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Culto à Maria, um catolicismo afro-brasileiro?

PEREZ, L. F.; MARTINS, M. C.; GOMES, R. B.. Variações sobre o Reinado: um Rosário de Experiências em Louvor a Maria. 2014. Medianiz, Porto Alegre: 208

PEREZ, L. F. MARTINS, M. C. & GOMES, R. B. Variações sobre o Reinado: um Rosário de Experiências em Louvor a Maria. Porto Alegre: Medianiz, 2014, 208 pp.

Se, por um lado, a dificuldade em resenhar uma coletânea reside na heterogeneidade dos textos e pensamentos nela contidos, o livro em questão; por outro, apresenta ao leitor uma diversidade intrigante para o pensamento ortodoxo sobre o que é uma religião afro-brasileira e sobre o que é catolicismo popular. Praticado por aqueles que são afro-brasileiros, em irmandades sincréticas, o culto à Maria aparece aqui como uma provocação e um convite, ao mesmo tempo, para descentrarmos dois clichês imperantes: o de que o catolicismo é apenas colonialismo e o de que aos negros brasileiros cabe um tipo de matriz religiosa somente nas religiões que os pesquisadores acreditam lhes pertencer (umbandas, candomblés, batuques, juremas, etc.). No livro, organizado por Léa Perez (antropóloga), Marcos Martins (sociólogo) e Rafael Gomes (cientista social), matrizes simbólicas do pensar e do religioso atravessam o Atlântico e fazem do catolicismo mais que colonialismo e da religião afro-brasileira toda aquela que pelos descendentes de África for praticada.

Já no primeiro capítulo, os organizadores de “Variações sobre o Reinado: um Rosário de Experiências em Louvor a Maria”, apresentam conceitos e temas-chave para o desenrolar e a articulação dos capítulos do livro dedicado ao estudo do culto Mariano em Minas Gerais (e alhures), realizado por irmandades de Nossa Senhora do Rosário, especialmente por ocasião das Congadas. Estas ideias são apresentadas através das “Duas memórias e um esquecimento: à guisa de introdução”, título do capítulo. São as noções de festa (de corpo como festa), retomada no último artigo dedicado ao Barroco (suas festas, colonização e nação) e a ideia de hi[e]stória, double bind fundamental que percorre e faz compreender toda obra, que são informadas. Double bind aqui, deve-se a indecidibilidade dos autores pelo uso de história ou estória.

Marcel Mauss e Lévy-Brühl aparecem nos temas clássicos da antropologia, a troca e o aprendizado por afetos, respectivamente. O último de suma importância nos empreendimentos de auto-antropologia que seguem, em que há as memórias e conexões afetivas com o material analisado. É daí, que, após idas e vindas, damo-nos conta do descentramento da figura do autor provocada pelas seis mãos que escrevem o primeiro capítulo. Já não sabemos mais de quem é cada uma das memórias, nem a quem pertence o esquecimento. Por fim, Nossa Senhora aparece e somos lembrados do que, afinal, o livro trata: Maria, Virgem, Rainha e Mãe.

