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Critérios técnicos, políticos e dinâmica regional na nomeação de secretários estaduais: um estudo de caso do Rio Grande do Norte

Technical and political criteria within regional dynamics in the appointment of State-level secretariat: a case study of Rio Grande do Norte, Brazil

RESUMO

Introdução:

Estudos recentes sobre o perfil das nomeações de ministros em nível federal têm mostrado maior complexidade das lógicas subjacentes a esta decisão e, como consequência, a insuficiência explicativa da dicotomia entre nomeações “técnicas” versus “políticas”. Por outro lado, pouco se conhece ainda sobre os tipos de nomeação para o secretariado de primeiro escalão nos Executivos estaduais. A partir de um estudo de caso, comparamos se as lógicas de nomeações são similares ou distintas daquelas encontradas em nível federal.

Materiais e Métodos:

A partir da sistematização dos dados biográficos dos secretários nomeados entre 1995 e 2015 no Rio Grande do Norte, no Brasil (RN), foi possível ir além de informações básicas (tais como: formação educacional, ocupação profissional ou filiação partidária) dos secretários, identificando as trajetórias dos indivíduos nos contextos políticos e eleitorais do estado. Propomos, a partir daí, uma tipologia para mensurar competências técnica e política.

Resultados:

A análise das nomeações para o caso do RN com base nessa tipologia revela que há especificidades locais que explicam parte significativa das escolhas feitas pelos governadores na montagem do seu gabinete. O tipo de nomeação mais frequente é o de uma secretária ou secretário com um perfil misto, técnico e político ao mesmo tempo, o que confirma a insuficiência analítica da dicotomia “técnico” ou “político” como critérios de escolha exclusivos pelos chefes dos Executivos.

Discussão:

O estudo, a partir dessa análise exploratória de dados de um caso específico, abre avenidas para futuras investigações, entre elas a ideia da existência de uma espécie de presidencialismo de coalizão atenuado em alguns estados a ser entendido a partir de dinâmicas especificamente regionais.

PALAVRAS-CHAVE:
secretários estaduais; critérios de nomeação; competência técnica; Rio Grande do Norte; partidos políticos

ABSTRACT

Introduction:

Recent studies on the profile of ministers’ appointments at the federal level have shown greater complexity on the logic underlying such decisions and, consequently, the explanatory insufficiency of a dichotomous distinction between “technical” versus “political” appointments. On the other hand, little is known about the types of appointments in state executives. Based on a case study, We compare whether the naming logics are similar or different from those found at the federal level.

Materials and Methods:

By adopting a qualitative investigation on the biography of all secretaries appointed between 1995 and 2015 in Rio Grande do Norte, Brazil (RN), it was possible to go beyond basic information (such as educational background, professional occupation or party affiliation) of secretaries, identifying the trajectories of individuals in the political and electoral contexts of the state. From there, we propose a typology to measure technical and political competences.

Results:

The analysis of appointments for the case of RN based on this typology reveals that there are local specificities that explain a significant part of the choices made by governors in setting up their office. The most frequent type of appointment is that of a secretary with a mixed, technical and political profile at the same time, which confirms the analytical insufficiency of the “technical” or “political” dichotomy as a exclusive selection criteria by the heads of Executives.

Discussion:

Based on this explanatory data analysis of a specific case, the study opens avenues for future investigations, among them the idea of the existence of a kind of attenuated coalition presidentialism in some states to be understood from specifically regional dynamics.

KEYWORDS:
state-leve secretariat; appointment criteria; competence; state government of Rio Grande do Norte; political parties

I. Introdução1 1 Agradecemos os valiosos comentários de Guillermo Toral e Anderson Santos, assim como dos pareceristas anônimos da Revista de Sociologia e Política. Os resultados são parte das atividades desenvolvidas no âmbito de pesquisa nacional coordenado pelo Prof. George Avelino da EAESP/FGV. Ilza Leão, Antonio Spinelli, George Câmara e Bruno de Oliveira deram importantes informações sobre o perfil dos secretários do RN, pelas quais somos gratos. Especial menção é devida aos alunos que colaboraram nesta pesquisa: Ayanne da Silva, Francymonni Yasmin Melo, Jaedson dos Santos, Jaylan Ferreira de Macedo, Matheus Oliveira de Santana e Richard Mafra.

À diferença dos estudos sobre o executivo federal, análises sistemáticas sobre o perfil dos secretariados nos governos estaduais brasileiros e os critérios para sua escolha são ainda incipientes. Além das análises mais tradicionais, que verificam a relação entre as nomeações ministeriais e a formação da base legislativa de sustentação ao governo no Congresso Nacional, alguns estudos mais recentes têm se debruçado sobre o perfil de ministros a partir de sua trajetória pessoal e profissional de modo a alargar a compreensão dessas nomeações (Palotti & Cavalcante, 2019Palotti, P. & Cavalcante, P. (2019). Estratégias de nomeações ministeriais: entre a política e as políticas públicas. Revista de Sociologia e Política, 27(70), pp. 1-20. DOI: 10.1590/1678987319277001
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; Borges & Coelho, 2015Borges, A. & Coêlho, D. (2015) O preenchimento de cargos da burocracia pública federal no presidencialismo de coalizão brasileiro: análise comparativa de dois ministérios – Ciência e Tecnologia e Integração Nacional. In: F. G. Lopez (orgs) Cargos de confiança no presidencialismo de coalizão brasileiro. Brasília: IPEA, pp.71-105.; Soares D’Araujo & Ribeiro, 2018Soares D’Araujo, M. & Ribeiro, G. (2018) Trajetória socioeducacional dos ministros brasileiros na Nova República (1985-2014). Revista de Sociologia e Política, 26(65), pp. 39-61. DOI: 10.1590/1678-987317266503
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). Sabe-se pouco, por outro lado, sobre o perfil dos secretários estaduais na sua totalidade, prevalecendo uma percepção de que o aspecto político-partidário seria o principal ou mesmo o único critério de escolha dos governos eleitos (Abrúcio & Samuels, 1997; Massonetto, 2014Massonetto, A. P. (2014) Presidencialismo estadual em São Paulo: o que une os partidos na coalizão. Tese de Doutorado. São Paulo: Fundação Getúlio Vargas.; Sandes-Freitas & Massoneto, 2017Sandes-Freitas, V. E. V. de & Massonetto, A. P. (2017) (Ultra)presidencialismo de coalizão estadual: uma análise a partir dos casos de São Paulo e do Piauí (1995-2010). Cadernos Adenauer, 23(2), pp. 119-142.).

Por outro lado, há razões teóricas para se presumir similaridades e diferenças com relação às elites políticas e às políticas públicas em nível estadual (Souza & Dantas Neto, 2006Souza, C. & Dantas Neto, P. (orgs) (2006). Governo, políticas públicas e elites políticas nos estados brasileiros. Rio de Janeiro: REVAN.). A mesma suspeita se aplica à nomeação do secretariado nos estados, importante segmento da elite política estadual. Do ponto de vista mais geral, é razoável a premissa de que a composição de gabinetes, em qualquer sistema político democrático, está orientada a formar uma coalizão vencedora mínima, nos termos de Riker (1962)Riker, W. (1962) The theory of political coalitions. New Haven: Yale University Press., isto é, nem mais, nem menos do que o necessário para governar (para uma revisão ver Strom & Nyblade, 2007Strøm, K. & Nyblade, B. (2007) Coalition theory and government formation. In: C Boix, S Stokes (orgs) The Oxford handbook of comparative politics. Oxford: Oxford University Press, pp. 782-802.). No caso do governo federal, estudos têm mostrado a centralidade de nomeações partidárias para alguns dos ministérios como parte da formação de uma base aliada de apoio legislativo para os Presidentes (Figueiredo, 2007Figueiredo, A. (2007) Government coalitions in Brazilian democracy. Brazilian Political Science Review, 1(2), pp. 182-216.; Amorim Neto, 2000Amorim Neto, O. (2000) Gabinetes presidenciais, ciclos eleitorais e disciplina legislativa no Brasil. Dados, 43(3), pp. 479-519. DOI: 10.1590/S0011-52582000000300003
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; Abranches, 1988Abranches, S. (1988) O presidencialismo de coalizão: o dilema institucional brasileiro. Dados, 31(1), pp.5-33.). A construção deste apoio está, por sua vez, relacionado a estratégias eleitorais dos partidos (ser governo ou oposição), por um lado, e, por outro, às características institucionais do sistema eleitoral e das arenas decisórias para a aprovação da agenda de governamental (maioria de 3/5 para emendas constitucionais; duas casas legislativas para aprovação etc.).

