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Evangélicos e aborto na Constituinte (1987-1988)1 1 Este artigo é fruto de pesquisa realizada com apoio da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior - Brasil (CAPES).

Evangelicals and abortion in the Constituent Assembly (1987-1988)

Resumos

Resumo: Este trabalho apresenta as reflexões e argumentos que deputados evangélicos sustentaram em relação ao aborto durante a Assembleia Constituinte (1987-1988). Destacamos as ideias de Costa Ferreira (PFL-MA), que argumentou contra a legalização do aborto como forma de proteger as mulheres e de evitar que desigualdades regionais acentuassem riscos que a prática do aborto poderia trazer à vida delas. No conjunto dos argumentos identifica-se uma leitura da mulher mais como ente familiar do que um sujeito político autônomo, cabendo ao homem e à sociedade decidir sobre a legalização ou não do aborto. O artigo também evidencia um ponto de divergência interna à bancada: a aceitação ou não do aborto em casos de gravidez de risco ou decorrente de violência sexual.

Palavras-chave:
Assembleia Nacional Constituinte (1987-1988); religião; política; protestantismo; aborto.


Abstract: This work presents the reflections and arguments that evangelical deputies supported in relation to abortion during the Constituent Assembly (1987-1988). We highlight the ideas of Costa Ferreira (PFL-MA), who argued against the legalization of abortion as a way to protect women and prevent regional inequalities accentuated the risks that the practice of abortion could bring to their lifes. In the set of arguments woman is identified more as a family entity than an autonomous political subject; and it is also up to man and society to decide whether or not to legalize abortion. The article also highlights a point of internal disagreement on the bench: the acceptance or not of abortion in cases of risky pregnancy or resulting from sexual violence.

Keywords:
National Constituent Assembly (1987-1988); religion; politics; protestantism; abortion


Este artigo apresenta parte dos resultados de uma pesquisa dedicada à investigação do pensamento político conservador2 2 Para a classificação desse pensamento político como conservador, tomamos por referência o argumento de Samuel Huntington, que define o conservadorismo como um movimento de defesa das instituições existentes e que tem como componentes fundamentais, entre outros: o entendimento da religião como fundamento da sociedade civil; a valorização da prudência, do preconceito, da experiência e dos hábitos como guias para o encontro da verdade; o reconhecimento da superioridade da comunidade em relação ao indivíduo (Huntington 1957:454-56). Em Huntington, o conservadorismo se demonstra a uma postura reativa - argumento também sustentado por Karl Mannheim, que apresenta o conservadorismo moderno como “contramovimento”, conscientemente reativo à consolidação das tendências de pensamento progressistas, de modo a “reverter o processo da história” (Mannheim 1986:84, 88-8). entre os parlamentares evangélicos eleitos para a Assembleia Nacional Constituinte (ANC) de 1987-1988. Trata-se de um estudo de suas ideias e perspectivas políticas, observadas a partir de seus discursos parlamentares,3 3 Por meio do uso de um software de análise qualitativa de dados (Atlas.ti) foram demarcados mais de 7.0il registros de pronunciamentos dos parlamentares evangélicos eleitos à ANC, em 270 edições do Diário da Assembleia Nacional Constituinte (DANC) e 613 atas das Comissões e Subcomissões Temáticas, Comissão de Sistematização e de Redação, reunidas ao longo da ANC (Senado Federal 1987-1988). A partir do cruzamento desses registros com temas e palavras-chaves identificadas durante a pesquisa (ex.: “aborto”), passamos a reconstrução de seus argumentos - caminho que nos permitiu caracterizar suas ideias. Os deputados mencionados neste artigo são aqueles identificados pela pesquisa como os de maior engajamento no tema, a partir dos cruzamentos de dados explicitados pelo Atlas.ti. cujo papel nos debates políticos da época desejamos evidenciar.

No momento em questão, o país assistiu a uma inédita mobilização de igrejas evangélicas - sobretudo pentecostais - com vistas ao lançamento de “candidaturas oficiais” e à formação de uma “bancada evangélica” (Freston 1993FRESTON, P. (1993), Protestantes e política no Brasil: da Constituinte ao impeachment. Campinas: Tese de Doutorado, UNICAMP. :180; Fonseca 2014FONSECA, A. D. (2014), “Informação, política e fé: o jornal Mensageiro da Paz no contexto de redemocratização do Brasil (1980-1990)”. Revista Brasileira de História, vol. 34, nº 68: 279-302.:291-292) que viria a ser composta naquela legislatura por 32 parlamentares - evidenciando uma estratégia desse segmento religioso em se fazer presente nas principais instâncias de decisão política do país com base em uma perspectiva de defesa de pautas relacionadas, em especial, a temas morais e comportamentais (Pierucci 1996PIERUCCI, A. F. (1996), “Representantes de Deus em Brasília: a bancada evangélica na Constituinte. A realidade social das religiões no Brasil: religião, sociedade e política. São Paulo: Hucitec.:168-173). A análise dos pronunciamentos dos deputados evangélicos comprova contundente preocupação com demandas relacionadas à defesa da família - mais precisamente, de determinado modelo de família: monogâmico, heterossexual, cristão,4 4 O deputado Costa Ferreira (PFL-MA), por exemplo, afirmaria ser a “família cristã” o modelo de família “mais perfeito”, posto que o cristianismo teria sido responsável pela “dignificação da família”, tornando sua estrutura “mais humana” e dando ao matrimônio um “caráter de sacramento” e de “instituição sagrada” (DANC, 21/02/1987: 34). observado como gênese da própria sociedade e, segundo a leitura desses parlamentares, objeto de diferentes tipos de “ataques” que estariam em voga na época - o divórcio, a homossexualidade, a pornografia, a imoralidade, o aborto, entre outros.

Se as questões morais eram um fio condutor importante para atuação da maioria dos constituintes evangélicos,5 5 A presença de parlamentares evangélicos mais progressistas - como Lysâneas Maciel (PDT-RJ), Benedita da Silva (PT-RJ) e Celso Dourado (PMDB-BA) - ilustrava a ocorrência de divergências internas ao “Bloco Parlamentar Evangélico”. Por outro lado, constituintes como Daso Coimbra (PMDB-RJ) e Fausto Rocha (PFL-SP) argumentavam pela necessidade de o bloco centrar seu poder de fogo em “‘questões morais’”. “Posições divergentes entre os evangélicos”. Aconteceu no Mundo Evangélico, ano VI, nº. 4, ma/ 187:. o cenário político da época também colocava esses atores em alerta: apesar da manutenção de uma forte linha política conservadora no interior do poder legislativo (Souza 1988SOUZA, M. DO C. C. (1988), “A Nova República brasileira: sob a espada de Dâmocles”. In: A. Stepan, (org.). Democratizando o Brasil. Rio de Janeiro: Paz e Terra, : 563-627. :569-570; Mainwaring & Meneguello; Power 2000MAINWARING, S.; MENEGUELLO, R.; POWER, T. (2000), Partidos conservadores no Brasil contemporâneo: quais são, o que defendem, quais são suas bases. São Paulo: Paz e Terra.:53), crescentes eram as demandas por democratização e ampliação de direitos constitucionais. Após anos de repressão ditatorial, o Brasil chegava ao final da década de 1980 com um fortalecimento do movimento feminista, cujas demandas vinham sendo gradualmente incorporadas à dinâmica dos partidos políticos.6 6 A realização do “Encontro Nacional Mulher e Constituinte”, em agosto de 1986, e a posterior redação da Carta das Mulheres à Assembleia Constituinte, deram respaldo a uma atuação articulada de representantes de movimentos feministas, da bancada de mulheres eleitas para a ANC e de integrantes do Conselho Nacional dos Direitos da Mulher (CNDM), para pressionar os demais parlamentares pela aprovação de suas reivindicações - ação que viria a ser identificada pela imprensa como “lobby do batom” (Costa 2005:6). O movimento homossexual,7 7 Até 1992 era usado o termo “movimento homossexual brasileiro” (MHB) para se referir à militância em torno da questão da homossexualidade. É a partir de 1993 que termos mais específicos, como “gays”, lésbicas”, “bissexuais”, “travestis” e “transsexuais” passam, gradualmente, a ser representadas nas siglas que definem o movimento, vindo o termo LGBT finalmente a ser utilizado a partir da realização da I Conferência Nacional GLBT, ocorrida no ano de 2007 (Simões; Facchini 2009:14-6). após um período de florescimento identificado especialmente na passagem dos anos de 1970 a 1980, passaria por um processo mais profundo de institucionalização e, no contexto da ANC, encabeçaria campanhas pela inclusão da proibição de discriminação por “orientação sexual” na nova Carta (Câmara 2002CÂMARA, C. (2002), Cidadania e orientação sexual: a trajetória do grupo Triângulo Rosa. Rio de Janeiro: Academia Avançada. :107-149; Howes 2010HOWES, R. (2010), “João Antônio Mascarenhas (1927-1998): pioneiro do ativismo homossexual no Brasil”. Cadernos AEL, vol. 10, nº 18/19.:302-305).

Diante de tal cenário, concepções de família e de moral contribuíram para que os parlamentares evangélicos reunissem um conjunto de reivindicações supostamente voltadas à preservação das mesmas e, consequentemente, para o bom progresso da sociedade, em respeito às tradições cristãs nas quais a formação histórica da nação brasileira estaria enraizada. Inspirados por tais concepções que os evangélicos organizaram sua participação na ANC - o que nos ajudaria a compreender, por exemplo, a particular distribuição desses parlamentares entre as Comissões e Subcomissões Temáticas, responsáveis pela elaboração da primeira versão do texto constitucional: nada menos do que 8 parlamentares evangélicos - metade deles ligada à Assembleia de Deus - participaram da Subcomissão da Família, do Menor e do Idoso (VIII.C) na condição de titulares; além de terem participação expressiva, com a ocupação de três cadeiras, nas Subcomissões dos Direitos Políticos, dos Direitos Coletivos e das Garantias (I.B), e dos Direitos e Garantias Individuais (I.C).

Tendo como tema o pensamento dos parlamentares evangélicos sobre a questão do aborto, este artigo se debruça especialmente sobre os registros taquigráficos das Subcomissões I.C e VIII.C, mas também considerando os dizeres de publicações ligadas ao mundo evangélico - como jornais e livros - para a justificação de nosso argumento. Nesse sentido, identificamos o deputado Costa Ferreira (PFL-MA) como um dos mais atuantes sobre o assunto: suas manifestações refletiam forte contrariedade à interrupção voluntária da gravidez - mas baseada, no entanto, em uma perspectiva que argumentava ser de proteção à integridade e à vida das mulheres, especialmente aquelas residentes nas regiões mais carentes do país. Na base de suas justificativas, observa-se a leitura da figura da mulher mais como um ente familiar do que um sujeito político autônomo, assim assegurando tanto aos homens quanto à sociedade o direito de se posicionarem e lutarem contra a legalização do aborto. Em seguida, o artigo também demonstrará a existência de um ponto de divergência interna à “bancada evangélica”, que distanciava o deputado maranhense em especial de seus pares assembleianos: a aceitação ou não do aborto em casos de gravidez de risco ou decorrente de violência sexual.

