Acessibilidade / Reportar erro

Quem é o soberano?: Sobre um conceito-chave na discussão sobre o estado

Who is the sovereign?: On a key concept of state discussion

Resumos

O presente artigo apresenta uma discussão teórica sobre o conceito de soberania, considerando vários aspectos. Inicialmente, discutem-se dois tipos básicos de soberania (a interna e a externa) e, em seguida, abordam-se os fundamentos da discussão sobre a soberania. Além de sua força de ação voltada para o âmbito doméstico, a soberania diz respeito também à relação com outros estados. Para tratar do âmbito externo, é utilizado o sistema estatal de Vestfália como exemplo. No que se refere ao âmbito doméstico, em decorrência da Revolução Francesa, a soberania original do príncipe transforma-se, em um primeiro passo, na soberania da nação e, finalmente, na soberania do povo. Com respeito à fundamentação e à execução da soberania, distinguem-se três formas delas: a parlamentar, a constitucional e a soberania (direta) do povo. Na sequencia, são apresentadas algumas críticas feitas ao conceito e à prática da soberania, para concluir com uma rápida discussão sobre a seguinte questão: se uma potência média como a Alemanha ou se um país periférico como o Brasil é capaz de conquistar ou preservar a sua própria soberania.

soberania; decisão; soberania externa; soberania interna; soberania parlamentar; soberania constitucional; soberania popular direta; potências nucleares


This article is concerned with a theoretical discussion on the concept of sovereignty, considering its many aspects. First of all, two kinds of sovereignty are discussed - the internal and the external ones - ; secondly, the article deals with the foundations of the very discussion on sovereignty. Beyond its relation with the domestic affairs, sovereignty also concerns the relations one state maintains with other states. To deal with the external sovereignty, the state system of Westphalia is taken as an example. Considering the domestic side, due to the French Revolution, the original sovereignty of princes has become, in a first step, in the sovereignty of the nation and, finally, in the sovereignty of the people. Considering the foundations and the means of execution of the sovereignty, three forms are distinguished: the parliamentary, the constitutional and the direct popular sovereignty. In the sequence, some criticisms made to the concept and the practice of sovereignty are presented. The article concludes with a rapid discussion on this question: if a middle power (like Germany) or a peripheral country (like Brazil) is able to conquer or to preserve it own sovereignty.

sovereignty; decision; external sovereignty; internal sovereignty; parliamentary sovereignty; constitutional sovereignty; direct popular sovereignty; nuclear powers


ARTIGOS

Quem é o soberano? Sobre um conceito-chave na discussão sobre o estado1 1 O presente artigo é a versão escrita da palestra "Wer ist der Souverän? Zu einem Schlüsselbegriff der Staatsdiskussion", realizada em 12 de setembro de 2012, durante o II Colóquio Internacional e IV Simpósio de Teoria Política do Instituto de Filosofia e Ciências Sociais da Universidade Federal do Rio de Janeiro (IFCS-UFRJ). Agradecemos ao autor a autorização para publicar a presente tradução, bem como a Pedro Hermílio Villas Bôas Castelo Branco pela proposta de publicação e pela subsequente intermediação entre o autor e a Revista de Sociologia e Política. Tradução de Markus Hediger; revisão da tradução de Pedro Hermílio Villas Bôas Castelo Branco, Ezequiel Martins Paz e Gustavo Biscaia de Lacerda.

Who is the sovereign? On a key concept of state discussion

Rüdiger Voigt

Doutor em Direito Público da Universidade de Kiel (Alemanha) e Professor Emérito da Universidade das Forças Armadas de Munique (Alemanha) (dr.ruediger.voigt@googlemail.com)

RESUMO

O presente artigo apresenta uma discussão teórica sobre o conceito de soberania, considerando vários aspectos. Inicialmente, discutem-se dois tipos básicos de soberania (a interna e a externa) e, em seguida, abordam-se os fundamentos da discussão sobre a soberania. Além de sua força de ação voltada para o âmbito doméstico, a soberania diz respeito também à relação com outros estados. Para tratar do âmbito externo, é utilizado o sistema estatal de Vestfália como exemplo. No que se refere ao âmbito doméstico, em decorrência da Revolução Francesa, a soberania original do príncipe transforma-se, em um primeiro passo, na soberania da nação e, finalmente, na soberania do povo. Com respeito à fundamentação e à execução da soberania, distinguem-se três formas delas: a parlamentar, a constitucional e a soberania (direta) do povo. Na sequencia, são apresentadas algumas críticas feitas ao conceito e à prática da soberania, para concluir com uma rápida discussão sobre a seguinte questão: se uma potência média como a Alemanha ou se um país periférico como o Brasil é capaz de conquistar ou preservar a sua própria soberania.

Palavras-chave: soberania; decisão; soberania externa; soberania interna; soberania parlamentar; soberania constitucional; soberania popular direta; potências nucleares.

ABSTRACT

This article is concerned with a theoretical discussion on the concept of sovereignty, considering its many aspects. First of all, two kinds of sovereignty are discussed - the internal and the external ones - ; secondly, the article deals with the foundations of the very discussion on sovereignty. Beyond its relation with the domestic affairs, sovereignty also concerns the relations one state maintains with other states. To deal with the external sovereignty, the state system of Westphalia is taken as an example. Considering the domestic side, due to the French Revolution, the original sovereignty of princes has become, in a first step, in the sovereignty of the nation and, finally, in the sovereignty of the people. Considering the foundations and the means of execution of the sovereignty, three forms are distinguished: the parliamentary, the constitutional and the direct popular sovereignty. In the sequence, some criticisms made to the concept and the practice of sovereignty are presented. The article concludes with a rapid discussion on this question: if a middle power (like Germany) or a peripheral country (like Brazil) is able to conquer or to preserve it own sovereignty.

Keywords: sovereignty; decision; external sovereignty; internal sovereignty; parliamentary sovereignty; constitutional sovereignty; direct popular sovereignty; nuclear powers.