Batista (2017)Batista, M. (2017) Taking portfolios difference seriously: a composite measure based on policy, office, and budget in Brazil. Brazilian Political Science Review, 11(1), pp. 1-28. DOI: 10.1590/1981-382120170001000600
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, por outro lado, encontra lógicas distintas para as nomeações de ministros com base em três dimensões de importância: cargo, orçamento e política pública. Lopez (2015Lopez, F. (2015) Introdução. In: F Lopez (orgs) Cargos de confiança no presidencialismo de coalizão brasileiro. Brasília: IPEA, pp. 11-31, p. 19) também argumenta que pode haver outros critérios para as nomeações ministeriais, como as preferências pessoais do presidente, dos interesses corporativos, da burocracia e, no que é de particular interesse para explicar o nosso estudo de caso, as redes político-pessoais. Por fim, Palotti e Cavalcante (2019, p. 7) sugerem não existir um claro trade-off entre nomeações político-partidárias versus perfil técnico em uma análise de todas as nomeações ministeriais entre 1990 e 2014, reforçando o entendimento de que pode haver outros critérios de nomeação.

Ainda que alguns desses aspectos estejam presentes, no caso da formação de governos estaduais, não necessariamente os mesmos fatores observados no âmbito federal serão decisivos para as nomeações do secretariado (Massonetto, 2014Massonetto, A. P. (2014) Presidencialismo estadual em São Paulo: o que une os partidos na coalizão. Tese de Doutorado. São Paulo: Fundação Getúlio Vargas.). Além dos estados brasileiros não apresentarem duas casas legislativas, a demanda por emendar as constituições estaduais - ou seja, para formação de supermaiorias - pode ser muito menor comparativamente à agenda de reformas do Executivo federal. Segue daí que o próprio tamanho da coalizão de governo pode ser menor a partir da lógica das coalizões mínimas vencedoras. Os cálculos eleitorais dos partidos (ser governo ou oposição) também podem conter outras lógicas na medida em que a disputa partidária está carregada de significados, sentidos e dinâmicas próprios da arena estadual.

O levantamento de informações qualitativas, em maior profundidade, do perfil, trajetória e de redes de relações pessoais de todos os secretários nomeados no período 1995-2015 no caso específico do Rio Grande do Norte, que apresentamos neste texto, permite demonstrar que a lógica de representação dos partidos da base aliada do governador na Assembleia Legislativa não é idêntica à do Executivo federal. Nem todos os partidos da base parlamentar detêm nomeações para o secretariado e não se observam regras de proporcionalidade ao tamanho das bancadas no Legislativo. A análise das trajetórias pessoais dos secretários e secretárias no Rio Grande do Norte sugere haver outras lógicas que explicam suas escolhas. A pergunta que norteia este trabalho é se a menor participação dos partidos aliados nas secretarias equivale a dizer que há uma parcela da composição que pode ser considerada como não partidária na formação dos governos, isto é, se existem outras considerações para a escolha dos futuros secretários. Para isto, avaliamos se nomeações são de caráter técnico e/ou político e, de especial interesse para o nosso estudo, se estes dois elementos são suficientes para explicar as escolhas do governador para compor seu secretariado. A escolha deste estado apresenta vantagens analíticas por duas razões: 1) trata-se de um estado pequeno, o que torna mais fácil identificar membros das elites política, econômica e suas conexões ou rede de relações sociais, e 2) o estado é conhecido pela presença de grandes famílias políticas, situação que mistura filiações partidárias com conexões de ordem pessoal.

Para discutir este ponto, partimos de alguns estudos da literatura internacional (Beckman, 2006Beckman, L. (2006) The Competent Cabinet? Ministers in Sweden and the Problem of Competence and Democracy. Scandinavian Political Studies, 29(2), pp. 111-129. DOI: 10.1111/j.1467-9477.2006.00145.x
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; Marsh, Richards & Smith, 2000Marsh, D., Richards, D. & Smith, M. (2000) Re-assessing the role of departmental cabinet ministers. Public Administration, 78(2), pp. 305-236. DOI: 10.1111/1467-9299.00207
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; Huber & Martinez-Gallardo, 2008Huber, J. & Martinez-Gallardo, C. (2008) Replacing cabinet ministers: patterns of ministerial stability in parliamentary democracies. American Political Science Review, 102(2), pp. 169-180. DOI: 10.1017/S000305540808012X
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; Laver & Shepsle, 2000Laver, M. & Shepsle, K. (2000) Ministrables and government formation: munchkins, players and big beasts of the jungle. Journal of Theoretical Politics, 12(1), pp. 113-124. DOI: 10.1177/0951692800012001005
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) que apresentam as diferentes formas de se compreender o que é “competência” para o cargo e como - ao contrário do que se possa imaginar -, a escolha para a composição de ministérios é uma tarefa altamente complexa. Parte desse debate, porém, trata essa “capacidade técnica” como antagônica a uma nomeação “política”, isto é, de modo dicotômico - “técnico” ou “político”. O diálogo com essa literatura internacional também nos permite dizer que o debate de perfis técnicos ou políticos não é exclusivo do caso brasileiro.

A partir da aplicação de critérios para classificar o perfil do secretariado estadual do Rio Grande do Norte em sete administrações, chegamos a algumas conclusões relevantes para o debate. A depender do entendimento que se tem de “competência técnica” e também de “político”, o perfil dos secretariados pode se alterar significativamente. Nosso argumento é que não se trata de mero artifício metodológico, mas sim do conceito que se aceita para a compreensão das competências desejáveis a um secretário ou secretária de estado. A depender da concepção, a própria distinção dicotômica, ou mutuamente excludente, entre “técnico” e “político” pode desaparecer.

Este texto contém seis seções, com esta Introdução. Na Seção II discutimos a complexidade de nomeações para gabinetes a partir de alguns trabalhos da literatura internacional e a proposta metodológica que adotamos para classificação do perfil do secretariado potiguar. Na Seção III fazemos um breve histórico das disputas político-partidárias e eleitorais no entorno de cada governador do RN de modo a ilustrar como particularidades do contexto estadual afetam tanto a composição da base aliada no legislativo quanto as nomeações para o secretariado. A Seção IV mostra os resultados da classificação do perfil dos secretários do RN e aponta se há ou não padrões recorrentes ou específicos nos diferentes governos. Na Seção V propomos um possível modelo alternativo para explicar as lógicas das nomeações que poderiam ser aplicadas empiricamente para outros estados brasileiros, e nas Considerações Finais (Seção VI) apontamos para as possíveis implicações dos achados deste artigo para uma agenda de pesquisa que procure explicar as lógicas que orientam as nomeações para a burocracia de alto escalão nos Estados.

II. Competência técnica e política: outras considerações para as nomeações de gabinete

Ao analisar o perfil de nomeações ministeriais, Batista (2017)Batista, M. (2017) Taking portfolios difference seriously: a composite measure based on policy, office, and budget in Brazil. Brazilian Political Science Review, 11(1), pp. 1-28. DOI: 10.1590/1981-382120170001000600
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, Palotti & Cavalcante (2019) e Borges & Coelho (2015) encontram outras lógicas subjacentes que explicariam a escolha de Ministros pelo Presidente da República, com resultados que enfraquecem a capacidade explicativa da dicotomia de um perfil técnico versus político. De modo similar ao que encontramos em nosso estudo, Palotti & Cavalcante (2019) observam uma proporção significativa de ministros que combinam perfis com experiência técnica e política ao mesmo tempo. Apesar do Índice de Politização criado pelos autores ser muito útil para a esfera federal, optamos por criar uma tipologia ao invés de um índice, de modo a captar a maior variação qualitativa dos perfis do secretariado potiguar, separando dimensões como escolaridade de outras características como experiência e conexões partidárias, societais ou familiares.

Assim, propomos a criação de tipos de secretárias e secretários estaduais para testar a relação entre perfis técnicos e políticos. Antes disto, porém, faz-se necessário especificar quais serão os critérios para classificação de um nomeado. Para isto, recorremos a alguns estudos sobre o tema na literatura internacional de modo a permitir algum tipo de comparação com outros países.