Ao revisitar a participação dos constituintes evangélicos na ANC, com atenção especial ao seu pensamento político e às ideias que defenderam sobre o tema do direito ao aborto, esperamos contribuir com o consistente conjunto de estudos sobre a relação entre os evangélicos e a política brasileira desenvolvido nos últimos anos, bem como com as investigações sobre o tema do aborto no debate político nacional, particularmente seu tratamento por parte dos parlamentares evangélicos - cuja relevância para as Ciências Sociais é crescente em nossos dias.

As resistências ao direito ao aborto na ANC

O debate sobre a questão do aborto na ANC se daria por diferentes iniciativas e explicitando distintos níveis de tensão. No interior do movimento de mulheres, por exemplo, o tema seria objeto de sensível discussão. Fundamental em sua ação de capitanear a apresentação de demandas femininas junto à ANC, o Conselho Nacional dos Direitos da Mulher (CNDM) levaria a cabo o debate sobre a legalização do aborto, mas enfrentando resistências tanto entre deputadas constituintes quanto entre setores mais amplos do movimento de mulheres.8 8 A divergência sobre o tema entre representantes da CNDM e setores do movimento de mulheres se explicaria pelo fato de este último ser em boa parte proveniente de camadas populares e que se baseavam em convicções religiosas contrárias à prática do aborto (Silva 2011:259). Já em relação a mulheres parlamentares, houve situações de explícita divergência sobre o tema: Sandra Cavalcanti (PFL-RJ), por exemplo, comparou os defensores da legalização do aborto a Hitler. “Deputadas constituintes não conseguem consenso em propostas sobre mulheres”. Folha de S. Paulo, 29/03/87: 24. Por sua vez, parlamentares contrários à legalização se manifestariam com contundência: José Mendonça de Morais (PMDB-MG) classificaria tal demanda como um “genocídio preventivo” e uma prática enraizada na “violação da dignidade humana” (DANC 10/04/1987:1223). “O aborticídio é inadmissível”, pronunciaria Mauro Sampaio (PMDB-CE), um “flagelo” cuja reprovação social se consolidara com o “advento do cristianismo” (DANC 24/04/1987:1478). A moral cristã, afirmaria Nilson Gibson (PMDB-PE), “impede que o egoísmo da mãe ou a irresponsabilidade médica ou de parentes leve à prática, o aborto em qualquer de suas formas” (Danc 28/05/1987:2.266).

Entretanto, essas manifestações de oposição à legalização do aborto não ocorriam simplesmente como reação a iniciativas feministas. Se a Carta das Mulheres trazia em seu escopo a reivindicação pelo direito à interrupção da gravidez,9 9 A Carta mencionava, entre suas reivindicações: “garantia de livre opção pela maternidade, compreendendo-se tanto a assistência ao pré-natal, parto e pós-parto, como o direito de evitar ou interromper a gravidez sem prejuízo para a saúde da mulher” (Conselho Nacional do Direitos da Mulher 1987). o tema do aborto seria incorporado à ANC, por outro lado, pelas mãos da Igreja Católica - e com o intuito de impedi-lo pela legislação (Silva, É. Q.; Carneiro, Masques 2017SILVA, É. Q.; CARNEIRO, R. G.; MASQUES, S. B. (2017), “O direito à saúde da mulher e o princípio da proibição do retrocesso social: o aborto em pauta”. In: C. Stevens et al. (org.), Mulheres e violências: interseccionalidades. Brasília: Technopolitik, : 458-481. :459). É notável o papel cumprido pela instituição no sentido de se fazer presente em espaços de discussão sobre o tema - por meio de seus representantes leigos ou pela atuação da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB). Vinicius Wohnrath, que estudou a atuação dos católicos na ANC, defende que a CNBB, agindo por uma lógica de integração com diferentes atores políticos - conservadores em especial - e sem a necessidade de mobilizar deputados ou senadores declaradamente fiéis ao catolicismo, teria transcrito sua força na Subcomissão da Família, do Menor e do Idoso (VIII.C) por meio de expositores externos - seus experts, saídos do laicato. A força do argumento é exemplificada no fato de as duas reuniões dedicadas ao tema do “planejamento familiar” ocorridas na Subcomissão contarem com todos os expositores ligados a organizações católicas ou vinculados à defesa da fé católica10 10 Na reunião de 22 de abril de 1987, se manifestaram os médicos Daniel Barbato e Geraldo Hideu Osanai, ambos ligados ao movimento Pró-vida de Brasília. No dia seguinte, foi a vez dos médicos Dermival da Silva Brandão, em nome da CNBB, e João Evangelista da Silva Alves, pela Academia Fluminense de Medicina e autodeclarado católico. Posição favorável ao aborto só viria a ser manifestada no interior da Subcomissão com a participação da socióloga Eleonora Menicucci de Oliveira, representando a CNDM, em 29 de abril de 1987 (Danc 20/05/2017 Supl. 62:207-231; Hartmann 2018:260). - e unanimemente contrários à legalização do aborto. O catolicismo, desse modo, estaria a se apresentar como chave de legitimidade dos discursos veiculados pelos políticos naquela ocasião (Wohnrath 2017WOHNRATH, V. P. (2017), “Duas dinâmicas, dois resultados: a Igreja Católica na Assembleia Nacional Constituinte 1987-1988”. Pro-Posições, vol. 28, nº 3:242-270.:260).

Em seu argumento, Wohnrath prossegue à conclusão de que, na discussão sobre questões como o aborto, a reprodução de argumentos morais e religiosos por parlamentares evangélicos estaria a fornecer uma sustentação parlamentar para os discursos católicos. Desse modo, o critério religioso sustentado pelos evangélicos no Congresso seria, na visão do pesquisador, uma “refração dos princípios morais historicamente produzidos pela Igreja Católica, ainda que pese uma matriz pentecostal americana” (Wohnrath 2017:259). Nesse ponto, pensamos que a afirmação deve ser considerada com cautela. Não é difícil admitir como proeminente o papel político e social cumprido pela Igreja Católica - e pela CNBB - na história brasileira; mas dizer que os critérios religiosos dos constituintes evangélicos seriam mera refração de princípios morais católicos soa como uma afirmação que rebaixa as intenções e preocupações apresentadas por esses parlamentares na ANC.

Entendemos que as manifestações dos parlamentares da bancada evangélica - e a presença tão significativa destes no parlamento a partir de 1987 - expressavam uma trajetória de mudanças na estratégia institucional de importantes grupos evangélicos que sinalizava uma alteração de postura no campo das ideias e, consequentemente, nos interesses dessas igrejas e suas lideranças para com as questões nacionais. Já não cabia mais aos evangélicos serem indiferentes ao debate político. Às vésperas das eleições constituintes, Josué Sylvestre - historiador, assessor legislativo no Senado Federal e ligado à Assembleia de Deus - diria que tal momento histórico, mais do que um “tempo de falar”, já se tornara o “tempo de guerrear”: não bastando apenas orar pelo Brasil, era preciso lutar pelo país “com as armas de que dispomos: pacíficas, legais, honradas - as nossas atitudes e, sobretudo, o nosso voto”. A eleição de parlamentares evangélicos aos principais cargos representativos em disputa visava redirecionar os caminhos políticos do país. Os evangélicos, dizia Sylvestre, tinham sua parcela de culpa na escolha de lideranças políticas “indiferentes à moral cristã”; eleger “irmãos” daquela eleição em diante seria uma forma de evitar que o Brasil seguisse “arrastado para o lodaçal da corrupção e da má administração”. Era hora, portanto, de eleger os “filhos da Luz” para “espancar as trevas da corrupção, da idolatria, da feitiçaria, da estagnação econômica, do obscurantismo, implantados por homens que não temem a Deus nos palácios e nas casas legislativas”. Votar em candidatos evangélicos, de bom testemunho e vocacionados para a vida pública era o modo pelo qual se perceberia as bênçãos de Deus para o país e a construção de uma nação dinâmica, progressista e menos injusta (Sylvestre 1986SYLVESTRE, J. (1986), Irmão vota em irmão: os evangélicos, a Constituinte e a Bíblia. Brasília: Pergaminho. :29-30, 34, 38).

Se os argumentos de Sylvestre - publicados sob o sugestivo título de Irmão vota em irmão - reforçavam a estratégia dos assembleianos em ampliar sua presença em espaços de representação (Freston 1993FRESTON, P. (1993), Protestantes e política no Brasil: da Constituinte ao impeachment. Campinas: Tese de Doutorado, UNICAMP. :180, 197); não deixavam, porém, de se amparar em uma leitura moral e religiosa da realidade, que procurava legitimidade a partir de referências de pensamento próprias à literatura protestante;11 11 O texto de Sylvestre, por seu caráter panfletário, não se preocupa em demonstrar rigorosamente as referências bibliográficas que mobiliza. Ao final do livro, autores como Valdir Steuernagel, Russel Shedd, Patrick Johnstone, Robinson Cavalcanti, Oscar Cullmann, William Read, entre outros, além do documento “Evangelização e Responsabilidade Social” baseado nas decisões do I Congresso Internacional de Evangelização Mundial (Lausanne, 1974) - são mencionados pelo historiador como suas “fontes”. outras ligadas à história política do protestantismo brasileiro;12 12 Além de registrar a história de “políticos evangélicos usados por Deus” - como Joaquim Nogueira Paranaguá, Guaracy Silveira, Antonio Torres Galvão, Lauro Monteiro da Cruz, Floriano Rubim, Nestor Jost e Joel Ferreira da Silva - o autor também anexa e cita trechos de manifestos escritos por evangélicos, como o “Memorial dirigido aos crentes evangélicos de todo o Brasil” (1932), a “Mensagem aos Evangélicos e ao Povo Brasileiro” (redigido a partir de seminário organizado pela Ordem dos Ministros Batistas do Rio de Janeiro, em 1985), e a “Íntegra do documento encaminhado ao Excelentíssimo Senhor Presidente da República, Dr. José Sarney, por uma Comissão de Pastores, Líderes e Parlamentares Evangélicos” (dezembro de 1985). e, especialmente, com base em uma interpretação da Bíblia Sagrada, sua história e seus personagens.13 13 Todos os capítulos do livro de Sylvestre apresentam trechos de versículos como epígrafes. Além de referências distribuídas ao longo do texto, os capítulos 8 e 9, especialmente, apresentam uma relação de referências bíblicas com respostas aos “problemas nacionais” a serem enfrentados pelos políticos evangélicos, bem como as qualidades que estes devem ter e os defeitos a serem evitados. Nessa leitura, o fortalecimento da presença evangélica no parlamento despontava não apenas como uma demonstração de amor à pátria e ao seu desenvolvimento, mas também como um modo de, por meio da política, se impedir a manutenção da “corrupção” e das “mordomias injustificáveis” das autoridades públicas, assim como a “licenciosidade” e a “devassidão” - encobertas, segundo Sylvestre, pela incapacidade de reação dos adeptos do “sincretismo religioso” a elas. Leia-se: católicos (Sylvestre 1986:72).