I. INTRODUÇÃO

"Soberano é aquele que decide sobre o estado de exceção". Com essa "fórmula mágica", Carl Schmitt, o mais importante e, ao mesmo tempo, mais controverso teórico da soberania do século XX, disse o essencial (SCHMITT, 1922, p. 13). Com tal afirmação , não se refere apenas ao lado estatal-legal da soberania, mas alude também ao aspecto político-constitucional da decisão capaz de suspender a lei - parcial e temporariamente - em caso extremo de emergência estatal. Pois enquanto o Estado encontra-se em situação normal, a soberania dorme, por assim dizer, o sono da "Bela Adormecida". Apenas com o surgimento de uma situação de mudança radical, a "Bela Adormecida" é bruscamente despertada pelo "beijo" da crise. E é nessa crise que nos encontramos atualmente na Europa. Justamente essa crise esclarece-nos o quão importante é a soberania ilimitada para um Estado.

A soberania é, por assim dizer, o "coração" do Estado e para de bater se o Estado é privado do direito à última decisão - e a soberania não significa nada diferente disso. Isso pode acontecer - involuntariamente - no decurso de uma guerra, pela ocupação do próprio território pelo exército inimigo e pela instalação de um regime de ocupação. Na guerra civil, a perda da soberania ocorre com frequência quando poderes de fora intervêm. Mas isso pode ocorrer também - voluntariamente - por meio da renúncia contratual à soberania e de sua transferência para outro Estado (transformando-se assim em seu protetorado) ou para uma forma de organização "superior" (tornando-se, por exemplo, membro de um Estado federativo) ou, ainda, para uma organização supranacional (a União Europeia por exemplo). O que sobra do "Estado" é então, no máximo, uma unidade administrativa. Como Estado, porém, ele é apenas uma embalagem vazia; suas ações parecem as convulsões de um zumbi, de um morto-vivo.

II. O DIREITO DA DECISÃO ÚLTIMA

A soberania significa o direito do Estado à decisão última, tanto com referência a questões internas quanto externas. Trata-se, portanto, de um conceito duplo de soberania como fator da ordem tanto intraestatal quanto interestatal. Soberano é somente aquele que sozinho e em última instância válida decide sobre o bem e o mal de seus cidadãos e cidadãs. A ele pertencem as decisões sobre moeda e impostos, sobre adesão ou abandono de alianças, sobre o poderio e o arsenal das próprias Forças Armadas, sobre o estacionamento de tropas estrangeiras em seu próprio território e, finalmente, sobre guerra e paz. Carl Schmitt expressou isso conceitualmente da seguinte forma: "Se ele (o povo) deixar-se ditar por um estrangeiro sobre quem deve ser seu inimigo e contra quem é lhe permitido ou não lutar, então ele não é mais um povo politicamente livre e encontra-se integrado ou subordinado a outro sistema político" (SCHMITT, 1922, p. 50).

No caso da soberania trata-se da unidade do poder estatal que, no século XVII, manifestou-se visivelmente na pessoa do monarca (por exemplo, do "Rei-Sol" Luís XIV). Ao mesmo tempo, trata-se também do conteúdo do Estado e da relação entre Estado e Direito. Isso diz respeito especialmente à relação entre o Estado e seus cidadãos e cidadãs. A todas as concepções de soberania subjaz uma imagem bem específica - seja ela positiva, seja ela negativa - do ser humano. Trata-se nesses casos de pessoas, procedimentos e instituições, mas também de simbolismos, de materializações e mesmo de emoções. A discussão sobre a soberania atua nesse contexto como um tipo de catalisador: no tema da soberania dividem-se as opiniões. Se um lado a vê como uma espécie de fortaleza em meio à tempestade que oferece alento contra a correnteza trituradora da história, o outro a considera raiz de todo mal e a fonte da repressão.

A seguir, pretendo apresentar dois tipos básicos de soberania (seção II) e então discutir os fundamentos da discussão sobre a soberania (seção III). Além de sua força de ação voltada para o âmbito doméstico, a soberania diz respeito também à relação com outros estados, o que será apresentado a partir do exemplo do sistema estatal da Vestfália (seção IV). Em decorrência da Revolução Francesa, a soberania original do príncipe transforma-se, em um primeiro passo, na soberania da nação e, finalmente, na soberania do povo (seção V). Com respeito à sua fundamentação e à sua execução, farei uma distinção entre três formas de soberania: a parlamentar, a constitucional e a soberania (direta) do povo (seção VI). Em uma seção própria intento discutir a crítica à soberania realizada a partir de pontos de vista bem diferentes (seção VII). Por fim, tratarei da seguinte questão: se uma potência média como a Alemanha ou se um país periférico como o Brasil é capaz de conquistar ou preservar a sua própria soberania (seção VIII).

III. DOIS TIPOS BÁSICOS DE SOBERANIA

De acordo com o portador da soberania, podem-se distinguir dois tipos básicos . A soberania do príncipe caracterizada pelo jurista e teórico do Estado Jean Bodin (1529-1596) como a summa potestas do monarca absoluto (BODIN, 1583, p. 205). A partir dela, em decorrência da Revolução Francesa, surge a soberania do povo que hoje é o substrato - pelo menos formalmente - de todas as constituições modernas. A expressão L'Etat, c'est moi2 2 "O Estado sou eu", em francês, no original (nota dos revisores da tradução). é comumente atribuída ao rei francês Luís XIV (1638-1715). Ela expressa de modo inequívoco que o monarca (absolutista) era na sua época o soberano único e incontestável e que a soberania do príncipe era, ao mesmo tempo, concebida como soberania do Estado.

Somente com a delimitação do poder do rei por meio de um acordo (pela primeira vez na Inglaterra com a Magna Carta de 1215) e com a diferenciação gradual entre um governo e um parlamento, essa fixação no monarca é pouco a pouco suplantada. No entanto, esse processo realiza-se de Estado para Estado em graus diversos e tempos diferentes. Na Inglaterra, a separação dos poderes, que, em 1748, inspirou o teórico do Estado Charles Louis de Secondat, barão de Montesquieu (1689-1755), a escrever sua obra De l'esprit des lois (Sobre o espírito das leis), ocorreu mais cedo. O poderoso monarca, que Bodin tinha em mente em 1576, transforma-se, principalmente em decorrência da Revolução Francesa, primeiramente em um monarca preso à Constituição para, mais tarde, ou ser substituído por um Presidente e/ou ser reduzido a uma função puramente representativa. Esse componente pessoal da soberania subjaz ainda hoje como resíduo mental a quase todas as ideias de soberania.

