Open-access Por que grupos minoritários merecem mais espaço na representação política? Uma revisão de escopo

Why do minority groups deserve more political representation? A scoping review

RESUMO

Introdução:  Grande parte das democracias adotam hoje alguma medida para aumentar a representação de grupos minoritários. No entanto, esses experimentos institucionais nem sempre deixam evidentes suas razões teóricas ou fundamentos normativos. Para suprir essa lacuna, este artigo sistematiza a literatura de teoria política que articula justificativas para a representação política de grupos minoritários.

Materiais e métodos:  Apresentamos os resultados de uma revisão de escopo de 219 artigos publicados entre 1990 e 2021. Mapeamos quem são os(as) autores(as) mais dedicados à essa temática, em quais países estão radicados(as) e em quais periódicos eles(as) mais publicam. Por último, realizamos uma análise dos dez artigos mais citados no campo da teoria política sobre essa temática.

Resultados:  A análise bibliométrica mostrou que o perfil social dos(as) autores(as) é de mulheres brancas do hemisfério norte e que as reflexões neste campo estão voltadas primordialmente para as políticas de presença focadas em gênero. Análises mais detidas identificaram três famílias argumentativas: a) o argumento da deliberação; b) o argumento da justiça; e c) o argumento do poder político. O primeiro argumento sustenta que a representação política de grupos minoritários aprimora o processo deliberativo ao diversificar os participantes do debate e das decisões políticas. O segundo defende que essa representação especial ajusta os princípios de justiça às demandas de grupos marginalizados. O terceiro a justifica pela redistribuição do poder político entre os grupos, corrigindo opressões produzidas pela democracia representativa.

Discussão:  Nossa principal contribuição é a organização das justificativas teóricas para a representação política de grupos minoritários a partir de técnicas sistemáticas de revisão da literatura, procedimento ainda pouco aplicado nesse campo de pesquisa no Brasil. Nesse sentido, ele pode ser lido como um guia para pesquisadores(as) que buscam se inserir nessa área.

Palavras-chave
teoria política; representação política; grupos minoritários; sub-representação de grupos; revisão de escopo

ABSTRACT

Introduction:  Many contemporary democracies adopt measures to improve the political representation of minority groups. However, these institutional experiments often lack clarity regarding their theoretical underpinnings or normative foundations. To address this gap, this article systematizes the political theory literature that presents arguments in favor of minority political representation.

Materials and methods:  This study reports the findings of a scoping review that examined 219 articles published between 1990 and 2021. Our analysis identified the authors most engaged with this topic, their institutional affiliations, and the journals in which they most frequently published. Finally, we examined the ten most-cited articles in political theory on this subject.

Results:  Our bibliometric analysis revealed that the social profile of the authors consists mainly of white women based in the Global North, with a focus on gender-centered representation politics. A closer look reveals three main argumentative frameworks: a) the deliberation argument, b) the justice argument, and c) the political power argument. The first argues that the political representation of minority groups strengthens deliberative processes by diversifying participants in political debates and decision-making. The second asserts that such representation aligns principles of justice with the demands of marginalized groups. The third justifies it as a means of redistributing political power among groups, addressing the oppressive dynamics of representative democracy.

Discussion:  Our primary contribution lies in organizing the theoretical justifications for minority political representation through systematic literature review techniques, a methodology that remains underused in this field of research in Brazil. In this regard, the study serves as a guide for researchers interested in exploring this area.

Keywords
political theory; political representation; minority groups; underrepresentation of groups; scoping review

I. Introdução1

O conceito de representação política é quase tão antigo quanto a ideia de democracia. Apesar disso, seu lugar nos regimes políticos, bem como seus significados e procedimentos práticos se alteraram profundamente ao longo da história. Logo, se a representação política é hoje o fundamento de qualquer regime que se pretenda minimamente democrático, seu significado e funcionamento permanece alvo de enormes disputas.

é um desafio discorrer sobre a representação apenas em termos teóricos e abstratos, dado que essa discussão está intimamente ligada às desigualdades e opressões políticas do mundo real. Em seu trabalho clássico sobre o conceito de representação, Pitkin (2006) nos mostra como o desenvolvimento do conceito refletiu dilemas concretos enfrentados pelos parlamentos em diferentes democracias. Portanto, lidamos com um fragmento da teoria política em que os esforços interpretativos andam passo a passo com o que ocorre na política concreta.

Todo um conjunto de críticas ao conceito e à prática moderna da representação miram na sua forma essencialmente individualista. No mínimo desde a consolidação das democracias pós-revolução francesa, inglesa e estadunidense, a representação é vista como mecanismo de agregação de vontades individuais a partir da contabilização e processamento dos votos numa dada eleição (Manin, 1997). Porém, se há igualdade de direitos, especialmente civis e políticos, por que existem grupos super-representados e outros sub-representados nas instituições políticas? Se o ideal democrático demanda que todos possam participar do processo político, por que estas desigualdades se reproduzem?

Foram questionamentos como esses que revitalizaram a ideia de representação de grupos tanto na teoria política quanto nas leis de diversos países mundo afora. A ideia de que a representação política deveria espelhar ou ao menos conter os principais grupos presentes em uma sociedade não é nova (Pitkin, 1985). No entanto, ela só foi objeto de reflexão teórica dedicada a partir do estudo seminal de Hannah Pitkin (1985) sobre o conceito de representação. Alvo de forte crítica por parte da autora, a noção de representação especular ou descritiva, na qual os corpos políticos buscam espelhar as características demográficas da sociedade, se tornou a partir dos anos 1980 um foco privilegiado de teóricos e teóricas feministas e multiculturalistas. Porém, mais do que reiterar argumentos tradicionais de defesa da representação de grupos, essas teorias se dedicaram justamente a pensar novas justificativas para ela, em diálogo de mão dupla com as medidas concretamente adotadas por vários países para garantir a presença de grupos nas instituições democráticas.

Neste texto, buscamos sistematizar quais são as principais justificativas para a representação política de grupos utilizadas pelos(as) teóricos(as) políticos(as) mais influentes no debate acadêmico internacional sobre o tema nas últimas décadas (1990-2021). Para tal, recorremos a revisão bibliográfica de escopo que sistematizou as características fundamentais dos artigos mais citados na plataforma Google Scholar (GS) sobre a questão. Escolhemos essa base de dados por ser a maior plataforma de indexação de publicações científicas. Além disso, fornece um amplo espectro de dados bibliométricos. Alguns estudos recentes apontam que o GS é a base que mais encontra citações em todas as áreas e, também, que é capaz de encontrar quase todas as citações de outros bancos como Scopus ou Web of Science (Martín-Martín et al., 2018). Por último, o GS é capaz de captar diversas publicações, como livros, teses e capítulos, diferentemente das outras bases (Martín-Martín et al., 2018). Somado a isso, é um banco de fácil acessibilidade para qualquer pesquisador(a).

