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Aplicação dos critérios diagnósticos do lúpus eritematoso sistêmico em pacientes com hanseníase multibacilar

Application of the diagnostic criteria for systemic lupus erythematosus to patients with multibacillary leprosy

Resumos

INTRODUÇÃO: O lupus eritematoso sistêmico (LES) é uma doença inflamatória crônica que acomete múltiplos órgãos ou sistemas, não apresenta manifestação clínica patognomônica ou teste laboratorial sensível e específico o suficiente para um diagnóstico específico. Para o diagnóstico, são utilizados os critérios propostos pelo Colégio Americano de Reumatologia (ACR), modificados em 1997. A presença de quatro ou mais critérios tem sensibilidade e especificidade de 96%. Porém, esses critérios para o LES podem ter especificidade mais baixa em regiões endêmicas para doenças infecciosas crônicas, como o Brasil, endêmico para hanseníase, que pode apresentar manifestações clínico-laboratoriais semelhantes. MÉTODOS: Foi realizado um estudo de prevalência, onde foram aplicados os critérios de LES, nos pacientes com diagnóstico recente de hanseníase multibacilar, que deram entrada no ambulatório de hanseníase da Clínica Dermatológica da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE) durante o período da coleta de dados, além de calculada a especificidade e o número de falso-positivos nesse grupo. RESULTADOS: Foram incluídos 100 pacientes. As prevalências de alguns dos critérios de LES foram elevadas. Os critérios com maior prevalência foram o eritema malar (44%), a artrite (23%), a fotossensibilidade (29%), a linfopenia (19%) e a presença dos anticorpos antifosfolípides, incluídos no critério imunológico (20%). A especificidade encontrada (84%) foi menor do que a atribuída aos critérios em 1997 pelo ACR. CONCLUSÕES: Doenças presentes em nosso meio, como a hanseníase nas formas multibacilares, mimetizam o quadro clínico-laboratorial do LES, o que deve deixar o médico atento à realidade das doenças infecciosas locais antes de afirmar um diagnóstico definitivo de LES.

Lúpus eritematoso sistêmico; Hanseníase; Critérios diagnósticos


INTRODUCTION: Systemic lupus erythematosus (SLE) is a chronic inflammatory disease that affects multiple organs or systems. There is no pathognomonic clinical or laboratory test sensitive and specific enough for a specific diagnosis. The criteria proposed by the American College of Rheumatology (ACR), as modified in 1997, are used for the diagnosis. The presence of four or more criteria presents sensitivity and specificity of 96%. However, these diagnostic criteria for SLE may have lower specificity in areas that are endemic for chronic infectious diseases, such as Brazil (endemic for leprosy), which may have similar clinical and laboratory manifestations. METHODS: A prevalence study was conducted, applying the SLE criteria to patients with recently diagnosed multibacillary leprosy who were registered at the leprosy outpatient clinic, Department of Dermatology, Federal University of Pernambuco (UFPE), during the data gathering period. The specificity and the number of false positives in this group were calculated. RESULTS: One hundred patients were included. The prevalences of some of the SLE criteria were high. The criteria with the highest prevalence were malar erythema (44%), arthritis (23%), photosensitivity (29%), lymphopenia (19%) and presence of antiphospholipid antibodies, including immunological criteria (20%). The specificity found (84%) was lower than the specificity allocated to the criteria in 1997 by the ACR. CONCLUSIONS: Diseases in our setting, such as leprosy in multibacillary forms, mimic the clinical and laboratory characteristics of SLE, and thus physicians need to be aware of the realities of local infectious diseases before affirming a definitive diagnosis of SLE.

Systemic lupus erythematosus; Leprosy; Diagnostic criteria


ARTIGO ARTICLE

Aplicação dos critérios diagnósticos do lúpus eritematoso sistêmico em pacientes com hanseníase multibacilar

Application of the diagnostic criteria for systemic lupus erythematosus to patients with multibacillary leprosy

Gilson José Allain Teixeira Junior; Cláudia Elis e Ferraz Silva; Vera Magalhães

Pós-graduação em Medicina Tropical, Universidade Federal de Pernambuco, Recife, PE

Endereço para correspondência Endereço para correspondência: Dr. Gilson José Allain Teixeira Junior Rua da Hora 760/302, Espinheiro 52020-010 Recife, PE e-mail: gilson_allain@yahoo.com.br