Sustentar, portanto, que os argumentos religiosos defendidos pelos parlamentares evangélicos representavam simples refração de princípios católicos é algo que aparentemente diminui ou ignora a crítica recorrentemente presente nos meios protestantes e pentecostais contra os dogmas e ações da Igreja de Roma e seus representantes. O combate ao aborto - bem como às práticas sexuais consideradas imorais, aos novos modelos de família e aos direitos vistos como ameaças à família - deve ser notado como uma forte preocupação por parte dos evangélicos que se amparava nos fundamentos de sua própria mentalidade religiosa. No contexto da ANC, um exemplo de manifestação institucional dessa postura pode ser identificada na celebração da eleição da bancada evangélica pelo Mensageiro da Paz, jornal publicado pela Assembleia de Deus. Sentindo-se no dever de afirmar os princípios com os quais os parlamentares evangélicos deveriam se comprometer, o primeiro deles afirmaria a importância de uma ação uniforme destes com os assuntos de interesse da comunidade evangélica, “com destaque para a ética comportamental14 14 “Assembleia de Deus elege 13 Deputados Federais”. Mensageiro da Paz, ano LVII, nº. 197, ja/. :87. (grifos nossos). Afirmando o que seria a posição comum dos constituintes evangélicos, o jornal também destacou de forma categórica, em abril de 1987: “somos contra o aborto.”15 15 “Constituintes evangélicos: somos contra o aborto”. Mensageiro da Paz, ano LVII, n.º1200, ab/. :87. Dos próprios parlamentares evangélicos veio a iniciativa de se diferenciar das posições católicas em razão de sua unidade em torno de questões morais.16 16 Com críticas à CNBB e sua preocupação com questões ideológicas (e não com os “aspectos fundamentais religiosos”), Fausto Rocha defendia que a “bancada evangélica” propusesse e votasse apenas “questões éticas e comportamentais”. Isso envolvia, entre outras coisas, o combate ao aborto, à pornografia nos meios de comunicação - com defesa da censura, inclusive - e à pena de morte. Cf. Correio Braziliense, 22/02/1987. O aborto, bem como “o divórcio, a censura nos meios de comunicação, (…) a questão da família, do menor, do idoso etc.”, diria Salatiel Carvalho (PFL-PE), eram os temas de interesse da “bancada evangélica” (Danc 16/07/1987:3313). É para elas que a “bancada” deveria se voltar - e sua justificativa era identificável na postura institucional da comunidade que representavam.

O pensamento de Costa Ferreira

Entre os mais dedicados ao tema está Costa Ferreira (PFL-MA). Com histórico de participação na Arena17 17 A Aliança Renovadora Nacional (Arena), fundada em abril de 1966, foi o partido de sustentação do governo em meio a ditadura militar ocorrida no Brasil entre 1964 e 1985 (FGV 2009c). e passagens pelo legislativo municipal de São Luís, o constituinte era ligado à Assembleia de Deus e tinha trajetória política diretamente conectada à história dos interesses locais da instituição. Veio a ser o “candidato natural” dos assembleianos maranhenses à ANC - especialmente por razão de sua proximidade ao presidente da denominação em seu Estado, o pastor Estevam Ângelo de Souza (Borges Junior 2010BORGES JUNIOR, J. R. (2010), A participação política da Igreja evangélica Assembleia de Deus no estado do Maranhão pós-1986. Teresina: Dissertação de Mestrado, UFPI.:81-82; Mota 2013MOTA, E. F. M. (2013), Representações de si e prática da escrita na religião: a produção de Estevam Ângelo de Souza na Assembléia de Deus do Maranhão (1957-1996). São Gonçalo: Dissertação de Mestrado, UERJ. ). Ferreira demonstrava em seus pronunciamentos certa sensibilidade à ideia de que cabia ao Estado brasileiro cumprir papel relevante na garantia de direitos como reforma agrária, moradia, educação e saúde (Danc 27/07/1987:3627; 08/05/1987:1754; 01/05/1987:1619; 09/12/1987:6023), mas sem que isso significasse encaminhar o país a uma situação de impedimento ao exercício da livre iniciativa. Integrando, em condição titular, a Subcomissão dos Direitos e Garantias Individuais (I.C), sustentaria contundentes posições contrárias à tortura, à pena de morte e ao abuso de poder por agentes de Estado (Danc 27/05/1987 Supl. 66:117; 20/06/1987 Supl. 81:19; 27/05/1987 Supl. 66:68), reivindicando justificativas baseadas tanto em sua experiência profissional - o deputado era bacharel em Direito - quanto em sua religiosidade.

Por outro lado, o parlamentar demonstrava clara indisposição com medidas que considerava lesivas à instituição familiar - entre elas, o divórcio e, especialmente, o aborto, criticado recorrentemente em seus discursos. Ferreira apresentou duas emendas sobre o tema à Subcomissão I.C (Brasil 1987cBRASIL. ASSEMBLEIA NACIONAL CONSTITUINTE. (1987c), Emendas oferecidas à I Comissão da Soberania e dos Direitos e Garantias do Homem e da Mulher. I-a) Subcomissão da Nacionalidade da Soberania e das Relações Internacionais. I-b) Subcomissão dos Direitos Políticos, dos Direitos Coletivos e Garantias. I-c) Subcomissão dos Direitos e Garantias Individuais. Brasília: Centro Gráfico do Senado Federal.:20 e 47), propondo o dever de o Estado proteger a vida “de sua concepção à morte”, assim reconhecida como um “direito fundamental da pessoa”. A proteção da vida desde a concepção também seria, para o autor, uma forma melhor de caracterizar o “direito à vida”, bem como o cometimento do crime contra ela. Em seu diálogo com o professor Cândido Mendes, em reunião de 24 de abril de 1987, o deputado questionaria a opinião do convidado sobre a possibilidade de tratamento do “direito à vida intra-uterina” como aspecto englobado na caracterização dos direitos humanos (Danc 27/05/1987 Supl. 66:68).

A análise de seus pronunciamentos nos permite identificar dois eixos especiais de argumentação sobre a questão. O primeiro diz respeito à suposta defesa da mulher e de sua saúde. Em uma acalorada discussão travada em 28 de abril de 1987 com a representante da OAB Mulher/RJ, Leonor Nunes de Paiva, Costa Ferreira expôs sua preocupação com as sequelas a serem trazidas pela prática do aborto na vida das mulheres brasileiras. “O aborto é prejudicial à mulher”, alegou o parlamentar, e “como tal, se ela concebe, ela tem de dar à luz a uma vida que deve ser protegida desde a sua concepção até o nascimento”. Defendendo que a saúde da mulher deveria estar “acima de tudo”, o constituinte afirmou que, se desejava-se ver a mulher como igual, protegê-la e oferecer a ela o suporte necessário para que desfrutasse de ampla liberdade na sociedade, “não nos podemos tornar covardes, a fim de agradar uma minoria qualquer, e dizer que somos a favor do aborto, quando isto é prejudicial à mulher” (Danc 27/05/1987 Supl. 66:96).

O caminho da argumentação apresentada por Costa Ferreira percorria elementos um tanto distintos daqueles apresentados por outros críticos da descriminalização do aborto, já citados anteriormente: o deputado visualizava o princípio da igualdade entre homens e mulheres como relevante para a Constituição, reconhecendo nos debates de que participava a necessidade de garantir a elas dispositivos legais para a garantia de seus direitos e de sua liberdade. “A mulher”, observou o parlamentar, “tem de pagar muito caro pela sua luta milenar em busca da emancipação”. Não deveria, portanto, ser marginalizada18 18 “A mulher não pode ser discriminada pelo simples fato de ter ficado grávida e ter de praticar o aborto. Não. Se engravidou, deve ser orientada para que tenha seu filho e o crie. Não deve ser marginalizada. É apenas uma mulher que pode muito bem, mesmo sem contrair matrimônio, ser feliz na vida” (Danc 27/05/1987 Supl. 66:96). ou posta em condição de insegurança trabalhista19 19 Refere-se, nesse caso, à estabilidade no trabalho por razão de gravidez: “a estabilidade é uma das garantias necessárias para que se acabe com o abuso existente de a mulher ser despedida sumariamente quando fica grávida” (Danc 27/05/1987 Supl. 66:124). por decorrência, por exemplo, de uma gravidez ou uma tentativa de aborto. Mesmo considerando a existência de diferenças naturais entre homens e mulheres - que o constituinte relacionava, por exemplo, ao exercício de determinados tipos de trabalho20 20 Ferreira tenta se esquivar de impressões discriminatórias: “a mulher não pode dizer que não precisa do homem e o homem não pode dizer que não precisa da mulher. É por isso que se tem que partir para a igualdade. (…) Não seria justo, pelo simples fato de a mulher ter a sua igualdade, exigir que ela também, sendo uma arrumadora, carregue uma saca de oitenta quilos. É nesse sentido que estou colocando a situação. Não estou achando que a mulher não deva trabalhar de noite, tc. Não é nada disso. Estou apenas dizendo que há tarefas que o homem faz com muito mais eficácia e outras que a mulher faz melhor” (Danc 27/05/1987 Supl. 66:124). - Ferreira compreendia ser a demanda por direitos por parte das mulheres uma luta com a qual os constituintes deveriam colaborar: “entendo que a liberdade total é um direito que a mulher pleiteia, e deve ser concedido sem que se questionem determinadas minúcias” (Danc 27/05/1987 Supl. 66:123).

A oposição à legalização do aborto era insinuada como uma forma de proteger as mulheres, um modo de impedir que fossem “condenadas à morte prematuramente”. Se as mulheres, como reconheceu Costa Ferreira, eram as pessoas que apresentavam “todas as condições para decidir sobre essa questão” (Danc 27/05/1987 Supl. 66:96-97); por outro lado, o tema não poderia ser tratado como de interesse exclusivo da mulher, mas também da sociedade: o homem, “que gosta da mulher sob esses três aspectos: esposa, filha e mãe”, quer “vê-la feliz”. Ferreira justificaria seu olhar e preocupação com a liberdade da mulher especialmente em referência aos papéis familiares cumpridos por ela; e se autorizaria, desse modo, a se posicionar contrariamente à legalização do aborto: “as mulheres podem contar comigo, mas na hora de votar o aborto, farei restrições” (Danc 27/05/1987 Supl. 66:124, grifos nossos).

