais. Os fenômenos da desinstitucionalização e do avanço do pluralismo religioso foram notados pelos estudos de religião desde a década de 1980 (Berger 2004BERGER, Peter Ludwing. (2004), O Dossel Sagrado: elementos para uma teoria sociológica da religião. São Paulo: Paulinas.). Como aponta Eugene Roussou, o pluralismo religioso e as espiritualidades de Nova Era vêm demonstrando um expressivo crescimento na Europa, ainda que em países tradicionalmente cristãos, como Portugal e Grécia (Roussou 2016ROUSSOU, Eugenia. (2016), “A transformação da religiosidade em Portugal e na Grécia: uma comparação etnográfica da Nova Espiritualidade e pluralismo religioso no sul da Europa”. Rever, vol. 16, nº 3: 66-80.). Neste cenário de trânsitos e fluxos religiosos, mesmo países tradicionalmente católicos como Brasil e Portugal assistem ao crescimento de novos movimentos religiosos como o paganismo.

O paganismo contemporâneo ou neopaganismo abrange diferentes tipos de práticas religiosas voltadas para o resgate do culto aos deuses de civilizações antigas e pré-cristãs (Adler 2006ADLER, Margot. (2006), Drawing down the moon. Witches, Druids, Goddess-Worshippers, and Other Pagans in America. New York: Penguin Books.; Clifton & Harvey 2004CLIFTON, Chas; HARVEY, Graham. (2004), The Paganism reader. London: Routledge. ). As primeiras expressões religiosas neopagãs surgiram na Europa no século XIX, especialmente na Inglaterra, inspiradas na cosmovisão Celta e por meio de uma valorização da espiritualidade greco-romana. Essa prática expandiu-se mundialmente durante a segunda metade do século XX, quando sua ênfase em divindades da natureza foi combinada com concepções holísticas e contraculturais e com movimentos de contestação social, como o movimento ecológico e o feminismo (Salomonsen 2002SALOMONSEN, June. (2002), Enchanted Feminism: the reclaiming witches of San Francisco. London/New York: Routledge.). Os neopagãos comumente referem-se a si mesmos como pagãos, pois não concordam com a ideia de que a religião que praticam hoje é uma recriação de práticas antigas, acreditando na existência de uma continuidade entre o paganismo antigo e o atual. Em Portugal, a autoidentificação é mais discreta que no Brasil, existindo aqueles que não se identificam como tal (Fedele 2013FEDELE, Anna. (2013), “The Metamorphoses of Neopaganism in Traditionally Catholic Countries in Southern Europe”. In: J. Mapril; R. L. Blanes (orgs.). Sites and Politics of Religious Diversity in Southern Europe. Leiden/Boston: Brill., 2015).

A religião neopagã mais conhecida no mundo, e que possui um número de adeptos mais expressivo, é a Wicca. Ela foi criada na Inglaterra por Gerald Gardner, um antropólogo amador, provavelmente entre as décadas de 1940 e 1950. Ronald Hutton (1995HUTTON, Ronald. (1995), The Triumph of the Moon. A History of Modern Pagan Witchcraft. Oxford: Oxford University Press .) afirma que a Wicca é o resultado da mistura de influências do romantismo e de rituais e práticas das sociedades secretas, que se proliferavam na Europa desde finais do século XVIII. Na Inglaterra, o censo demográfico de 2011 encontrou 87 mil pagãos autodeclarados, porém as organizações pagãs e os estudiosos acreditam que esse número é ainda subestimado e que podem existir até 250 mil pagãos na Grã-Bretanha (Crowley 2014CROWLEY, Viviane. (2014), “Standing up to be counted: understanding Pagan responses to the 2011 British censuses”. Religion, vol. 44, nº 3: 483-501.). O paganismo contemporâneo existe em quase todos os países da Europa, onde também é expressivo na Irlanda (Butler 2011BUTLER, Judith. (2011), “Irish neo-paganism: worldview and identity”. In: O. Cosgrove (et al.). Ireland’s new religious movement. New Castle: Cambridge Scholar Publishing.) e no leste europeu (Schnirelman 2007SHNIRELMAN, Victor. (2007), “Ancestral Wisdom and Ethnic Nationalism: A View from Eastern Europe”. The Pomegranate , vol. 9, nº 1: 41-61.).

Foi a partir dos anos 1960 que o neopaganismo chegou aos Estados Unidos, onde foi influenciado pelo movimento hippie, o feminismo e a contracultura. Segundo Chas Clifton (2006CLIFTON, Chas. (2006), Her Hidden Children: The rise of Wicca and Paganism in America. Lanhan: Rowman Altamira.), existem cerca de 800 mil pagãos nos Estados Unidos. Destes, 80% dedicam-se à prática solitária, encontrando-se com seus pares apenas em eventos e festivais. Diferentes pesquisadores ainda apontam a existência de comunidades pagãs no Canadá (Reid 2005REID, Sian. (2005), “Renovating the Broom Closet: factors contributing to the Growth of Contemporary Paganism in Canada”. The Pomegranate , vol. 7, nº 2: 128-140. ) na Austrália (Hume 2007HUME, Lynne. (2007), Witchcraft and paganism in Australia. Carlton South, Victoria, Australia: Melbourne University Press.), Nova Zelândia (Rountree 2005ROUNTREE, Kathryn. (2005), “Goddess Spirituality and Nature in Aotearoa New Zealand”. The Pomegranate , vol. 7, nº 2: 141-156.) e em diversos outros países, o que torna o crescimento dessa religião um fenômeno mundial.

Debruçando-nos sobre a realidade do Brasil e de Portugal, países predominantemente católicos, notamos que em ambos o campo religioso vem passando por transformações sensíveis. Nos dois países, o neopaganismo ainda possui um pequeno número de adeptos, embora tenha crescido nas últimas décadas. Nas estatísticas do governo brasileiro, não existe um quesito “paganismo” que possa ser assinalado pelos participantes do censo, por isso aqueles que praticam essa denominação ainda não aparecem claramente nos números oficiais. No censo de 2010, 74.013 pessoas responderam pertencer a “tradições esotéricas”, 63.082 a “tradições indígenas” e 11.306 estão em “outras religiosidades” (IBGE 2010INSTITUTO BRASILEIRO DE GEOGRAFIA E ESTATÍSTICA. (2010), Censo Demográfico 2010. Características Gerais da População, Religião e Pessoas com Deficiência. Rio de Janeiro: IBGE.). Provavelmente em qualquer um desses campos encontramos respostas de pagãos, pois, como nenhum dos quesitos do censo se adequa ao que é o paganismo, um único pagão poderia se enquadrar em múltiplas respostas mais generalistas, mas que se relacionam com sua espiritualidade individual. Segundo dados da União Wicca do Brasil (UWB), existem 500 mil praticantes de Wicca no país (Bezerra 2012BEZERRA, Karina. (2012), A Wicca no Brasil: adesão e permanência na região metropolitana de Recife. Recife: Dissertação de Mestrado em Ciências da Religião, UNICAP.). Como apontamos anteriormente, essa informação não pode ser verificada estatisticamente com as ferramentas atuais existentes no censo.