IV. FUNDAMENTOS DA DISCUSSÃO SOBRE A SOBERANIA

Já há 436 anos atrás, Bodin lançou as bases teóricas para o pensamento de soberania em seus Six livres de la République: "Por soberania entende-se o poder absoluto e temporalmente ilimitado próprio ao Estado [...]" (idem, p. 19). Segundo essa definição, a soberania significa o mais alto poder de comando no Estado (majestas); ela é expressão do poder supremo (potestas), da unidade e da indivisibilidade.

Soberano é aquele que pode impor a lei a todos os súditos, que decide sobre guerra e paz, que nomeia os funcionários e magistrados no país, que impõe impostos (e deles isenta quem quiser) e aos condenados à morte concede a graça (idem, p. 205).

Em uma crise francesa altamente perigosa, Bodin tentou (no final com sucesso) alçou o o rei à autoridade suprema do Estado, o qual poderia também pôr fim à guerra civil. Em todo caso, o livro de Bodin foi publicado quatro anos após a sangrenta noite de São Bartolomeu de 24 de agosto de 1572, na qual milhares de huguenotes foram assassinados. Bodin, ele mesmo um huguenote, usa a ideia da soberania para defender o Estado francês com a ajuda do monarca contra as partes conflitantes na guerra civil religiosa do século XVI. De um portador da coroa, sacramente ordenado, surge um chefe de Estado soberano; do superior surge um supremos (HELLER, 1927, p. 35). A função mais importante do monarca é, de agora em diante, o estabelecimento e a manutenção da paz doméstica.

Nesse caso, o monarca, apesar de não estar sujeito às leis feitas pelos homens, está sujeito, sim, a vínculos de leis naturais e morais (lois divines et naturelles). O próprio Bodin já formula de modo inequívoco: o príncipe soberano não está autorizado a ultrapassar "os limites das leis naturais e das leis de Deus [...]" (BODIN, 1583, p. 235). Se o soberano violar esses princípios, os súditos podem recusar-lhe a obediência. Mas é somente o filósofo de Estado inglês Thomas Hobbes (1588-1679), que em 1651 estabelece em seu Leviatã que, não é a verdade, mas a autoridade estatal quem faz as leis (HOBBES, 1651): Auctoritas non veritas facit legem3 3 Em latim, no original. Literalmente: "É a autoridade, não a verdade, que faz as leis" (N. R. T.). . Também para o próprio Hobbes o ponto de partida é a guerra civil. Ele mesmo foge para a França em 1647, ano em que se inicia a revolução na Inglaterra.

V. O SISTEMA ESTATAL DE VESTFÁLIA

Para a soberania externa, a Paz de Vestefália, de 1648, é de importância central. Com ela a soberania dos príncipes europeus é reconhecida e com a soberania também o direito à guerra (ius ad bellum). A partir de então o sistema estatal europeu, o sistema westfalino , fundamenta-se no princípio da "igualdade" ou "equivalência" e da "igualdade de direitos" dos estados. Todo príncipe, e também o regente de um pequeno país, pode declarar guerra a outro príncipe. Pois à soberania do príncipe pertence inquestionavelmente o direito de travar guerras. Uma guerra entre príncipes soberanos é vista prima facie como guerra justa. Assim, surge um equilíbrio entre os países do continente europeu que, ao mesmo tempo, é a condição para o reconhecimento de um direito comum, o Jus Publicum Europæum, que - para além dos conflitos bélicos entre os soberanos - estabelece as condições para um âmbito de paz e de ordem no mundo (SCHMITT, 1950). Por meio das chamadas "linhas de amizade", a guerra das potências europeias pelo poder, recursos e mercados em outras partes do mundo é mantida longe da Europa.

Em 1651 - três anos após o fim da Guerra dos Trinta Anos - , Hobbes, em seu Leviatã, que pretende pôr um fim à guerra doméstica de todos contra todos (bellum omnia contra omnes), considera o direito do soberano à guerra contra outros soberanos como algo natural. Do seu ponto de vista, a delimitação das fronteiras para com o exterior é uma precondição imprescindível para a paz doméstica. Ao lado das burocracias estatais, os exércitos permanentes - institucionalizados após a Guerra dos Trinta Anos - tornam-se o instrumento de dominação mais importante. A partir de então, as guerras não são mais travadas com a ajuda de mercenários, súditos camponeses e empreendedores de guerra ou de milícias civis, mas por exércitos estatais financiados por impostos (VOIGT, 2008). Nesses casos, a existência de exércitos permanentes, cuja manutenção é cara, significa também que eles - pelo menos de tempos em tempos - precisam ser utilizados. A inclinação para a guerra aumenta tendencialmente com isso, já que o conflito armado, após o alcance das metas da guerra, pode ser encerrado a qualquer momento por meio de um tratado de paz.

VI. DA SOBERANIA DA NAÇÃO PARA A SOBERANIA DO POVO

A Revolução Francesa (1789-1799) levou primeiramente na França e depois também em outros estados ao fim da dominação feudal. Os revolucionários reivindicaram para si o direito e a obrigação de agir em nome de toda a humanidade. A comum declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão é uma prova extraordinária dessa atitude. Ao mesmo tempo, a soberania do príncipe é substituída primeiramente pela soberania da nação e, mais tarde, pela soberania do povo. Na primeira constituição pós-revolucionária afirma-se que a soberania "pertence à nação", como formula o Art. 1º do Título III da Constituição francesa de 1791. É claro que o poder Executivo é conferido ao rei que - mesmo que apenas com efeito suspensivo - pode negar sua aprovação às decisões do corpo legislativo. Adiante na constituição francesa lê-se: "Nenhuma parte do povo e nenhum indivíduo pode apoderar-se de sua execução". "A nação, da qual então emanam exclusivamente todos os poderes, só pode executá-la por transferência". Com isso, foram tomadas - além de uma confissão a favor da soberania nacional - três decisões fundamentais que teriam grandes efeitos sobre outros estados. Primeiramente, nasceu assim o Estado nacional, que se transformaria no modelo mais importante para o Estado moderno (SALZBORN, 2011). "Não mais o corpo divino do rei, mas, sim, a identidade espiritual da nação determinavam doravante território e população como abstrações ideais. [...] O conceito moderno da nação sucedeu assim de forma imediata o corpo patrimonial do Estado monárquico e o reinventou em forma nova" (HARDT & NEGRI, 2003, p. 108ss.).