Coletamos um total de 977 publicações no campo temático que passaram por uma triagem e categorização de acordo com qual centralidade a publicação aborda a temática de representação de grupos. Posteriormente, analisamos os dados bibliométricos disponíveis sobre as publicações por meio do software R, e criamos outras variáveis sobre os(as) autores(as) do nosso banco2. Depois desta etapa, pinçamos alguns textos centrais desse levantamento para realizar uma análise mais aprofundada.

O nosso artigo está estruturado da seguinte forma: primeiro, justificamos a escolha por uma revisão de escopo para fazer um trabalho teórico; segundo, apresentamos os dados bibliométricos das publicações e mapeamos características gerais do campo; terceiro, e último, escolhemos os 10 artigos científicos mais citados em nosso banco para classificar quais são as principais linhas argumentativas utilizadas pelos(as) autores(as).

O principal objetivo do nosso trabalho é realizar uma discussão no campo da teoria política por meio das metodologias de revisão sistemática, algo pouco usual para essa área. De modo geral, com base no princípio de que os representantes precisam ser responsivos à pluralidade de demandas, interesses, opiniões e perspectivas do eleitorado, esses textos partem do diagnóstico de que há uma lacuna nos corpos representativos quanto à pluralidade social. é nessa seara que um conjunto de autores e autoras afirmam a necessidade da autorrepresentação de determinados grupos para que estes possam romper com ciclos de exclusão históricos. Em nosso estudo, focamos especificamente em raça e gênero, uma vez que estes são os grupos marginalizados que mais são abordados pela literatura e, também, que possuem as reivindicações mais fortes por presença (Williams, 2000)3.

II. Uma breve discussão das escolhas metodológicas: por que fazer uma revisão de escopo?

Segundo Ferrari (2015), a necessidade de uma revisão da literatura surge a partir da abundância de informações, visões distintas e a ausência de consenso em um tópico. Uma revisão é um estudo secundário que se baseia em estudos primários, podendo ser sistemática ou não-sistemática. O objetivo principal da primeira é formular uma questão bem definida e fornecer uma análise quantitativa e qualitativa e uma possível meta-análise. Dentre os pontos fortes desse tipo de revisão, destacam-se uma maior clareza da questão de pesquisa, dos critérios para a coleta de dados e, no limite, a possibilidade que ele seja replicado ou atualizado de modo mais rigoroso. As revisões sistemáticas são amplamente utilizadas em publicações das ciências naturais e, em nossa pesquisa, replicamos esse método para as ciências sociais. Segundo Dacombe (2017), a ciência política tem ignorado esse método de revisão da literatura - algo problemático, dado que as revisões sistemáticas têm características que podem nos auxiliar na compreensão dos fenômenos políticos. A capacidade de compilar grandes bancos de dados e diminuir os vieses tornam esse tipo de trabalho desejável para as pesquisas científicas. Além disso, uma revisão sistemática pode ser replicada e qualificar o debate.

é verdade que as revisões bibliográficas sistemáticas não contradizem ou substituem as tradicionais revisões narrativas. Segundo Dacombe (2017), as revisões sistemáticas de fato têm dificuldade em traduzir em números a complexidade teórica e empírica das pesquisas em ciências sociais. Por isso tudo, propomos neste texto uma revisão de escopo da literatura dedicada à questão da representação de grupos na teoria política com base em duas estratégias complementares. Em primeiro lugar, realizamos uma revisão sistemática quantitativa dos estudos sobre o nosso tema com o objetivo de mapear essa área na bibliografia internacional. Em segundo lugar, busca os fazer uma revisão narrativa mais qualitativa dos textos mais influentes nessa discussão. Assim, buscamos equilibrar um mapeamento mais extensivo, ainda que superficial, com uma análise interpretativa mais profunda, ainda que restrita a alguns textos.

Para a coleta de dados, utilizamos o programa Publish or Perish (PoP), um software que recupera publicações acadêmicas por meio de alguns bancos de dados como Google Scholar, Scopus, Web of Science etc. O objetivo do PoP é facilitar a análise sistemática da literatura por meio de uma pesquisa direcionada, uma extração mais simples dos dados e, também, pelas métricas de impacto que o programa oferece. Os documentos utilizados nessa pesquisa são artigos científicos coletados na plataforma Google Scholar, no período de 1990 até 2021 - contabilizando 31 anos e um total de 997 publicações. Após a remoção de publicações duplicadas e sem título, ficamos com 977 publicações. Escolhemos a plataforma do Google Scholar por compilar um universo relevante de publicações científicas. Escolhemos como período a década de 1990 até o ano de execução desta pesquisa (2021) porque a discussão sobre representação de grupos ganha corpo durante a década de 1990, como podemos observar pela data de publicação dos clássicos na área.

Para realizar a coleta de dados construímos uma expressão de busca (string de busca) que consiste em palavras-chave que funcionam como “camadas” para selecionar publicações que condizem com aquilo que pretendemos encontrar. é importante ressaltar que escolhemos restringir nosso escopo de discussão sobre representação de grupos especificamente àqueles que envolvem gênero/raça/etnia. Afinal, ao falarmos de sub-representação ou ausência de determinados grupos na esfera da representação política, podemos nos referir desde disparidades regionais até disparidades de classe, raciais etc. Portanto, é necessário fazer um recorte e, quando estamos falando de grupos nesta pesquisa, estaremos nos referindo especificamente àqueles. A Tabela 1 ilustra o string utilizado com as condições de coleta de dados.

Tabela 1
String de busca

Após a coleta dos dados, nós realizamos uma triagem manual dos textos, mediante a leitura dos seus resumos, e eliminamos aqueles que não tiveram como abordagem central a representação de grupos. Obtivemos 296 publicações no geral em que a representação de grupos se constitui como categoria central de reflexão; 183 publicações que se enquadram como secundárias e 498 em que a discussão é apenas citada ou ausente. Como podemos observar, já nessa primeira etapa de triagem dos dados coletados, uma quantidade relevante de publicações foi eliminada da nossa base de dados. Nesse primeiro passo desconsideramos os tipos de publicação e o critério de inclusão e exclusão esteve baseado apenas na sua coesão com a nossa pergunta de pesquisa.