Em Portugal, apesar de a grande maioria da população ser católica, existe uma tendência à diversificação do campo religioso (Vilaça 2005VILAÇA, Helena. (2005), “A religião e a Bíblia em um quadro de Liberdade Religiosa”. Revista Lusófona de Ciências das Religiões, Ano IV, nº 7/8: 109-117.). Enquanto no Brasil esse crescimento se encontra pulverizado entre as diversas capitais do país, em Portugal é notória a concentração em Lisboa. Nesta cidade, observa-se o surgimento de um mercado de serviços e produtos religiosos, que muitas vezes se inserem em redes transnacionais, como é o caso das religiões afro-brasileiras (Saraiva 2010SARAIVA, Clara. (2010), “Afro-Brazilian religions in Portugal:bruxos, priests andpais de santo”. Etnográfica, vol. 14, nº 2: 265-288.). Estes novos fenômenos religiosos apontam uma tendência dos portugueses de moverem-se em direção a uma espiritualidade mais fluída e menos ligada a religiões particulares, apesar de o catolicismo continuar sendo a expressão religiosa mais marcante no contexto nacional (Dix 2010DIX, Steffen. (2010), “As esferas seculares e religiosas na sociedade portuguesa”. Análise Social, vol. XLV, nº 194: 5-27.). Não existem, em Portugal, estudos estatísticos que permitam determinar a quantidade de pagãos no país.

A pesquisa de campo foi realizada entre setembro de 2013 e junho de 2016 e concentrou-se em grupos neopagãos que possuem atuação pública, com presença na internet e em eventos. Foram comparadas duas associações civis neopagãs, uma no Brasil e outra em Portugal, no que diz respeito às suas estratégias de atuação no espaço público e às concepções de seus adeptos sobre temas sensíveis da atualidade como feminismo, diversidade sexual, liberdade religiosa e ecologia. Utilizou-se o método da observação participante e entrevistas. Durante o trabalho de campo, foram observados eventos abertos ao público promovidos por ambas as associações e realizadas entrevistas abertas semiestruturadas com os adeptos.

No Brasil, a pesquisa de campo teve início em setembro de 2013 e estendeu-se até junho de 2015. Foram acompanhadas as atividades realizadas pela Associação Brasileira de Arte e Filosofia da Wicca (Abrawicca). Foram observados eventos mensais realizados em Belém (Pará, Brasil), e três eventos nacionais, dois deles realizados em São Paulo (São Paulo, Brasil) e um em Brasília (Distrito Federal, Brasil). As entrevistas foram feitas com pagãos residentes em Belém, entre os quais seis mulheres e dois homens, durante o segundo semestre de 2014 e o primeiro semestre de 2015. O perfil dos entrevistados abrangeu desde jovens recém-ingressos no grupo até lideranças com vasta experiência com o paganismo.

Em Portugal, a pesquisa foi realizada entre agosto de 2015 e junho de 2016, com a observação de eventos públicos empreendidos pela Associação Cultural Pagã - Pagan Federation International (PFI) - em Lisboa, Sintra e Tomar. Foram feitas também três entrevistas com membros dos grupos, duas mulheres e um homem, e uma entrevista coletiva com os dirigentes da associação.

Características dos grupos

Existem diversas formas de associativismo entre os pagãos. A forma mais tradicional de praticar as religiões pagãs é em pequenos grupos iniciáticos ou covens. O ingresso nesses grupos ocorre por laços de confiança entre a liderança e seus membros, sendo seus conhecimentos e rituais geralmente secretos. Por outro lado, a prática solitária do paganismo é a mais comum na atualidade. Por uma prática solitária, entende-se o indivíduo que executa rituais pagãos individualmente, geralmente com base em conhecimentos obtidos por meio de livros e da internet. Existem também grupos pagãos que funcionam de maneira aberta, estabelecendo círculos ou workshops, presenciais ou virtuais. Trata-se de rituais coletivos, oferecidos por um facilitador, cuja participação é menos restrita do que em um coven e grupo iniciático.

Pelo seu caráter fluído e autônomo, praticantes do paganismo tendem a ser refratários ao ingresso em organizações estruturadas. Porém, apesar disto, existem diversas associações civis destinadas a organizar e a representar os pagãos. Esta pesquisa teve como foco duas dessas associações, a Associação Brasileira de Arte e Filosofia da Wicca (Abrawicca) e a Associação Cultural Pagã - Pagan Federation International (PFI).

O critério de escolha dessas associações foi sua presença pública na internet e em eventos. No caso da Abrawicca, ela foi escolhida por realizar atividades públicas de livre acesso aos interessados, geralmente em parques e em centros de terapias holísticas em diversas cidades do país. Em Portugal, foi possível identificar os trabalhos da Associação Cultural Pagã - PFI através de uma busca na internet.

Tanto a Abrawicca quanto a Associação Cultural Pagã - PFI possuem como foco realizar a divulgação pública do paganismo, oferecendo conhecimentos gerais sobre o tema para seus associados e para o público em geral. Em ambos os casos, é possível filiar-se à associação e contribuir para os seus trabalhos de diversas maneiras, como na organização dos eventos, palestras e rituais.

A Associação Brasileira de Arte e Filosofia da Wicca (Abrawicca) foi criada no ano 2000. Além desta, existem pelo menos mais três associações civis que congregam praticantes de Wicca no Brasil, sendo que seus líderes também lideram diferentes tradições. Uma tradição é um grupo iniciático - composto por vários covens, que são grupos iniciáticos menores - que possui uma liturgia estruturada, repassada aos seus membros presencialmente ou por meio de ferramentas virtuais de aprendizagem na internet. Na Europa, essas tradições possuem líderes que remontam ao fundador da religião, Gerald Gardner, ou a pessoas ligadas a ele, o que não acontece no Brasil.