RESUMO

INTRODUÇÃO: O lupus eritematoso sistêmico (LES) é uma doença inflamatória crônica que acomete múltiplos órgãos ou sistemas, não apresenta manifestação clínica patognomônica ou teste laboratorial sensível e específico o suficiente para um diagnóstico específico. Para o diagnóstico, são utilizados os critérios propostos pelo Colégio Americano de Reumatologia (ACR), modificados em 1997. A presença de quatro ou mais critérios tem sensibilidade e especificidade de 96%. Porém, esses critérios para o LES podem ter especificidade mais baixa em regiões endêmicas para doenças infecciosas crônicas, como o Brasil, endêmico para hanseníase, que pode apresentar manifestações clínico-laboratoriais semelhantes.

MÉTODOS: Foi realizado um estudo de prevalência, onde foram aplicados os critérios de LES, nos pacientes com diagnóstico recente de hanseníase multibacilar, que deram entrada no ambulatório de hanseníase da Clínica Dermatológica da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE) durante o período da coleta de dados, além de calculada a especificidade e o número de falso-positivos nesse grupo.

RESULTADOS: Foram incluídos 100 pacientes. As prevalências de alguns dos critérios de LES foram elevadas. Os critérios com maior prevalência foram o eritema malar (44%), a artrite (23%), a fotossensibilidade (29%), a linfopenia (19%) e a presença dos anticorpos antifosfolípides, incluídos no critério imunológico (20%). A especificidade encontrada (84%) foi menor do que a atribuída aos critérios em 1997 pelo ACR.

CONCLUSÕES: Doenças presentes em nosso meio, como a hanseníase nas formas multibacilares, mimetizam o quadro clínico-laboratorial do LES, o que deve deixar o médico atento à realidade das doenças infecciosas locais antes de afirmar um diagnóstico definitivo de LES.

Palavras-chaves: Lúpus eritematoso sistêmico. Hanseníase. Critérios diagnósticos.

ABSTRACT

INTRODUCTION: Systemic lupus erythematosus (SLE) is a chronic inflammatory disease that affects multiple organs or systems. There is no pathognomonic clinical or laboratory test sensitive and specific enough for a specific diagnosis. The criteria proposed by the American College of Rheumatology (ACR), as modified in 1997, are used for the diagnosis. The presence of four or more criteria presents sensitivity and specificity of 96%. However, these diagnostic criteria for SLE may have lower specificity in areas that are endemic for chronic infectious diseases, such as Brazil (endemic for leprosy), which may have similar clinical and laboratory manifestations.

METHODS: A prevalence study was conducted, applying the SLE criteria to patients with recently diagnosed multibacillary leprosy who were registered at the leprosy outpatient clinic, Department of Dermatology, Federal University of Pernambuco (UFPE), during the data gathering period. The specificity and the number of false positives in this group were calculated.

RESULTS: One hundred patients were included. The prevalences of some of the SLE criteria were high. The criteria with the highest prevalence were malar erythema (44%), arthritis (23%), photosensitivity (29%), lymphopenia (19%) and presence of antiphospholipid antibodies, including immunological criteria (20%). The specificity found (84%) was lower than the specificity allocated to the criteria in 1997 by the ACR.

CONCLUSIONS: Diseases in our setting, such as leprosy in multibacillary forms, mimic the clinical and laboratory characteristics of SLE, and thus physicians need to be aware of the realities of local infectious diseases before affirming a definitive diagnosis of SLE.

Key-words: Systemic lupus erythematosus. Leprosy. Diagnostic criteria.

INTRODUÇÃO

A hanseníase é uma doença infecto-contagiosa de evolução crônica, causada pelo Mycobacterium leprae, bacilo álcool-ácido resistente, com tropismo para as células de Schwann e para o sistema retículo-endotelial, que acomete principalmente pele e tecido nervoso periférico1,2.

O Brasil ocupa a segunda colocação mundial no número de casos de hanseníase, logo depois da Índia, sendo que, nas Américas, aproximadamente 93% dos casos novos de hanseníase são notificados no Brasil3. Segundo o Ministério da Saúde, no Estado de Pernambuco, a prevalência ficou em torno de 13,5:100.000 habitantes em 2009, índice superior à média do Brasil, que foi de 19,6:100.000 habitantes3.

A hanseníase pode ser classificada em quatro formas clínicas: indeterminada, tuberculóide, dimorfa e virchowiana, sendo as duas primeiras paucibacilares (baciloscopia negativa) e as duas últimas multibacilares (baciloscopia positiva)4.