Para isso, utilizamos três categorias de classificação dos trabalhos: a) central: publicações em que a representação de grupos é o problema central; b) secundário: publicações em que a representação de grupos é uma discussão que aparece acoplada a uma outra problemática central; c) ausente: publicações em que a representação de grupos é apenas citada, ou não aparece, e não se situa como um problema na reflexão geral do texto. é importante sublinhar o quão escorregadio pode ser classificar publicações manualmente e, nessa pesquisa, nos deparamos com dois problemas especificamente: a) publicações que abordam questões de gênero/raça/etnia sem necessariamente se remeter a representação de grupos; b) publicações que abordam a representação de grupos, mas na dimensão da sociedade civil e/ou movimentos sociais, sem necessariamente se remeter a instituições políticas. Esses textos, especificamente, podem abordar questões como racismo, relações de poder no Estado, ou grupos organizados na sociedade civil, entre outros - mas, não necessariamente discutir a representação de grupos em instituições políticas como problemática central. Portanto, esses textos foram classificados como “secundários” ou “ausentes”.

Nosso segundo passo de refinamento foi a seleção das publicações que de fato estavam dentro do campo da teoria política. Para isso, também nos baseamos nos resumos e os tipos de pesquisa - por exemplo, estudos comparativos são enquadrados como ciência política, não teoria. Nessa etapa, analisamos apenas as publicações em que a representação de grupos é central. Após a releitura dos resumos, obtivemos um total de 74 publicações dentro do campo da teoria política. Estudos pertencentes a economia, sociologia, entre outras áreas afins, foram enquadradas como “outros”, contabilizando 219 publicações Gráfico 1.

Gráfico 1
Textos utilizados na pesquisa

A próxima seção deste artigo compila os dados bibliométricos das publicações e todas as informações do nosso banco. Para essa análise, consideramos todas as publicações categorizadas como centrais, independente do campo de estudos e do tipo de publicação. Posteriormente, na última seção do artigo, realizamos uma análise interpretativa de alguns dos estudos selecionados para construir as principais linhagens argumentativas no campo da teoria política. Nessa última etapa realizamos um recorte mais específico englobando os 10 artigos científicos do campo da teoria política mais citados segundo o Google Scholar que tivessem a representação política de grupos como o problema central. Essa última fase do nosso estudo envolve a discussão propriamente dita sobre as justificativas utilizadas pelos autores para defender a representação política de determinados grupos. Nosso objetivo é sistematizar esse conhecimento em um quadro geral que pode vir a contribuir para futuras pesquisas na área.

III. Análise bibliométrica: quem são os(as) autores(as) e suas publicações?

Nossa pesquisa conta com dois grupos de variáveis: aquelas recuperadas diretamente do Publish or Perish e aquelas codificadas manualmente por nós. Nesta seção trabalhamos com o corpus do recorte 3, que congrega os 219 textos em que o tema da representação é tratado de modo central. Para essa primeira análise, serão considerados estudos empíricos e teóricos com o objetivo de fazer um panorama mais abrangente do campo. Aqui, iremos apresentar os seguintes dados: 1) obras mais citadas; 2) autores mais frequentes do nosso banco de dados; 3) perfil social dos autores; 4) temática de abordagem das publicações; 5) revistas mais frequentes.

Segundo Macias-Chapula (1998) a bibliometria é o estudo dos aspectos quantitativos da produção, bem como da disseminação e o uso da informação registrada. Esse método foi utilizado pela primeira vez por Pritchard (1969) por meio de padrões e modelos matemáticos que mediam esses processos. Atualmente, a bibliometria é aplicada em uma grande variedade de campos, desde a biblioteconomia até as próprias ciências sociais. Segundo a autora, este é um importante método para situar um corpo de produção científica sobre determinado assunto, ou em uma determinada região. Mediante indicadores específicos que identificam desde a participação de um determinado país na produção global da literatura científica, até o papel de uma instituição na produção de artigos, estes índices podem ajudar no estado atual da ciência como na tomada de decisões e gerenciamento de pesquisas.

Além disso, segundo Macias-Chapula (1998), a bibliometria engloba as seguintes análises: a) aspectos estatísticos da linguagem, como frequência de citação em frases; b) características da relação autor-produtividades por meio do número de artigos ou outros meios; c) características gerais das publicações, como distribuição em revistas; d) análise de citação: distribuição entre autores, artigos, instituições, etc.; e) uso da informação registrada, como circulação em bibliotecas entre outros; f) obsolescência da literatura, avaliada pelo uso e pela citação; g) crescimento de literatura especializadas e de novos conceitos; h) definição e medida da informação; i) tipos e características dos níveis de desempenho e recuperação. A bibliometria, portanto, é uma ferramenta que permite observar o estado da ciência e da tecnologia por meio da produção da literatura científica. O que fazemos em nosso estudo é nos apropriar dos métodos bibliométricos para ilustrar o estado da arte do nosso campo de estudos.

Na Tabela 2, é possível observar as 10 obras mais citadas, os respectivos autores4 e o índice h5 de cada um deles. O número de citações é recuperado pelo próprio PoP quando realizamos a coleta de dados. No entanto, para obter o índice h5 de cada autor, realizamos uma busca por nome para recuperar o histórico de publicações feitas por estes - automaticamente o PoP retorna o valor do índice h5 de cada autor. No caso dos autores que não possuem um perfil no GS, realizamos a busca geral a partir da plataforma do GS com o nome completo do autor como palavra-chave para acessar o corpo das publicações de cada um deles.

O índice h5 permite analisar a produtividade e impacto acadêmico de um autor e, por meio dos nossos dados, podemos destacar que os autores que possuem maior impacto na produção acadêmica são: Iris Young, Anne Phillips e Pamela Paxton. Apesar disso, as três primeiras obras mais citadas são as de Iris Young, Anne Phillips e Robert Darcy. O índice aponta que, por exemplo, se este é equivalente a 20, o respectivo autor publicou ao menos 20 publicações e que cada uma destas recebeu pelo menos 20 citações cada. O h-index, portanto, é capaz de combinar a quantidade e qualidade das publicações mediante análise do impacto dessas através do número de citações.

Por último, podemos observar que a maior parte das publicações mais citadas datam da primeira década dos anos 2000. Apenas Women, politics and power: a global perspective, de Pamela Paxton, data de período mais recente. Isso evidencia a consolidação de alguns clássicos no campo do final da década de 1990 e início dos anos 2000, bem como a preponderância desses nas discussões feitas por pesquisas na área.

Tabela 2
Autores mais citados e índice h5 do Google

No Gráfico 2, por outro lado, é possível observar os autores mais frequentes do nosso banco de dados; isto é, aqueles que possuem autoria da maior quantidade de publicações presentes em nosso banco. Nessa análise específica, levamos em consideração a coautoria para obter uma visão mais ampla da frequência em que esses autores participam de publicações na área. Estas autoras são: Mona Lena Krook, Sarah Childs, Jennifer Curtin, Karen Celis, Drude Dahlerup e Anne Phillips. Podemos destacar que Anne Phillips, Drude Dahlerup, Karen Celis e Sarah Childs estão entre as mais frequentes e estão no grupo das autoras com obras mais citadas em nosso banco de dados.