Em segundo lugar, constata-se de maneira categórica que as competências do Estado executadas em nome da nação são transferidas pela constituição aos poderes individuais. E, finalmente, em terceiro lugar a constituição francesa é proclamada como constituição representativa e assim se torna o exemplo para o processo constitucional no resto da Europa.

Na segunda constituição revolucionária de 1793 já não se fala mais da nação como soberano. Por sua vez, lê-se o seguinte sob o título "Da soberania do povo", no Art. 7º: "O povo soberano é a totalidade dos cidadãos franceses". "Ele elege diretamente os seus representantes" (Art. 8º). "Ele transfere ao colégio eleitoral a eleição dos prefeitos, dos árbitros, dos juízes penais e dos juízes das cortes de cassação" (Art. 9º). E "ele decide as leis" (Art. 10º). Por parte da Assembleia Nacional, como corpo legislador, leis são propostas e, juntamente com um relatório, enviadas a todas as municipalidades da República. É claro que ainda não se tratava de uma constituição representativa no sentido de hoje, pois o parlamento, como poder Legislativo, não decide sozinho ou de maneira definitiva. As propostas de lei só se tornam "lei" se uma quota determinada (definida) das assembleias primárias não reclamar no prazo de 40 dias. As assembleias primárias, que elegem um representante cada uma e que até têm uma polícia própria à sua disposição, consistem de cidadãos que vivem há seis meses em um cantão. "Se houver uma reclamação, o corpo legislativo convoca as assembleias primárias" (Art. 60), que então votam "sim" ou "não".

No entanto, essa forma da participação direta do povo, que remonta ao filósofo genebrino Jean-Jacques Rousseau (1712-1778), perde-se em grande parte ao longo do tempo, enquanto - à semelhança do exemplo inglês - o parlamento como assembleia dos representantes do povo fortalece-se e impõe-se cada vez mais. No Império alemão, o parlamento democraticamente eleito, o Reichstag, só consegue sair muito lentamente da sombra do imperador e do chanceler do Reich. Para a teoria do Direito Público do Império, todo poder estatal deriva da suprema e total soberania do monarca. Entretanto, a constituição do Reich de 1871 garante essa pretensão à decisão última apenas parcialmente.

VII. FORMAS DA SOBERANIA

Hermann Heller (1891-1933), professor de Direito Público , da cidade de Weimar, julga importante do seu ponto de vista - fundamentado na teoria do Estado de Hegel - principalmente a distinção entre o "sujeito" e o "portador" da soberania. Segundo ele, o próprio Estado é, como instância suprema de positivação de normas , o sujeito da soberania: "As expressões 'soberania do povo' ou 'do príncipe', por sua vez, não designam o sujeito, mas o portador da soberania na organização estatal" (HELLER, 1927, p. 245ss.).

Heller não se refere apenas a normas jurídicas, mas, sim, à realidade política ao formular que o conceito da soberania designa "a capacidade factual de uma unidade de dominação" de, "quebrar", em seu território - "constantemente qualquer ato de vontade que ameace a sua existência" (idem, p. 616). Nesse caso, o povo domina por meio da ajuda de representação e do princípio majoritário, "como unidade sobre o povo como multiplicidade". Somente assim o povo poderia tornar-se o sujeito da soberania. Heller refere-se explicitamente ao conceito da volonté générale de Rousseau (KERSTING, 2003), que se expressa em conceitos como "vontade do Estado" ou "vontade do legislador", conceitos que Giorgio Agamben considera "abstrações vazias".

Além dessa opinião de Heller - segundo a qual o Estado seria o sujeito e o povo, o portador da soberania - , pode-se distinguir hoje três formas de soberania com referência à sua justificação e ao seu exercício. Trata-se de:

1. soberania parlamentar;

2. soberania constitucional (jurídica);

3. soberania (direta) do povo.

VII.1. A soberania parlamentar

A Grã-Bretanha, que não possui uma constituição escrita, é um bom exemplo para a soberania do parlamento, como é expressa na fórmula da soberania parlamentar que, desde o acordo constitucional de 1689, vale para a Inglaterra: "The principle of Parliamentary sovereignty means neither more or less than this, namely that Parliament [...] has [...] the right to make or unmake any law whatever; and, further, that no person or body is recognised by the law of England as having a right to override or set aside the legislation of Parliament"4 4 "O princípio da soberania do Parlamento não significa nem mais nem menos que isto, nomeadamente que o Parlamento [...] possui [...] o direito de fazer ou desfazer qualquer lei que seja; além disso, que nenhum corpo ou pessoa é reconhecido pelo Direito da Inglaterra como tendo um direito para suplantar ou pôr de lado a legislação do Parlamento" (N. R. T.). (DICEY, 1959, p. 39ss.).

A antiga supremacia do rei foi, portanto, preservada na Grã-Bretanha, mantendo seu caráter indivisível e ilimitado, que foi apenas transferido do monarca ao Parlamento britânico, precisamente para Câmara dos Comuns (ABROMEIT, 1995, p. 52). No entanto, a soberania parlamentar não vale para a maioria das constituições da Europa continental. Mesmo que as constituições da Europa continental também partam de preferências inequívocas a favor do Parlamento (a maioria representa democracias parlamentares), o Parlamento vê-se contraposto a um tribunal constitucional, que pode suspender decisões parlamentares ou reinterpretá-las "em conformidade com a Constituição". Em algumas constituições são previstos ou permitidos referendos sobre questões políticas graves5 5 Entretanto, esse não é o caso na constituição alemã. .