Além das apresentações clínicas clássicas, com acometimento cutâneo e neurológico periférico, a hanseníase pode apresentar quadros clínicos de caráter autoagressivo, promovidos por formação e depósito de imunocomplexos em estruturas do próprio organismo. Essas situações são denominadas estados reacionais do tipo 2 e podem aparecer em pacientes hansenianos nas formas multibacilares5.

Os estados reacionais do tipo 2 podem ser provocados por início de tratamento, porém podem também surgir antes ou após o término do mesmo, desencadeado por situações diversas, como gravidez, puberdade, infecções, estresse emocional, vacinação, dentre outras6.

Essas fases reacionais do tipo 2 possuem quadros clínicos variados, a depender do órgão em que houve depósito do imunocomplexo formado, como eritema nodoso, artrite, febre, vasculite cutânea, fotossensibilidade, hiperemia cutânea, orquiepididimite, glomerulonefrite, pericardite, pleurite ou aparecimento de autoanticorpos séricos, entre diversos outros7.

O lúpus eritematoso sistêmico (LES) é uma doença inflamatória crônica, multissistêmica, de causa desconhecida e de natureza autoimune, caracterizada pela presença de diversos autoanticorpos. Evolui com manifestações clínicas polimórficas, com períodos de exacerbações e remissões. De etiologia não esclarecida, o desenvolvimento da doença está ligado à predisposição genética e aos fatores ambientais, como luz ultravioleta e alguns medicamentos8-10.

O LES é uma doença rara, incidindo mais frequentemente em mulheres jovens, ou seja, na fase reprodutiva, numa proporção de nove a dez mulheres para um homem, e com prevalência variando de 14 a 50/100.000 habitantes, em estudos norte-americanos. A doença pode ocorrer em todas as raças e em todas as partes do mundo11.

Na prática, costuma-se estabelecer o diagnóstico de LES utilizando os critérios diagnósticos (também chamados de critérios de classificação) do Colégio Americano de Reumatologia (ACR), propostos em 1982 e modificados em 1997, que se baseiam na presença de pelo menos quatro critérios dentre os onze estabelecidos12,13.

Esses critérios, segundo o ACR, devem ser aplicados com cuidado ou restrição a indivíduos em vigência de doenças infecciosas, distúrbios metabólicos ou hidroeletrolíticos, ou em uso de medicamentos que possam levar ao aparecimento do mesmo quadro clínico13.

Além de inúmeras doenças autoimunes, como artrite reumatóide, vasculites sistêmicas, dermatomiosite e outras, o diagnóstico diferencial de LES inclui uma gama de doenças infecciosas, dentre elas a hanseníase, notadamente nas formas multibacilares8-10,14,15.

Vários estudos, a maioria série de casos, descrevem pacientes com diagnóstico de hanseníase, principalmente virchowiana, com prevalência elevada dos critérios para LES, como artrite, rash malar, fator antinuclear (FAN), anticorpos antifosfolípides, linfopenia e outros16-27.

Após revisão bibliográfica sobre o assunto, levantou-se a hipótese que os critérios de classificação do LES podem ter especificidade mais baixa em regiões endêmicas para doenças infecciosas crônicas, como o Brasil.

Diante disso, devido à alta prevalência de alguns critérios de classificação do LES em pacientes com hanseníase multibacilar, que podem apresentar sintomatologia semelhante, e considerando-se o Estado de Pernambuco como região hiperendêmica, propôs-se estudar, através dessa pesquisa, o perfil dos pacientes com diagnóstico recente de hanseníase multibacilar com relação ao quadro clínico-laboratorial do LES, mostrando que a cautela deve ser aumentada na utilização dos critérios desta doença em regiões endêmicas para aquela, evitando diagnósticos errôneos, que acompanharão o indivíduo por toda a sua vida.

Esse estudo, portanto, teve como objetivo avaliar a prevalência dos critérios diagnósticos do LES em pacientes com diagnóstico recente de hanseníase multibacilar atendidos em um centro de referência da Cidade do Recife, assim como a especificidades dos critérios nessa população.

MÉTODOS

Desenho do estudo

Foi realizado um estudo de prevalência, onde foram aplicados os critérios diagnósticos de LES propostos pelo ACR em 1982 e modificados em 1997, nos pacientes com diagnóstico recente (até 6 meses) de hanseníase multibacilar, além de calculada a especificidade e o número de falso-positivos dos critérios nesse grupo de doentes.