Gráfico 2
Autores(as) mais frequentes

Além disso, também rastreamos o perfil social dos autores5. Por meio do Gráfico 3, podemos perceber que a maior parte do nosso banco de dados é composto por autoras. As mulheres são autoras de 190 publicações, enquanto os homens são autores de 43 publicações. Autores de 63 publicações não foram identificados por ausência de fotos ou perfis acadêmicos em plataformas da web. Apesar do consenso de que os homens predominam na área das ciências sociais, no campo de estudos especificamente discutido nesta pesquisa há uma proeminência de autoras mulheres6. Outro dado importante é que, entre os autores com obras mais citadas, assim como aqueles mais frequentes no banco de dados, todos estão sediados em universidades localizadas no hemisfério norte7. Segundo nosso levantamento manual, por meio de dados disponíveis no GS, a maior parte desses autores nasceram e estão alocados em universidades no Estados Unidos da América.

Gráfico 3
Gênero dos(as) autores(as)

O Gráfico 4 mostra que a maior parte das publicações em nosso banco de dados abordam a questão de gênero, contabilizando 227 publicações (ou 76,7% do recorte), enquanto 42 publicações abordam tanto gênero quanto raça/etnia e apenas 27 publicações estão voltadas somente para a temática de raça/etnia, o que corresponde a 9,1% desse recorte. Nesse sentido, os estudos que têm a representação política de grupos como tema central se concentram sobremaneira nas discussões de gênero. A preponderância de estudos de gênero também pode se dever ao modo tardio como a questão racial foi suscitada como central para as regiões do norte global que preponderam na base. Com exceção talvez dos EUA, a politização social e acadêmica das desigualdades de gênero é muito mais antiga e intensa do que a politização do racismo e das desigualdades raciais. Outro fator que importa aqui é que muitos desses contextos não reconheciam a cidadania ou nacionalidade aos grupos racializados até bem recentemente.

Gráfico 4
Temática de abordagem das publicações

O Gráfico 5 ilustra que as revistas que concentram essa discussão são quatro: Politics & Gender, Representation, Perspectives on Politics, Parliamentary Affairs. Todas elas são de língua inglesa e estão dentro do campo dos estudos políticos, apesar da diversidade dos enfoques que vão desde gênero até estudos parlamentares. Além disso, a revista mais frequente, Politics & Gender, está consonante com os nossos dados sobre o enfoque temático dos estudos. A revista tem como objetivo publicar estudos na área de pesquisa de gênero e política, bem como sobre mulheres e política. Finalmente, todas as revistas são pertencentes ao hemisfério norte - especificamente à Inglaterra. Esses dados apontam para a proeminência da circulação de publicações acadêmicas no eixo norte e na língua inglesa.

Por meio dos dados aqui apresentados, futuros pesquisadores da área podem acessar prontamente um quadro geral do nosso campo de pesquisa. Além disso, nossos dados facilitam o acesso aos autores e obras clássicas da área e aos seus interlocutores, bem como às revistas mais importantes. Na próxima seção, discutimos as principais linhas argumentativas desses autores para justificar a representação política de grupos - dimensão também significativa para o desenvolvimento de pesquisas no campo.

Gráfico 5
Revistas mais frequentes

IV. Análise bibliográfica: quais são as justificativas utilizadas pelo(as) autores(as)?

Nesta seção dialogamos com um corpo de dez artigos de teoria política que estão entre os mais citados no campo da representação de grupos na política. A partir do PoP, hierarquizamos os artigos de acordo com as citações recebidas, tomando essa métrica como um proxy da importância deles para o debate em torno das justificativas para a representação de grupos. No entanto, removemos da lista quatro textos: Introduction: the descriptive and substantive representation of women: new directions, de Celis & Childs (2008); Perspectives against interests: sketch of a feminist political theory of “women”, de Weldon (2011); Beyond interests in politics: a comment on Virginia Sapiro's when are interests interesting? The problem of political representation of women, de Diamond & Harstock (1981); e Representation as advocacy: a study of democratic deliberation, de Urbinati (2000).

As três primeiras publicações são apenas comentários curtos sobre agendas de pesquisa que envolvem a representação política de grupos, mas não trazem reflexões próprias e originais sobre o tema. Uma vez que nosso objetivo nesta última etapa consiste em mapear as justificativas, a ausência de uma linha argumentativa nesse sentido por parte das autoras justifica a retirada de ambas as publicações da discussão. E, por último, também removemos o texto de Urbinati (2000) dado que a autora não elabora uma justificativa acerca da representação de grupos, mas se contrapõe a este por meio da ideia de advocacy8.

De modo geral, encontramos três linhas de argumentação centrais seguidas pelos autores: a) uma discussão acerca dos aspectos deliberativos da democracia; b) uma discussão acerca dos princípios de justiça que devem guiar as instituições; c) uma discussão em torno da distribuição do poder político. De forma a organizar nossa linha de raciocínio, propomos a escrita desta seção agrupando os textos a partir desses três tópicos de reflexão em que os nossos autores estão circunscritos.

IV.1. Deliberação e democracia

Na primeira parte da nossa discussão abordamos os autores que discutem a representação política de grupos a partir do marco da democracia deliberativa. Essas autoras partem do princípio de que a deliberação é um componente essencial da democracia que serve de justificativa para a representação política de grupos. Um ponto importante é que os autores pensam a representação a partir de uma problemática maior que guia toda a discussão, a deliberação. Aqui se encontram nomes como Robert Goodin, Judith Squires e Pablo de Greiff. Esta linha de argumentação é a mais proeminente da lista.

Goodin (2004) considera a diversidade de grupos na representação um elemento definidor da qualidade das deliberações políticas e, portanto, da qualidade da democracia em si. Segundo ele, a casa dos representantes não é numerosa o suficiente para receber todos os tipos de cidadãos e combinar todos os interesses e sentimentos de uma comunidade política. Para Goodin (2004), o problema dos modelos de “espelho” da representação, aqueles que defendem que o corpo representativo reflita a composição populacional, é uma questão numérica: existem muitos grupos na sociedade e as Assembleias Políticas não são capazes de abranger todos. Porém, a demanda por presença está ligada à necessidade de lembrar à Assembleia sobre a diversidade existente na comunidade, tanto demograficamente quanto simbolicamente. Para o autor, a importância das políticas de presença reside no fato de que os grupos podem trazer algo distintivo para a deliberação. Mas, existe uma diferença entre representar as “particularidades” da diversidade, e evidenciar o “simples fato de que há diversidade”9 por meio da representação. Segundo o autor, a política da presença foca na primeira ao tentar tornar as particularidades dos grupos presentes na Assembleia. Para ele, no entanto, deve existir uma certa garantia da representação destes não de modo a tornar todas as suas particularidades presentes, mas para evidenciar o “simples fato de que há diversidade”.