No caso brasileiro, as tradições começaram a ser criadas a partir dos anos 2000, quando também iniciaram as publicações dos primeiros livros sobre Wicca escritos por autores brasileiros, que incentivaram uma prática solitária da religião2 2 Os praticantes solitários de Wicca tornaram-se populares nos Estados Unidos a partir da publicação da obra de Scott Cunningham, autor best-seller que descreve os ritos básicos da religião de forma que eles possam ser compreendidos e realizados por indivíduos em suas próprias casas, sem que precisem ser aceitos por grupos secretos e iniciáticos. . Entre elas, podemos citar a Tradição Diânica do Brasil3 3 Cf. http://www.tradicaodianicadobrasil.com.br/. (TDB), liderada por Mavésper Cy Ceridwen, que também é presidente da Abrawicca; e a Tradição Diânica Nemorensis4 4 Cf. http://www.nemorensis.com.br/. , liderada por Claudiney Prieto, um dos criadores da associação. Obras como Wicca: a religião da deusa, de Claudiney Prieto (2003PRIETO, Claudiney. (2003), Wicca: a religião da deusa. São Paulo: Alfabeto.), e Guia de Rituais das Deusas Brasileiras, de Mavésper Ceridwen (2003CERIDWEN, Mavésper Cy. (2003), Wicca Brasil: guia de rituais das deusas brasileiras. São Paulo: Gaia.), apresentam uma compilação de elementos históricos e instruções detalhadas sobre como realizar os rituais básicos da religião.

As vertentes de Wicca mais populares no Brasil, em sua face pública, são de matriz Diânica, com influência do movimento californiano Reclaiming. Esta é uma Wicca cujo engajamento político com movimentos de mudança social é bastante preconizado. Nas obras de Starhawk, idealizadora do movimento Reclaiming, a transformação social e a transformação do indivíduo estão totalmente imbricadas. Nas palavras de Mavésper:

Ser sacerdote ou sacerdotisa [da Wicca] tem que ter a ver com ser vivo, e uma de nossas funções é transgredir nós mesmos ou apoiar quem quer transgredir. Transgredir não é simplesmente pegar uma lei e ir contra ela. […] eu sou essencialmente a favor de uma coisa que se chama estado democrático de direito, isso tem um valor básico para mim. Todo mundo tem que respeitar a lei posta. Mas existem leis contra as quais eu posso lutar contra, com os meios aceitos para isso5 5 Palestra sobre moral pagã, proferida no 14º Encontro Anual de Bruxos, realizado entre 29 a 31 de março de 2015 em Atibaia, São Paulo. .

Essas palavram foram ditas em uma palestra realizada no Encontro Anual de Bruxos, momento de socialização dos wiccanianos experientes entre si e com novos adeptos da religião. O público desses encontros é composto primordialmente de jovens até os 30 anos, homens e mulheres, faixa etária em que se encontram os maiores interessados em adentrar na religião. Os eventos duram um fim de semana e incluem práticas intensivas como meditações, palestras e workshops (Cordovil 2014CORDOVIL, Daniela. (2014), “The Cult of Afro-Brazilian and Indigenous Gods in Brazilian Wicca: Symbols and Practices”. The Pomegranate, vol. 16, nº 2: 1-14.).

A Abrawicca organiza anualmente dois desses encontros, o Encontro Anual de Bruxos, realizado em um chácara particular em Atibaia, São Paulo, no último fim de semana de março, e o Bruxos do Brasil em Brasília, realizado no terceiro fim de semana do mês de julho, no Templo da Deusa, chácara particular de Mavésper, onde ela vive em comunidade com aproximadamente uma dezena de membros da TDB.

A Abrawicca congrega neopagãos de diversos grupos e vertentes com objetivo de divulgar a religião, participando em fóruns de discussão, debates políticos sobre inclusão, diversidade e igualdade religiosa. A associação também oferece assistência jurídica aos pagãos vítimas de preconceito. Na Comissão Nacional de Diversidade Religiosa, participou da elaboração de uma cartilha contra a intolerância religiosa. Para além desta preocupação, a associação desenvolveu projetos com o objetivo de divulgar e possibilitar acesso ao conhecimento sobre a religião para praticantes neófitos, assim como conferir maior visibilidade pública para a Wicca.

Em Portugal, a maior associação civil destinada a congregar o público pagão é a Associação Cultural Pagã - PFI. O paganismo no país começou a ser representado oficialmente por Isobel Andrade e Thorg da Lusitânia em 1998, quando os dois criaram uma representação local da Pagan Federation International, organismo surgido em 1971 com o intuito de representar legalmente os pagãos da Inglaterra, expandindo-se posteriormente para outros países da Europa. O envolvimento pessoal de Isobel com o paganismo data dos anos 1970. Antes disso, ela teve passagem pelo Candomblé, cuja influência em Portugal se deve às novelas brasileiras e à migração de sacerdotes brasileiros para o país, que naquele período já se iniciara.

Thorg e Isobel conheceram o paganismo primeiramente por meio de práticas e estudos solitários, depois receberam iniciação na Wicca, a princípio por meio de uma vertente norte-americana e, posteriormente, pelos britânicos Hilfred e Louis Born. Isobel relata que, antes de receber a consagração à grã-sacerdotisa pelas mãos dos britânicos, já tinha ido aos Estados Unidos e, também, à França e à Irlanda para conhecer pessoas congêneres e em busca de mais conhecimentos sobre a religião.

Além de praticarem a Wicca tradicional Gardneriana, da qual descendem por linhagem iniciática, o paganismo de Thorg e Isobel engloba outras tradições, sendo as mais expressivas o paganismo Celta, Greco-Romano, Nórdico e Ibérico. Diferentemente dos pagãos brasileiros, que se interessaram pela literatura ligada à Nova Era e por meio dela chegam à Wicca e às outras religiões pagãs, Isobel relata que seus estudos pessoais foram realizados a partir de autores clássicos:

Eu, na altura, estava a desenvolver os ritos que achava interessante, e era bem na parte babilônica… E eu pensava: “se havia ritos antigos, eu vou fazer os de hoje em dia, pois é isso que procuro”. E eu comecei a desenvolver com meu marido a parte helênica… peço desculpas, politeísta antiga, porque eu trabalhava tanto com Astarte como Afrodite. Eu procurava algo. Íamos aos ritos, tudo autores clássicos (entrevista com Isobel Andrade, 05/09/2015).