O segundo eixo dos argumentos do parlamentar se sustentava na ideia de que a morte de mulheres em decorrência da prática do aborto seria agravada pelo impacto das desigualdades econômicas e regionais existentes no Brasil. Costa Ferreira reivindicava sua posição como representante de um estado nordestino para situar a defesa da legalização do aborto como medida que poderia colocar em risco especialmente a vida das mulheres de sua região, mais carente em termos de recursos econômicos e acesso a serviços oferecidos pelo Estado. Em reunião realizada em 5 de maio de 1987, Ferreira traria à lembrança o acirrado diálogo travado dias antes com Leonor Nunes de Paiva:

Na discussão, expliquei àquela brilhante advogada que realmente o aborto legalizado no Brasil seria um desastre, causaria mortandade às mulheres e um genocídio à própria raça brasileira (palmas). A minha luta foi penosa para explicar que talvez as mulheres do Sul tivessem condições de ser assistidas por um médico para a prática do aborto, segundo a versão da ilustre advogada, e que as mulheres do Nordeste, no Norte e do Centro-Oeste seriam submetidas aos maiores sofrimentos e ficariam expostas a encurtar a própria vida. O que se vê nessas regiões - eu sou do Nordeste - são pessoas que têm condições de fazer determinado tratamento, contudo, como lá não há médico especialista para o caso, às vezes, recorrem ao Sul do País para se submeterem a cirurgias e outros tratamentos. Talvez por isso, para o Sul - ela é do Rio de Janeiro - seria uma opção, mas para o Brasil, de modo geral, seria uma aflição. (Danc 17/06/1987 Supl. 78:43, grifos nossos)

Argumento semelhante foi utilizado pelo deputado maranhense em 23 de maio de 1987, como resposta aos posicionamentos de José Genoíno (PT-SP) - que defendera, minutos antes, emenda ao texto da Subcomissão I.C para que fosse excluída a menção à proteção da vida “desde a sua concepção” (Danc 02/07/1987 Supl. 87:57). Se a prática do aborto no estado de origem do deputado petista, acompanhada de cuidados médicos, até poderia se apresentar como uma solução para “as pessoas de nível médio e classe A”, o mesmo resultado não se poderia esperar em regiões como Norte, Nordeste e Centro-Oeste. O subdesenvolvimento dessas regiões seria um agravante à condição das mulheres que ali viviam, acometidas pela morte em decorrência da falta de assistência médica e que se potencializaria, segundo Ferreira, com a liberação do aborto. O parlamentar também insinuou a existência de uma insensibilidade masculina em relação ao tema: o argumento de Genoíno seria um “atentado à dignidade”; para os homens, “talvez não tenha grande importância trocar de mulher, tendo uma hoje, outra amanhã e outra depois” (Danc 02/07/1987 Supl. 87:58). A grande quantidade de mulheres mortas em decorrência da prática de abortos seria, na verdade, um sinal sobre a importância de se manter tal prática proibida e criminalizada. Os abusos sofridos por elas, diria Ferreira, não seriam coibidos com a legalização do aborto, mas liberados, “expondo as nossas mulheres a um desastre pelo qual seremos responsáveis não só hoje: futuramente, seremos muito mais apenados por esse acontecimento se o aceitarmos”.

Ao falar em “genocídio” - posteriormente o parlamentar falaria em “extinção da raça brasileira que habita o Norte e o Nordeste do País” (Danc 17/06/1987 Supl. 78:13) - e em liberação de abusos contra mulheres em decorrência de uma possível legalização do aborto, Costa Ferreira passava ao largo de considerações apresentadas por defensores da medida no que diz respeito à produção de mecanismos que permitiriam, especialmente às mulheres mais carentes, o acesso a meios seguros e amparados pela rede pública de saúde para a interrupção da gravidez. A ausência de condições adequadas de acesso à saúde em regiões como Norte e Nordeste seria indício da incapacidade de as brasileiras ali residentes terem acesso a práticas seguras de abortamento e uma justificativa para impedir sua legalização. Mesmo a identificação de práticas clandestinas de aborto visivelmente agressivas e humilhantes - como as realizadas com “agulhas de tricô introduzidas no útero”, “talo de mamona” e de “couve”21 21 As menções se encontram nos pronunciamentos da advogada Leonor Nunes de Paiva (cf. Danc, 27/05/1987, Supl. 66, p. 96) e da constituinte Anna Maria Rattes (PMDB-RJ) (cf. DANC 18/06/1987 Supl. 79:16). - não eram vistas como justificativas plausíveis para uma legalização do aborto amparada por instrumentos de saúde pública.22 22 Nas palavras do parlamentar, a ocorrência do aborto nessas condições se explicaria como consequência de “conjunções carnais clandestinas”: “depois de a mulher achar-se grávida, ela não tem a coragem de confessar aos pais etc. Então, ela recorre a esses meios espúrios, altamente nocivos à saúde” (Danc 27/05/1987 Supl. 66:96). A saída para essas graves práticas deveria se realizar, segundo Costa Ferreira, por alternativas como orientação e planejamento familiar, oferta de pílulas anticoncepcionais etc. Tal saída seria a mais prudente para se evitar a morte e o sofrimento das mulheres brasileiras - e outros problemas que poderiam ser de interesse público, como a questão do controle de natalidade.23 23 Ferreira argumentou em reunião da Comissão da Soberania e dos Direitos e Garantias do Homem e da Mulher (I) de 27 de maio de 1987: “nós nos posicionamos contra o aborto, porque compreendemos que não é uma medida adequada, para que se evite a proliferação da família com elevado número de pessoas. Acreditamos que poderíamos deter esse acontecimento através do planejamento familiar assistido pelo Estado, porque este, sim, poderia dar assistência à família e, assim, equilibrar o controle da natalidade, sem que as mulheres fossem submetidas a essa atrocidade, a esse tipo de sofrimento a que muitas vezes são induzidas, na esperança de se livrarem de ter mais filhos” (Danc 17/06/1987 Supl. 78:13).

“Só quem não teme Deus quer que seja liberado o aborto”, disse Costa Ferreira (Danc 26/06/1987 Supl. 84:4). Seu contundente pensamento tolerava, todavia, duas situações que poderiam autorizar a prática: a gestação que poderia trazer risco à vida da mulher; e a gravidez decorrente de estupro - caso justificável porque, segundo o constituinte, “sendo a mulher casada e o marido sabedor do ocorrido, o fato pode causar problema”.24 24 Em outra ocasião, o parlamentar ressaltaria sua preocupação com “a integridade psicológica do casal ou da estabilidade do próprio lar” para aceitar a possibilidade do aborto motivado por um estupro: “quando o bebê nascer talvez a mãe [violentada] o queira bem, pois é parte dela, mas o marido, já que ela foi submetida a ultraje, pode ou não aceitar essa situação, por não querer o filho de outro homem” (cf. Danc 24/06/1987 Supl. 82:53). As exceções, já previstas em lei ordinária do período, não eram combatidas pelo parlamentar, que entendia que deviam ser feitas “com assistência médica, com todos os cuidados clínicos, para que a mulher não corra maiores riscos” (Danc 27/05/1987 Supl. 66:96). Inclusive, Ferreira já pronunciara no plenário da ANC seu entendimento de que essas exceções estavam “em perfeita consonância com os princípios e valores éticos, morais e espirituais das igrejas cristãs” (Danc 28/03/1987:988).25 25 Fora essas declarações, não se localiza no restante dos registros do DANC alguma reflexão do parlamentar sobre tais consonâncias.

Divergências entre os evangélicos

O debate sobre a legalização do aborto teve grande importância para os parlamentares engajados na Subcomissão I.C. A discussão, por sua vez, não foi menor na Subcomissão da Família, do Menor e do Idoso (VIII.C). A certa altura dos debates, seu presidente, o batista Nelson Aguiar (PMDB-ES), diria que o tema do aborto havia entrado naquele espaço pela “porta do fundo” (Danc 21/05/1987 Supl. 63:216). O fato é que, sendo as reuniões destinadas a reflexões sobre temas como “planejamento familiar” e “proteção à gestante, à mãe e à família”, muitos dos argumentos mobilizados - tanto por constituintes quanto por representantes da sociedade civil presentes nos debates da Subcomissão - adotavam a contrariedade à legalização do aborto como pano de fundo. O tema despertou na subcomissão, que abrigava o maior contingente de representantes da bancada evangélica, debates acalorados não apenas entre parlamentares evangélicos e os demais, mas também entre os próprios evangélicos. E o ponto central dessas divergências sequer era a legalização ou não do aborto, mas o reconhecimento das exceções que poderiam permitir a prática. No conjunto da “bancada evangélica”, Costa Ferreira não estava só na defesa de tais exceções.

Veja-se, por exemplo, as posições do Relator da Subcomissão VIII.C, o batista Eraldo Tinoco (PFL-BA). O parlamentar era claro em sua posição contrária à legalização do aborto,26 26 Em reação aos argumentos em defesa da legalização do aborto, apresentados pelo constituinte Chico Humberto (PDT-MG), Eraldo Tinoco questionaria: “quantos assaltos são praticados no Brasil? Por isso nós vamos legalizar o assalto? Não! (Palmas)” (Danc 20/05/1987 Supl. 62:214). mas boa parte de suas indagações aos representantes da sociedade civil que se manifestavam nos encontros daquele fórum giravam em torno das situações em que o aborto poderia ser admitido. Em 22 de abril de 1987, diante de representantes do movimento Pró-vida de Brasília - manifestamente contrários ao aborto em qualquer circunstância - Tinoco reconheceu a importância de se produzir conscientização sobre os problemas e maneiras de impedir uma gravidez que pudesse trazer dificuldades de saúde. Apesar disso, argumentaria uma preocupação que, a seu ver, exigiria posições de um ponto de vista ético e moral:27 27 Ponto relevante neste comentário é considerar a preocupação “do ponto de vista ético e moral” para uma reflexão sobre as possibilidades de permissão do aborto. Na discussão em voga, os palestrantes eram médicos que reivindicavam um ângulo de análise que defendiam como científico e, a partir disso, se dedicavam a combater a legalização do aborto. Reagindo às indagações de Ervin Bonkoski (PMDB-PR) sobre a possibilidade de interrupção de gravidez decorrente de estupro, o médico Daniel Barbato, ligado ao movimento Pró-Vida, diria desejar um “combate científico”: “quero que uma pessoa me explique cientificamente até o aborto do estupro, um estupro com gravidez é raríssimo, em medicina” (Danc 21/05/1987 Supl. 63:214). Sobre o uso da retórica de “autoridade” e a instrumentalização do saber médico no contexto da discussão relatada acima, cf. Hartmann 2018:72-75. “em se tratando de um texto legal, vamos ter que dar uma previsão de poder ou não poder isso acontecer, quando, por exemplo, uma pessoa não tiver essa conscientização” (Danc 20/05/1987 Supl. 62:213).