É também pelo afeto que os sentidos do primeiro capítulo vão aparecendo ao longo de toda obra, permitindo que já no capítulo seguinte, de Marcos Martins, “O Cortejo da Virgem”, a qualidade do instantâneo nos seja apresentada com primazia, fazendo daí em diante, o livro se tornar leitura obrigatória para todos interessados na antropologia e história dos cultos marianos no Brasil e, de forma mais ampla, para antropologia da religião. Voltando ao capítulo de Martins, podemos interpretar o “poder de Deus”, o Rosário e o Congado sob a óptica do dom; sendo para o autor, portanto, o culto mariano o eterno “dar-receber-retribuir” na famosa acepção de Marcel Mauss. É sempre sobre um dar, receber e retribuir que as festas dedicadas à Maria e a própria fé se fazem. Seu ensaio é extremamente rico e bem sucedido, especialmente em seu empreendimento hi[e]stórico, que nos leva às protoformas do culto à Maria, naquele dedicado à Deusa Isis. Mas não apenas no culto e nos festejos Isis aparece: é ela a própria inspiradora das imagens tridimensionais que hoje conhecemos como Maria, a mãe de Deus, aquela que foi “arrebatada de corpo e alma” (: 54). É importante a relação que o autor traz à baila entre a ascensão do culto mariano coincidindo com o desenvolvimento do amor cortês. A assunção de Maria traz consigo, também, seu tema correlato, a coroação, que data do século II, o que dá a deixa para o capítulo que segue: “Das terras de lá às terras de cá: reis são reis”, de Rafael Gomes. Para o autor, falar de Reinado e de Congado é falar de majestade. Passando pelas teorias da magia em Frazer, pelo conceito de “solicitação” em Derrida e pela Sacralidade do Rei em Evans-Pritchard – “o rei estando dentro e fora da sociedade, ao mesmo tempo” –, chegamos à cosmologia congolesa, na qual o mar era lugar da onde os deuses vinham/residiam. De modo que, a chegada dos navios portugueses faz lembrar a famosa realidade mítica descrita por Sahlins, com Capitão Cook sendo recebido como Deus Lono no Havaí. No caso aqui, é por Zambi Apongo, senhor do mundo, que Dom João II de Portugal, é tomado. Ao modo do estruturalismo de Sahlins, o autor apresenta reflexão interessante sobre símbolos, ídolos e templos, destruídos num sistema de trocas e reorientação, no qual nasce o “catolicismo africano”. Nele, mais tarde, a própria cruz tornar-se-á um Nkinsi (divindade), por identificação e princípios de similitude cosmológica e de participação. É nesse catolicismo, que desde o século XV, as irmandades de Nossa Senhora do Rosário nascem. Elas desempenharam papel fundamental não apenas para a “conversão como chave de aceitação social” e para o catolicismo, mas como lócus de luta e sociabilidades negras. As irmandades representaram espaços de intensa sociabilidade, ajuda mútua e diversão, a despeito da segregação, que os obrigara a erguer templos próprios, já que não podiam frequentar àqueles dos brancos. Importante ressaltar que a hi[e]stória dos congoleses e de sua cosmologia e cristianismo aparecem, para ressaltar que já na África sincretismos e conversões aconteciam. Serve, também, para colocar na hi[e]stória do Brasil as contribuições desse povo que chega em grande quantidade, mas é obscurecido pelas tradições iorubás, consideradas mais africanas, mais puras, menos cristãs. Por isso mesmo, tomando a quase totalidade da atenção de antropólogos, que mesmo criticando um nagocentrismo, nunca se ativeram em descrever, ou mesmo mencionar, as hi[e]stórias dos Congados, seus reis, suas rainhas, e a cosmovisão, como parte integrante da etnologia das populações afro-brasileiras. Temas que, em geral, foram relegados aos estudos de festas populares, catolicismo popular, ritual e folclore.

Marcelo Vilarino (Rei coroado da Irmandade dos Ciríacos e cientista social), no capítulo seguinte, “D’África ao Brasil: elementos hi[e]stóricos conformadores e estruturantes do congado belo-horizontino”, toma as irmandades como religiões afro-brasileiras, pois a África Banto trouxe para cá tradições religiosas e aspectos de um “catolicismo africano” (: 85). Nossa Senhora do Rosário tem seu “mito de origem” ligado às águas, já que, na maioria dos relatos, é no mar que foi encontrada. Sua procissão é acompanhada por tambores do candombe, que só mais tarde se transforma no que hoje chamamos do ritual de bater o maçambique. Há, obviamente, disputas em relação ao que veio primeiro: candombe ou maçambique. Ao que tudo indica, é do candombe que vem a prática de bater o tambor, mas isso importa menos do que a louvação dos negros, como demonstra o autor. É ela que faz Nossa Senhora se concretizar na aparição no mar. Com os tambores e a adoração ela vem, é chamada. Os negros a trazem justamente das águas, do mar, o próprio local é a noção de Calunga. Como a própria água que separa os mundos dos vivos e dos espíritos ou mortos, a Calunga faz da travessia, já por si só violenta, ainda pior. Pois atravessar o mar significa morrer ou renascer para os mortos. Maria surge nesse contexto, como uma mãe das águas que permite o sucesso da travessia. O mar é elemento central por unir – não apenas separar – mundo dos vivos e dos mortos e, desde então, a África e o Novo Mundo. Mas o artigo vai além, fala da disseminação do culto mariano nas terras brasilis, através dos sermões de Antônio Vieira. Devoção que é ligada às guerras religiosas: se o calvário justificava o apoio por parte da Igreja Católica à escravização, será a própria dor do negro que motivará a redenção da Santa do Rosário.