Do contato com o meio pagão internacional, os dois foram convidados a criar a representação da Pagan Federation International em Portugal. A associação começou a funcionar em 1998 e foi registrada como pessoa jurídica em 2006, recebendo o nome de Associação Cultural Pagã - PFI. Como relata Isobel, no momento da criação da associação ainda não havia pagãos praticantes no país. Sua ideia com a associação foi ensinar noções teóricas sobre o paganismo aos interessados, que começavam a tomar conhecimento da religião por meio da internet, sem transmitir ou ferir os princípios iniciáticos.

Como associação, a Associação Cultural Pagã - PFI6 6 Cf. http://pt.paganfederation.org/. recolhe inscrições, recebe anuidades e realiza eventos para os associados. Implementa também periodicamente cursos de paganismo para os interessados. Quando da realização da pesquisa de campo, entre 2015 e 2016, a maioria dos frequentadores possuía mais de 30 anos, sendo incomum a presença de jovens nos eventos da associação. Nesses cursos, é discutida uma variedade de fontes teóricas e historiográficas que discorrem sobre as divindades da antiguidade. Este tipo de fonte é a principal base do culto, como afirmam: “O que fazemos é uma atualização aos dias de hoje do que era feito pelos antigos - estudamos e baseamo-nos no que era feito pelos antigos, e divulgamo-lo, mas o culto é adaptado à realidade e vivência de hoje - só assim uma religião se pode manter viva, pois não vivemos no mesmo contexto que os nossos antepassados viviam”7 7 Fonte: correspondência por e-mail dirigida a mim por dirigentes da PFI-Portugal. .

Os dirigentes da Associação Cultural Pagã - PFI empreenderam pesquisa histórica e etnográfica nessas fontes, além de visitas a antigos locais de culto. Após essas pesquisas, decidiram realizar rituais pagãos na cidade de Alandroal, Alentejo, no local onde existiu um santuário para o deus Endovélico. Esses rituais mobilizaram a câmara municipal e os moradores da cidade na realização de um evento que acontece na lua cheia de junho. A Associação Cultural Pagã celebrou esses rituais até 2006. Após essa data, os festivais passaram a contar com a presença de um grupo pagão espanhol, chamado Wicca Celtibéria.

A Associação Cultural Pagã também realiza um trabalho em prol do diálogo inter-religioso. Todos os anos, participam da Week Interfaith Harmony em Lisboa, evento apoiado pela Unesco, e estão engajados em um projeto na área da educação. Em parceira com o curso de Ciências das Religiões da Universidade Lusófona, dão apoio ao ensino da disciplina História das Religiões do Mundo, para alunos do 5º ano, em uma escola em Cascais. É a única organização pagã portuguesa reconhecida pelo Observatório para a Liberdade Religiosa dessa universidade.

Além do interesse e trabalho para o reconhecimento do Paganismo como expressão religiosa válida, como afirmam, duas áreas de ação que se engajam com mais entusiasmo são o campo da proteção do meio ambiente, celebrando publicamente o Dia da Terra, em Sintra, momento em que fazem trabalho de conscientização ecológica, e as campanhas de caridade e filantropia, para arrecadação de comida e roupas que são doadas a países da África.

A dinâmica dos eventos promovidos pela Abrawicca e pela Associação Cultural Pagã - PFI tem como principal diferença o nível de publicidade. No caso brasileiro, percebe-se nos dirigentes da Abrawicca um maior interesse na divulgação e na atração de novos adeptos, com a realização de eventos em espaços públicos de grande circulação de pessoas, como praças e parques públicos.

No caso português, a Associação Cultural Pagã possui uma sede, em Campo de Ourique, Lisboa, onde ocorrem a maior parte dos eventos e palestras. Há também atividades que acontecem em propriedades particulares. Geralmente, os organizadores recebem inscrições prévias para os eventos, e alguns são restritos a associados. A Associação Cultural Pagã realiza, ainda, eventos abertos ao público, notadamente no restaurante e centro de terapias holísticas Espiral, em Lisboa. Apesar das diferenças de atuação, ambas as associações funcionam como espaço de divulgação do paganismo.

Discursos sobre feminismo e política

Entre os pagãos entrevistados para a pesquisa, surgiram diversos discursos e posicionamentos acerca de feminismo e política. Tais posicionamentos vão desde uma militância pública ligada a movimentos sociais até a adoção de um conjunto de atitudes pessoais favoráveis à igualdade entre os gêneros e às causas ecológicas, sem que isto redunde no engajamento em nenhum movimento social organizado. Os posicionamentos variam conforme o perfil social e geracional dos adeptos. Para melhor elucidar este ponto, descreverei a trajetória de alguns desses religiosos no Brasil e em Portugal.

A sacerdotisa Danna Myr vive em Belém, Pará, onde trabalha como artesã e formadora artística. Tem origem em uma família católica e conheceu a militância em movimentos sociais no interior da Igreja. Foi catequista de uma paróquia católica desde os 16 anos, onde conheceu a teologia da libertação e os movimentos comunitários por moradia, escola e saneamento básico. Relata que, naquele período, a Igreja Católica servia como catalizadora de movimentos de mudança, devido à teologia da libertação, seguida pelos sacerdotes.

Dentro do cristianismo, conheceu também a teologia feminista. Nos anos 1990, abandonou o cristianismo Católico Romano e ingressou na Igreja Luterana, cuja pastora, na época, possuía vínculos com a teologia feminista e com outras lutas sociais. Danna relata: “foi dentro da comunidade cristã que eu conheci, ou melhor, que eu ouvi o chamado da Deusa” (entrevista com Danna Myr, 14/03/2015Entrevista com Danna Myr, Brasil, 14 de março de 2015.). Em 2006, conheceu uma sacerdotisa praticante solitária de Wicca e através dela teve contato com outras pessoas que se reuniam para estudar e praticar essa religião. Foi por meio dessa sacerdotisa que chegou à Tradição Diânica do Brasil, na qual foi iniciada como sacerdotisa.