Local do estudo

O local de estudo foi a Clínica Dermatológica da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), Recife, Brasil, que é considerado centro de referência para diagnóstico e tratamento de hanseníase no estado.

População alvo

Foi definida como população alvo os indivíduos com hanseníase que deram entrada no ambulatório especializado na doença da Clínica Dermatológica da UFPE durante o período da coleta de dados (maio a dezembro de 2005), que preencheram os critérios de inclusão.

Tipo de amostragem

A amostra foi não-probabilística, não-aleatória, de conveniência, por ter sido obtida em centro de referência para diagnóstico e tratamento da hanseníase, doença escolhida como tema do presente estudo.

Cálculo do tamanho da amostra

O tamanho da amostra foi calculado utilizando-se o programa Epi-Info versão 6.04d, admitindo-se nível de significância de 0,05, poder de prova de 80% e prevalência de falso-positivos de 10%17, obtendo-se um total de 100 pacientes. Calculou-se associação entre critérios diagnósticos utilizando-se o teste de qui-quadrado.

Sujeitos da pesquisa

Foram considerados sujeitos da pesquisa os pacientes que obedeceram aos critérios de inclusão e de exclusão.

Critério de inclusão

Pacientes com diagnóstico recente (até 6 meses) de hanseníase multibacilar, baseado com o índice baciloscópico maior que zero, que aceitaram participar do estudo assinando o termo de consentimento livre e esclarecido. Para a inclusão na pesquisa, todos os pacientes foram examinados pelo pesquisador.

Critério de exclusão

Foram excluídos os pacientes: com diagnóstico prévio de doença autoimune; com diagnóstico prévio de hanseníase, com tratamento concluído e considerado curados; com diagnóstico atual de hanseníase, porém com tratamento iniciado há mais de 6 meses, período após o qual se inicia com maior frequência os estados reacionais secundários ao tratamento; em gravidez e puerpério; com idade menor que 18 e maior que 60 anos, por questões éticas.

Métodos utilizados nos exames complementares

Baciloscopia

Todos os pacientes que deram entrada no Ambulatório de Dermatologia da UFPE fizeram baciloscopia em laboratório do próprio setor, onde foram submetidos à coleta de transudato, obtido por punção periférica, nos dois lóbulos auriculares, cotovelos e lesões suspeitas, sobre lâmina de vidro de 26mm x 76mm, após ter sido feita a identificação do paciente por seu número de registro, na parte fosca da lâmina.

O material foi fixado pelo calor, em chama direta, procedendo-se a seguir a coloração pelo método de Ziehl-Nielsen. Seguiu-se a observação de no mínimo 50 campos, em microscópio óptico, de campo claro, com aumento de 400 vezes. Os pacientes com baciloscopia positiva foram incluídos na pesquisa.

Testes laboratoriais

Hemograma (método automatizado - ADVIA 120 Bayer); sumário de urina (fitas Multistix - Bayer), FAN, realizado por imunofluorescência indireta, tendo como substrato as células do tipo Hep-2, conforme 2º Consenso Brasileiro sobre o FAN (Hemagem); antiDNA dupla hélice realizado por imunofluorescência indireta com substrato Chritidia lucilae, conforme 2º Consenso Brasileiro sobre o FAN (Hemagem); anti-Sm - realizado por enzimaimunoensaio (ELISA) (Hemagem); anticorpos anticardiolipina IgM e IgG pesquisado por enzimaimunoensaio (ELISA) (Hemagem); ensaio para detecção do anticoagulante lúpico trifásico - STA COMPACT (STAGO).

Coleta dos dados

Aos pacientes com hanseníase que foram referenciados ao serviço anteriormente citado, ou aos que chegaram por demanda espontânea, foi realizada baciloscopia para diferenciar os paucibacilares e os multibacilares, quando esses últimos foram incluídos. Foi então aplicado questionário que continha perguntas sobre a presença atual ou prévia de cada um dos critérios clínicos para o diagnóstico de LES. Além disso, sangue foi colhido por punção venosa periférica pelo próprio pesquisador, utilizando-se o sistema Vacutainer, com retirada de 15ml, sendo 5ml para cada tudo (EDTA, citrato e seco) para realização dos testes laboratoriais. Para a análise da urina, foi entregue recipiente específico, orientado coleta adequada, e recolhido material no dia seguinte.