O primeiro fato que chama a atenção nesses estudos é a ausência de questionamentos com relação às nomeações partidárias. Isto parece estar, em boa medida, associado à tradição comparativista nos estudos dessa área em que se incluem países com sistemas parlamentaristas. Nos sistemas parlamentaristas, uma nomeação “política” não é uma questão relevante na medida em que a própria escolha do primeiro-ministro é resultado de alianças construídas no Legislativo. Nesse sentido, a composição governamental no sistema parlamentarista é necessariamente partidária. Amorim Neto & Samuels (2010)Amorim Neto, O. & Samuels, D. (2010) Democratic regimes and cabinet politics: a global perspective. Revista Ibero-Americana de Estudos Legislativos, 1(1), pp. 10-23. DOI: 10.12660/riel.v1.n1.2010.4123
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estimam que apenas 2% dos ministros em gabinetes de países com parlamentarismo puro (excluindo-se, portanto, casos semipresidenciais) podem ser classificados como não partidários. A proporção sobe para 7% nos ministérios semipresidencialistas e nada menos que 21% nos presidencialistas.

Além disto, é possível também verificar que, quando há alguma referência às nomeações de políticos profissionais como ministros nos estudos levantados, seja em sistemas parlamentaristas ou presidencialistas, é no sentido oposto: o risco de que nomeações “técnicas” eliminem as bases da representação política e os apoios necessários. Porém, isto não quer dizer que a discussão sobre a capacidade técnica dos nomeados aos gabinetes não esteja colocada. De fato, a consideração de diversos fatores revela a complexidade que envolve nomeações para o primeiro escalão dos governos.

Primeiramente, os autores são consensuais em afirmar que as funções esperadas de um ministro, isto é, critérios que seriam levados em conta para sua nomeação, vão muito além da capacidade técnica. Marsh, Richards & Smith (2000), em estudo qualitativo sobre o perfil de Ministros de governos britânicos concluem que há quatro funções distintas que se espera dos ocupantes destes cargos, que podem também ser lidas como habilidades esperadas: 1) ter uma visão de “projeto” para a pasta que irá ocupar, 2) um papel político, 3) ser capaz de tomar decisões executivas em tempo oportuno e 4) ter habilidade de relações públicas.

A primeira habilidade refere-se à capacidade que um potencial nomeado teria de propor uma agenda de políticas públicas para a pasta, isto é, sua visão estratégica. Na análise dos autores, a capacidade de ter ideias, projetos e iniciativas próprias – leia-se aquelas que não foram sugeridas pelo próprio corpo burocrático da pasta – e que alterem de modo significativo a agenda de políticas públicas por meio de reformas é evento relativamente raro, sendo o mais comum a adoção de pequenas reformas incrementais ou mesmo nenhuma mudança, apenas a administração de problemas prementes e de atenção prioritária. Neste caso, os autores observam que os casos mais frequentes no estudo são ministros que implementam políticas já previstas ou sugeridas pelos burocratas de carreira das pastas.

A segunda habilidade refere-se ao papel necessariamente político de uma ministra ou ministro no sentido de que ela ou ele será responsável por fazer a defesa das propostas tanto no interior do Gabinete, isto é, defendendo a prioridade das propostas de sua pasta frente a necessidades de outras pastas, como também frente ao Parlamento ou ao partido a que pertence. A terceira função é a capacidade de tomar decisões executivas rápidas, ou seja, no tempo necessário para viabilizar a proposta de política pública e de conseguir não se opor a servidores burocratas que dão apoio à gestão. A última habilidade está conectada à capacidade de comunicar as ações da pasta, tanto com relação à mídia e opinião pública em geral quanto com grupos de interesse variados.

Fica subjacente na discussão dos autores que as habilidades técnicas de especialistas serviriam apenas como um elemento adicional à capacidade de atuação de um ministro na medida em que, em cargos públicos e executivos deste tipo, deter apenas o conhecimento técnico é insuficiente para garantir uma capacidade de gestão.

Alguns exemplos de quando a gestão de ministros falhou ilustram bem este ponto. Tony Benn, um político do Partido Trabalhista Britânico, reconhecido pelas suas posições socialistas e aliança com sindicatos, não teria conseguido implementar as reformas que tinha como projeto político para a pasta que ocupava. A interpretação de Marsh, Richards e Smith (2000) é que Benn desejava mudar o departamento de indústria de modo a incorporar a representação de sindicatos, mas a burocracia (servidores) apontava não apoiar a proposta. Benn ignorava as recomendações da burocracia, que ele considerava conservadora, e consultava regularmente atores e especialistas externos, inclusive os sindicatos. Com isto, as reformas não teriam saído do campo das ideias. Os autores também citam o caso de ministros que demoraram demais para tomar uma decisão, contemplando excessivamente as alternativas existentes sem produzir uma decisão no tempo adequado e, na prática, inviabilizando a adoção de políticas públicas.

Laver & Shepsle (2000) vão além para dizer que, ao contrário do credo popular, encontrar um político “ministeriável” pode ser uma tarefa bastante difícil para os partidos que chegam ao poder, especialmente no caso de partidos minoritários. Para os autores, os critérios de escolha dos governos levam em conta a reputação de competência política e administrativa de um potencial Ministro e, de preferência, na área temática da política pública daquela pasta. O argumento é que, com esses rígidos critérios, o número de políticos que seriam “ministeriáveis” é muito menor que o conjunto de todos os políticos de um determinado partido. Por isso, os governos tenderiam, muitas vezes, a acionar “ministeriáveis” de outros partidos, ou seja, procuram por recomendações de outros nomes. No caso dos governos do RN, observamos várias nomeações que apareciam na mídia local como sendo “indicação” de líderes políticos de grande envergadura no Estado, mas que aparecem no sentido de sugestão de nomes qualificados para a pasta e não, necessariamente, de uma nomeação em nome do partido. Isto parece confirmar a noção de que a busca de ministros ou secretários de estado “qualificáveis” para a pasta é uma tarefa mais complexa do que comumente se diz, e que o histórico dos partidos tem um peso considerável na formação de quadros ou nomes “ministeriáveis” para os governos.

Huber e Martinez-Gallardo (2008) também comungam do entendimento de que líderes partidários buscam em um potencial ministro a ser nomeado, entre seus quadros, uma combinação entre conhecimento especializado e habilidade política. Para os autores, este conhecimento técnico não está necessariamente atrelado à formação educacional ou profissional, mas ao conhecimento sobre os efeitos que determinadas políticas geram na área setorial da pasta. Com relação às habilidades políticas, os autores citam a capacidade de negociar com atores-chave, como outros partidos ou facções no interior dos partidos, de se relacionar bem com a mídia, de defender as políticas no Parlamento, de gerenciar os servidores públicos dentre outras que não têm relação unívoca com formação acadêmica ou atuação profissional. Por estas razões, os autores partem da premissa de que, ainda que essas duas habilidades sejam um pré-requisito, líderes partidários tomam decisões num ambiente de grande incerteza com relação ao desempenho real de um potencial ministro no momento de sua escolha, isto é, há uma aposta de desempenho, que pode ou não corresponder às expectativas.

Por fim, Beckman (2006) apresenta uma discussão que questiona a noção do que seria um ministro “tecnicamente competente”. Ao estudar o perfil dos ministros em diferentes Gabinetes do governo sueco, o autor destaca que há uma percepção generalizada de que ministros de esquerda, mais precisamente, quando o partido social-democrata governa, seriam menos competentes que governos de direita. A discussão de Beckman nos interessa de modo particular pois se aproxima do tema central deste artigo: seriam nomeações “políticas” o critério mais comum adotado pelos governos estaduais brasileiros e, em especial no caso de nosso objeto de estudo, explicaria o perfil dos diferentes secretariados do Rio Grande do Norte?

O autor inicia revendo o próprio conceito de “competência”, convergindo com os estudos já citados de que a “qualificação técnica” de um potencial ministro não é garantia de sucesso na gestão de uma pasta. Como destaca, a competência (técnica) não é a única habilidade necessária de um ministro, e nem, necessariamente, a mais importante, pois há habilidades políticas e de gestão que também seriam cruciais para o seu desempenho (Beckman 2006, p. 113). A capacidade de liderança recebe destaque na análise do autor, especialmente no que se refere ser capaz de mobilizar (ou motivar) a máquina administrativa, isto é, os burocratas, servidores da pasta para que apoiem as propostas de políticas públicas ou de reformas.