Na sua perspectiva, a diversidade deve ser reduzida às questões mais fundamentais porque, de outro modo, seria impossível a presença física de todos na Assembleia. Quando a diversidade e a demanda por presença são muito grandes, a Assembleia deixa de ser deliberativa. Isso porque teríamos uma espécie de democracia direta em que todos estariam fisicamente presentes tomando decisões, quase como um referendo. Portanto, um critério fundamental é que os grupos que podem demandar presença são aqueles que possuem um histórico de opressão. Goodin (2004), no final das contas, defende a representação política de grupos porque a presença faria diferença no processo deliberativo. Ainda que não seja possível representar toda diversidade dos grupos historicamente oprimidos, a presença de alguns contribui como um lembrete aos legisladores de que a diversidade é um fato, informando os processos de tomada de decisão.

Outro autor que se alinha a essa discussão é De Greiff (2000). Diferente de Goodin (2004), que busca equacionar quantidade e diversidade, De Greiff (2000) quer equacionar os princípios deliberativos da democracia com a representação de grupos. O autor parte de uma crítica ao liberalismo em sua face agregativa e majoritária. Apesar da democracia liberal estar comprometida com o direito igual de voto, membros de grupos minoritários ainda se encontrariam em desvantagem numérica no processo de escolha de representantes. Devido à legitimidade política derivar de decisões majoritárias, estes grupos também ficariam impossibilitados de contestar o resultado das decisões. Segundo De Greiff (2000), a distinção entre o liberalismo agregativo e a democracia deliberativa se dá por meio de como a legitimidade é alcançada: no primeiro, essa é conquistada por meio do equilíbrio dos interesses, enquanto, no segundo, ela depende da aceitabilidade por parte de todos que são afetados pelas decisões.

Segundo De Greiff (2000), a democracia deliberativa é comprometida com um processo argumentativo, inclusivo e público, livre de coerção interna e externa, capaz de alcançar acordos motivados racionalmente em que os interesses são equalizados e abertos a mudança, dado que há uma compreensão geral das necessidades e quereres dos cidadãos. Para ele, a democracia deliberativa é capaz de comportar uma visão transformadora da deliberação e comprometida com o justo. Uma vez que a legitimidade da lei reside na aceitabilidade racional de todos que são afetados por ela, e que grupos oprimidos tendem a ser desproporcionalmente afetados e, ao mesmo tempo, a possuírem pouca voz política, as políticas de presença seriam vitais para a produção racional e argumentativa de legitimidade democrática. Um ponto levantado pelo autor para sustentar sua tese é o argumento em prol de uma comunicação diversa feito por Iris Marion Young. Para esta autora, também situada na perspectiva deliberativista, seria necessário a presença dos grupos para que haja um diálogo real, dado que a legitimidade se baseia na aceitabilidade discursiva. A base desse argumento parte da própria premissa habermasiana: para saber se uma norma é universalizável se deve assegurar sua universalidade em um diálogo aberto e livre com diferentes. A proposta apresentada, então, é que a comunicação na esfera pública seja mais diversa e inclusiva para que o processo deliberativo se aproxime de seu ideal racional e universal, produzindo mais legitimidade - para isso, determinados grupos se tornam aptos para uma representação especial, dado que, de outra forma, eles seriam excluídos desse processo.

Squires (2001), por seu turno, articula sua justificativa para a representação de grupos em diálogo com três grandes linhas argumentativas das teorias feministas: a) a perspectiva da igualdade; b) a perspectiva da diferença; c) a perspectiva da diversidade. Segundo ela, a primeira perspectiva investe na estratégia da inclusão porque a diferença de gênero seria compreendida como um marcador de inferioridade, o que tornaria necessária a inclusão das mulheres na política para que essa fosse mais igualitária. A segunda perspectiva, ao contrário, celebra a diferença e foca em uma estratégia de inversão: ao invés de produzir desigualdade e opressão, a diferença deveria ser positivada e celebrada. Enquanto a primeira perspectiva encara a desigualdade entre homens e mulheres como uma distorção do ideal de imparcialidade, a segunda defende que a imparcialidade é um ideal inalcançável. Por último, a perspectiva da diversidade10, aquela que a autora extrai da obra de Iris Marion Young, funciona como via intermediária entre as duas primeiras. Na perspectiva da diversidade, o foco não é a valorização da diferença em si, mas a melhora da comunicação democrática, de modo que as instituições estatais se conectem com os grupos sociais no processo de tomada de decisão. O importante é destacar, segundo Squires (2001), que os grupos sociais não podem ser vistos como grupos de interesse porque isso implica em uma unicidade do desejo, das opiniões e dos objetivos. Os grupos, nessa leitura, são fluídos e contingentes, até porque a própria presença destes nas instituições implica em participação do debate público e não a perseguição de interesses próprios. Como Squires (2001) aponta, Young está mais próxima das teorias da deliberação haja vista sua atenção a como os grupos sociais podem participar do processo deliberativo de modo a melhorá-lo. Apesar de Squires (2001) não expressar um posicionamento próprio em seu texto sobre o tema, a autora dá fortes indícios de que ratificaria essa leitura deliberacionista do argumento de Young

De modo geral, os três autores aqui discutidos justificam a representação política de grupos por meio da premissa de que essa é capaz de qualificar e melhorar o processo deliberativo, seja porque este redundaria em decisões superiores, seja porque essas decisões se tornariam mais legítimas quando tomadas em diálogo com as minorias. Nesse sentido, os resultados da deliberação são mais frutíferos e adequados para a sociedade porque são mais plurais e diversos. é importante ressaltar como Iris Marion Young permeia a discussão mesmo não estando presente em nossa lista. Ela guia uma série de reflexões na área - o que afirma seu lugar de clássico no campo de estudos.

IV.2. Justiça e representação

O segundo grupo é representado pelo trabalho de Melissa Williams, Justice toward groups: political not juridical, apesar de contribuições de Pablo de Greiff, Judith Squires e de Laurel Weldon também poderem ser acionadas. Apesar de apenas uma autora compor esta linha argumentativa, ela é bastante relevante devido à complexidade de seu argumento. Ressalta-se que a perspectiva anterior, da deliberação, e a da justiça e deliberação possuem uma preocupação de fundo com a justiça. Mas, enquanto a primeira está preocupada com o processo deliberativo e seus resultados em termos de qualidade e legitimidade democrática, a segunda se preocupa com a justiça como reflexão primária, que precede qualquer outra questão.