Processamento e análise dos dados

Os dados foram organizados em banco de dados pelo uso do programa Epi-Info versão 6.04d. Para análise estatística, empregou-se o programa Statistical Program for Social Sciences (SPSS), versão 13.0.

Na descrição das características amostrais, empregaram-se: distribuição de frequências absolutas e relativas, assim como os parâmetros estatísticos descritivos de média e desvio-padrão.

Considerações éticas

O projeto de pesquisa foi aprovado sem exigências pelo Comitê de Ética em Pesquisa do Centro de Ciências da Saúde da Universidade Federal de Pernambuco, sob o número 132/2005.

RESULTADOS

Foram incluídos 100 pacientes com diagnóstico de hanseníase multibacilar da unidade de dermatologia do Hospital das Clínicas da UFPE, no período de maio a dezembro de 2005.

Identificou-se predominância do sexo feminino sobre o masculino (54% para 46%, respectivamente).

As idades dos pacientes variaram de 18 a 56 anos, com mediana de 32,48 + 9,79 anos. A distribuição por idade ocorreu da seguinte forma: 18-30 anos (40%), 31-40 (34%), 41-50 (16%) e 51-60 (10%)

O tempo de início do tratamento variou de 7 dias a 6 meses, com média de 3,18 + 1,91 meses (Tabela 1). A distribuição por tempo de início do tratamento foi de 39% para 0-2 meses de tratamento, 34% para 3-4 meses e 27% para 5-6 meses.

Os critérios diagnóstico encontrados com maior prevalência foram, em ordem descendente de frequência, o eritema malar (44%), a fotossensibilidade (29%), a artrite (23%), o critério imunológico (19%), com ênfase para a linfopenia, e o critério imunológico (20%), com destaque para a presença de anticorpos antifosfolípides. Os critérios menos prevalentes foram as úlceras orais (sem casos), serosite (1%), os acometimentos neurológico (1%) e renal (1%). As demais prevalências foram 9% para as lesões discóides e 10% para o FAN.

As manifestações hematológicas, enfatizando a linfopenia estiveram entre os critérios de classificação mais encontrados no estudo (Figura 1).


Os anticorpos antifosfolípides foram detectados em 20% dos doentes estudados. A distribuição do teste laboratorial que identificou a presença de tais anticorpos está exposta na Figura 2.


Entre os doentes estudados, 16% apresentaram 4 ou mais critérios diagnósticos, o que, segundo o ACR, seria suficiente para o diagnóstico de LES (falso-positivos). Tal fato evidencia uma especificidade de 84% (IC 95% 0,055-0,945) dos critérios na população estudada. A distribuição dos critérios encontra-se na Tabela 1.

Não foi encontrada associação estatisticamente significante entre a idade, o sexo, o tempo de tratamento e os critérios de classificação dos pacientes.

DISCUSSÃO

A presente pesquisa sepropôs a pesquisar os critérios diagnósticos do LES em pacientes com hanseníase multibacilar de região endêmica.

A idade e o sexo dos pacientes do presente estudo ficaram dentro dos padrões da população de hansenianos do Estado de Pernambuco3, resultado esperado, pois se aproveitou a demanda espontânea a um serviço de referência do estado.

O eritema malar é uma das manifestações clínicas mais características do LES, sendo encontrado em 80% dos pacientes14. Observou-se eritema malar em 44 (44%) dos pacientes com hanseníase multibacilar no estudo. Esse achado pode ser justificado pelo fato desses pacientes apresentarem uma fotossensibilidade maior que a população em geral, favorecendo o aparecimento do rash malar. A fotossensibilidade, por ser critério de LES, também foi estudada e só foi identificada em 29 (29%) dos indivíduos. Podemos atribuir essa diferença de percentagem ao fato da dificuldade de caracterização de tal sintoma pelo próprio doente. Esses achados foram semelhantes ao estudo realizado por Hushein, no Paquistão, que encontrou rash malar e fotossensibilidade em 45% e 31% dos pacientes, respectivamente18.