Posições mais definitivas seriam apresentadas posteriormente, em 29 de abril de 1987, quando se manifestou na Subcomissão a socióloga Eleonora Menicucci, representando o CNDM. Diante da possibilidade de uma gravidez de risco ou resultante de violência, Tinoco declararia, se referindo ao aborto, que “ninguém, senão as pessoas diretamente envolvidas nesta questão, pode, de bom juízo, decidir a esse respeito”. As convicções pessoais dos parlamentares, defendeu o Relator, não deveriam impedir outras pessoas de tomarem decisões que lhes dissessem respeito, exclusivamente:

Tenho a minha convicção de que o aborto não deve ser genericamente legalizado. Disso estou convencido, porque do contrário nós estaríamos permitindo que se produzisse uma verdadeira desorganização da sociedade, a promiscuidade, a indústria, tudo isso iria naturalmente influenciar o comportamento coletivo. Mas nos casos em que isto represente um risco, ou represente um dano moral grave de uma gravidez adquirida contra a vontade da mulher, acho que a lei não pode proibir. (Danc 21/05/1987 Supl. 63:212-213)

A adventista Eunice Michiles (PFL-AM) também afirmaria ser claramente contrária ao aborto, “por uma questão de formação e porque considero uma questão moral”; mas reconhecia que o tema deveria ser visto “de todos os ângulos”. A parlamentar manifestava preocupação com o peso e a vergonha desproporcional que recaía sobre a mulher que recorria ao aborto, enquanto a figura masculina e também responsável pela gravidez sequer era considerada nas reflexões sobre o tema;28 28 “Aquele que ajudou a fazer o filho, que foi o parceiro para fazer o filho, está fora da história; quer dizer, ela assume sozinha todo ônus, todo o peso, toda a vergonha, enfim, tudo aquilo que traz ônus de uma gravidez indesejada, especialmente se ela for uma pessoa solteira”. A parlamentar se questiona se “é justo que essa mulher assuma sozinha essa gravidez indesejada, que só ela deva ser o ser moral que não queira o aborto” (Danc 20/05/1987 Supl. 62:215). e ao comentar as possíveis posições sobre a questão do aborto a serem apresentadas pelo Relator da Subcomissão, declarou seus futuros votos em favor “do aborto terapêutico, o aborto por má formação fetal, incluindo aí inclusive a Aids29 29 O advento da Aids se dá justamente no início dos anos de 1980. Sobre o tema, cf. Terto JrR.2002. que ainda é alguma coisa recente e concreta” (Danc 21/05/1987 Supl. 63:207).

Uma evangélica feminista? “Se ser feminista é defender uma participação maior, mais efetiva da mulher, o crescimento da mulher, a sua participação a nível da lei, a nível de participação na sociedade, eu sou feminista.” Michiles cumpriria nos debates da Subcomissão a tarefa de ressaltar a importância da representação feminina e o debate sobre os direitos das mulheres naquele espaço,30 30 Ainda no início dos trabalhos da Subcomissão VIII.C, Eunice Michiles defenderia a presença do “Conselho Nacional da Mulher” naquele espaço. Em uma reunião na qual CNBB e a “liderança evangélica” são lembradas pelo evangélico Roberto Augusto (PTB-RJ) como entidades necessárias ao debate sobre temas como aborto e divórcio, a menção ao CNDM pela parlamentar amazonense se evidencia como reconhecimento da importância de as feministas se manifestarem sobre o tema. Cf. Danc 01/05/1987 Supl. 53:212; Oliveira 2012:366-67. e reconhecendo com clareza o que a luta de feministas ao longo da história produziu em termos de garantia aos direitos das mulheres - trazendo como caso mais emblemático ao debate a luta pelo direito ao voto.31 31 “Ai de nós se não fosse a coragem das feministas. Nós estaríamos ainda hoje lutando pelo voto. (Palmas.) Estaríamos ainda hoje discutindo se a mulher teria ou não o direito ao voto, porque foi uma feminista corajosa que encostou este velho Senado aqui, há anos, e conseguiu o voto da mulher” (Danc 21/05/1987 Supl. 63:209-210). Em sua percepção sobre a evolução das relações conjugais, rejeitaria a figura da mulher submissa e que não luta por seus direitos, reivindicando uma ideia de casamento que rechaçava a perspectiva na qual há alguém que manda e alguém que obedece. No caso do aborto, afirmaria a preeminência feminina na decisão pela continuidade ou não da gravidez: “é muito fácil legislar quando a pimenta está nos olhos dos outros”, se referindo às posições dos homens presentes à Subcomissão. “É muito fácil se conversar e ditar regras quando aquilo não lhes atinge diretamente” (Danc 21/05/1987 Supl. 63:209-210, 216).

Se as situações toleradas por Costa Ferreira encontravam respaldo em parlamentares ligados a denominações protestantes mais tradicionais, o mesmo não se identificava entre alguns de seus pares pentecostais. João de Deus Antunes (PDT-RS) era um desses exemplos. Ao contrário de Eraldo Tinoco e Eunice Michiles, o parlamentar gaúcho defendia rigorosamente a constitucionalização da proibição do aborto.32 32 “Se deixarmos em aberto esta porta, facilmente poderá ser escancarada. Se trancarmos esta porta, inserindo agora na Constituição, teremos oportunidade de ver tolhidas todas as artimanhas que, porventura, possam aparecer no futuro por lobbies, por multinacionais, e tantos outros, e até por essas clínicas clandestinas que tem o desejo de ver inserida alguma coisa, numa legislação ordinária, concernente ao fato de que é permitida a prática do aborto” (Danc 19/07/1987 Supl. 98:253). Sua linguagem e pensamento policialescos - o deputado fora delegado em Porto Alegre por mais de uma década (FGV 2009bFGV - FUNDAÇÃO GETÚLIO VARGAS. (2009b), “Antunes, João de Deus”. Centro de Pesquisa e Documentação de História Contemporânea do Brasil. Rio de Janeiro: CPDOC/FGV. Disponível em: Disponível em: http://www.fgv.br/cpdoc/acervo/dicionarios/verbete-biografico/antunes-joao-de-deus . Acesso em: 28/08/2019.
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) - incentivavam comparações entre hipotéticas situações de legítima defesa e a incapacidade de “um menino ou uma menina” se proteger da ameaça de um aborto.33 33 “Por que nós procuramos diminuir as violências dentro das cidades? É porque nós encontramos marginais, assassinos, facínoras que atentam contra mim e contra a minha família, contra a sociedade em geral. Mas nós temos condições de nos armar, pegar um revólver e até atirar contra esse elemento. Agora, um menino ou uma menina que poderá ser, quem sabe, um estadista dentro de poucos anos, ele não tem a oportunidade de se levantar e dizer: ‘Por favor, me deem uma oportunidade de me defender e ao menos de viver’” (Danc 21/05/1987 Supl. 63:207). A certa altura dos debates, trazendo à memória os argumentos dos representantes do Movimento Pró-Vida, disse estar “propenso a mudar” de ideia - no sentido de ser contrário ao aborto inclusive nos casos de gravidez de risco ou em decorrência de violência sexual.34 34 Na sessão de 22 de abril de 1987, destinada à discussão sobre “planejamento familiar”, os médicos a que o parlamentar se referia apresentaram slides com imagens de abortos realizados. Geraldo Hideu Osani, um dos palestrantes, sugeriu que esse mesmo material seria usado para persuadir mulheres vítimas de estupro a não interromperem a gravidez: “muitas pessoas, mesmo as que são violentadas, fazem o aborto sem saber o que estão fazendo. Depois, chegam, olham essa coleção de slides e se arrependem” (Danc 20/05/1987 Supl. 62:212). Posteriormente, João de Deus Antunes, em referência àquela palestra, afirmaria: “antes de vir para a Constituinte, eu era a favor de que, por problema de violência e por problema de risco de vida para a mãe, deveria haver o aborto. Depois daquela apresentação por slides e também das palestras, (…) estou propenso a mudar minha ideia” (Danc 21/05/1987 Supl. 63:209). Se Eunice Michiles se viu na necessidade de realizar uma defesa do feminismo, em importante medida isso foi uma reação aos comentários de João de Deus Antunes: na sessão de 29 de abril de 1987, além de minimizar as sequelas de um aborto clandestino sobre a saúde das mulheres - segundo o parlamentar, elas seriam “menores do que o mal que é feito para o feto” - o constituinte ligado à Assembleia de Deus se propôs a questionar os argumentos de Eleonora Menicucci sobre a importância de as mulheres recuperarem o saber sobre seus próprios corpos e o consequente controle sobre ele. Para o deputado, a reivindicação desse controle poderia criar “problemas seríssimos na estrutura da família e do matrimônio”. Tal ameaça seria uma das consequências da atuação das “ligas feministas” - ligas estas favoráveis ao aborto, ao divórcio, “à desestruturação da família e do casamento”. Uma mulher feliz em seu casamento, amada por seu esposo, que amava seus filhos, jamais pertenceria a organizações feministas (Danc 21/05/1987 Supl. 63:207-208). O raciocínio foi concluído com um apelo à moralização do pensamento e dos cidadãos do país. Mais do que político, o problema a ser resolvido pela Nação era espiritual:

Os valores espirituais foram esquecidos, os valores espirituais foram substituídos por desejos próprios e por um tipo de participação diabólica, vejam bem, diabólica, participação diabólica por movimentos que se levantaram no Brasil, procurando desestruturar tudo aquilo de bom dentro de nossa concepção espiritualista. Este é o meu pensamento. (Danc 21/05/1987 Supl. 63:208, grifos nossos)35 35 Repreendido por Eunice Michiles, de acordo com comentários já registrados ao constituinte assembleiano procurou se justificar, dizendo não ser contrário à luta das mulheres por seus direitos. “Agora, eu me referi especificamente a essas que lutam pela legalização dessa morte, que é o aborto, desse crime que querem oficializar.”. jargão policial voltaria à tona à medida que o parlamentar também dissesse agir em defesa de medidas como a pena capital para combater a criminalidade: “se nós hoje estamos lutando pela pena de morte para matar esses facínoras, bandidos que matam e atentam contra as nossas famílias, nós também temos que repensar um pouco e ver que esses que estão hoje lutando a favor da legalização do aborto também são assassinos em potencial” (Danc 21/05/1987 Supl. 63:210).

Também crítico à possibilidade do aborto em qualquer circunstância era o deputado Sotero Cunha (PDC-RJ). Pastor da Assembleia de Deus, empresário do ramo de confecções, formado em comunicação e em direito, com passagem pela Escola Superior de Guerra e vínculos com a Associação de Homens de Negócio do Evangelho Pleno - Adhonep (Freston 1993FRESTON, P. (1993), Protestantes e política no Brasil: da Constituinte ao impeachment. Campinas: Tese de Doutorado, UNICAMP. :201-202; FGV 2009aFGV - FUNDAÇÃO GETÚLIO VARGAS. (2009a), “Altomires Sotero da Cunha”. Centro de Pesquisa e Documentação de História Contemporânea do Brasil. Rio de Janeiro: CPDOC/FGV. Disponível em: Disponível em: http://www.fgv.br/cpdoc/acervo/dicionarios/verbete-biografico/altomires-sotero-da-cunha . Acesso em: 28/08/19.
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), Cunha se afirmava desejoso de promover uma “Constituição verdadeiramente democrática, humana, cristã e duradoura” (Danc 28/05/1987:2265). O parlamentar tomou a palavra para se manifestar favoravelmente à posição da deputada Sandra Cavalcanti (PFL-RJ) sobre uma proposta de emenda apresentada por Eunice Michiles ao texto da Subcomissão VIII.C que previa o impedimento do uso do aborto como método de planejamento familiar, mas permitindo sua aplicação em situações de estupro, gravidez de alto risco e casos de má formação fetal que pudessem resultar em vida vegetativa (Brasil 1987aBRASIL. ASSEMBLEIA NACIONAL CONSTITUINTE. (1987a), Emendas ao anteprojeto do Relator da Subcomissão. Brasília: Centro Gráfico do Senado Federal . Disponível em: Disponível em: https://www.camara.leg.br/internet/constituicao20anos/DocumentosAvulsos/vol-215.pdf . Acesso em: 28/08/19.
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). A parlamentar pelo estado do Rio de Janeiro era pessoalmente contrária à prática do aborto inclusive nos casos de estupro, demonstrando forte ceticismo com possíveis justificativas à permissão para abortos em casos de gravidez de risco.36 36 “O que nós vamos abrir aqui no Brasil é um precedente que já foi aberto em outros países, que já estão recuando até deste ponto de vista, porque, lamentavelmente, nós não temos a tradição da seriedade. E quem dispuser de recursos, de dinheiro e de um médico que não seja sério - e, infelizmente, os aborteiros estão aí nas clínicas clandestinas, para mostrar que isso acontece na vida brasileira - vai ter o aborto legalizado pelo atestado de que se trata de uma gravidez de alto risco ou de malformação fetal, atestado este obtido na esquina, no primeiro consultório chique, exatamente como o aborto é praticado ainda hoje” (Danc 22/07/1987 Supl. 101:223). Por essa razão e entendendo serem as previsões para o aborto já registradas em lei ordinária, argumentava que o debate deveria se restringir à proibição do uso do aborto como método de planejamento familiar.