Segundo Williams (1995), o principal problema enfrentado pela demanda por representação de grupos está na difícil conciliação entre o princípio da igualdade política e o respeito às diferenças culturais. Direitos iguais e igual respeito não poderiam mais resultar de direitos uniformes para todos. Portanto, para que haja igualdade, torna-se necessário reconhecer as diferenças. Essa linha de raciocínio, como aponta a autora, desafia a perspectiva liberal mais tradicional, que trata igualdade como uma espécie de “cegueira” sobre as diferenças. Isto, porque a ideia de justiça “cega” falha ao tratar membros de grupos marginalizados como iguais, pois ainda assim eles permanecem em posições de desvantagem na sociedade. Porém, o que a autora questiona é como devemos perseguir o objetivo de definir as obrigações de justiça da comunidade política com membros de grupos marginalizados? Para ela, existem dois modelos de justiça o primeiro é o modelo jurídico e o segundo é o modelo político. Enquanto a autora é crítica ao primeiro, é no segundo modelo que encontramos a resposta para a sua pergunta.

Antes de adentrar na sua proposta, Williams (1995) tece uma crítica ao modelo jurídico, que aceita o ideal de imparcialidade liberal. Nessa perspectiva, a justiça deve ser definida a partir de um critério racionalista que se distancia dos interesses particularistas. Nesse caso, a justiça deveria ser anterior à política, sendo definida mediante um processo de abstração das normas que servem como guia dos agentes. A vantagem desse modelo é o “governo impessoal das leis”, que seria capaz de proteger os interesses e a liberdade dos cidadãos. Portanto, ao retirar os direitos básicos de liberdade do jogo político, garante-se que esses não estejam sujeitos às imperfeições da esfera política. A referência de Williams aqui é o procedimentalismo ralwsiano. Entretanto, definir a justiça de modo procedimental não garante que ela será automaticamente adotada pelos agentes no processo político, o que coloca desafios ao procedimentalismo.

A autora defende um modelo político que rejeita a ideia de que a justiça pode ser definida anteriormente à política: os padrões de justiça só podem evitar reproduzir desigualdades se definidos no processo político, o que garante a oportunidade dos grupos marginalizados de expressar suas perspectivas. Embora esse argumento seja muito próximo daquele dos deliberacionistas, não se trata de garantir a representação de grupos para produzir mais democracia somente, mas sim para produzir mais justiça. A autora recorre, assim como outros autores que discutimos aqui, à teoria elaborada por Young. Williams (2019) discorre sobre o problema da “impossibilidade da imparcialidade” apontada por Young, em que a ideia de posição original - conceituada por John Rawls - seria uma busca por reduzir todas as perspectivas sociais a apenas um ponto de vista. Portanto, mesmo que haja definição de um procedimento a partir de um método racional, esse é intrinsecamente falho, pois apolítico e abstrato. Nesse sentido, Williams (1995) defende que a única forma de evitar o problema da imparcialidade é introduzindo diretamente a perspectiva dos grupos marginalizados em contextos institucionais nos quais concepções de justiça são definidos, aplicados e reforçados. O conteúdo da justiça deve passar pelo crivo de grupos historicamente marginalizados mediante um processo de argumentação político e filosófico.

IV.3. Poder político e representação

Por último, incorporamos as publicações que têm como justificativa central para a representação de grupos a distribuição do poder político. Suzanne Dovi se distingue das últimas publicações por não pensar necessariamente a questão como forma de promover justiça, deliberação ou sobre os resultados das tomadas de decisão. Seu argumento questiona como o poder político pode ser distribuído e em como esse é concentrado nas mãos de determinados grupos. A autora possui uma proposta distinta porque não pensa apenas em termos de inclusão de grupos marginalizados, mas também em como as instituições representativas podem reproduzir o status quo e manter a dominação. Essa é uma discussão que pensa primariamente em termos de poder: quem o detém e como podemos distribuí-lo de outra forma.

Em Theorizing women's representation in the United States, Dovi (2007) redige uma crítica à democracia representativa. Para ela, as instituições podem funcionar como um mecanismo de opressão e reprodução do status quo. Segundo ela, mais representação descritiva não significa uma maior democratização das instituições, e não necessariamente se desdobra em uma representação substantiva dos interesses das mulheres. A inclusão das mulheres pode gerar uma tokenização, isto é, a inclusão pontual e sem grandes efeitos políticos. Ademais, ela concorda ser difícil determinar o que são os interesses das mulheres devido a pluralidade interna ao grupo. Isso tudo não exclui que a representação política é o mecanismo pelo qual o poder político é distribuído. Portanto, a autora irá se debruçar numa reflexão que envolve tanto inclusão de grupos sub-representados, quanto a exclusão de grupos super-representados.

Para Dovi (2007), é necessário observar o contexto e o legado histórico das instituições representativas porque determinadas normas e práticas podem constranger as escolhas e as ações das mulheres. Portanto, uma maior inclusão política não necessariamente significa progresso democrático - porque as instituições representativas distribuem privilégios. Uma questão que parece permear a discussão da autora é como as mulheres podem efetivamente sancionar suas representantes e como estas podem participar de fato das tomadas de decisão. Isto perpassa uma reflexão sobre a distribuição do poder político, algo que a autora irá se debruçar de modo mais profundo em seu outro texto, In praise of exclusion (Dovi, 2009). Nesse artigo, ela investe em um argumento bastante audacioso ao advogar pela exclusão de grupos super-representados. Como há uma preocupação de fundo com o poder político, a inclusão não é suficiente porque não significa uma maior distribuição do poder - o que nos leva a necessidade de diminuir e constranger grupos que o monopolizam.

Segundo Dovi (2009), muitos teóricos enxergam a questão da representação descritiva primordialmente a partir de uma perspectiva da inclusão: o foco reside em adicionar diferentes interesses, opiniões e perspectivas na arena política. O argumento fundamental da autora é que, além da inclusão, faz-se necessário uma perspectiva da exclusão: “Dentro do quadro de um regime igual de direitos formais, como devem os cidadãos democráticos limitar a influência de certos cidadãos e seus representantes?” (Dovi, 2009, p. 1172). O lócus da sua reflexão está em como limitar o poder de grupos privilegiados e super-representados nas instituições democráticas - algo que melhoraria até mesmo o funcionamento dessas. A sua proposta é especialmente desafiadora:

Na minha opinião, as exclusões políticas erguem barreiras para a participação de modo a limitar ou mesmo negar o acesso político e influência nas instituições democráticas. Por que a exclusão política pode ser usada para alcançar os mesmos objetivos que, por exemplo, a inclusão geralmente alcança, como igualdade e redução da opressão. Os teóricos da democracia precisam teorizar, e não simplesmente denunciar, exclusão. Eles precisam descobrir em que circunstâncias a exclusão de posições é justificável, desejável e moralmente necessária para o bom funcionamento das instituições democráticas (Dovi, 2009, p. 1173, tradução nossa).