Danna coordena em Belém o Círculo de Mulheres, atividade realizada pela Abrawicca, mas que é aberta também a mulheres que não pertencem a essa religião (Cordovil 2015CORDOVIL, Daniela. (2015), “O poder feminino nas práticas da Wicca: uma análise dos ‘Círculos de Mulheres’ e suas participantes”.Estudos Feministas, vol. 23, nº 2: 431-449.). Sobre o círculo, relata:

O Círculo de Mulheres é uma prática que nós temos dentro da religião, e como nós somos da Wicca, a nossa tradição, a TDB, ela tem Círculo de Mulheres na sua prática normal. Nós também temos aqui, e o nosso círculo de mulheres já existe desde 2009, aqui em Belém. Então já tem uma caminhada longa, inclusive. Também esse Círculo ele faz parte da minha militância, é uma participação sem muita evidência, assim, né… não é uma atuação que se expõe, poucas pessoas sabem, mas é bem concreto inclusive (entrevista com Danna Myr, 14/03/2015).

Além do Círculo de Mulheres, que em alguns momentos hesita em classificar como militância, Danna milita no movimento de mulheres, participando de um grupo chamado M.A.S, Mulheres Amazônicas Socialistas. Danna enfatiza que a sigla M.A.S. tem duplo significado, já que mulheres más são mulheres que não são dóceis nem subservientes aos ditames do patriarcado.

Todas os trânsitos religiosos realizados por Danna refletem uma migração significativa de uma concepção cristã de militância e de compreensão do feminino até chegar ao paganismo. Depois da iniciação na Wicca, vem assumindo cada vez mais funções no que diz respeito à condução das atividades públicas da Abrawicca, especialmente o círculo de mulheres, o que demonstra a relação intrínseca entre atividades de cunho religioso e atuação pública na associação.

Felipe é bacharel em comunicação social e artista plástico, estuda a bruxaria e a Wicca desde os 13 anos de idade. Em 2007 fundou, juntamente com outros praticantes solitários da bruxaria em Belém, o coven Anan Cara, que lidera. Relata que passou a interessar-se por bruxaria a partir da influência do seu pai, que gostava de ler sobre temas ligados ao esoterismo. Para Felipe, que segue a visão de Starhawk, a Wicca é uma contracultura e tem um papel de mudança social a cumprir:

Os covens tradicionais têm uma característica que talvez seja a discrição das suas práticas e seus debates. E pra nós a Wicca, além de uma religião, é uma contracultura, então acreditamos que esses debates que fazemos, nossa visão do sagrado, perante a natureza, perante o feminino, ela é também um agente de transformação social. Então a gente faz questão de mostrar pras pessoas nossa visão de mundo. A gente não é de se divulgar, mas estamos sempre nos movimentos, a gente mostra a cara, a gente diz que somos bruxos mesmo (entrevista com Felipe, 25/07/2015Entrevista com Felipe, Brasil, 25 de julho de 2015.).

Esse comportamento político engajado se faz presente nas atitudes e escolhas de vida de Felipe. Ele realizou uma viagem de um ano pela América do Sul a fim de aprender com povos tradicionais. A viagem teve um cunho mais técnico e profissional, pois visava estudar a arte dos povos andinos para utilizar na sua profissão como designer, mas também teve um conteúdo de busca pessoal, pois, durante aquele período, procurou aprender sobre espiritualidade e xamanismo tradicional, o que incorporou nas práticas de seu coven.

Sobre seu engajamento em lutas políticas, Felipe já participou de movimentos populares de bairro. Em Belém, engajou-se com um grupo de artistas que promoveu em 2015 a ocupação cultural do Solar da Beira, um prédio histórico deixado pela prefeitura em estado de abandono, situado junto ao complexo do Ver-o-Peso, um dos maiores pontos turísticos da cidade. O objetivo da ocupação era pressionar a prefeitura a transformar o espaço em um centro cultural.

Durante a ocupação, os artistas envolvidos no movimento passaram cerca de três semanas morando no local. Nesse período, realizaram diversos eventos, como saraus, exposições, performances e lançamentos de livros, chamando a atenção da cidade para o estado de abandono do prédio, que anteriormente era habitado por mendigos e moradores de rua. Uma das atividades promovidas por Felipe durante a ocupação foi a roda de conversa intitulada “Ecoespiritualidade para um outro pensamento político”, coordenada por ele e por um mestrando em Ciências da Religião, pesquisador e praticante do paganismo.

O evento consistiu em uma apresentação em forma de debate, feita pelos dois coordenadores e pelos outros membros do coven Anan Cara, sobre a relação entre a religião Wicca e os movimentos sociais feministas, ecológicos e da contracultura. A maioria dos presentes eram artistas, integrantes ou simpatizantes do movimento de ocupação do Solar da Beira. Como os participantes da roda de conversa não possuíam conhecimento prévio de Wicca, os organizadores explicaram um pouco da cosmologia da religião, suas ideias a respeito da mulher e de outras minorias, e do meio ambiente. Depois passaram a mostrar como essas ideias permitem a contestação da ordem social estabelecida. Os presentes fizeram perguntas bastante elementares sobre a cosmologia da religião e muitos mostraram curiosidade em conhecer mais a respeito.

Felipe pertence a uma geração mais jovem que a de Danna, pode ser considerado um filho da contracultura, e já vivenciou o contato com saberes holísticos em casa, pela influência do seu pai. É de uma geração de jovens que se afastam das militâncias mais convencionais, centradas em partidos políticos, e buscam constituir seus engajamentos em lutas cotidianas, práticas e estilos de vida alternativos e viagens. Assim como Danna, a opção de Felipe pela carreira artística mostra-se coerente com seus projetos e ideais de vida. Danna é filiada à Abrawicca e iniciada na Tradição Diânica do Brasil; Felipe, apesar de colaborar e participar de algumas atividades da Abrawicca, não pertence diretamente a essa associação e organiza suas atividades e as do seu coven de maneira autônoma. Apesar deste distanciamento, a atuação pública de Felipe demonstra que possui a mesma compreensão sobre o sacerdócio na Wicca como uma atividade pública.

Os pagãos entrevistados em Portugal não têm um discurso elaborado sobre o feminismo e alegam possuir pouco interesse nessas questões. Inicialmente, os líderes da Associação Cultural Pagã - PFI não gostaram dos temas abordados no meu projeto de pesquisa, consideraram meu interesse pela relação entre religiões que cultuam o sagrado feminino e movimentos sociais excessivamente “Diânico”. Para estes pagãos, ligados à prática de Wicca Gardneriana, as modificações na doutrina e no ritual introduzidas por Starhawk, Budapest e suas seguidoras desvirtuaram tanto a religião que não permite mais classificá-la como Wicca. No entanto, respeitam essas práticas como uma forma de paganismo bastante distante daquela que praticam.