Concedida a palavra, Sotero Cunha passara a subestimar, assim como Cavalcanti, a pertinência dos casos de gravidez reconhecidas como de alto risco, sugerindo que a constatação era uma forma de justificar o “grande número de abortos que são feitos por aí afora”. “É preferível uma vida que não fala”, se referindo hipoteticamente a um ser humano em estado vegetativo, “mas que viva e nós não tenhamos tirado a sua vida antes de nascer, especialmente naquela condição de indefeso, porque quando se tira uma vida do ventre de uma mãe, está se matando um indefeso”. O parlamentar poderia interromper seu pronunciamento nesse momento; preferiu, no entanto, dar início à justificativa de sua contrariedade ao aborto nos casos de estupro:

alguém me perguntou há poucos dias numa entrevista: “e se sua filha for estuprada, você concorda [com a proibição do aborto]?” Eu disse que concordo plenamente, porque muitos dos estupros que acontecem por aí, quase na sua totalidade são provocados por facilidades das pessoas. Lembro-me muito bem que quando estávamos estudando medicina legal, um professor, não me recordo agora qual, nos declarou que a mulher tem possibilidades, eu declarei isso e vou até onde for possível com esse pensamento, que a mulher tem condições suficientes para evitar o estupro.

“Com um revólver na cabeça?”, questionou a deputada Eunice Michiles, provavelmente perturbada com as declarações do parlamentar e pastor assembleiano. Sotero Cunha, no entanto, parecia não carregar qualquer constrangimento em suas palavras:

Com um revólver na cabeça, sim. Ela pode até perder a vida, mas tem condição de evitar. (…) É preferível admitir e ter um filho, dar à luz um filho que veio de uma situação irregular… E mais, a mulher não pode estar certa que vai engravidar.37 37 Como era de se esperar, a acolhida da opinião de Sotero Cunha entre as mulheres pareceu ser das piores. Neste sentido, a revista Veja registrou vários depoimentos de mulheres indignadas com as declarações do deputado - tão graves que até Kesia, segunda esposa do parlamentar, vinte anos mais nova, se recusava a aceitá-las: “meu marido é muito radical na luta que empreende contra o aborto.”. entrevistada também afirmaria que, no caso de gravidez decorrente de estupro, “apesar de toda a fé em Deus, se isso acontecesse comigo, não hesitaria em abortar”. “Os Deputados de Deus”. Veja, 01/07/87. (Danc 22/07/1987 Supl. 101:224)

A emenda de Eunice Michiles seria rejeitada naquela sessão de 22 de maio de 1987. Durante o processo de redação do Anteprojeto da Subcomissão VIII.C, ao menos 15 emendas foram apresentadas com a preocupação de garantir redação constitucional que previsse a proteção da vida desde a concepção (Brasil 1987a) - expressão que visava assegurar a proibição do aborto por vias constitucionais, impedindo a possibilidade de sua liberação por meio de lei ordinária. Mesmo que o texto do Anteprojeto não previsse o impedimento do aborto, a Subcomissão na qual o tema havia entrado pela “porta do fundo” se tornara, verdadeiramente, o espaço onde a defesa de sua proibição ganhou maior notoriedade.38 38 A redação final do Anteprojeto da Subcomissão VIII-C fez constar na Seção II (do Menor), Art. 4º, §1º, que “o direito à vida, à saúde e à alimentação é assegurado desde a concepção, devendo o Estado prestar assistência àqueles cujos pais não tenham condição de fazê-lo” (Brasil 1987d:4). Na Subcomissão I.C - onde atuara o deputado Costa Ferreira - apenas duas emendas foram apresentadas na tentativa de garantir que desde a concepção a vida fosse protegida, enquanto 31 emendas foram apresentadas exigindo a exclusão da criminalização do aborto do texto constitucional - fosse para fins de sua legalização ou para posterior tratamento em lei ordinária (Brasil 1987bBRASIL. ASSEMBLEIA NACIONAL CONSTITUINTE. (1987b), Emendas ao anteprojeto do Relator da Subcomissão. Brasília: Centro Gráfico do Senado Federal . Disponível em: Disponível em: https://www.camara.leg.br/internet/constituicao20anos/DocumentosAvulsos/vol-79.pdf . Acesso em: 28/08/19.
https://www.camara.leg.br/internet/const...
). Posteriormente, os documentos encaminhados pelas Comissões Temáticas I e VIII à Comissão de Sistematização não registrariam a proibição do aborto, tampouco a proteção da vida desde a concepção.

Considerações finais

Neste trabalho, apresentamos o pensamento dos deputados da bancada evangélica em relação à temática do aborto - que se inseria em um conjunto mais amplo de preocupações de ordem moral e familiar que motivou a participação política dos parlamentares evangélicos na ANC. Nesse sentido, identificamos o constituinte Costa Ferreira entre os mais engajados sobre o tema, rejeitando o direito ao aborto com base em uma suposta defesa da integridade da mulher e de sua saúde e preocupado com o impacto das desigualdades econômicas e regionais que, em tese, tornariam a prática do aborto em lugares mais pobres do país razão de aumento da mortandade feminina. Essas preocupações devem ser situadas em uma leitura da mulher como ente familiar - “esposa, filha e mãe” - e não autônomo: ao homem e à sociedade em geral, enxergando a mulher no cumprimento de seu papel familiar, também caberia decidir a respeito de um tema como a legalização do aborto.

Ferreira, no entanto, reconhecia a gravidez de risco e a gestação decorrente de violência sexual como casos em que o direito ao aborto poderia ser permitido, sendo acompanhado nessa posição por outros parlamentares evangélicos, como Eraldo Tinoco e Eunice Michiles. Sua leitura divergia, por outro lado, daquela apresentada por pares pentecostais, como João de Deus Antunes e Sotero Cunha, contrários à legalização do aborto em qualquer circunstância.

Sinalizando o novo entendimento dos evangélicos em sua relação com a política no Brasil, o episódio de sua participação na ANC inaugurou um processo de crescente inserção dos membros deste segmento religioso na política brasileira (Burity; Machado 2006BURITY, J.; MACHADO, M. das D. C. (org.). (2006), Os votos de Deus: evangélicos, política e eleições no Brasil. Recife: Massangana. ; Baptista 2009BAPTISTA, S. (2009), Pentecostais e neopentecostais na política brasileira: um estudo sobre cultura política, Estado e atores coletivos religiosos no Brasil. São Paulo: Annablume. ; Vital; Lopes 2013VITAL, C.; LOPES, P. V. L. (2013), Religião e política: uma análise da atuação de parlamentares evangélicos sobre direitos das mulheres e de LGBTs no Brasil. Rio de Janeiro: Fundação Heinrich Böll.; Almeida, R. de 2017ALMEIDA, R. de. (2017), “A onda quebrada - evangélicos e conservadorismo”. Cadernos Pagu, nº 50.). Particularmente a partir de 2010, com as eleições nacionais marcadas por forte intromissão religiosa (Pierucci 2011PIERUCCI, A. F. (2011), “Eleição 2010: desmoralização eleitoral do moralismo religioso”. Novos Estudos - CEBRAP, nº 89: 5-15.), assistimos ao acirramento dos embates entre movimentos feministas e ligados à causa LGBT e uma cada vez mais visível militância religiosa e conservadora - com a qual os evangélicos auferiram ganhos eleitorais relevantes (Tadvald 2015TADVALD, M. T. (2015), “A reinvenção do conservadorismo: os evangélicos e as eleições federais de 2014”. Debates do NER, vol. 1, nº 27: 259-288.:264) - que resulta, nos dias atuais, em uma base de apoio importante sobre a qual se sustenta o governo do presidente Jair Bolsonaro (Almeida, R. D. 2019ALMEIDA, R. de. (2019), “Bolsonaro presidente: conservadorismo, evangelismo e a crise brasileira”. Novos estudos CEBRAP, vol. 38, nº 1: 185-213.:200-206).

Nesse contexto, a questão do aborto assume particular importância. Na última década, a luta contra o direito ao aborto motivou forte mobilização religiosa e baseado a plataforma de grande número de candidatos a cargos representativos, sobretudo nas eleições legislativas (Machado 2012MACHADO, M. das D. C. (2012), “Aborto e ativismo religioso nas eleições de 2010”. Revista Brasileira de Ciência Política, nº 7: 25-54.; Miguel, Biroli, Mariano 2017MIGUEL, L. F.; BIROLI, F.; MARIANO, R. (2017), “O direito ao aborto no debate legislativo brasileiro: a ofensiva conservadora na Câmara dos Deputados”. Opinião Pública, vol. 23, nº 1: 230-260.). Disso resultaram mudanças importantes: se nos anos de 1990 ocorreu o auge da apresentação de projetos de lei direcionados ao direito de abortar, nos anos de 2010 assumiram a dianteira as propostas voltadas à proibição do aborto nos casos já legalizados (Silva, V. R. da; Martins 2019SILVA, V. R. da; MARTINS, F. B. (2019), “Projetos de lei contrários ao aborto na Câmara dos Deputados batem recorde em 2019”. Gênero e Número. Disponível em: Disponível em: http://www.generonumero.media/projetos-de-lei-contrarios-ao-aborto-na-camara-dos-deputados-batem-recorde-em-2019/ . Acesso em: 27/03/21
http://www.generonumero.media/projetos-d...
). Esse movimento conta com protagonismo de lideranças evangélicas que avançam no terreno político por meio dessa pauta, conjugando-a com outras reclamações relacionadas ao campo do gênero e da educação (Santos 2018SANTOS, R. M. DOS. (2018), “Conservadorismo na Câmara dos Deputados: discursos sobre ‘ideologia de gênero’ e Escola sem Partido entre 2014 e 2018”. Teoria e Cultura, vol. 13, nº 2.). Com mais destaque político e ocupando cargos relevantes de governo, as indicações de que esses parlamentares agem de modo a anular as possibilidades já previstas para a realização do aborto legal sinalizam que, da divisão identificada entre os constituintes evangélicos sobre as exceções admitidas para a interrupção da gravidez, teria ficado para trás o posicionamento que reconhecia essas exceções como legítimas e necessárias.