A confusão entre algumas lesões cutâneas da hanseníase e as lesões discóides do LES muitas vezes não é entendida pelos dermatologistas, que alegam que as lesões do LES apresentam atrofia central, enquanto as lesões da hanseníase apresentam a anestesia clássica4. Porém, para médicos não-especialistas em doenças dermatológicas, essa diferenciação é difícil, fazendo com que as lesões se confundam28,29. Isso poderia justificar a prevalência de 9% das lesões discóides encontrada no presente estudo. As lesões eram vistas e contabilizadas como lesões discóides, pelo pesquisador, quando assim o mesmo as classificaria se vistas em qualquer outro doente com diagnóstico de LES.

Artrite foi observada em 21 (21%) dos pacientes estudados. A artrite é um achado clássico dos estados reacionais tipo 2 da hanseníase nas formas multibacilares. A artrite pode acompanhar o eritema nodoso característico dessa fase reacional ou pode aparecer de forma isolada, precedendo inclusive o diagnóstico da hanseníase2. A artrite classicamente é poliarticular, envolvendo pequenas articulações das mãos e pés16. Hushein18 encontrou, em seu estudo, uma prevalência de 25% de artrite nos pacientes estudados, achado semelhante ao encontrado na presente pesquisa. Porém, esse autor estudou todos os pacientes hansenianos, tanto paucibacilares como multibacilares, que deram entrada em seu serviço de referência para o tratamento da doença. Esperar-se-ia, então, uma maior prevalência de artrite em nosso estudo, que só estudou pacientes multibacilares. Porém, ao analisarmos o estudo relatado, nota-se que, por ter sido realizado em um centro de referência, a maioria dos pacientes era realmente multibacilares (75%). Cossermelli16 realizou estudo histopatológico da membrana sinovial de 50 pacientes hansenianos e encontrou reação inflamatória em todos eles. Apesar da grande crítica ao seu trabalho pelo fato de não ter havido caracterização pelo autor se tais pacientes também tinham ou não artrite clinicamente evidente, ele pode levantar a hipótese que a hanseníase não é somente uma doença cutânea e neurológica, mas também acometer o envoltório mais nobre da articulação sinovial. A artrite, principalmente poliarticular e envolvendo pequenas articulações, é um sintoma bastante valorizado pelo reumatologista. Quando presente de forma crônica faz tal especialista pensar em doenças autoimunes22.

O paciente que apresentou pericardite foi o mesmo que apresentou a nefrite e crises convulsivas (acometimento neurológico). Este doente havia sido internado na enfermaria de clínica médica com hipótese diagnóstica de LES (também apresentava FAN e anticorpo anticardiolipina IgM positivos), porém no 2º dia de internamento foi encontrada mancha hipercrômica anestésica em dorso, não referida pelo doente, sendo então realizada baciloscopia, que foi positiva. O mesmo iniciou tratamento específico para hanseníase, associado a prednisona e talidomida e cursou com importante melhora clínica.

O FAN é um teste com alta sensibilidade (99%); porém não tão específico (80%), para o diagnóstico de LES11. Pode ser encontrado em diversas condições neoplásicas, como linfomas e leucemias, e também em diversas condições infecciosas, como endocardite subaguda, tuberculose, malária, sífilis, leishmaniose visceral e hanseníase, principalmente nas formas multibacilares6. Encontramos no presente estudo uma prevalência de 10% de FAN positivo entre os doentes estudados. Esse valor é menor do que os encontrados em outros estudos que encontraram prevalências que variaram de 20 a 31%17,21,22. Ao analisarmos essas pesquisas, notamos que foram incluídos pacientes em qualquer fase do tratamento da hanseníase, o que poderia justificar a maior frequência do achado desse auto-anticorpo, visto que o mesmo aumenta de forma importante na vigência do tratamento11. Utilizamos no estudo o FAN com substrato Hep-2, que é mais sensível e específico do que o realizado em tecido hepático de camundongo25.

A ausência dos anticorpos anti-DNA e anti-Sm em todos os pacientes estudados corrobora outros estudos, que demonstram a alta especificidade desses auto-anticorpos (85% e 99%, respectivamente) para o diagnóstico de LES17.

A alta prevalência de anticorpos antifosfolípides (20%) é um achado interessante que também confirma alguns artigos que mostram a prevalência significativa desses anticorpos em pacientes com doenças infecciosas crônicas e neoplásicas, e não só em doenças autoimunes como se pensava na década de 9011,30. O fato de nenhum dos pacientes com esses autoanticorpos positivos, do presente estudo, apresentar história de eventos trombóticos vasculares ou gestações interrompidas, corrobora a opinião de diferentes autores de que esses anticorpos em não portadores de doenças de cunho autoimunológico não são patogênicos. Outro fato interessante é que o principal teste de identificação dos anticorpos antifosfolípides, no estudo, foi o anticardiolipina IgM, que também confirma a impressão de que esse auto-anticorpo é o mais encontrado nas doenças infecciosas crônicas e tem fraco efeito trombogênico8.