VII.2. A soberania jurídica e constitucional

A soberania facilmente se transforma em mera arbitrariedade sem um Estado de Direito em funcionamento. No entanto, Immanuel Kant forneceu-nos outra perspectiva com sua lógica rigorosamente individualista dos direitos subjetivos. Esse foi o ponto de partida para o filósofo jurídico holandês Hugo Krabbe que, em seu escrito A soberania do Direito, de 1906, desenvolveu uma "soberania jurídica" a partir da soberania do Estado: "A teoria da soberania do Estado tem seu fundamento na ideia segundo a qual o poder se enraíza em um direito de mando pessoal. A teoria da soberania jurídica baseia-se na noção de um poder impessoal próprio às normas jurídicas, justamente pelo fato de serem normas jurídicas" (KRABBE, 1906, p. 47).

Pode-se e deve-se deduzir disso que a ideia da soberania é inconciliável com o Estado constitucional moderno dos direitos subjetivos e que isso valeria também para a soberania do povo? De fato, percebemos principalmente entre os liberais uma desconfiança furtiva contra a soberania do povo, expressa já por Alexis de Tocqueville em 1853, quando exclamou: "Amo a liberdade e a obediência à lei, mas não a democracia!" (TOCQUEVILLE, 1840). Uma declaração como essa seria hoje uma pequena sensação, pois todos os estados modernos vêem-se como democracias baseadas na soberania do povo. A pergunta decisiva é, no entanto, quem e o que é o "povo". Nas sociedades atuais, marcadas por inúmeros imigrantes das mais diversas culturas, um conceito étnico do povo já não é (mais) praticável. Mas "a consciência pós-moderna parece também der perdido o conceito democrático do 'povo'". A aptidão para o discernimento político é conferida apenas para a alta classe social e negada ao povo "comum". Problemas políticos são considerados complexos demais para que possam ser compreendidos e decididos de maneira responsável pelas "massas" incultas.

VII.2.1. A soberania como conceito normativo

Hans Kelsen (1881-1973) é um dos críticos mais veementes da acepção tradicional - relacionada ao Estado e à nação - da soberania. Com seu positivismo radical, ele volta-se rigorosamente contra a tradição historicista das ideias de soberania.

A absolutização do Estado, realizada pelo conceito da soberania, é de fato o traço característico da moderna teoria do Estado. Por meio dela, e somente por meio dela, a teoria consegue distinguir de maneira fundamental e absoluta o Estado de todas as outras associações (KELSEN, 1925, p. 116).

As concepções de soberania que remetem a Bodin são para Kelsen e sua própria teoria da soberania de nenhuma utilidade. O ser humano "soberano" segundo a perspectiva de Kelsen está sempre sujeito apenas a uma norma, mas nunca a outros seres humanos, nem mesmo a um monarca. A soberania é compreendida como um conceito normativo, "purificado" de todos os aspectos de uma dominação real. Uma ordem jurídica soberana é singular no sentido de que não existe outra ordem jurídica que colida com ela. A soberania, portanto, significa meramente que existe competência para autodeterminar a ordem da conduta humana por meio de regulamentos próprios. De maneira mais precisa e pontual formula o próprio Kelsen: "A soberania é uma qualidade do Direito porque é uma qualidade do Estado". Hermann Heller, o adversário de Kelsen no debate de Weimar sobre o Direito do Estado, criticou essa postura dizendo que se tratava de uma "doutrina do Estado sem Estado" (HELLER, 1927).

No entanto, esse tipo de soberania jurídica também apresenta um "porém". Se o Estado possui todas as competências de regulamentação dentro dos limites territoriais garantidos por meio do Direito dos Povos, essa ordem não precisa ser necessariamente liberal. Essa interpretação foi comprovada não apenas nas ditaduras do século XX, mas também nos regimes autoritários do século XXI. Kelsen critica a ideia original de liberdade do indivíduo como "associal" e exige uma alteração dessa ideia de liberdade da ordem normativa para uma liberdade sob uma ordem normativa. A liberdade individual precisa ser transformada em uma liberdade social. Com referência às relações entre soberania e liberdade, isso significa: "No lugar da liberdade toma lugar a soberania do povo [...]. Esta é o último grau na mudança de sentido do pensamento de liberdade. O Estado livre é aquele cuja forma é a democracia, pois a vontade do Estado ou a ordem jurídica é gerada por aqueles mesmos que são sujeitos a essa ordem" (KELSEN, 1925, p. 325ss.).

Se - com Kelsen - compreende-se a ordem jurídica como autônoma em relação ao Estado e a função estatal como função legislativa, a soberania só pode ser um componente da ordem jurídica impessoal. Nesse caso, ela designa a validade exclusiva da ordem jurídica estatal, a sua unidade e o livre arbítrio dessa ordem estatal soberana, como ordem jurídica.

VII.2.2. A soberania pode ser transferida para a Constituição?

O pensamento constitucional estadunidense conclui, a partir de cogitações parecidas, que a soberania do povo esgotou-se no ato único do processo constitucional de 1787 (MAUS, 2011, p. 11). Desde então, os poderes parcialmente soberanos exercem um controle recíproco. O povo elege, a princípio, diretamente os membros do congresso e - indiretamente, por meio do colégio eleitoral - também o Presidente, mas de resto só exerce influência sobre a política na forma de uma opinião pública crítica. Para a relação entre povo e Constituição isso significa que a formação de vontade democrática é "substituída pela interpretação de conteúdos constitucionais 'soberanos' predeterminados" (MAUS, 1991, p. 140). No lugar da soberania do povo, que, no máximo, ainda é sustentada na forma de uma fórmula vazia ("em nome do povo"), toma lugar a soberania constitucional. Essa acepção determina hoje também o Estado constitucional da Europa continental. Ela parte do pressuposto "de que o povo possui a soberania apenas no momento em que põe em vigor uma constituição e nesta constituição ele transfere sua soberania aos representantes eleitos do povo. A partir de então a soberania passa a ser representada e como soberania do povo é extinta. O contrato social é interpretado de tal maneira que o povo, após a conclusão do contrato, não continua vivendo, mas sim 'morre' na conclusão do contrato" (TÖNNIES, 1887, p. 57).