Nesse sentido, a exclusão é importante porque regula o poder de grupos privilegiados e torna as instituições mais democráticas. Para ela, a exclusão é um processo que está dado nas democracias de modo informal, o que a autora propõe é uma inversão da lógica da informalidade, para que seja deliberadamente pensada e voltada para aqueles que se beneficiam da opressão. Dado isso, a autora conceitua uma “ética da marginalização” para normatizar o significado e o ordenamento da exclusão - comumente tida como antidemocrática. Entretanto, toda política de inclusão implica uma exclusão, como a eleição de mais representantes de um determinado grupo pode diminuir a quantidade de cadeiras de outro grupo. O problema é que nem sempre são os grupos privilegiados que são penalizados: a inclusão dá conta apenas da necessidade de trazer grupos marginalizados para dentro das instituições, mas não coloca em questão as discrepâncias de poder. A proposta da autora é uma discussão explícita sobre a exclusão de modo que essa possa beneficiar as instituições democráticas, promovendo igualdade e justiça.

O critério para a exclusão de determinados grupos reside no “princípio da opressão”, em que as democracias devem marginalizar aqueles que oprimem ou se beneficiam da opressão. é importante destacar que o silenciamento é direcionado para determinados grupos como o Ku Klux Klan. Entretanto, seu argumento pode ser um tanto escorregadio porque em certos momentos ela destaca a influência exacerbada de grupos super-representados e, em outros, afirma que o princípio da opressão deve mirar formas que violam a igualdade política e enfraquecem a legitimidade das instituições democráticas. A questão é: os grupos super-representados sempre minam a igualdade política? é possível reduzi-los a exemplos mais extremos como grupos de supremacia racial, entre outros? E, em termos práticos, como operar uma ética da marginalização?

O texto de Dovi (2009) traz certo tom de intencionalidade, como se alguns grupos buscassem deliberadamente a dominação, algo difícil de ser apontado em sociedades complexas. Além disso, reduzir o processo de representação apenas à questão de quem tem acesso ao poder ou não desconsidera outras dimensões como o processo de autorização pelo eleitorado: devemos marginalizar aqueles que foram autorizados eleitoralmente para tomar decisões? Quais são os juízes dessa decisão e onde ela deve ser tomada? Portanto, incorporar sua ética ao desenho institucional seria um desafio, dado que uma série de normas e acordos atravessam o processo representativo. Talvez, aqui, pensando em termos de grupos que sustentam ideais opressoras e até mesmo antidemocráticas, caberia melhor a discussão sobre justiça, em que esta deve ser definida previamente ao processo político para que os resultados das decisões não sejam antidemocráticos. Isto é, determinados princípios não podem ficar sobre o arbítrio dos agrupamentos políticos porque, nem sempre, estes visam proteger e garantir os direitos e liberdades básicas.

V. Conclusão

A sub-representação de grupos oprimidos na política formal é um fenômeno comum a muitas democracias e um desafio constante à teoria política. Embora essa exclusão possa parecer uma disfuncionalidade evidente das democracias representativas, não há nada nas teorias políticas mais clássicas que justifiquem políticas de presença específicas. Por isso, a justificação dessas medidas coloca um desafio teórico à filosofia política com consequências práticas bastante palpáveis. Não se trata apenas de especular justificativas aleatoriamente, mas de buscar argumentos que mensurem a urgência e centralidade de políticas de presença e ponderem os melhores mecanismos institucionais para realizá-las.

Para reorientar esse debate, esta revisão bibliográfica buscou levantar e analisar as referências mais citadas hoje no debate da teoria política acerca das justificativas para a representação especial de grupos na política. Mais do que identificar essas referências, buscamos contextualizá-las no debate mais amplo e, sobretudo, identificar as principais famílias argumentativas que essa constelação de autoras e autores conforma. Identificamos três linhas argumentativas gerais presentes nessas obras: a) da deliberação; b) da justiça; c) do poder político. Na primeira, a representação política de grupos é justificável porque melhora os resultados do processo deliberativo, diversificando aqueles que participam do debate e das decisões políticas. Na segunda, ela se justifica porque torna os princípios de justiça mais adequados às demandas dos grupos marginalizados. E, na terceira, porque é capaz de redistribuir o poder político entre os grupos de modo a corrigir as opressões produzidas pela democracia representativa. Essas perspectivas se entrelaçam e podem ser complementares; também são maneiras específicas de olhar para um mesmo problema.

Mapear novos argumentos em um campo de debate acadêmico tão consolidado envolve desafios de peso. Para controlá-los, tentamos compatibilizar duas estratégias metodológicas distintas. Primeiro, operamos uma revisão de escopo capaz de sistematizar as referências mais citadas nesse debate teórico. Embora essa revisão já funcionasse como guia de leitura para as interessadas e interessados no tema, buscamos complementar o caráter necessariamente panorâmico desse tipo de estratégia bibliográfica com uma leitura mais profunda dos textos. Logo, a segunda metade do artigo se dedica a resenhar famílias de justificativas identificadas nos textos compilados. Apesar de reproduzirem em grande medida as linhas argumentativas gerais presentes no trabalho clássicos de Young, Phillips, Mansbridge etc., os artigos compilados desafiam as justificativas anteriores, tensionando as teorias e fazendo avançar o debate.

Buscamos compreender aqui de modo mais profundo e sistemático como se constroem as argumentações acerca da representação política de grupos e as premissas teóricas que estão implícitas na discussão dos autores do campo. Como foi demonstrado, há um universo de publicações sobre o nosso objeto, que também se consolidou como um importante campo de estudos nos últimos anos. A justificativa, portanto, é um aspecto importante a ser conhecido e investigado, porque ela movimenta consensos sobre um fenômeno e sustenta a necessidade de que ele seja discutido e, até mesmo implementado de modo prático nas instituições.