Ao revisar quais critérios foram utilizados por outros estudos para classificar a competência, Beckman argumenta que o padrão é observar apenas a experiência profissional e formação educacional antes do ministro ser nomeado. Esse tipo de critério ou forma de se definir o nível de competência técnica de um ministro ou de um secretário de estado no Brasil é bastante comum tanto no debate público quanto nas mídias e opinião pública. De acordo com o autor, porém, o uso de apenas estes dois parâmetros é equivocado. Por que um parlamentar que tem uma trajetória de discussão numa área, mesmo que sem o diploma universitário ou sem ser profissional da área, não deve ser compreendido como um especialista? Por que a experiência de já ter ocupado uma pasta ministerial não deveria ser considerada como um critério de competência para o cargo? Por que não adotar um critério que inclua as experiências políticas e não apenas as ocupações não-políticas?

O autor não advoga, porém, que competências técnicas sejam descartadas, pelo contrário. Mas a discussão o leva a propor uma revisão dos critérios normalmente adotados para isto. E, como mostra, a adoção de diferentes critérios gera perfis de ministros variados, isto é, como consequência do entendimento que se tem das habilidades que seriam adequadas para um ministro de estado.

Analisando o caso das nomeações para os ministérios relacionados às áreas econômica e de questões sociais, e partindo apenas do critério mais estrito de formação profissional/educacional na área correlata à pasta, o autor encontra que apenas 36% dos ministros suecos tinham as qualificações técnicas esperadas no período de 1917 a 2004, num total de 183 nomeações. Ao adotar, por outro lado, um critério mais amplo do que seria considerado competente para o cargo, neste caso incluindo outras experiências, a proporção aumenta para 46% de experts. Essas duas classificações do autor são interessantes pois revelam que não se trata de mero artifício metodológico para estimar quantitativamente o perfil dos ministros. Ao contrário, a estratégica metodológica mostra que a depender do entendimento que se tem, pode-se concluir que um Gabinete é majoritariamente político ou majoritariamente técnico.

O autor continua adicionando outros critérios que habilitam um ministro a ser classificado como competente para o cargo. Primeiramente, introduz o critério de participação em comissões temáticas no Parlamento. O resultado novamente se altera e sobe para 56% de ministros experts. Em seguida, adiciona experiência em comissões formadas pelo governo (não no parlamento) aumentando mais a proporção. Por fim, um terceiro critério: se o nomeado já teve experiência anterior na pasta.

Quando todos esses novos critérios são compilados conjuntamente, o resultado original se inverte completamente: só 12% dos ministros não tinham competência na área. Ou, dito de modo direto: enquanto no critério restrito, com base apenas na formação educacional ou profissional, 36% dos ministros suecos foram considerados “competentes” para o cargo, quando se adicionam outras experiências do “mundo político”, 88% dos ministros seriam especialistas na área temática da pasta. Para Beckman, isto equivale a dizer que uma minoria pode ser considerada como “amadores no momento em que assumem o Gabinete” (Beckman 2006, p. 111).

À frente, aplicamos essa proposta para classificar os secretários de estado nomeados por diferentes governos do RN entre 1995 e 2015. Antes disto, porém, apresentamos algumas informações elementares sobre o mundo político potiguar que importam para nossa discussão.

III. O contexto político-eleitoral do RN e a base governista

Investigações sobre o perfil dos secretariados nos governos estaduais no Brasil são tipicamente motivados a explicar a representação partidária na formação dos governos. Os trabalhos existentes dialogam frequentemente com as teorias sobre sistemas eleitorais e partidos políticos e, portanto, há predominância desse olhar analítico para explicar as as relações entre executivo e legislativo e questão da governabilidade estadual (Massonetto, 2014Massonetto, A. P. (2014) Presidencialismo estadual em São Paulo: o que une os partidos na coalizão. Tese de Doutorado. São Paulo: Fundação Getúlio Vargas.; Sandes-Freitas & Massonetto, 2017). Nesse sentido, a produção existente hoje trata apenas lateralmente sobre as lógicas de escolha para a administração estadual na medida em que o objeto de estudo central é a composição partidária no Legislativo pós-eleições e a formação de uma coalizão de governos aos moldes dos estudos em nível federal. Há, assim, razões para se estudar os casos estaduais na medida em que não se pode inferir que o observado a nível federal será o mesmo que nos governos estaduais.

De qualquer modo, alguns desses estudos podem ser úteis para nossa análise. Por exemplo, Passos (2013)Passos, M. (2013) Estabilidade e rotatividade do secretariado no Rio Grande do Sul: 1991-2002 – governos de minoria e governos de maioria. Tese de Doutorado. Porto Alegre: Universidade Federal do Rio Grande do Sul., em seu estudo sobre a formação das bases de diferentes governos no Rio Grande do Sul, acaba por caracterizar uma boa parte do secretariado estadual. Ainda que a atenção central do autor esteja na correspondência entre partidos no Executivo e no Legislativo, o estudo revela que há nomeações que combinam um perfil técnico e político, o que também verificamos em nosso estudo. O autor mostra que há padrões variados de nomeações para o secretariado entre os três governos investigados, que seriam subjacentes à escolha do governador em formar um governo minoritário ou majoritário em termos do tamanho da base aliada no Legislativo estadual.

Enquanto os governos de Alceu Collares do PDT (1991-1995) e Olívio Dutra do PT (1999-2002) optaram por um governo minoritário, Antonio Brito do PMDB (1995-1998) forma uma base parlamentar de governo majoritária. Essa diferença está atrelada à constituição histórica de cada partido, de sua ideologia e do tamanho das facções internas no interior das agremiações. O caso aqui nos interessa porque confirma o entendimento de que uma parte das nomeações para o secretariado são explicadas pela forma como o governador e seu partido optam por se aliar a outros partidos. Dessa forma, um apoio minoritário foi escolhido como estratégia pelo governo Collares, como destaca o autor, para abrigar as facções no interior do PDT, em que 85% das secretarias foram alocadas exclusivamente para este partido. No caso de Dutra, havia secretários do PT, PSB e PDT e o autor destaca que a lógica que explica esta decisão estaria, como no governo Colares, relacionada às tensões entre as facções no interior do partido do governador. O governo de Brito, por outro lado, buscou formar uma aliança ampla no Legislativo, majoritária, e com esta decisão, todo o seu secretariado acabou por ser partidário, com uma gama mais ampla de partidos.

Há, portanto, uma inegável conexão entre a quantidade de nomeações partidárias e a estratégia de formação da base aliada de um governo. Ainda assim, o trabalho de Passos (op. cit.) identifica outras possíveis lógicas. O autor cita casos de nomeações que não apresentam nenhuma vinculação partidária como a pasta de Saúde, que tende a ser ocupada por um especialista da área, ainda que possa combinar-se com filiação partidária – algo que também verificamos para esta e outras pastas no caso do Rio Grande do Norte. Outro achado do autor, que também verificamos no nosso estudo, é quando uma nomeação de um secretário está atrelada à “liberação” de uma vaga no Legislativo para um partido aliado. Assim, no governo Collares, Aldo Pinto é nomeado secretário e, com isto, deixa aberta uma vaga na Câmara dos Deputados que, com isto, é assumida pelo suplente, do PSDB, partido que havia estado coligado nas eleições do governador e era parte da base aliada até 1993. Na mesma medida, ao romper com o governo em 1993, Collares exonera os secretários do PSDB no governo e, com isto, o partido perde a vaga assumida na Câmara dos Deputados. Os custos dessas transações podem, portanto, ir além da simples presença de um partido no secretariado. Também no caso do Estado do RN, observam-se estes movimentos de trocas no secretariado que correspondem à saída de partidos aliados da base do governo.

Abrucio e Samuels (1997)Abrucio, F. L. & Samuels, D. (1997) A nova política dos governadores. Lua Nova, s/v(40-41), pp. 137-226. DOI: 10.1590/S0102-64451997000200007
https://doi.org/10.1590/S0102-6445199700...
argumentam que no período da transição democrática os governadores detinham grande poder de influência no sistema político brasileiro. Apesar de enfatizar a ascendência destes atores políticos nas decisões tomadas no Congresso Nacional, os autores apontam a importância conferida pelas elites políticas a manutenção de suas bases eleitorais locais. Nesta linha, comumente os congressistas, logo após sua eleição, optavam por assumir postos no governo estadual, pois acreditavam na sua maior propensão de ganho eleitoral do que a atuação no parlamento nacional. Elementos político-partidário seriam, assim, importantes preditivos para nomeação dos secretários estaduais.