As consequências desse ponto de vista deixam-se observar muito bem na Constituição alemã. Segundo o Art. 79, § 3°, da Constituição, uma "mudança dessa Constituição, pela qual a divisão da federação em estados, a participação fundamental dos estados na legislação ou os princípios estabelecidos nos artigos 1º e 20 é afetada, [...] é ilícita". A pergunta crítica é, portanto, para quem vale essa proibição - apenas para o legislador ou também para o próprio povo? Trata-se, evidentemente, de uma disputa pela primazia entre a soberania constitucional e a soberania do povo. Se determinados conteúdos da constituição também não podem ser alterados pelo povo, a soberania constitucional está acima da soberania do povo, já que o povo cedeu a sua soberania.

VII.3. A soberania do povo

Não obstante o fato de que, hoje, quase todas as constituições de alguma forma referem-se ao povo como o soberano, a soberania do povo em si é altamente controversa. Como ela deve ser entendida e quais são seus efeitos na prática política? Sugere-se, em primeiro lugar, diferenciar entre a soberania do povo como princípio constitucional abstrato, por um lado, e uma soberania (direta) do povo, aplicada na prática política, por outro lado. Como princípio constitucional, a soberania do povo é mais antiga do que a doutrina do poder soberano do Estado; ela remonta à Idade Média. Rousseau (1762) deduz disso a consequência - logicamente compreensível - de que o poder detido pelo povo deve ser transferido ao soberano apenas de modo revogável. Hoje a soberania em um Estado democrático é normalmente compreendida como soberania do povo. No entanto, trata-se apenas da proclamação desse princípio constitucional, possivelmente nada mais do que uma "confissão vazia" para legitimar uma prática política determinada. Na Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, de 26 de agosto de 1789, está escrito a esse respeito: "O princípio de toda a soberania reside, essencialmente, no povo. Nenhuma corporação, nenhum indivíduo pode exercer uma autoridade que dela não emane expressamente".

Existe, entretanto, o problema de que o próprio povo é limitado na sua capacidade para a ação, de tal forma que a soberania do povo necessita de uma organização para poder desdobrar efeitos políticos práticos. Poderia a soberania do povo com isso entrar em contradição com a democracia? "Segundo seu caráter, a soberania consiste em uma única vontade". É, então, a alegação de que "o povo pode ser unido em uma única vontade" realmente o "mito do totalitarismo", como acredita Ferdinand Tönnies (1887, p. 59)? Como antídoto, de certo modo como proteção do povo sobre si mesmo, evocam-se as "forças curativas" da representação. Montesquieu, devido a isso, introduziu no jogo os "poderes intermediários", sob os quais, hoje a princípio, poder-se-iam compreender os partidos políticos, as associações e os meios de comunicação. Entretanto, é duvidosa a margem de ação existente para a organização da soberania do povo. Pode ela ir tão longe a ponto de as reais decisões serem tomadas por uma pequena elite dentro ou talvez até fora do Estado, não deixando assim praticamente nenhuma opção de ação para o povo - além das eleições periódicas? O popular discurso na Europa da "política sem alternativas" parece apontar para essa direção.

VIII. A CRÍTICA DA SOBERANIA

A soberania, portanto, não é vista sempre de modo positivo; existe também uma crítica de muitas vozes, aguda e em parte persistente, contra a soberania. Por um lado, a soberania dos estados nacionais é responsabilizada por muitos dos problemas deste mundo. Conforme essa crítica, estados nacionais "egoístas", que desse ponto de vista apresentam-se como dinossauros, como resquícios inúteis de uma época passada, recusam-se a transferir seus direitos de soberania para uma unidade de ordem superior, ou simplesmente a abrir mão deles em benefício do "mercado". Aparentemente, as ações do mundo virtual do sistema financeiro global determinam, de qualquer maneira, cada vez mais as reações dos governos dos estados nacionais. Uma resistência para ganhar tempo aparenta ser pelo menos sem sentido, talvez até nociva. Uma política independente de governos eleitos democraticamente torna-se sem sentido quando os "mercados" podem derrubar esses governos a qualquer momento e instaurar governos de especialistas que "funcionem" melhor do que seus antecessores políticos.

VIII.1. Um demos Europeu?

Apenas ocasionalmente surgem perguntas referentes à legitimação democrática desse tipo de decisões supranacionais. Além da legitimação, pelo menos formal do Parlamento Europeu, está em questão também o demos europeu, do qual - como justificação última - todo poder deve ser supostamente derivado. Mas que esse demos europeu - pelo menos até agora - não existe também não é nenhum segredo. A diversidade cultural, religiosa e linguística na Europa é grande demais para que se pudesse encontrar a base para um povo europeu - mesmo que apenas no sentido de uma imagined nation6 6 "Nação imaginada", em inglês, no original (N. R. T.). (ANDERSON, 1983). Assim, trata-se não apenas da união monetária europeia (a Zona do Euro) mas também da União Europeia como um todo, de um projeto de elites altivas que acreditam não precisar pedir o consentimento de seus povos, mas antes, acham que podem pressupô-la. Nos casos em que a constituição exige obrigatoriamente um plebiscito, em resultados "negativos" a votação é simplesmente repetida até que se obtenha o resultado "correto".

VIII.2. Uma soberania global?