  • 1
    Agradecemos aos comentários e sugestões dos pareceristas anônimos da Revista de Sociologia e Política, bem como a toda sua equipe editorial pelo excelente trabalho.
  • 2
    Categorizamos seu gênero, raça e idioma das publicações. Para gênero e raça, utilizamos fotos disponíveis no Google Profile e no Google Imagens. Especificamente na classificação de gênero, a análise do nome do(a) autor(a) também foi utilizada.
  • 3
    Segundo Williams (2000), a memória de discriminação e os padrões contínuos de desigualdades vivenciados por esses grupos são fortes justificativas para suas reivindicações por autorrepresentação. Para a autora, dois critérios fundamentais caracterizam “reivindicações fortes” de grupos marginalizados: 1) histórico de opressão/exclusão promovido por agentes institucionais e estatais; 2) padrões de desigualdade estruturantes ao longo do tempo. Isso torna as mulheres e afro-americanos casos emblemáticos.
  • 4
    Consideramos apenas o primeiro autor em casos de obras em coautoria.
  • 5
    Realizamos uma heteroclassificação do gênero dos autores, atribuindo-o com base em buscas no Google Images e Google Scholar Profiles. Para categorização, utilizamos três critérios: 1. pronomes usados pelo autor ou primeiro autor; 2. gênero usualmente associado ao nome em seu idioma; 3. análise de fotos e fenótipo.
  • 6
    Através de uma triagem da identidade racial dos(as) autores(as) por meio da heteroclassificação notamos que a maioria das autoras são mulheres brancas residentes do hemisfério norte.
  • 7
    Para mais, ver a dissertação de Hirschle (2020).
  • 8
    Para uma discussão detalhada da autora, ver Hirschle (2021).
  • 9
    No original, Represent the sheer fact of diversity (Goodin, 2004).
  • 10
    Embora Squires (2001) categorize Young como pertencente a uma “perspectiva da diversidade”, Young frequentemente se distanciava de argumentos que defendem a representação política baseada em diversidade, diferença ou identidade (ver Inclusion and democracy, 2000). Por exemplo, quando Young cita De Greiff (2000) dizendo que “Os grupos não merecem representação especial em corpos de tomada de decisão inclusivos apenas para que possam expressar sua cultura na discussão pública ou serem reconhecidos por sua distinção” (2000, p. 157, tradução nossa).

Referências

  • Celis, K. & Childs, S. (2008) The descriptive and substantive representation of women. New directions: introduction. Parliamentary Affairs, 61(3), pp. 419-425. DOI
    » DOI
  • Celis, K., Childs, S., Kantola, J. & Krook, M.L. (2008) Rethinking women's substantive representation. Representation, 44(2), pp. 99-110. DOI
    » DOI
  • Childs, S. & Krook, M.L. (2009) Analysing women's substantive representation: from critical mass to critical actors. Government and Opposition, 44(2), pp. 125-145. DOI
    » DOI
  • Dacombe, R. (2017) Systematic reviews in political science: what can the approach contribute to political research? Political Studies, 16(2), pp. 148-157. DOI
    » DOI
  • Dahlerup, D. (2013) Women, quotas and politics Oxford: Routledge.
  • Darcy, R. (1994) Women, elections, and representation Lincoln: University of Nebraska Press.
  • De Greiff, P. (2000) Deliberative democracy and group representation. Social Theory and Practice, 26(3), pp. 397-415.
  • Diamond, I. & Hartstock, N. (1981) Beyond interests in politics: a comment on Virginia Sapiro's “when are interests interesting? The problem of political representation of women”. American Political Science Review, 75(3), pp. 717-721. DOI
    » DOI
  • Dovi, S. (2007) Theorizing women's representation in the United States. Politics & Gender, 3(3), pp. 297-319. DOI
    » DOI
  • Dovi, S. (2009) In praise of exclusion. The Journal of Politics, 71(3), pp. 1172-1186. DOI
    » DOI
  • Ferrari, R. (2015) Writing narrative style literature reviews. Medical Writing, 24(4), pp. 230-235. DOI
    » DOI
  • Goodin, R.E. (2004) Representing diversity. British Journal of Political Science, 34(3), pp. 453-468. DOI
    » DOI
  • Hirschle, J.T. (2021) Por que grupos merecem mais espaço na representação política? Uma revisão sistemática da bibliografia recente Dissertação de Mestrado. Rio de Janeiro: Instituto de Estudos Sociais e Políticos.
  • Lovenduski, J. (2005) Feminizing politics Cambridge: Polity.
  • Macias-Chapula, C.A. (1998) O papel da informetria e da cienciometria e sua perspectiva nacional e internacional. Ciência Da Informação, 27(2), pp. 134-140. DOI
    » DOI
  • Manin, B. (1997) The principles of representative government Cambridge: Cambridge University Press.
  • Mansbridge, J. (1999) Should blacks represent blacks and women represent women? A contingent “Yes”. The Journal of Politics, 61(3), pp. 628-657. DOI
    » DOI
  • Martín-Martín, A., Orduna-Malea, E., Thelwall, M. & López-Cózar E.D. (2018) Google Scholar, Web of Science, and Scopus: a systematic comparison of citations in 252 subject categories. Journal of Informetrics, 12(4), p. 1160-1177. DOI
    » DOI
  • Paxton, P., Hughes, M.M. & Barnes, T.D. (2020) Women, politics, and power: a global perspective Lanham: Rowman & Littlefield Publishers.
  • Phillips, A. (1998) The politics of presence Oxford: OUP Oxford.
  • Pitkin, H.F. (1985) El concepto de representácion Madrid: Centro de Estudos Constitucionales.
  • Pitkin, H.F. (2006) Representação: palavras, instituições e idéias. Lua Nova, (67), pp. 15-47. DOI
    » DOI
  • Pritchard, A. (1969) Statistical bibliography or bibliometrics? Journal of Documentation, 25, pp. 348-9.
  • Squires, J. (2001) Representing groups, deconstructing identities. Feminist Theory, 1(2), pp. 7-27.
  • Squires, J. (2007) The new politics of gender equality Londres: Pargrave Macmillan.
  • Urbinati, N. (2000) Representation as advocacy: a study of democratic deliberation. Political Theory, 28(6), pp. 758-786. DOI
    » DOI
  • Weldon, L. (2011) Perspectives against interests: sketch of a feminist political theory of “women”. Politics & Gender, 7(3), pp. 441-446. DOI
    » DOI
  • Williams, M.S. (1995) Justice toward groups: political not juridical. Political Theory, 23(1), pp. 67-91. DOI
    » DOI
  • Williams, M.S. (2000) Voice, trust, and memory: marginalized groups and the failings of liberal representation Princeton: Princeton University Press.
  • Young, I.M. (2000) Inclusion and democracy Nova Iorque: Oxford University Press.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    03 Mar 2025
  • Data do Fascículo
    2025

Histórico

  • Recebido
    14 Maio 2024
  • Revisado
    16 Ago 2024
  • Aceito
    21 Ago 2024
location_on
Universidade Federal do Paraná Rua General Carneiro, 460 - sala 904, 80060-150 Curitiba PR - Brasil, Tel./Fax: (55 41) 3360-5320 - Curitiba - PR - Brazil
E-mail: editoriarsp@gmail.com
rss_feed Acompanhe os números deste periódico no seu leitor de RSS
Reportar erro