Olhando mais especificamente para a relação executivo-legislativo no âmbito estadual, Sandes-Freitas & Massoneto (2017) ratificam o peso partidário nas nomeações do secretariado do Piauí e São Paulo em suas respectivas pesquisas. Eles alertam, no entanto, que “a dominância do partido do governador no gabinete é patente, sendo a distribuição das pastas, na maioria dos casos, pouco proporcional ao seu peso dos partidos no Legislativo” (Sandes-Freitas & Massonetto, 2017, p.139). A base de apoio dos governadores na Assembleia Legislativa é, assim, sedimentada a partir de outros incentivos e constrangimentos político-institucionais. Em sua tese sobre o caso de São Paulo, Massoneto (2014) identifica os seguintes elementos que suportam a formação das coalizões: o interesse por apoio na arena eleitoral local, uso de transferências ou investimentos estaduais nos redutos eleitorais ou mesmo a disposição de cargos de segundo e terceiro escalão.

A ideia central que retemos aqui é, portanto, de variação. Há diversos elementos que podem mitigar a lógica partidária na composição do primeiro escalão entre uma gestão e outra. O critério partidário, por um lado, pode se dar com maior consistência no recurso aos cargos de segundo escalão - elemento presente, aliás, também na esfera federal. Como o segundo escalão é bem menos estudado (e também não é objeto desta pesquisa), não sabemos em que extensão ele funciona como compensação por expectativas não cumpridas na ocupação do primeiro.

Há aspectos especificamente estaduais que devem figurar na reflexão. Um ponto objetivo óbvio, mas raramente notado nessa discussão, merece menção: assembleias estaduais são bem menores que o Congresso Nacional. A maior assembleia estadual, a paulista, tem menos de cem integrantes – a sua congênere potiguar, nosso objeto aqui, possui 24 deputados. A tarefa de compor o secretariado, se pensamos a questão estritamente em termos de escala, é facilitada. O governador pode, por exemplo, fazer contatos pessoais, facilitando transações eleitorais relacionadas ao pleito de um prefeito. Alguns deputados estaduais podem valorizar mais sua influência em disputas municipais do que a ocupação de espaços na administração estadual.

Em todo caso, como ponto de partida teórico, a noção advinda da teoria das coalizões de que interessa à governadora ou governador montar algum tipo de “coalizão vencedora mínima” nos é útil aqui. Tal coalizão deriva em parte de requisitos formais objetivos, como seria atingir um patamar de 50% + 1 dos votos, e podemos operar com 13 votos como o objetivo do executivo na Assembleia. Esse limiar pode vir a ser ampliado caso o líder da coalizão esteja incerto sobre o real tamanho de sua coalizão de apoio. Trata-se do clássico efeito de informação rikeriano, cuja ocorrência já foi proposta para o caso do governo Garibaldi Alves (1995-2002). Os Alves sobredimensionaram a coalizão por não terem certeza de qual patamar seria suficiente para ascensão a governador do filho do líder familiar. (Riker, 1962; Lacerda & Oliveira, 2006Lacerda, A. & Oliveira, B. (2006) Patronagem e formação de coalizões: o caso da Unidade Popular no RN. Cronos, 5(1/2), pp. 273-287.). A coligação do peemedebista, a Unidade Popular, saiu do pleito de 1994 com dez dos 24 deputados estaduais, ou seja, quase 42% dos membros da Casa. No início da gestão, em particular por intermédio da cooptação de aliados de Agripino Maia via PPR (depois PPB), o governador já amealhava 2/3 (16 parlamentares) do legislativo estadual (Lacerda & Oliveira 2006, p. 279-280). O Quadro 1 apresenta uma síntese da base aliada em todos os governos do RN analisados.

Quadro 1
Base parlamentar do governador(a) na Assembleia Legislativa do Rio Grande do Norte

Como veremos em maior detalhe à frente, a gestão de Garibaldi Alves apresenta níveis de partidarização acentuados no secretariado, só que com nítida sobre-representação do partido do governador desde o início do primeiro mandato. Mesmo a inclusão do PSB na base de apoio, como parte dos esforços de Aluízio Alves – líder político pioneiro da família – para criar ampla maioria favorável a eventual candidatura de seu filho, deputado Henrique Alves, a governador em 2002, não altera o quadro. Do total de nomeações secretariais efetuadas no segundo mandato do governo, a maioria absoluta premiou integrantes do PMDB - 54% no total. É verdade que o PMDB também detinha maioria similar de deputados na base aliada, mas precisamos considerar que um subconjunto das indicações não tinha critério partidário. Levando em consideração apenas as indicações de filiados a partidos da base para secretário, quase 80% é dirigida a peemedebistas. Mesmo o PPB (antigo PPR) obteve apenas duas secretarias, ou cerca de 8% do total da “cota” destinada aos partidos, apesar de possuir 35% dos deputados da coalizão governativa (Macedo, 2017Macedo, J. M. F. (2017) Análise da relação entre a composição do secretariado do primeiro governo Garibaldi Filho e a formação da base aliada na Assembleia Legislativa do Rio Grande do Norte. In: XXVIII Congresso de Iniciação Científica e Tecnológica da UFRN. Natal: UFRN.; Santos, 2017Santos, J. G. (2017) A relação entre a base aliada na Assembleia Legislativa e o Secretariado executivo estadual: uma análise do governo Garilbaldi II (1999-2002). In: XXVIII Congresso de Iniciação Científica e Tecnológica da UFRN. Natal: UFRN.).

O governo Fernando Freire, em 2002, poderia ter alterado o quadro acima. A derrota de sua tentativa de ser reeleito implicou, porém, curto e obscuro secretariado. É o governo Wilma de Faria (PSB), a vitoriosa em segundo turno contra Freire, que inaugura novo padrão na relação estudada aqui. Na pequena coligação eleitoral da governadora, apenas o PSB elegeu deputados estaduais (2), mas a compreensão da extensão de sua base de apoio exige que observemos o segundo turno, quando Faria pôde agregar a coligação liderada pelo PTB e PFL (Vontade do Povo) à sua base de apoio. O PPB de Freire elegeu nada menos que um terço da Assembleia, perdendo rapidamente esse patamar, entretanto, pelos mesmos mecanismos que haviam tornado a agremiação forte no período de Garibaldi. Já com o nome de PP, por sinal, a agremiação não elege nenhum deputado estadual em 2006, quando a governadora foi reeleita. O PMN passa a ser novo foco de atração de parlamentares desejosos de aproximação com o governo, a partir da liderança do presidente da Assembleia, Robinson Faria.

As nomeações de Wilma se espalham no seu próprio partido e por PFL, PT, PDT, PCdoB, PPS, PL (posteriormente PR), PTB, configurando-se um cenário de maior fragmentação partidária derivado em parte da própria Assembleia. A pesquisa detectou grande quantidade de indicações na cota pessoal da governadora, assim como técnicos com perfil político no sentido amplo do termo (ver Tabela 1 na Seção IV) e o PSB não tem a dominância observada no PMDB em governos anteriores. Os peessebistas mantêm quatro secretários nos primeiros (2003-2006) e segundo (2007-2010) mandatos, dentro de um total de onze e treze indicações estritamente partidárias, respectivamente. Em todo caso, o governo é claramente majoritário na Casa até o início de 2010. Há diversas mudanças partidárias na composição da coalizão nos dois mandatos (ver Quadro 1).

Tabela 1
Tipologia e perfil das nomeações para secretário do Rio Grande do Norte, a partir de uma concepção restrita, por governo, 1995-2015

Em 2010 verifica-se novamente a ascensão ao governo de um vice-governador que se candidata à reeleição, desta feita Iberê Ferreira (PSB). O perfil já traçado pouco se altera aí. Tal como Freire em 2002, Ferreira é derrotado pela senadora Rosalba Ciarlini (DEM), aliada naquele momento ao Senador Agripino Maia (DEM), importante líder local. O governo Rosalba (2011) nomeará grande quantidade de técnicos para o primeiro escalão e o prêmio aos partidos componentes de sua coalizão será correspondentemente mitigado. Ainda assim, a cooptação de PMDB, PTB e PR garantiria, em conjunto com os originalmente coligados DEM, PMN e PSDB, maioria ampla na assembleia estadual - algo como 16 legisladores. O modus operandi do governo, entretanto, junto com sua opção por um governo de time “técnico” alinhado à governadora e ao seu marido gera grande fricção e ansiedade política em aliados desde o início. Seu rompimento com o vice-governador Robinson Faria já no fim de 2011 marca o início do lento e progressivo declínio político da gestão (Lacerda, 2017Lacerda, A. (2017) Derrotando o líder Stackelberg: a disputa de governador do RN em 2014. Política Hoje, 26(2), pp. 5-37.).