Outra corrente de pensamento equipara a soberania com a violência e associa-a - em continuação com Carl Schmitt - ao estado de exceção . A formulação de Schmitt segundo a qual "O soberano é aquele que decide sobre o estado de exceção " (SCHMITT, 1922, p. 13) é interpretada de tal forma que o monarca como soberano não deve integrar o estado de exceção à ordem jurídica, mas, sim, excluí-lo dela (AGAMBEN, 1995, p. 67). Por outro lado, sugere-se que nos encontramos em um "estado de guerra global", no qual "a violência pode irromper a qualquer momento" (HARDT & NEGRI, 2000, p. 265). Mas os estados nacionais seriam fracos demais para porem fim a esse estado de guerra. "Para isso existe a necessidade de uma nova forma global de soberania." Tal soberania global é atribuída por Michael Hardt e Antonio Negri à "multitude". Essa multitude não é nem o povo, nem a massa, nem a classe operária. Ao contrário do povo, a multitude preserva suas pluralidade e diversidade. Ao contrário da massa, ela significa diversidade, mas não é fragmentada, anárquica e desconexa. Ela é capaz de formar a sociedade de modo autodeterminado, coisa que a burguesia e outras formações de classe exclusivas e limitadas são justamente incapazes de fazer. Em outras palavras: a multitude é capaz de autogovernar-se.

No entanto, esse ponto de vista ainda não foi submetido a nenhum teste prático. Permanece, portanto, duvidoso se algo como a soberania do empire realmente existe. Mas é inquestionável, em todo caso, que a questão da soberania de cada povo, diante do pano de fundo de uma política que apenas cumpre as determinações do sistema financeiro global - e mesmo assim com retardo temporal - , torna-se relativizada. Nem os Estados Unidos, nem a União Europeia, o Banco Central Europeu ou o Mecanismo Europeu de Estabilidade Financeira são imunes a um rebaixamento de sua classificação de risco financeiro e assim - quase automaticamente - são forçados a pagar juros mais altos para cobrirem os custos de suas dívidas públicas. Justamente os estados de grande poder econômico deveriam encerrar sua competição pela simpatia dos mercados (que nem são mercados verdadeiros, mas, sim, grandes "cassinos" para especuladores) e, em vez disso, empregar todos os meios legais para limitar de maneira duradoura o poder dos especuladores financeiros, aos quais eles mesmos - conscientemente ou não - transferiram parte desse poder.

IX. MAIS OU MENOS SOBERANIA?

Diante dos conflitos não resolvidos no Oriente Médio e em outras partes do mundo, mostra-se que a ideia de uma ordem de paz global - em última instância oriunda de Kant e Kelsen - nada mais é do que uma ilusão. A chamada "comunidade internacional" é uma quimera e o Conselho de Segurança da Organização das Nações Unidas (ONU) demonstra-se incapaz de agir. Quem esperava algo diferente? Os Estados Unidos, como vencedores da II Guerra Mundial, desejavam criar com a ONU e especialmente com o Conselho de Segurança um "governo mundial" conveniente para eles. Dos cinco votos com direito de veto, quatro pertenciam aos Estados Unidos e seus aliados. Na época eram eles: Grã-Bretanha, França e China. A União Soviética tinha apenas um voto; em uma avaliação catastrófica dos fatos, a União Soviética foi considerada um amigo potencial do Ocidente pelos administradores estadunidenses Roosevelt (1933-1945) e Truman (1945-1953). Acreditava-se que seria possível sempre chegar a um acordo para proteger os interesses de todos os envolvidos. Os membros do Conselho de Segurança sem direito a veto ocupavam apenas o papel de folhas de figueiras, para ocultar as intenções hegemônicas dos Estados Unidos (VOIGT, 2005).

IX.1. O governo mundial - uma ilusão

Que tudo isso se baseava em ilusões, evidenciou-se já na Guerra da Coréia (1950-1953), na Guerra do Vietnã (oficialmente, 1965-1975) e posteriormente de novo. Com o consentimento dos Estados Unidos, a China comunista integrou o Conselho de Segurança em 1971 e em 1991 a Rússia substituiu a União Soviética. Com o desmoronamento da ordem bipolar, no fim da década de 1980, o "fim da história" parecia ter chegado, conforme postulou Francis Fukuyama no início da década de 1990 (FUKUYAMA, 1992). Os Estados Unidos transformaram-se de superpotência em hiperpotência, como os franceses agora os chamavam. Mas essa euforia não durou muito tempo. O ataque da Alcaida ao World Trade Center, em 11 de setembro de 2001, deu início a uma "guerra global ao terror", que transformou o mundo. Nenhum lugar do mundo está imune a ataques suicidas, uma desconfiança geral e medidas de segurança concretas mudaram o mundo. Porém, o que permanece são os antigos interesses geoestratégicos dos agentes globais. Seus governos servem-se dos discursos banais dos políticos e dos jornalistas sobre o "mundo perfeito" da paz geral para garantir a sua partilha.

IX.2. A soberania ilimitada das potências nucleares

Obviamente, as grandes potências como os Estados Unidos, a Rússia e a China não pensam em desistir de seus interesses nacionais em prol de uma ordem mundial justa. Elas servem-se dessa semântica apenas para disfarçar seus próprios interesses concretos. Também faz parte disso "convencer" os estados menores a desistirem de sua busca pela soberania como algo antiquado e ultrapassado nos tempos atuais. Um exemplo evidente é a questão do armamento nuclear. As potências nucleares - Estados Unidos, Rússia, China, Grã-Bretanha, França, Índia, Paquistão e Israel - sabem que soberano é apenas aquele Estado que dispõe do direito da decisão última, que, como ultima ratio, tem a possibilidade de usar armas nucleares. Tanto mais importante é para essas potências atômicas manterem todos os outros estados longe das armas nucleares. Eles comprometem-se, por meio da assinatura do Tratado de Não-Proliferação Nuclear, a nunca aspirar à posse de armas nucleares. Ao mesmo tempo, uma campanha propagandística mostra a todas as boas pessoas o quão nocivas seriam as armas nucleares nas mãos de potências não nucleares e quão benéficas elas são nas mãos das atuais potências nucleares.