No quinto capítulo, “Lá no céu, cá na terra: mãe e rainha”, Vânia Noronha (pedagoga) parte de suas memórias (afetivas), tomando a religação temporal (passado, presente e futuro) como parte da religião. Congado e Reinado são diferenciados, o primeiro sendo a prática festiva, o segundo como mito dramatizado, como atuação, não como representação. Ele é vivido. A hi[e]stória não é congelada justamente devido às memórias, pois são passadas de geração à geração e não estanques como na palavra escrita. Congado e Reinado são “estruturas místicas” com “ciclos e ritmos”, com fundamento na aparição de Nossa Senhora do Rosário para um negro, no mar, mas aberta às mudanças, como as “estruturas transformáveis” de Durant. Já no sexto capítulo de Taís Garone (antropóloga), “Por uma poética das sombras: breve nota sobre o congado setelagoano”, a dificuldade em escrever um texto coerente é assumida. Através das razões sentidas, a autora que viveu o universo das Congadas como espectadora, apresenta a concepção congueira sobre a realidade. Nela o “ser é como formado por forças e potências criadoras que estão aquém e além de nossa compreensão” (: 132). Não é um simples jogo entre dado e feito, trata-se de um porvir dos mistérios de Maria. Sua constatação de que o Congado não é para iniciantes é bastante frutífera ao descrever complexas redes que o ligam à umbanda e à conversão ao neopentecostalismo, sendo que o último representa o próprio fim das memórias afetivas que não podem mais ser transmitidas. Já no primeiro caso, o “catolicismo negro” se reafirma como religião afro-brasileira que permite o livre trânsito sem constrangimentos entre o cristianismo e o umbandismo. No capítulo sétimo, “Em nome da mãe: tradição e performance na Irmandade de Nossa Senhora do Rosário em Belo Horizonte”, Rubens Alves da Silva (antropólogo) reflete sobre variações do mito de origem da Nossa Senhora do Rosário. Em um deles, por um ato milagroso, a Santa leva Princesa Isabel a decretar a libertação dos escravizados. A análise do Congado é realizada ao modo de um campo de disputas simbólicas, ao estilo teórico de Bourdieu. Nele hierarquias e poderes se alteram o tempo todo. A manifestação está na fronteira entre campos religiosos, o católico e o afro-brasileiro, o que difere da posição dos outros autores, que falam de um “catolicismo africano”, e do Congado como religião afro-brasileira. Com a noção de performance, tomada de Schechner, o Congado é analisado como sério e perigoso. “É perigoso pelas forças espirituais que podem ser manipuladas tanto para o bem, quanto para o mal”. Por fim, nas idas e vindas das irmandades, que, inclusive, elegem uma mulher como capitã da guarda real do Rei do Congo, dando as mulheres, assim, lugar de destaque e força, o tempo presente é lido como o da “tradição restaurada” (: 161).

No oitavo capítulo, de Juliana Corrêa (antropóloga), “Da festa e seus afetos: rastros de uma trajetória ou uma experiência [no congado] em Justinópolis”, o tema da festa aparece forte. A partir da ideia malinowskiana de “contexto da situação”, a autora traz sons e memórias de sua infância. Das festas de Cosme e Damião, santos importantes para os negros congadeiros, um pagamento de promessa demonstra que os “elos festivos e de parentesco se confundem” na localidade. “A vida na festa é também expressão na e da vida coletiva como um todo” (: 168). A autora produz descrição extremamente densa e detalhada do ciclo ritual da celebração desde os seus preparativos iniciais, para quando, finalmente, os santos saem em procissão. Com a bela descrição vemos que os tambores possuem agência, tanto que na ladainha final a eles se pede licença. Finalmente, ao tomar a festa como centro do estudo, a autora fala sobre outra relação com o tempo e a duração: “adere o mito ao rito, o passado ao presente” (: 175).

Na conclusão de Léa Perez, intitulada “Alguma [mínima] teoria e um pouco de hi[e]stória”, a riquíssima leitura da festa como herança e transposição culturais é colada às teorias sobre o Brasil. É um pensamento social brasileiro, que a toma como central, propiciadora dos ciclos socioeconômicos no País. “Graças às festas, o brasil se fez Brasil” (: 177). Exemplo disso são as festividades barrocas em Minas Gerais, com o ciclo da mineração. Sua interessante aproximação entre o pensamento de Bastide e de Bakhtim, trazendo a descrição do barroco do primeiro e a carnavalização do segundo, traduz a festa barroca como a “carnavalização dionisíaca da vida” (: 188). Mas festa não é algo congelado no tempo, não é mero arcaísmo tradicional ou simulacro, sendo, portanto, objeto passível de estudo por antropólogos, não apenas das sociedades ditas tradicionais, ou dos historiadores. Tampouco há, na autora, uma ideia teleológica e finalista deste conceito. Festa já era fundamental para Durkheim e para Mauss, no corrobori e no potlatch, como exemplos. Voltando ao Brasil, Perez afirma que nossa sociedade vive desde seu início do espetáculo, uma sociedade que ri de si mesma, que funde coisas, pessoas, deuses e homens, em eterno porvir.

Por fim, a coletânea dá papel central e simétrico aos negros e ao seu catolicismo, que tem em uma das invocações de Maria, Nossa Senhora do Rosário, sua santa por excelência. De modo que o livro é altamente recomendado pelos percursos inovadores e consistentes que nos levam a dar outro olhar para as religiões afro-brasileiras. A partir de Maria e dos negros congadeiros das mais diversas irmandades podemos pensar o catolicismo como integrando as práticas religiosas de matriz africana. No que os autores chamam de catolicismo negro ou afro-brasileiro, repousa a maior contribuição da obra.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Dez 2016

Histórico

  • Recebido
    Jul 2016
  • Aceito
    Out 2016
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