No paganismo praticado pelas lideranças da Associação Cultural Pagã - PFI há lugar a um culto do sagrado feminino. Porém, para elas, não é possível conceber o sagrado feminino sem o sagrado masculino, já que as divindades são complementares. Como afirmou Isobel: “Eu não posso conceber um sagrado feminino per si, é necessário um complemento para a criação, um não pode existir sem o outro” (entrevista com Isobel Andrade, 20/11/2015Entrevistas com Isobel Andrade, Portugal, 5 de setembro de 2015 e 20 de novembro de 2015.). Para essas lideranças, se tais princípios estão separados e o culto ao feminino é exacerbado, como nas vertentes Diânicas, ocorre um desequilíbrio.

“Nós somos femininas, mas não somos feministas”, afirmou Isobel. Para ela, o feminismo não se torna necessário para uma mulher pagã, porque na Wicca as mulheres tradicionalmente são as líderes dos covens. Os homens devem concordar com essa norma e seguir as decisões delas. Segundo Isobel, chamar esta valorização da mulher de feminismo é uma compreensão equivocada da cosmovisão wiccaniana.

Com relação ao feminismo, cada um pode engajar-se neste debate de maneira pessoal, sem interferências da associação. As práticas favoráveis à mulher no paganismo português estão em diversas atitudes, que eles próprios não classificam como feministas. Como explica Thiago8 8 Nome fictício. :

É muito costume dos maridos baterem nas mulheres, então hoje eu vejo isso. Cheguei a ter amigos que são completamente machões, que chegam em casa com a mulher que trata das crianças, cuida da casa, faz tudo. “Eu sou o homem, eu é que trabalho, a mulher pode trabalhar ou não, não me interessa e, portanto, quando chego em casa ela está aqui para me servir”. Isso para mim também é uma forma de agressão não é só o bater, não é só o dizer palavras, isso também é uma forma de agressão. Eu acho que se as pessoas começarem a ter esta visão mais pagã do sagrado feminino, acho que isso muda um bocado. Direitos iguais para os dois gêneros (entrevista com Thiago, 28/11/2015).

Por outro lado, na compreensão dos entrevistados, a palavra feminismo remetia à ideia de que a mulher devia sobressair-se ao homem. Algo ao qual eles são contrários, como afirma Margarida: “Uma coisa é pensarmos o sagrado feminino como um objetivo máximo de tudo, agora o masculino que fica embaixo, isso não […]. Como se o feminino que se valoriza em relação ao masculino, agora deixou o homem de ser o mandante e passa a mulher a ser a mandante, digamos, o feminino. Não é isso que eu entendo” (entrevista com Margarida, 05/09/2015Entrevista com Margarida, Portugal, 5 de setembro de 2015.).

A compreensão dos pagãos portugueses prega o equilíbrio entre os gêneros, com respeito ao lugar da mulher como espaço empoderado e de sacralidade. Refutam a identidade de feministas, pois consideram que esta categoria implicaria uma luta por simplesmente inverter a dominação dos homens pelas mulheres, tornando-as superiores aos primeiros. Consideram que o equilíbrio e o respeito são fundamentais na relação entre os gêneros, o que está de acordo com as práticas da sua religião.

A aversão dos pagãos portugueses à palavra “feminismo” deve-se provavelmente à maneira como o tema foi demonizado no país durante a ditadura de Salazar (Tavares 2008TAVARES, Maria Manuela Paiva Fernandes. (2008), Feminismos em Portugal (1947-2007). Lisboa: Tese de Doutorado em Estudos sobre as Mulheres, UAb. ), tornando-se uma questão tabu. Este comportamento é coerente com a faixa etária à qual pertencem as mulheres que compõem as lideranças da PFI, que são, na sua maioria, de meia-idade. No entanto, os pagãos entrevistados mostravam-se avessos apenas à palavra “feminismo”, enquanto nos seus discursos destacavam concordar com a igualdade entre os gêneros e a valorização da mulher.

Da análise dos discursos e entrevistas, é possível depreender que o paganismo português possui uma grande ênfase no aprendizado e em estudos, com o objetivo de construir os cultos pagãos contemporâneos. Realizam periodicamente cursos teóricos sobre paganismo. Como afirma Isobel, o paganismo europeu estaria mais voltado para a história, enquanto o paganismo nas Américas se voltou bastante para o tema das militâncias e das questões sociais, ou seja, os efeitos práticos das religiões: “Essas correntes pagãs, as mais novas, apanharam-se na ecologia: a deusa mãe, a terra. Enquanto que nós aqui na Europa, procuramos as deusas à procura do culto, do mistério, e do ritual, elas lá foram à procura do efeito que a nova religião poderia ter, e elas trazem de uma forma muito mais forte que a europeia um sentido ecológico” (entrevista com Isobel Andrade, 05/09/2015).

A fala de Isobel demonstra seu conhecimento acerca das práticas pagãs nas Américas e sintetiza bem a diferença entre as atividades promovidas por associações pagãs observadas no Brasil e em Portugal. Ao passo que nas brasileiras havia uma grande ênfase nas militâncias em prol de questões ecológicas, feministas, de direitos das mulheres e da diversidade sexual, em Portugal a principal ênfase do movimento é no aprimoramento da ritualística e dos estudos a respeito da religião.

Os pagãos portugueses são também muito mais discretos que os brasileiros quanto à sua fé, tendo havido inclusive informantes que solicitaram que sua identidade fosse mantida no anonimato. Essa postura, no entanto, não impede os dirigentes da Associação Cultural Pagã - PFI de engajarem-se em causas sociais que consideram importantes, como a filantropia e o movimento para o diálogo inter-religioso.

Outra diferença entre as atividades da Abrawicca e da Associação Cultural Pagã encontra-se no tratamento dado à sexualidade. No caso dos eventos e práticas da Abrawicca, a sexualidade é um dos temas preponderantes. Os pagãos brasileiros acreditam que libertar a sexualidade de padrões limitantes impostos pelo cristianismo é importante para uma prática pagã. Assim como nos Estados Unidos (Pike 2001PIKE, Sarah (2001), Earthly Bodies and Magical Selves: Contemporary Pagans and the Search for Community. Berkeley: University of California Press., 2004PIKE, Sarah. (2004), New Age and Neopagan Religions in America. New York: Columbia University Press. (Columbia Contemporary American Religion Series).), os eventos e atividades possuem diversas vivências cujo enfoque específico é a sexualidade. Em Portugal, não presenciei nenhuma atividade ou discussão neste sentido.

