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Editorial

Editorial

Neste número, Religião e Sociedade dá destaque à discussão da religião para além das fronteiras brasileiras, focando outros países da América Latina e também da África. O número buscou ampliar o leque de estudos sobre a configuração do religioso em outras nações, especialmente as mais próximas de nós, seja geograficamente, em se considerando as nossas vizinhas na América Latina; seja as que se aproximam por compartilhar o português como idioma oficial, no caso da África Portuguesa. Dessa forma, Religião e Sociedade vem incrementar um movimento em curso e crescente nas ciências sociais brasileiras, de superação do caráter fortemente doméstico da interlocução. Nesse sentido, também mantém a prática já consagrada em outros números de publicar artigos em espanhol.

Os três primeiros artigos, afinados com essa proposta, fizeram parte do Seminário Internacional "Religião, cultura e política na América Latina", realizado em agosto de 2010, no campus da Praia Vermelha da Universidade Federal do Rio de Janeiro. Um dos objetivos desse seminário era refletir sobre o papel da religião na esfera pública em diferentes países da América Latina. O recorte se justificava porque, ao longo das quatro últimas décadas, a negociação entre secular e religioso sofreu amplas transformações nesses países, tensionados pela pluralização do campo religioso, pelo crescimento de igrejas evangélicas e pelo fortalecimento democrático decorrente da melhor articulação entre instituições governamentais e movimentos demandando a ampliação de direitos sociais e de diversas minorias. O artigo de David Smilde reflete sobre essas questões no contexto venezuelano, Maria das Dores Campos Machado, no Brasil e Juan Marco Vaggione, na Argentina.

Em "Religião e Conflitos Políticos na Venezuela: Católicos e Evangélicos frente ao Governo de Hugo Chávez", David Smilde trata do controverso governo de Hugo Chávez na Venezuela e de como este se relaciona com as igrejas católica e evangélicas. O autor argumenta que essa relação é mais complexa do que a simples equação que sustenta que os evangélicos apoiam Chávez e os católicos são críticos. Outras variáveis além da religião podem afetar a posição dos líderes religiosos de uma e outra tradição, como mostra o autor em sua discussão sobre o "dilema do padre" e o "dilema do pastor".

Maria das Dores Campos Machado em seu artigo "Religião, política e cultura" também aborda a complexa e tensa relação entre grupos religiosos distintos e conflitos na esfera pública. A partir de uma discussão mais ampla sobre tensões entre campo religioso e político no Ocidente, a autora demonstra como agenda de direitos humanos adotados por movimentos feministas e LGBT afetaram a disputa política no Brasil e em especial no Rio de Janeiro. Demonstra inclusive como igrejas que competem por fiéis na arena religiosa se unem na política em resposta a este novo campo de disputa. No artigo que se segue, "La "cultura de la vida". Desplazamientos estratégicos del activismo católico conservador frente a los derechos sexuales y reproductivos", Juan Marco Vaggione discute problemática similar à de Maria das Dores, tendo entretanto outros focos: Argentina e ativismo católico. Os artigos de Machado e Vaggione se aproximam assim por seguir os movimentos de agentes religiosos em sua mobilização para a conquista de espaço na Política com P maiúsculo, – tentando influenciar processos eleitorais e também processos judicias –, e também na micropolítica, – na defesa de uma cultura secular fundante dos movimentos LGBT e também feministas.

Os grupos religiosos na América Latina, de modo similar ao que observamos no contexto global, por vezes sentem a necessidade de se unir no confronto com os valores seculares. Ao invés do direito à vida e à liberdade sexual, no artigo ""Uma "morte suave": valores religiosos e laicos nos discursos sobre Ortotanásia", Rachel Aisengart Menezes e Edlaine Gomes discutem um novo tipo de direito, o da "morte suave", que também questiona tradições religiosas. Nesse sentido, esse artigo se assemelha em termos temáticos com os anteriores, procurando compreender a persistência/contestação de valores religiosos no espaço público. O ponto de partida das autoras é o acompanhamento de uma ação civil pública impetrada pelo Ministério Público Federal brasileiro com o intuito de revogar a Resolução 1805/2006 do Conselho Federal de Medicina sobre a ortotanásia. Analisando discursos de médicos, juristas e instituições religiosas sobre o início e o fim da vida, as autoras demonstram como pode se tornar complexo esse tipo de debate em um espaço público inerentemente polifônico como o do Brasil contemporâneo.

Retomando a proposta de incluir temas e problemáticas de questões religiosas para além da fronteira brasileira, Religião e Sociedade traz ainda um artigo sobre Argentina, o de Damián Setton, "Posiciones periféricas en la revitalization del judaísmo ortodoxo en Buenos Aires", e um artigo que compara Brasil e Moçambique, por Clara Mafra, intitulado "O percurso de vida que faz o gênero: reflexões antropológicas a partir de etnografias desenvolvidas com pentecostais no Brasil e em Moçambique". Enquanto o estudo de Damián Setton tem como foco a identidade judaica, o judaísmo e seus processos de reavivamento da tradição ortodoxa, o de Clara Mafra foca a relação entre cosmologias, materiais e a constituição de gênero entre diferentes grupos cristãos. Em diálogo com a etnografia de Linda van de Kamp (2011), Clara Mafra destaca a importância da comparação transnacional para melhor compreender o que identifica como "entrada violenta do pentecostalismo em Moçambique".

Para concluir o volume, apresentamos dois estudos que são contribuições originais sobre experiências de grupos religiosos brasileiros. O primeiro, "Práticas ecumênicas de mulheres metodistas na Revista Voz Missionária", trata-se de um estudo documental, de autoria de Vasni de Almeida, que analisa a revista Voz Missionária e identifica práticas ecumênicas de mulheres metodistas, especialmente professoras e diretoras de escola no Brasil. O segundo, "Revisitando os tabus: as cautelas rituais do povo de santo", de Francisca Bassi, retoma o clássico tema dos tabus a partir de um evento ritual do candomblé baiano: a quizila. Ao longo do artigo, a autora propõe a produtividade de um deslocamento do foco na atenção antropológica: em vez de perseguir teórica e etnograficamente os meandros da negociação simbólica da interdição ritual, que são sempre fluidos e ambíguos, acompanhar a educação dos sentidos produzida na interação entre iniciado, orixá e povo de santo.

O presente volume também conta com três resenhas de livros. A tradução do importante livro de Paul Veyne sobre a adoção do cristianismo como religião oficial do Império Romano pelo Imperador Constantino no século IV, que inauguraria o nosso mundo cristão Ocidental, e também dois livros recentes das antropólogas Fátima Tavares (Professora UFBA) e Flávia Pires (Professora UFPB).

Com mais este número, Religião e Sociedade, além de oferecer artigos de alta qualidade sobre temas relevantes e atuais, dá continuidade a sua política editorial de diversidade tanto de temas, quanto de procedência nacional e institucional dos autores.

Cecília Mariz e Clara Mafra

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    15 Jan 2013
  • Data do Fascículo
    2012
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