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    » http://www.generonumero.media/projetos-de-lei-contrarios-ao-aborto-na-camara-dos-deputados-batem-recorde-em-2019/
  • 1
    Este artigo é fruto de pesquisa realizada com apoio da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior - Brasil (CAPES).
  • 2
    Para a classificação desse pensamento político como conservador, tomamos por referência o argumento de Samuel Huntington, que define o conservadorismo como um movimento de defesa das instituições existentes e que tem como componentes fundamentais, entre outros: o entendimento da religião como fundamento da sociedade civil; a valorização da prudência, do preconceito, da experiência e dos hábitos como guias para o encontro da verdade; o reconhecimento da superioridade da comunidade em relação ao indivíduo (Huntington 1957HUNTINGTON, S. P. (1957), “Conservatism as an Ideology”. The American Political Science Review, vol. 51: 454-473.:454-56). Em Huntington, o conservadorismo se demonstra a uma postura reativa - argumento também sustentado por Karl Mannheim, que apresenta o conservadorismo moderno como “contramovimento”, conscientemente reativo à consolidação das tendências de pensamento progressistas, de modo a “reverter o processo da história” (Mannheim 1986MANNHEIM, K. (1986), Conservatism: a Contribution to the Sociology of Knowledge. Londres; Nova York: Routledge & Kegan Paul.:84, 88-8).
  • 3
    Por meio do uso de um software de análise qualitativa de dados (Atlas.ti) foram demarcados mais de 7.0il registros de pronunciamentos dos parlamentares evangélicos eleitos à ANC, em 270 edições do Diário da Assembleia Nacional Constituinte (DANC) e 613 atas das Comissões e Subcomissões Temáticas, Comissão de Sistematização e de Redação, reunidas ao longo da ANC (Senado Federal 1987-1988SENADO FEDERAL. (1987-1988), Diário da Assembleia Nacional Constituinte. Brasília: Centro Gráfico do Senado Federal .). A partir do cruzamento desses registros com temas e palavras-chaves identificadas durante a pesquisa (ex.: “aborto”), passamos a reconstrução de seus argumentos - caminho que nos permitiu caracterizar suas ideias. Os deputados mencionados neste artigo são aqueles identificados pela pesquisa como os de maior engajamento no tema, a partir dos cruzamentos de dados explicitados pelo Atlas.ti.
  • 4
    O deputado Costa Ferreira (PFL-MA), por exemplo, afirmaria ser a “família cristã” o modelo de família “mais perfeito”, posto que o cristianismo teria sido responsável pela “dignificação da família”, tornando sua estrutura “mais humana” e dando ao matrimônio um “caráter de sacramento” e de “instituição sagrada” (DANC, 21/02/1987: 34).
  • 5
    A presença de parlamentares evangélicos mais progressistas - como Lysâneas Maciel (PDT-RJ), Benedita da Silva (PT-RJ) e Celso Dourado (PMDB-BA) - ilustrava a ocorrência de divergências internas ao “Bloco Parlamentar Evangélico”. Por outro lado, constituintes como Daso Coimbra (PMDB-RJ) e Fausto Rocha (PFL-SP) argumentavam pela necessidade de o bloco centrar seu poder de fogo em “‘questões morais’”. “Posições divergentes entre os evangélicos”. Aconteceu no Mundo Evangélico, ano VI, nº. 4, ma/ 187:.
  • 6
    A realização do “Encontro Nacional Mulher e Constituinte”, em agosto de 1986, e a posterior redação da Carta das Mulheres à Assembleia Constituinte, deram respaldo a uma atuação articulada de representantes de movimentos feministas, da bancada de mulheres eleitas para a ANC e de integrantes do Conselho Nacional dos Direitos da Mulher (CNDM), para pressionar os demais parlamentares pela aprovação de suas reivindicações - ação que viria a ser identificada pela imprensa como “lobby do batom” (Costa 2005COSTA, A. A. A. (2005), “O movimento feminista no Brasil: dinâmicas de uma intervenção política”. Revista Gênero, vol. 5, nº 2.:6).
  • 7
    Até 1992 era usado o termo “movimento homossexual brasileiro” (MHB) para se referir à militância em torno da questão da homossexualidade. É a partir de 1993 que termos mais específicos, como “gays”, lésbicas”, “bissexuais”, “travestis” e “transsexuais” passam, gradualmente, a ser representadas nas siglas que definem o movimento, vindo o termo LGBT finalmente a ser utilizado a partir da realização da I Conferência Nacional GLBT, ocorrida no ano de 2007 (Simões; Facchini 2009SIMÕES, J. A.; FACCHINI, R. (2009), Na trilha do arco-íris: do movimento homossexual ao LGBT. São Paulo: Editora Fundação Perseu Abramo. :14-6).
  • 8
    A divergência sobre o tema entre representantes da CNDM e setores do movimento de mulheres se explicaria pelo fato de este último ser em boa parte proveniente de camadas populares e que se baseavam em convicções religiosas contrárias à prática do aborto (Silva 2011SILVA, S. M. da. (2011), A Carta que elas escreveram: a participação das mulheres no processo de elaboração da Constituição Federal de 1988. Salvador: Tese de Doutorado, UFBA.:259). Já em relação a mulheres parlamentares, houve situações de explícita divergência sobre o tema: Sandra Cavalcanti (PFL-RJ), por exemplo, comparou os defensores da legalização do aborto a Hitler. “Deputadas constituintes não conseguem consenso em propostas sobre mulheres”. Folha de S. Paulo, 29/03/87: 24.
  • 9
    A Carta mencionava, entre suas reivindicações: “garantia de livre opção pela maternidade, compreendendo-se tanto a assistência ao pré-natal, parto e pós-parto, como o direito de evitar ou interromper a gravidez sem prejuízo para a saúde da mulher” (Conselho Nacional do Direitos da Mulher 1987CONSELHO NACIONAL DOS DIREITOS DA MULHER. (1987), Carta das Mulheres. Disponível em: Disponível em: https://www2.camara.leg.br/atividade-legislativa/legislacao/Constituicoes_Brasileiras/constituicao-cidada/a-constituinte-e-as-mulheres/arquivos/Constituinte%201987-1988-Carta%20das%20Mulheres%20aos%20Constituintes.pdf . Acesso em: 3/09/19.
    https://www2.camara.leg.br/atividade-leg...
    ).
  • 10
    Na reunião de 22 de abril de 1987, se manifestaram os médicos Daniel Barbato e Geraldo Hideu Osanai, ambos ligados ao movimento Pró-vida de Brasília. No dia seguinte, foi a vez dos médicos Dermival da Silva Brandão, em nome da CNBB, e João Evangelista da Silva Alves, pela Academia Fluminense de Medicina e autodeclarado católico. Posição favorável ao aborto só viria a ser manifestada no interior da Subcomissão com a participação da socióloga Eleonora Menicucci de Oliveira, representando a CNDM, em 29 de abril de 1987 (Danc 20/05/2017 Supl. 62:207-231; Hartmann 2018HARTMANN, D. M. Z. (2018), Representações do aborto na Assembleia Nacional Constituinte (1987). Brasília: Dissertação de Mestrado, UnB. :260).
  • 11
    O texto de Sylvestre, por seu caráter panfletário, não se preocupa em demonstrar rigorosamente as referências bibliográficas que mobiliza. Ao final do livro, autores como Valdir Steuernagel, Russel Shedd, Patrick Johnstone, Robinson Cavalcanti, Oscar Cullmann, William Read, entre outros, além do documento “Evangelização e Responsabilidade Social” baseado nas decisões do I Congresso Internacional de Evangelização Mundial (Lausanne, 1974) - são mencionados pelo historiador como suas “fontes”.
  • 12
    Além de registrar a história de “políticos evangélicos usados por Deus” - como Joaquim Nogueira Paranaguá, Guaracy Silveira, Antonio Torres Galvão, Lauro Monteiro da Cruz, Floriano Rubim, Nestor Jost e Joel Ferreira da Silva - o autor também anexa e cita trechos de manifestos escritos por evangélicos, como o “Memorial dirigido aos crentes evangélicos de todo o Brasil” (1932), a “Mensagem aos Evangélicos e ao Povo Brasileiro” (redigido a partir de seminário organizado pela Ordem dos Ministros Batistas do Rio de Janeiro, em 1985), e a “Íntegra do documento encaminhado ao Excelentíssimo Senhor Presidente da República, Dr. José Sarney, por uma Comissão de Pastores, Líderes e Parlamentares Evangélicos” (dezembro de 1985).
  • 13
    Todos os capítulos do livro de Sylvestre apresentam trechos de versículos como epígrafes. Além de referências distribuídas ao longo do texto, os capítulos 8 e 9, especialmente, apresentam uma relação de referências bíblicas com respostas aos “problemas nacionais” a serem enfrentados pelos políticos evangélicos, bem como as qualidades que estes devem ter e os defeitos a serem evitados.
  • 14
    “Assembleia de Deus elege 13 Deputados Federais”. Mensageiro da Paz, ano LVII, nº. 197, ja/. :87.
  • 15
    “Constituintes evangélicos: somos contra o aborto”. Mensageiro da Paz, ano LVII, n.º1200, ab/. :87.
  • 16
    Com críticas à CNBB e sua preocupação com questões ideológicas (e não com os “aspectos fundamentais religiosos”), Fausto Rocha defendia que a “bancada evangélica” propusesse e votasse apenas “questões éticas e comportamentais”. Isso envolvia, entre outras coisas, o combate ao aborto, à pornografia nos meios de comunicação - com defesa da censura, inclusive - e à pena de morte. Cf. Correio Braziliense, 22/02/1987.
  • 17
    A Aliança Renovadora Nacional (Arena), fundada em abril de 1966, foi o partido de sustentação do governo em meio a ditadura militar ocorrida no Brasil entre 1964 e 1985 (FGV 2009cFGV - FUNDAÇÃO GETÚLIO VARGAS. (2009c), “Aliança Renovadora Nacional (ARENA)”. Centro de Pesquisa e Documentação de História Contemporânea do Brasil. Rio de Janeiro: CPDOC/FGV, Disponível em: Disponível em: http://fgv.br/cpdoc/acervo/dicionarios/verbete-tematico/alianca-renovadora-nacional-arena . Acesso em: 26/03/2021.
    http://fgv.br/cpdoc/acervo/dicionarios/v...
    ).
  • 18
    “A mulher não pode ser discriminada pelo simples fato de ter ficado grávida e ter de praticar o aborto. Não. Se engravidou, deve ser orientada para que tenha seu filho e o crie. Não deve ser marginalizada. É apenas uma mulher que pode muito bem, mesmo sem contrair matrimônio, ser feliz na vida” (Danc 27/05/1987 Supl. 66:96).
  • 19
    Refere-se, nesse caso, à estabilidade no trabalho por razão de gravidez: “a estabilidade é uma das garantias necessárias para que se acabe com o abuso existente de a mulher ser despedida sumariamente quando fica grávida” (Danc 27/05/1987 Supl. 66:124).
  • 20