Os pagãos portugueses interessam-se a maior parte do tempo por literatura e história, nas quais buscam a fonte de suas práticas religiosas. No seu meio, é possível notar um ambiente muito voltado a estudos e pesquisas teóricas, em que não são valorizados ou vêm à tona discursos sobre a sexualidade ou intimidade dos participantes, como na Wicca brasileira. Aparentemente, acreditam que esses assuntos não dizem respeito à religião.

Apesar de não tematizar a sexualidade como um aspecto central da ritualística da religião, como ocorre no Brasil, o discurso dos pagãos portugueses possui grande tolerância com relação a comportamentos homossexuais. No entanto, enfatizam que estas questões não têm a ver com prática religiosa. Como afirma Thiago, ao exemplificar como o paganismo mudou sua concepção acerca da diversidade sexual: “Eu antigamente via os homossexuais como uma doença, hoje em dia eu aceito como pessoas que nascem normais, que são tão normais como eu, têm gostos diferentes” (entrevista com Thiago, 28/11/2015Entrevista com Thiago (nome fictício), Portugal, 28 de novembro de 2015.).

Considerações Finais

É possível perceber, pela análise comparativa da trajetória e atuação das duas associações, que há muitas diferenças entre as práticas do paganismo brasileiro e as práticas portuguesas. Enquanto pagãos brasileiros possuem uma postura mais agressiva com relação à presença no espaço público e à atração de novos adeptos, os pagãos portugueses são mais discretos neste quesito, promovendo encontros mais fechados e restritos ao próprio grupo.

Sobre a militância, também há grande diferença na postura dos pagãos brasileiros e portugueses quanto à promoção de discursos feministas e de liberação sexual, que são presentes no grupo brasileiro e não foram observados no grupo português. O ponto de maior afinidade foi com relação à militância ecológica e pela diversidade religiosa, encontrada em ambas as associações estudadas nesta pesquisa.

O comportamento dos pagãos nesses países pode variar desde uma atitude discreta com grupos que funcionam de maneira quase sigilosa (Fedele 2015FEDELE, Anna. (2015), “Iberian Paganism”. In: K. Rountree (org.). Contemporary Pagan and Native Faith Movements in Europe. Colonialist and Nationalist Impulses. New York/Oxford: Berghahn Books, vol. 26.) até uma atividade mais presente no espaço público. A criação de associações civis faz parte desse movimento de busca por reconhecimento e agregação.

No mundo contemporâneo, a busca por uma religião pessoal, livre de igrejas e instituições religiosas, tem chamado a atenção de diversos pesquisadores, que cunharam o conceito de lived religion para dar conta desta forma individual e cotidiana de experimentar o sagrado (Ammerman 2007AMMERMAN, Nancy T. (2007), Everyday religion: Observing modern religious lives. Oxford: Oxford University Press.; Aune 2015AUNE, Kristin. (2015), “Feminist Spirituality as Lived Religion How UK Feminists Forge Religio-Spiritual Lives”. Gender & Society, vol. 29, nº 1: 122-45.). Muitos pagãos experienciam o paganismo como lived religion e não sentem necessidade de agregar-se em espaços coletivos. Por outro lado, o estudo das formas de associativismo entre neopagãos pode revelar uma faceta menos evidente das novas espiritualidades.

Mesmo não se tratando de uma tendência majoritária entre os neopagãos, a busca por associações sinaliza para novas formas de agrupamento e institucionalização, o que contraria a tendência ao individualismo, característica mais marcante da modernidade religiosa. O estudo das práticas religiosas dentro destes contextos específicos pode revelar novos dados sobre a presença da religião no espaço público e do pluralismo religioso em países majoritariamente católicos, como Brasil e Portugal.