IX.3. A soberania limitada das potências sem nada

Pois quem dispõe de armas nucleares, que podem ser utilizadas a qualquer momento - mesmo após um ataque nuclear - não pode ser facilmente extorquido. Charles de Gaulle reconheceu isso em 1958, quando criou a chamada force de frappé7 7 "Força de dissuasão", em francês, no original (N. R. T.). - contra a vontade dos Estados Unidos e da Grã-Bretanha. Desde 1971, os submarinos nucleares servem como plataformas de lançamento marítimas. Eles dão à França a capacidade necessária para um contra-ataque nuclear após um ataque inicial do inimigo com armas nucleares. O mesmo vale para a Grã-Bretanha. Ambos os estados possuem ao mesmo tempo o direito a veto no Conselho de Segurança da ONU. Aqueles, porém, que - como a Alemanha - não possuem armas nucleares são forçados a procurar a proteção de uma potência nuclear. A França repetidamente ofereceu essa proteção à Alemanha - ao preço de uma participação considerável nos custos. A Alemanha sempre se decidiu pelos Estados Unidos. A potência protetora pode sempre ditar condições (altamente incômodas). Nessa situação de perigo, o Estado dependente de proteção já não possui mais o direito da decisão última: ele já não é (mais) soberano.

Recebido em 23 de outubro de 2012.

Aprovado em 21 de novembro de 2012.

  • ABROMEIT, H. 1995. Volkssouveränität, Parlamentssouveränität, Verfassungssouveränität: Drei Realmodelle der Legitimation staatlichen Handelns. Politische Vierteljahresschrift, v. 36, n. 1, p. 49-66.
  • AGAMBEN, G. 1995. Homo sacer Il potere sovrano e la nuda vita. Torino: Einaudi.
  • ANDERSON, B. 1983. Imagined Communities Reflections of the Origin and Spread of Nationalism. London: Verso.
  • BODIN, J. 1583. Les six livres de la République Paris: s/n.
  • DICEY, A. V. 1885. Introduction to the Study of Law of the Constitution London: Macmillan.
  • FUKUYAMA, F. 1992. The End of History and the Last Man New York: Free.
  • HARDT, M. & NEGRI, T. 2000. Empire Cambridge (MA): Harvard University.
  • HELLER, H. 1927. Die Souveränität Ein Beitrag zur Theorie des Staats - und Völkerrechts. Berlim: s/n.
  • HOBBES, T. 1651. Leviathan or the Matter, Forme and Power of a Commonwealth Ecclestical and Civil London: s/n.
  • KELSEN, H. 1925. Allgemeine Staatslehre Allgemeine Enzyklopädie der Rechts - und Staatswissenschaften, Band 23. Berlim: s/n.
  • KERSTING, W. (ed.). 2003. Die Republik der Tugend Jean-Jacques Rousseaus Staatsverständnis. Baden-Baden: s/n.
  • KRABBE, H. 1906. Die Lehre der Rechtssouveränität - Beitrag zur Staatslehre. Groningen: s/n.
  • MAUS, I. 1991. Sinn und Bedeutung der Volkssouveränität in der modernen Gesellschaft. Kritische Justiz, v. 24, p. 137-150.
  • _____ 2011. Über Volkssouveränität Elemente einer Demokratietheorie. Berlim: s/n.
  • MONTESQUIEU 1748. De l'esprit des loix Genève: s/n.
  • ROUSSEAU, J.-J. 1762. Du Contrat Social ou principes du Droit Politique Amsterdam: s/n.
  • SALZBORN, S. (ed.). 2011. Staat und Nation Die Theorien der Nationalismusforschung in der Diskussion. Stuttgart: s/n.
  • SCHMITT, C. 1922. Politische Theologie Vier Kapitel zur Lehre von der Souveränität. Berlim: s/n.
  • _____ 1950. Der Nomos der Erde im Völkerrecht des Jus Publicum Europaeum Berlim: s/n.
  • TOCQUEVILLE, A. 1835-1840. De La Démocratie en Amérique 2 v. Paris: s/n.
  • TÖNNIES, F. 1887. Gemeinschaft und Gesellschaft Abhandlung des Communismus und des Socialismus als empirischer Kulturformen. Leipzig: s/n.
  • VOIGT, R. 2005. Weltordnungspolitik Wiesbaden: s/n.
  • _____ 2008. Krieg ohne Raum Asymmetrische Konflikte in einer entgrenzten Welt. Stuttgart: s/n.
  • 1
    O presente artigo é a versão escrita da palestra "Wer ist der Souverän? Zu einem Schlüsselbegriff der Staatsdiskussion", realizada em 12 de setembro de 2012, durante o II Colóquio Internacional e IV Simpósio de Teoria Política do Instituto de Filosofia e Ciências Sociais da Universidade Federal do Rio de Janeiro (IFCS-UFRJ). Agradecemos ao autor a autorização para publicar a presente tradução, bem como a Pedro Hermílio Villas Bôas Castelo Branco pela proposta de publicação e pela subsequente intermediação entre o autor e a
    Revista de Sociologia e Política. Tradução de Markus Hediger; revisão da tradução de Pedro Hermílio Villas Bôas Castelo Branco, Ezequiel Martins Paz e Gustavo Biscaia de Lacerda.
  • 2
    "O Estado sou eu", em francês, no original (nota dos revisores da tradução).
  • 3
    Em latim, no original. Literalmente: "É a autoridade, não a verdade, que faz as leis" (N. R. T.).
  • 4
    "O princípio da soberania do Parlamento não significa nem mais nem menos que isto, nomeadamente que o Parlamento [...] possui [...] o direito de fazer ou desfazer qualquer lei que seja; além disso, que nenhum corpo ou pessoa é reconhecido pelo Direito da Inglaterra como tendo um direito para suplantar ou pôr de lado a legislação do Parlamento" (N. R. T.).
  • 5
    Entretanto, esse não é o caso na constituição alemã.
  • 6
    "Nação imaginada", em inglês, no original (N. R. T.).
  • 7
    "Força de dissuasão", em francês, no original (N. R. T.).
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      30 Jul 2013
    • Data do Fascículo
      Jun 2013

    Histórico

    • Recebido
      23 Out 2012
    • Aceito
      21 Nov 2012
    Universidade Federal do Paraná Rua General Carneiro, 460 - sala 904, 80060-150 Curitiba PR - Brasil, Tel./Fax: (55 41) 3360-5320 - Curitiba - PR - Brazil
    E-mail: editoriarsp@gmail.com