O PMDB elegera no pleito de 2010 nada menos que um quarto do legislativo estadual, ou seja, seis deputados, o que por si só indica a importância da inclusão da agremiação na base de apoio. Na prática, a inserção ambígua do partido torna-se ponto central dos problemas de governação enfrentados pela gestão, até porque o apoio dos peemedebistas vinculava-se ao do PR. Os peemedebistas haviam se dividido em dois grupos na eleição: a facção liderada pelo então deputado Henrique Alves apoiou o governador Iberê, enquanto o grupo comandado pelo senador Garibaldi Alves Filho perfilou ao lado de Rosalba. Inicialmente, indicados de Garibaldi ingressam no governo, sendo seguidos por indicações de Henrique; a deterioração da aliança com os peemedebistas alienará por fim ambos os Alves em 2013. Há no mínimo nove indicados relacionados aos partidos citados acima, incluindo o próprio vice-governador. Com as saídas de aliados exibidas no Quadro 1, porém, o governo se encerra em clara minoria na legislatura.

Pelo menos na retórica, a ideia de governo técnico e pessoal do governante prossegue no início do governo seguinte, o de Robinson Faria (PSD). Ele próprio o anunciou dessa forma, enfatizando currículos no perfil dos secretários e, em boa medida, como resposta à politização desta questão por candidatos competidores, ainda que três de seus secretariados “técnicos” viessem, mais à frente, a se filiar ao seu partido (PSD). Em nossa pesquisa, examinamos apenas a primeira formação do secretariado em 2015. Faria fora eleito em 2014 por uma coligação que incluía PP, PT e PCdoB. Os progressistas indicam apenas um não filiado para fazer parte do secretariado, mas o PT domina a “cota partidária” formal, com 5 integrantes de um total de 9 filiados a partidos, restando um secretário para o PCdoB e três para a própria agremiação do governador. Deve-se destacar que os petistas possuíam somente um deputado estadual, tendo importância também a senadora sufragada nessa eleição. Os outros quinze integrantes do primeiro escalão, incluindo-se nessa categoria os chefes de órgãos da administração direta que não são propriamente secretarias, apresentam-se como técnicos ligados em maior ou menor medida à cota pessoal do governador. Ou seja, isso comporia o considerável patamar de 63% do secretariado.

No que toca ao apoio na Casa legislativa, cumpre notar que a coligação pró-Robinson elegera apenas cinco deputados estaduais e a cooptação de novos aliados, se ocorreu, não se deu via secretariado em um primeiro momento. O governador não passou por maiores dificuldades, entretanto, no início de governo para ter maioria em votações e, a rigor, é pouco conhecida mesmo após o período estudado aqui como se configura concretamente a articulação política do governo Robinson. Nossa hipótese é que a construção de maiorias se dá de maneira atomizada. Isso pode ser incentivado pela imensa fragmentação gerada pelo pleito de 2014, no qual nada menos que onze partidos ingressaram na Assembleia Legislativa, ocupando as 24 vagas desse Legislativo. A modesta agenda legislativa do governante talvez facilite, outrossim, esse tipo de cooptação.

Como caracterizar as principais gestões analisadas em conexão ao seu relacionamento com o legislativo? Qualquer classificação é provisória a essa altura da investigação, mas é possível definir certos parâmetros de maioria no que toca à consistência da mesma. Sendo assim, o governo Garibaldi pode ser designado como partidarizado, majoritário e de dominância clara do partido do governador sobre o primeiro escalão; na Assembleia cede-se espaço a um partido aliado (PPB). O governo Wilma é partidarizado, majoritário e sem dominância do seu partido sobre o secretariado, ocorrendo incidência de “cotas pessoais” em cargos importantes; na Assembleia cede-se espaço a um partido aliado (PMN). O governo Rosalba apresenta baixa partidarização, sem núcleo partidário dominante seja na base legislativa seja no secretariado. Por fim, o governo Robinson (aqui estudado apenas na primeira formação do secretariado) exibe baixa partidarização com obtenção individualizada de apoios no legislativo potiguar. De modo geral, não constatamos tentativas claras de dar maior proporcionalidade às indicações partidárias no que concerne a postos de primeiro escalão e bancadas na assembleia estadual. Na próxima seção, procuramos problematizar os desafios que chefes do executivo têm para a escolha de nomes para cargos de alta visibilidade pública e poder de decisão, postos para os executivos eleitos, que incluem questões de apoio partidário, mas não estão restritas a isto.

IV. A Interface do Técnico e do Político no Primeiro Escalão Potiguar (1995-2015)

Nesta seção, investigamos o tipo de nomeação para o Secretariado do RN procurando identificar os fatores, além dos partidários, que poderiam explicar as lógicas subjacentes a estas decisões. Utilizou-se estatística descritiva para verificar o perfil de nomeações para as secretarias em cada um dos governos estudados2 2 O Gabinete Civil, apesar do status de administração direta, foi excluído da análise, pois trata-se de uma pasta cuja atribuição é eminentemente política e, nesse sentido, não haveria critérios “técnicos” para classificá-lo. De qualquer modo, como todos os governos analisados tiveram nomeados frente ao Gabinete Civil, essa exclusão mantém o restante das classificações comparáveis. . O levantamento das trajetórias pessoais de todos os secretários nomeados entre 1995 e 2015 foi feita a partir de levantamento de dados biográficos, consultas à matérias de jornais e entrevistas com especialistas da política potiguar. Ao final, produziu-se um banco de dados com informações individuais sobre os nomeados como formação educacional, trajetória profissional e/ou política, filiação partidária etc. Essa estratégia metodológica qualitativa e aprofundada permitiu também levantar outras informações mais minuciosas com relação às conexões pessoais, setoriais, organizacionais ou vínculos com os grupos familiares tradicionais da política potiguar.

O Quadro 2 apresenta os critérios que adotamos para classificar o secretariado de primeiro escalão do governo do RN. Em termos metodológicos, foram consideradas todas as nomeações em que os secretários permaneceram na pasta por mais de um mês. Isto exclui, por exemplo, secretários adjuntos que assumem durante as férias dos titulares assim como interinos que permaneceram frente à pasta por menos de 30 dias. As fontes de informações foram: os Diários Oficiais do Estado do Rio Grande do Norte e pedidos de informação via Lei de Acesso à Informação. Para as informações qualitativas das trajetórias de cada Secretária ou Secretário foram utilizadas diferentes fontes de informação: pesquisas nas mídias locais, artigos acadêmicos ou de jornais, dissertações e teses, além de entrevistas com pessoas que conhecem a política local e as filiações de vários dos secretários potiguares e suas redes de conexões com as “famílias políticas” do Estado (como os “Alves”, os “Maia”, os “Rosado” etc.).

Quadro 2
Critérios para a Classificação de Secretários nos Governos Estaduais

Pode-se considerar que o critério restrito adota a perspectiva dos estudos mais clássicos que concebem como “político” apenas aqueles indivíduos que possuem filiação partidária e “técnico” aqueles que têm atuação profissional e formação educacional no setor. É também a forma mais comum no debate público e político de se classificar um ministro ou secretário de Estado. Nos interessa estimar os perfis dos secretários a partir desse critério restrito, em um primeiro momento, justamente para que possamos comparar as diferenças com relação à adoção de critérios mais amplos.

Partindo da classificação proposta, as Tabelas 1 e 2 apresentam uma tipologia de perfis que resulta da combinação das quatro possibilidades lógicas de perfis: 1) exclusivamente político 2) exclusivamente técnico 3) perfil político e técnico ao mesmo tempo e 4) nenhuma das duas características, nem político, nem técnico.

Por exemplo, Wober Junior, Secretário de Educação no primeiro governo de Wilma de Faria, foi considerado estritamente político porque era filiado ao PPS, foi vereador e deputado estadual e não possuía nem formação, nem atuação profissional na área correlata da pasta, sendo bacharel em direito. Sua nomeação está associada a uma estratégia de acordos com o PTB para ampliação da base aliada do governo, liderado por Fernando Bezerra (PTB), de modo que a nomeação de Wober (do PPS) como secretário de educação abrisse uma vaga na Assembleia Legislativa para o suplente a deputado estadual, Marciano Junior, do PTB. Esta negociação estava também atrelada aos acordos para a definição de candidaturas e apoios às eleições municipais de 2006.