    Ferreira tenta se esquivar de impressões discriminatórias: “a mulher não pode dizer que não precisa do homem e o homem não pode dizer que não precisa da mulher. É por isso que se tem que partir para a igualdade. (…) Não seria justo, pelo simples fato de a mulher ter a sua igualdade, exigir que ela também, sendo uma arrumadora, carregue uma saca de oitenta quilos. É nesse sentido que estou colocando a situação. Não estou achando que a mulher não deva trabalhar de noite, tc. Não é nada disso. Estou apenas dizendo que há tarefas que o homem faz com muito mais eficácia e outras que a mulher faz melhor” (Danc 27/05/1987 Supl. 66:124).
  • 21
    As menções se encontram nos pronunciamentos da advogada Leonor Nunes de Paiva (cf. Danc, 27/05/1987, Supl. 66, p. 96) e da constituinte Anna Maria Rattes (PMDB-RJ) (cf. DANC 18/06/1987 Supl. 79:16).
  • 22
    Nas palavras do parlamentar, a ocorrência do aborto nessas condições se explicaria como consequência de “conjunções carnais clandestinas”: “depois de a mulher achar-se grávida, ela não tem a coragem de confessar aos pais etc. Então, ela recorre a esses meios espúrios, altamente nocivos à saúde” (Danc 27/05/1987 Supl. 66:96).
  • 23
    Ferreira argumentou em reunião da Comissão da Soberania e dos Direitos e Garantias do Homem e da Mulher (I) de 27 de maio de 1987: “nós nos posicionamos contra o aborto, porque compreendemos que não é uma medida adequada, para que se evite a proliferação da família com elevado número de pessoas. Acreditamos que poderíamos deter esse acontecimento através do planejamento familiar assistido pelo Estado, porque este, sim, poderia dar assistência à família e, assim, equilibrar o controle da natalidade, sem que as mulheres fossem submetidas a essa atrocidade, a esse tipo de sofrimento a que muitas vezes são induzidas, na esperança de se livrarem de ter mais filhos” (Danc 17/06/1987 Supl. 78:13).
  • 24
    Em outra ocasião, o parlamentar ressaltaria sua preocupação com “a integridade psicológica do casal ou da estabilidade do próprio lar” para aceitar a possibilidade do aborto motivado por um estupro: “quando o bebê nascer talvez a mãe [violentada] o queira bem, pois é parte dela, mas o marido, já que ela foi submetida a ultraje, pode ou não aceitar essa situação, por não querer o filho de outro homem” (cf. Danc 24/06/1987 Supl. 82:53).
  • 25
    Fora essas declarações, não se localiza no restante dos registros do DANC alguma reflexão do parlamentar sobre tais consonâncias.
  • 26
    Em reação aos argumentos em defesa da legalização do aborto, apresentados pelo constituinte Chico Humberto (PDT-MG), Eraldo Tinoco questionaria: “quantos assaltos são praticados no Brasil? Por isso nós vamos legalizar o assalto? Não! (Palmas)” (Danc 20/05/1987 Supl. 62:214).
  • 27
    Ponto relevante neste comentário é considerar a preocupação “do ponto de vista ético e moral” para uma reflexão sobre as possibilidades de permissão do aborto. Na discussão em voga, os palestrantes eram médicos que reivindicavam um ângulo de análise que defendiam como científico e, a partir disso, se dedicavam a combater a legalização do aborto. Reagindo às indagações de Ervin Bonkoski (PMDB-PR) sobre a possibilidade de interrupção de gravidez decorrente de estupro, o médico Daniel Barbato, ligado ao movimento Pró-Vida, diria desejar um “combate científico”: “quero que uma pessoa me explique cientificamente até o aborto do estupro, um estupro com gravidez é raríssimo, em medicina” (Danc 21/05/1987 Supl. 63:214). Sobre o uso da retórica de “autoridade” e a instrumentalização do saber médico no contexto da discussão relatada acima, cf. Hartmann 2018:72-75.
  • 28
    “Aquele que ajudou a fazer o filho, que foi o parceiro para fazer o filho, está fora da história; quer dizer, ela assume sozinha todo ônus, todo o peso, toda a vergonha, enfim, tudo aquilo que traz ônus de uma gravidez indesejada, especialmente se ela for uma pessoa solteira”. A parlamentar se questiona se “é justo que essa mulher assuma sozinha essa gravidez indesejada, que só ela deva ser o ser moral que não queira o aborto” (Danc 20/05/1987 Supl. 62:215).
  • 29
    O advento da Aids se dá justamente no início dos anos de 1980. Sobre o tema, cf. Terto JrR.2002TERTO JR., V. (2002), “Homossexualidade e saúde: desafios para a terceira década de epidemia de HIV/AIDS”. Horizontes Antropológicos, vol. 8, nº 17: 147-158..
  • 30
    Ainda no início dos trabalhos da Subcomissão VIII.C, Eunice Michiles defenderia a presença do “Conselho Nacional da Mulher” naquele espaço. Em uma reunião na qual CNBB e a “liderança evangélica” são lembradas pelo evangélico Roberto Augusto (PTB-RJ) como entidades necessárias ao debate sobre temas como aborto e divórcio, a menção ao CNDM pela parlamentar amazonense se evidencia como reconhecimento da importância de as feministas se manifestarem sobre o tema. Cf. Danc 01/05/1987 Supl. 53:212; Oliveira 2012OLIVEIRA, A. V. de. (2012), A Constituição da Mulher Brasileira: uma análise dos estereótipos de gênero na Assembleia Constituinte de 1987-1988 e suas consequências no texto constitucional. Rio de Janeiro: Tese de Doutorado, PUC-RJ. :366-67.
  • 31
    “Ai de nós se não fosse a coragem das feministas. Nós estaríamos ainda hoje lutando pelo voto. (Palmas.) Estaríamos ainda hoje discutindo se a mulher teria ou não o direito ao voto, porque foi uma feminista corajosa que encostou este velho Senado aqui, há anos, e conseguiu o voto da mulher” (Danc 21/05/1987 Supl. 63:209-210).
  • 32
    “Se deixarmos em aberto esta porta, facilmente poderá ser escancarada. Se trancarmos esta porta, inserindo agora na Constituição, teremos oportunidade de ver tolhidas todas as artimanhas que, porventura, possam aparecer no futuro por lobbies, por multinacionais, e tantos outros, e até por essas clínicas clandestinas que tem o desejo de ver inserida alguma coisa, numa legislação ordinária, concernente ao fato de que é permitida a prática do aborto” (Danc 19/07/1987 Supl. 98:253).
  • 33
    “Por que nós procuramos diminuir as violências dentro das cidades? É porque nós encontramos marginais, assassinos, facínoras que atentam contra mim e contra a minha família, contra a sociedade em geral. Mas nós temos condições de nos armar, pegar um revólver e até atirar contra esse elemento. Agora, um menino ou uma menina que poderá ser, quem sabe, um estadista dentro de poucos anos, ele não tem a oportunidade de se levantar e dizer: ‘Por favor, me deem uma oportunidade de me defender e ao menos de viver’” (Danc 21/05/1987 Supl. 63:207).
  • 34
    Na sessão de 22 de abril de 1987, destinada à discussão sobre “planejamento familiar”, os médicos a que o parlamentar se referia apresentaram slides com imagens de abortos realizados. Geraldo Hideu Osani, um dos palestrantes, sugeriu que esse mesmo material seria usado para persuadir mulheres vítimas de estupro a não interromperem a gravidez: “muitas pessoas, mesmo as que são violentadas, fazem o aborto sem saber o que estão fazendo. Depois, chegam, olham essa coleção de slides e se arrependem” (Danc 20/05/1987 Supl. 62:212). Posteriormente, João de Deus Antunes, em referência àquela palestra, afirmaria: “antes de vir para a Constituinte, eu era a favor de que, por problema de violência e por problema de risco de vida para a mãe, deveria haver o aborto. Depois daquela apresentação por slides e também das palestras, (…) estou propenso a mudar minha ideia” (Danc 21/05/1987 Supl. 63:209).
  • 35
    Repreendido por Eunice Michiles, de acordo com comentários já registrados ao constituinte assembleiano procurou se justificar, dizendo não ser contrário à luta das mulheres por seus direitos. “Agora, eu me referi especificamente a essas que lutam pela legalização dessa morte, que é o aborto, desse crime que querem oficializar.”. jargão policial voltaria à tona à medida que o parlamentar também dissesse agir em defesa de medidas como a pena capital para combater a criminalidade: “se nós hoje estamos lutando pela pena de morte para matar esses facínoras, bandidos que matam e atentam contra as nossas famílias, nós também temos que repensar um pouco e ver que esses que estão hoje lutando a favor da legalização do aborto também são assassinos em potencial” (Danc 21/05/1987 Supl. 63:210).
  • 36
    “O que nós vamos abrir aqui no Brasil é um precedente que já foi aberto em outros países, que já estão recuando até deste ponto de vista, porque, lamentavelmente, nós não temos a tradição da seriedade. E quem dispuser de recursos, de dinheiro e de um médico que não seja sério - e, infelizmente, os aborteiros estão aí nas clínicas clandestinas, para mostrar que isso acontece na vida brasileira - vai ter o aborto legalizado pelo atestado de que se trata de uma gravidez de alto risco ou de malformação fetal, atestado este obtido na esquina, no primeiro consultório chique, exatamente como o aborto é praticado ainda hoje” (Danc 22/07/1987 Supl. 101:223).
  • 37
    Como era de se esperar, a acolhida da opinião de Sotero Cunha entre as mulheres pareceu ser das piores. Neste sentido, a revista Veja registrou vários depoimentos de mulheres indignadas com as declarações do deputado - tão graves que até Kesia, segunda esposa do parlamentar, vinte anos mais nova, se recusava a aceitá-las: “meu marido é muito radical na luta que empreende contra o aborto.”. entrevistada também afirmaria que, no caso de gravidez decorrente de estupro, “apesar de toda a fé em Deus, se isso acontecesse comigo, não hesitaria em abortar”. “Os Deputados de Deus”. Veja, 01/07/87.
  • 38
    A redação final do Anteprojeto da Subcomissão VIII-C fez constar na Seção II (do Menor), Art. 4º, §1º, que “o direito à vida, à saúde e à alimentação é assegurado desde a concepção, devendo o Estado prestar assistência àqueles cujos pais não tenham condição de fazê-lo” (Brasil 1987dBRASIL. ASSEMBLEIA NACIONAL CONSTITUINTE. (1987d), VIII - Comissão da Família, Educação, Cultura e Esportes, da Ciência e Tecnologia e da Comunicação, VIII-C - Subcomissão da Família, do Menor e do Idoso. Anteprojeto. Brasília: Centro Gráfico do Senado Federal . Disponível em: Disponível em: https://www.camara.leg.br/internet/constituicao20anos/DocumentosAvulsos/vol-216.pdf . Acesso em: 28/08/19.
    https://www.camara.leg.br/internet/const...
    :4).

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    06 Maio 2022
  • Data do Fascículo
    Jan-Apr 2022

Histórico

  • Recebido
    05 Ago 2020
  • Aceito
    10 Maio 2021
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