Referências Bibliográficas

  • ADLER, Margot. (2006), Drawing down the moon. Witches, Druids, Goddess-Worshippers, and Other Pagans in America New York: Penguin Books.
  • AMMERMAN, Nancy T. (2007), Everyday religion: Observing modern religious lives Oxford: Oxford University Press.
  • AUNE, Kristin. (2015), “Feminist Spirituality as Lived Religion How UK Feminists Forge Religio-Spiritual Lives”. Gender & Society, vol. 29, nº 1: 122-45.
  • BERGER, Peter Ludwing. (2004), O Dossel Sagrado: elementos para uma teoria sociológica da religião São Paulo: Paulinas.
  • BEZERRA, Karina. (2012), A Wicca no Brasil: adesão e permanência na região metropolitana de Recife Recife: Dissertação de Mestrado em Ciências da Religião, UNICAP.
  • BUTLER, Judith. (2011), “Irish neo-paganism: worldview and identity”. In: O. Cosgrove (et al.). Ireland’s new religious movement New Castle: Cambridge Scholar Publishing.
  • CERIDWEN, Mavésper Cy. (2003), Wicca Brasil: guia de rituais das deusas brasileiras São Paulo: Gaia.
  • CLIFTON, Chas. (2006), Her Hidden Children: The rise of Wicca and Paganism in America Lanhan: Rowman Altamira.
  • CLIFTON, Chas; HARVEY, Graham. (2004), The Paganism reader London: Routledge.
  • CORDOVIL, Daniela. (2014), “The Cult of Afro-Brazilian and Indigenous Gods in Brazilian Wicca: Symbols and Practices”. The Pomegranate, vol. 16, nº 2: 1-14.
  • CORDOVIL, Daniela. (2015), “O poder feminino nas práticas da Wicca: uma análise dos ‘Círculos de Mulheres’ e suas participantes”.Estudos Feministas, vol. 23, nº 2: 431-449.
  • CROWLEY, Viviane. (2014), “Standing up to be counted: understanding Pagan responses to the 2011 British censuses”. Religion, vol. 44, nº 3: 483-501.
  • DIX, Steffen. (2010), “As esferas seculares e religiosas na sociedade portuguesa”. Análise Social, vol. XLV, nº 194: 5-27.
  • FEDELE, Anna. (2013), “The Metamorphoses of Neopaganism in Traditionally Catholic Countries in Southern Europe”. In: J. Mapril; R. L. Blanes (orgs.). Sites and Politics of Religious Diversity in Southern Europe Leiden/Boston: Brill.
  • FEDELE, Anna. (2015), “Iberian Paganism”. In: K. Rountree (org.). Contemporary Pagan and Native Faith Movements in Europe. Colonialist and Nationalist Impulses New York/Oxford: Berghahn Books, vol. 26.
  • HUME, Lynne. (2007), Witchcraft and paganism in Australia Carlton South, Victoria, Australia: Melbourne University Press.
  • HUTTON, Ronald. (1995), The Triumph of the Moon. A History of Modern Pagan Witchcraft Oxford: Oxford University Press .
  • INSTITUTO BRASILEIRO DE GEOGRAFIA E ESTATÍSTICA. (2010), Censo Demográfico 2010. Características Gerais da População, Religião e Pessoas com Deficiência Rio de Janeiro: IBGE.
  • PIKE, Sarah (2001), Earthly Bodies and Magical Selves: Contemporary Pagans and the Search for Community Berkeley: University of California Press.
  • PIKE, Sarah. (2004), New Age and Neopagan Religions in America New York: Columbia University Press. (Columbia Contemporary American Religion Series).
  • PRIETO, Claudiney. (2003), Wicca: a religião da deusa São Paulo: Alfabeto.
  • REID, Sian. (2005), “Renovating the Broom Closet: factors contributing to the Growth of Contemporary Paganism in Canada”. The Pomegranate , vol. 7, nº 2: 128-140.
  • ROUNTREE, Kathryn. (2005), “Goddess Spirituality and Nature in Aotearoa New Zealand”. The Pomegranate , vol. 7, nº 2: 141-156.
  • ROUSSOU, Eugenia. (2016), “A transformação da religiosidade em Portugal e na Grécia: uma comparação etnográfica da Nova Espiritualidade e pluralismo religioso no sul da Europa”. Rever, vol. 16, nº 3: 66-80.
  • SALOMONSEN, June. (2002), Enchanted Feminism: the reclaiming witches of San Francisco London/New York: Routledge.
  • SARAIVA, Clara. (2010), “Afro-Brazilian religions in Portugal:bruxos, priests andpais de santo”. Etnográfica, vol. 14, nº 2: 265-288.
  • SHNIRELMAN, Victor. (2007), “Ancestral Wisdom and Ethnic Nationalism: A View from Eastern Europe”. The Pomegranate , vol. 9, nº 1: 41-61.
  • TAVARES, Maria Manuela Paiva Fernandes. (2008), Feminismos em Portugal (1947-2007). Lisboa: Tese de Doutorado em Estudos sobre as Mulheres, UAb.
  • VILAÇA, Helena. (2005), “A religião e a Bíblia em um quadro de Liberdade Religiosa”. Revista Lusófona de Ciências das Religiões, Ano IV, nº 7/8: 109-117.
  • ASSOCIAÇÃO CULTURAL PAGÃ. Pagan Federation International Portugal - PFI Associação Pagã Disponível em: Disponível em: http://pt.paganfederation.org/ Acesso em: 15/09/2016.
    » http://pt.paganfederation.org/
  • TRADIÇÃO DIÂNICA DO BRASIL. Tradição Diânica do Brasil Disponível em: Disponível em: http://www.tradicaodianicadobrasil.com.br/ Acesso em: 30/09/2016.
    » http://www.tradicaodianicadobrasil.com.br/
  • TRADIÇÃO DIÂNICA NEMORENSIS. Tradição Diânica Nemorensis Disponível em: Disponível em: http://www.nemorensis.com.br/ Acesso em: 15/12/2016.
    » http://www.nemorensis.com.br/
  • Entrevista com Danna Myr, Brasil, 14 de março de 2015.
  • Entrevista com Felipe, Brasil, 25 de julho de 2015.
  • Entrevistas com Isobel Andrade, Portugal, 5 de setembro de 2015 e 20 de novembro de 2015.
  • Entrevista com Margarida, Portugal, 5 de setembro de 2015.
  • Entrevista com Thiago (nome fictício), Portugal, 28 de novembro de 2015.

1

  • 1
    Esta pesquisa foi realizada com apoio da CAPES, por meio da bolsa de Estágio Sênior, com referência 99999.002709/2015-05, realizado no Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra, Portugal.

2

  • 2
    Os praticantes solitários de Wicca tornaram-se populares nos Estados Unidos a partir da publicação da obra de Scott Cunningham, autor best-seller que descreve os ritos básicos da religião de forma que eles possam ser compreendidos e realizados por indivíduos em suas próprias casas, sem que precisem ser aceitos por grupos secretos e iniciáticos.

3

  • 3
    Cf. http://www.tradicaodianicadobrasil.com.br/TRADIÇÃO DIÂNICA DO BRASIL. Tradição Diânica do Brasil. Disponível em: Disponível em: http://www.tradicaodianicadobrasil.com.br/ . Acesso em: 30/09/2016.
    http://www.tradicaodianicadobrasil.com.b...
    .

4

  • 4
    Cf. http://www.nemorensis.com.br/TRADIÇÃO DIÂNICA NEMORENSIS. Tradição Diânica Nemorensis. Disponível em: Disponível em: http://www.nemorensis.com.br/ . Acesso em: 15/12/2016.
    http://www.nemorensis.com.br/...
    .

5

  • 5
    Palestra sobre moral pagã, proferida no 14º Encontro Anual de Bruxos, realizado entre 29 a 31 de março de 2015 em Atibaia, São Paulo.

6

  • 6
    Cf. http://pt.paganfederation.org/ASSOCIAÇÃO CULTURAL PAGÃ. Pagan Federation International Portugal - PFI Associação Pagã. Disponível em: Disponível em: http://pt.paganfederation.org/ . Acesso em: 15/09/2016.
    http://pt.paganfederation.org/...
    .

7

  • 7
    Fonte: correspondência por e-mail dirigida a mim por dirigentes da PFI-Portugal.

8

  • 8
    Nome fictício.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    08 Jun 2020
  • Data do Fascículo
    Jan-Apr 2020

Histórico

  • Recebido
    08 Fev 2019
  • Aceito
    21 Out 2019
Instituto de Estudos da Religião ISER - Av. Presidente Vargas, 502 / 16º andar – Centro., CEP 20071-000 Rio de Janeiro / RJ, Tel: (21) 2558-3764 - Rio de Janeiro - RJ - Brazil
E-mail: religiaoesociedade@iser.org.br