Dezesseis pacientes apresentaram quatro ou mais critérios de classificação para LES, o que definiria a doença estabelecida. Porém, vale lembrar que os critérios devem ser analisados com restrição em pacientes com doenças infecciosas ou distúrbios metabólicos, caso dos doentes estudados. Encontramos, portanto, 16% de falso-positivos e uma especificidade de 84%. Tal especificidade é menor do que a atribuída aos critérios de1997 informados pelo Colégio Americano de Reumatologia. Tal explicação pode ser dada pelo fato de algumas doenças presentes em nossa região, como a hanseníase nas formas multibacilares, e talvez outras doenças que levam a quadros de artrite, lesões cutâneas das mais diversas, linfopenias, anticorpos antinucleares e antifosfolípides, assim como o LES, estarem presentes em alta prevalência.

No presente estudo, como a população estudada foi composta por pacientes com hanseníase multibacilar, e o local de estudo foi um dos grandes serviços de referência para o diagnóstico e tratamento da hanseníase no Estado de Pernambuco, em que a maioria dos pacientes são encaminhados por outros especialistas, poder-se-ia admitir ter sido boa a representatividade da amostra.

Para tentar minimizar o viés de classificação, foi considerado caso de hanseníase multibacilar, aquele que tinha baciloscopia positiva. Foram retirados do estudo os pacientes que já apresentavam diagnóstico prévio de doenças autoimunes ou de hanseníase, o que poderia levar a altas prevalências dos critérios estudados.

Para minimizar o viés de informação e de coleta de dados, os dados foram obtidos pelo pesquisador diretamente, por meio de entrevistas individuais e exame clínico dos pacientes, e coleta de material biológico pelo próprio pesquisador, tendo as análises sido feitas em laboratório de alto padrão técnico. Dessa forma, pode-se supor que os limites metodológicos do estudo foram minimizados.

O LES é uma doença complexa e seu diagnóstico exige cautela. Deve-se ter em mente que seu diagnóstico é de exclusão, devendo-se afastar doenças mais prevalentes na região, como a hanseníase, que é curável, antes de considerar um indivíduo como lúpico. O LES é uma doença crônica, sem cura, que apresenta complicações nos mais variados sistemas, criando diversos temores e expectativas que acompanharão toda a vida dos que dela são portadores.

Alguns critérios diagnósticos para o LES, propostos pelo ACR em 1982 e modificados em 1997, apresentaram prevalência elevada nos pacientes com hanseníase multibacilar do serviço de dermatologia do Hospital das Clínicas da UFPE, principalmente o eritema malar (44%), a artrite (23%), a fotossensibilidade(29%), a linfopenia (19%) e a presença dos anticorpos antifosfolípides (20%).

Os critérios diagnósticos para o LES, propostos pelo ACR em 1982 e modificados em 1997, quando aplicados a pacientes com hanseníase multibacilar do Hospital das Clínicas da UFPE, apresentaram uma especificidade de 84% e um número de falso-positivos de 16%, valores mais baixos do que os atribuídos originalmente a esses critérios. Com isso, percebe-se que antes de se aplicar os referidos critérios, quando diante de um paciente com quadro suspeito de LES, deve-se afastar o diagnóstico de doenças com alta prevalência, como a hanseníase, para que um paciente com uma doença curável não seja erroneamente taxado como portador de outra sem cura, gerando desnecessário tratamento e importantes repercussões durante toda a sua vida.

AGRADECIMENTOS

À Professora Mecciene Mendes Rodrigues, pelo estímulo à elaboração dessa pesquisa e fundamental apoio na coleta dos dados.

CONFLITO DE INTERESSE

Os autores declaram não haver nenhum tipo de conflito de interesse no desenvolvimento do estudo.

Recebido para publicação em 28/03/2010

Aceito em 06/10/2010

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  • Endereço para correspondência:

    Dr. Gilson José Allain Teixeira Junior
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  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      14 Fev 2011
    • Data do Fascículo
      Fev 2011

    Histórico

    • Recebido
      28 Mar 2010
    • Aceito
      06 Out 2010
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