A secretária Betânia Ramalho, também da pasta da Educação, porém na gestão de Rosalba, foi considerada como exclusivamente técnica. Ramalho era professora do Departamento de Educação da UFRN e não possuía qualquer vínculo partidário ou mesmo conexão com associações ou organizações como sindicatos, movimentos sociais, de classe e assemelhados. A nomeação teria sido uma sugestão do então reitor da UFRN, Ivonildo Rego, que, não podendo aceitar ao convite da governadora para assumir a pasta, sugeriu o nome de Betânia.

Exemplo de um secretário concomitantemente político e técnico é Luiz Eduardo Carneiro da Costa, secretário da Educação, da Articulação com os Municípios e chefe do Gabinete Civil ao longo dos dois governos de Garibaldi Alves. Luiz Carneiro era filiado ao PMDB e um nome de confiança do governador, historicamente ligado aos “Alves”, e considerado um nome qualificado tanto para a articulação política necessária para as duas últimas pastas, quanto para a Secretaria da Educação na medida em que era professor da UFRN e membro do Instituto Histórico Geográfico do RN. Luiz Eduardo assume a pasta da Educação ao final de 1997 após a publicização de um escândalo de desvios da merenda escolar que obrigou o governador a exonerar vários ocupantes da pasta, inclusive a Secretária de então. Filiado desde 1985 ao PMDB, Luiz Eduardo será candidato a vice-prefeito de Natal em 2008 na chapa com Fátima Bezerra do PT, ocasião em que ambos serão derrotados.

Por fim, um tipo residual - não ser político, nem técnico - pode ser exemplificado no caso do secretário Tertuliano Pinheiro, que assumiu a Secretaria de Ação Social no governo de Fernando Freire. Publicitário especializado em campanhas eleitorais e gestor de marketing, não detinha formação educacional ou atuação profissional na área de assistência social. Também não era filiado a nenhum partido e nem foram identificadas relações com associações de classe ou representativas. Não temos explicações apropriadas para esse desvio de comportamento.

A Tabela 1 apresenta o perfil das nomeações para o secretariado potiguar com base nesta concepção clássica, que nomeamos de critério restrito.

Mesmo adotando um entendimento mais restrito para classificação, os resultados permitem desmistificar algumas visões mais “comuns”, frequentemente disseminadas. O primeiro diz respeito a menor quantidade de nomeações de pessoas filiadas a partidos, nosso critério estrito. Note-se que este critério é bastante exigente na medida em que leva em conta apenas se, no momento da nomeação, a pessoa era filiada a algum partido político de modo que não estamos medindo nomeações em nome de partidos (as chamadas “cotas partidárias”) e, nem mesmo, verificando se se trata de um político profissional ou de mero ativista partidário. Se estes critérios fossem incluídos, a proporção de nomeações exclusivamente políticas seria menor ainda. No somatório de todos os governos, foram 51 nomeações de pessoas filiadas a partidos e sem experiência profissional ou formação educacional na área da pasta. Além disso, na grande maioria das gestões, as indicações técnicas prevaleceram sobre as políticas, exceto o governo Garibaldi II.

Em se tratando da escolha de pessoas exclusivamente técnicas para esses cargos, o governo de Rosalba ganha relevância pelo elevado número de nomeações com este perfil – mais de 50% do total de secretários que passaram por sua gestão (19 de um total de 37). Os demais governos, por outro lado, chegaram a ter no máximo 37,5% de secretários exclusivamente técnicos, isto é, sem filiação partidária mas com experiência anterior relacionada à pasta.

Curiosamente – e talvez não coincidentemente - o governo Rosalba passou por uma profunda crise política, marcada pela queda de sua popularidade e pelo esfacelamento da sua base parlamentar. A perda do apoio legislativo começa ainda no primeiro ano da sua gestão (2011) com o rompimento do PSD, partido do seu vice-governador (Robinson Faria). Em 2013, PMDB e PR também anunciam publicamente a saída do governo. Ambas as situações afetaram a composição do primeiro escalão do governo estadual, com mudanças em pastas que continham indicações destes partidos. O enfraquecimento da coalizão da governadora veio acompanhado da perda de sua popularidade. No final de 2013, uma pesquisa apontava que a governadora tinha uma aprovação popular de apenas 7%, a pior dentre os 26 estados da federação (CNI/IBOPE, 13/12/2013).

Na média geral, o quantitativo de secretários com perfil técnico e político simultaneamente foi de 34,4% das nomeações, revelando um perfil muito mais frequente do que normalmente assumido no debate público. Os governos Garibaldi I e II, Wilma I e Robinson foram os que mais, em termos proporcionais, optaram por pessoas que congregavam características técnicas e políticas para assumir os cargos do primeiro escalão estadual.

Outro achado relevante do estudo está na identificação de nomeações cujos critérios não foram nem técnico, nem político. Ou seja, eram secretários que não tinham filiação partidária, nem formação educacional ou atuação profissional na área da pasta que lideraram. Foram 19 nomeações (9%) com este caráter ao longo do período analisado. Destaque para os governos F. Freire e Garibaldi I, que tiveram cerca de 17% de seus secretários com este perfil, e para o Governo Robinson que não escolheu pessoas com essas características para composição de seu secretariado. Não temos, no momento, explicações para este tipo de nomeação, isto é, quais lógicas explicariam esse perfil de secretário. De qualquer modo, tal verificação sugere que os estudos que consideram o viés de exclusão para categorização de pessoas como técnicos não se sustenta. Inspirados em Beckman (2006), assumimos a fragilidade dessa conceituação clássica e instituímos outros critérios com o fim de ampliá-la. A premissa é que o viés político também deve ser considerado em situações em que o nomeado faz parte de outro corpo político relevante, não apenas agremiações partidárias (como associações de classe, movimentos sociais, etc), e de que pessoas com experiência prévia na gestão pública também detêm competência técnica para liderar uma pasta no primeiro escalão da burocracia estadual. Os resultados são apresentados na Tabela 2.

Tabela 2
Tipologia e perfil das nomeações para secretário do Rio Grande do Norte, a partir de uma concepção abrangente, por governo, 1995-2015

A ampliação do conceito faz reduzir o percentual de nomeados com perfil apenas político, saindo de 23,8% para 9,6%, mesmo incluindo novos elementos que poderiam classificá-los como “puramente” político, como ser membro de associação empresarial, de classe ou vinculado a grupos políticos tradicionais do estado, isto é, para além da mera existência de filiação partidária. Da mesma forma, também diminui o percentual de secretários que não apresentaram nenhum dos dois critérios, de 9% (19) para 5,3% (10). Com a adoção dos novos critérios, os governos Rosalba e Robinson ficam sem secretários deste tipo, porém, permanece elevada a proporção de secretários nem políticos, nem técnicos no governo Fernando Freire mesmo com a adoção de critérios mais amplos. Ademais, os perfis puramente técnicos foram levemente reduzidos, apresentando um percentual de 28,1% contra 32,8% na perspectiva mais restrita como resultado da introdução de um critério mais amplo de conexões ou relações políticas.

A adoção dos novos critérios provocou uma considerável modificação quanto à identificação de nomeados que congregavam aspectos técnicos e políticos ao mesmo tempo. Enquanto na visão restrita, o percentual de secretários com esse perfil era de 34,4% (75), na concepção mais ampla foi de 57% (127), representando um aumento de quase 80%. Em outras palavras, a incorporação das experiências anteriores na gestão pública como critério de classificação de uma secretária “expert” permite dizer que a maioria dos nomeados no período 1995-2015 são, na verdade, uma combinação de perfis técnicos e representantes políticos.

De modo similar ao observado por Beckam (2006), a adoção de critérios mais amplos e, no nosso entender, mais próximos das considerações reais que o chefe de um executivo leva em conta na decisão das nomeações, modifica o perfil de Ministros/secretários. Os dados aqui analisados indicam que o aspecto político-partidário não é único critério na escolha dos secretários. Na grande maioria dos governos, o uso de critérios puramente técnicos, considerando tanto a concepção restrita quanto a ampliada, se sobrepõe às escolhas com viés unicamente político e os governos potiguares têm optado pela combinação de qualificações técnicas e políticas ao mesmo tempo. O caso do governo Rosalba é exemplar disto. No critério restrito, teria sido a administração mais “tecnicamente competente” dentre todos os governos. Mas isto não garantiu um governo bem-sucedido, ao contrário: Rosalba sofreu com problemas na manutenção de sua coalizão político-partidária, uma gestão pública desastrosa em muitas frentes (crise na Penitenciária de Alcaçuz, decreto de calamidade pública na saúde pública, um ajuste fiscal que paralisou serviços públicos etc.), inclusive com ameaças de impeachment, e teve vida curta, não a habilitando, nem mesmo, para concorrer à reeleição.

V. Um modelo alternativo para explicar as coalizões

Nossa pesquisa sugere que a análise das decisões de nomeação do primeiro escalão no governo estadual deve ser feita de forma diferente do preconizado pelas abordagens do presidencialismo de coalizão em nível federal. Os governadores utilizam fortemente, pelo menos no Rio Grande do Norte, uma mistura de critérios, cuja relação com as bases parlamentares na Assembleia Legislativa está longe de ser direta. Requisitos partidários e técnicos se subordinam por vezes ao elemento da confiança pessoal, ou no mínimo lhe são complementares.

Não se descura aqui que tais fenômenos também existam no executivo federal e o termo “cota pessoal” já se popularizou no vocabulário político brasileiro no que toca a nomeações ministeriais assumidas pelo presidente da República. A governadora Rosalba Ciarlini claramente nomeou pessoas ligadas a ela desde sua chefia do Executivo na cidade de Mossoró. Sua antecessora, Wilma de Faria, manteve posições chave do secretariado, inclusive na área social, em nítida cota pessoal. A força partidária do PMDB no governo Garibaldi Alves passava por relações partidárias vinculadas a pessoas que já eram ligadas ao governador quando este toma posse e que seguem sendo-o até hoje. Fica claro, portanto, que as proporções partidárias na Assembleia Legislativa não figuram de imediato ou regularmente nos cálculos dos governantes estaduais. Elementos derivados das famílias políticas potiguares reforçam a necessidade de alianças que são pessoais entre os nomeados e o governador.

A ambiguidade observada na realidade, e que nos levou a usar uma tipologia mais refinada de perfis técnicos e políticos, sugere que o fenômeno merece tratamento analítico específico. Vários aspectos podem ser mobilizados para explicar a composição do secretariado estadual, incluindo por exemplo posições de segundo escalão ou na administração indireta - esta fora do escopo de nossa investigação. Nosso foco nesta pesquisa se situa na montagem do primeiro escalão e qual raciocínio guia o cálculo do decisor principal, ou seja, o governador ou governadora. O Quadro 3 abaixo ajuda a elucidar o modo como encaramos as conclusões de nossa pesquisa no que toca ao presidencialismo de coalizão. Usamos o termo “presidencialismo” para governadores em vista da replicação, em grande medida, do sistema de governo nas subunidades nacionais no caso brasileiro.

Quadro 3
Representação Teórica do Secretariado Potiguar em Relação ao Presidencialismo de Coalizão

Na primeira e na segunda linhas do quadro, temos o presidencialismo de coalizão, típico do caso brasileiro, no qual a intensidade das cotas dependerá do quão coalescente ou consistente for o gabinete presidencial. Na primeira linha, que pode ser observada por exemplo no governo Cardoso, a fisionomia ministerial da coalizão assemelhar-se-á à “Lei de Gamson” no parlamentarismo, no qual há específico esforço de observar proporcionalidade partidária no gabinete (Verzichelli, 2008). Na segunda linha, a autonomia presidencial e problemas políticos em sua base de apoio produzirão cenário mais desproporcional e menos coalescente, mas ainda com critério partidário relevante nas nomeações como um todo. A coalescência é função do quanto a composição ministerial segue as proporções partidárias da base governativa do presidente no Congresso. Esta é basicamente uma decisão do presidente, sob o influxo de diversas variáveis políticas, é claro, nos momentos de nomeação de ministros (Amorim Neto, 2000Amorim Neto, O. (2000) Gabinetes presidenciais, ciclos eleitorais e disciplina legislativa no Brasil. Dados, 43(3), pp. 479-519. DOI: 10.1590/S0011-52582000000300003
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).

Por fim, a terceira linha reflete, em nosso juízo teórico, as coalizões “mitigadas” da realidade política de nomeação do secretariado. Mitigadas porque distantes da lógica característica do presidencialismo de coalizão, mesmo em seus gabinetes pouco coalescentes no dizer de Amorim Neto. O critério partidário e o próprio critério técnico, para além de, por vezes, se fundirem um no outro, dependem da formação de uma competência específica: compor a rede de atores internos ao Executivo com os quais o governante pode contar, para além de requisitos curriculares e condicionamentos oriundos de agremiações.

VI. Considerações Finais

Em nossa visão, portanto, o caráter difuso percebido nas nomeações é fruto de um presidencialismo de coalizão atenuado, no qual o número de critérios e fatores em cada nomeação é possivelmente mais heterogêneo que os utilizados pelos presidentes na esfera federal. Não faria sentido, nesses termos, tomar o partido como “unidade de análise” a exemplo de típicas análises do presidencialismo de coalizão (Freitas, 2016Freitas, A. (2016) O Presidencialismo de Coalizão. Rio de Janeiro: Fundação Konrad Adenauer., p. 34-38). No caso do RN, ligações partidárias se mesclam a conexões pessoais e familiares de confiança. O mesmo acontece com os chamados “secretários técnicos”. Que fique claro - há coalizão, mas os partidos só podem ser tomados como unidades de análise em certas agremiações e determinados momentos, assim como em determinadas secretarias. A inclusão dos partidos não parece se guiar por cálculos restritos à Assembleia e as nomeações ditas técnicas refletem uma associação e concepção alargadas da competência funcional da pessoa, como vimos na discussão da Seção 1. Daí o sentido de ambiguidade, ou de não univocidade, detectado por nós durante a investigação. Boa parte da discussão empreendida aqui pode ser reexaminada e qualificada, em futuro inquérito, sob o ângulo da “coalizão mitigada”.

Por fim, há perguntas que se desdobram de nosso estudo no tocante à qualidade da burocracia estadual. Não tivemos como testar aqui o que David Lewis chama de “Premissa de Pendleton”, expressão que deriva de uma lei federal nos EUA que procurou criar carreiras civis baseadas em mérito no funcionalismo público (Lewis 2007Lewis, D. E. (2007) Testing Pendleton’s premise: do political appointees make worse bureaucrats? The Journal of Politics, 69(4), pp. 1073-1088. DOI: 10.1111/j.1468-2508.2007.00608.x
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). No estudo, o autor verifica que indicados políticos, conquanto possam assegurar certo nível de controle democrático da burocracia, apresentam performance consistentemente inferior de gestão quando comparados a funcionários de carreira em diversos programas federais dos EUA. A concepção alargada e multifacetada que os governadores potiguares (e possivelmente governadores de outros estados) possuem de suas nomeações produz piores burocratas? Tal como o conceito de coalizão atenuada ou mitigada, essa questão abre outra frente empírica de pesquisa.

  • 1
    Agradecemos os valiosos comentários de Guillermo Toral e Anderson Santos, assim como dos pareceristas anônimos da Revista de Sociologia e Política. Os resultados são parte das atividades desenvolvidas no âmbito de pesquisa nacional coordenado pelo Prof. George Avelino da EAESP/FGV. Ilza Leão, Antonio Spinelli, George Câmara e Bruno de Oliveira deram importantes informações sobre o perfil dos secretários do RN, pelas quais somos gratos. Especial menção é devida aos alunos que colaboraram nesta pesquisa: Ayanne da Silva, Francymonni Yasmin Melo, Jaedson dos Santos, Jaylan Ferreira de Macedo, Matheus Oliveira de Santana e Richard Mafra.
  • 2
    O Gabinete Civil, apesar do status de administração direta, foi excluído da análise, pois trata-se de uma pasta cuja atribuição é eminentemente política e, nesse sentido, não haveria critérios “técnicos” para classificá-lo. De qualquer modo, como todos os governos analisados tiveram nomeados frente ao Gabinete Civil, essa exclusão mantém o restante das classificações comparáveis.
  • A produção desse manuscrito foi viabilizada através do patrocínio fornecido pelo Centro Universitário Internacional Uninter à Revista de Sociologia e Política.

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    12 Jul 2021
  • Data do Fascículo
    2020

Histórico

  • Recebido
    09 Jan 2020
  • Aceito
    16 Jul 2020
  • Recebido
    15 Out 2020
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