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O pensamento à sombra da ruptura: política e filosofia em Hannah Arendt

DUARTE, André. O pensamento à sombra da ruptura: política e filosofia em Hannah Arendt. São Paulo: Paz e Terra, 2000.

O FUTURO DA "OUTRA TRADIÇÃO"

Claudia Drucker

Universidade Federal de Goiás

Já tínhamos no Brasil um certo número de trabalhos de alta qualidade dedicados a tópicos específicos do pensamento de Arendt, como os livros de Celso Lafer (1999), João Maurício Adeodato (1989) e Nádia Souki (1998). O livro de Celso Lafer parte do pensamento de Arendt para refundamentar os direitos humanos no quadro de uma época pós-metafísica. João Maurício Adeodato parte do pensamento de Arendt para levantar objeções quanto às correntes positivistas, legalistas e realistas da Filosofia do Direito. Nádia Souki centra a sua investigação sobre o que Arendt considerou ser o grande desafio às teorias morais disponíveis: no século XX, os piores crimes perderam o poder de horrorizar. Esse ano, mais três livros, os de Franscico Xarão (2000), Francisco Ortega (2000) e André Duarte, ao mesmo tempo confirmam que Arendt é bastante lida e compreendida no nosso ambiente, e multiplicam os ângulos de abordagem da sua obra entre nós, ao enfocar o seu pensamento propriamente político.

André Duarte expõe o "desmonte" que Arendt faz das categorias da filosofia política tradicional na sua tentativa de encontrar uma nova ciência política. O ponto de partida de O pensamento à sombra da ruptura é a convicção de que a nossa época, ou seja, a época que se seguiu a duas guerras mundiais, nos fez deparar com uma realidade nova. Um tempo de ruptura exige um pensamento que, ele também, se diferencie do pensamento político clássico. A obra de Hannah Arendt não se encaixa em um ponto bem definido no espectro das doutrinas conhecidas, uma vez que sua motivação é compreender os eventos até agora incompreensíveis deste século. Mas longe do autor a pretensão de atribuir a Arendt uma originalidade absoluta. Ao contrário, fundamental para ele é a distinção entre "passado" e "tradição" (p. 125). O pensamento que busca as possibilidades positivas do passado vai buscar distanciar-se da tradição de filosofia política, que consiste na confusão entre fabricação e ação, e na busca de um princípio extra-político que justifique o político.

O segundo passo de André Duarte é mostrar que o ponto de partida de Arendt lhe permitiu voltar à história e à filosofia ocidentais. A "nova ciência política" parte da convicção de que só no fim de uma tradição os seus elementos principais se tornam mais visíveis, inclusive no que eles têm de mais preocupante, e deste modo prepara a possibilidade de resgatar os experimentos e auspícios que justamente não se tornaram dominantes. A premissa aqui é que nem mesmo Auschwitz foi capaz de liquidar a "origem do político", ou seja, a possibilidade que os seres humanos têm de criar um mundo partilhado, marcado pela iniciativa e pela responsabilidade partilhadas (p. 28). Se não é desejável ou possível restaurar a tradição, é pelo menos possível retirar do passado elementos positivos e auspiciosos. Aquelas possibilidades positivas que ficaram apenas insinuadas na história podem ser redescobertas e apropriadas por aqueles que se libertaram de certas matrizes de pensamento.

O autor retraça a controvérsia em torno à tese arendtiana sobre a emergência, no século XX, de uma forma completamente inédita de governo, que não se confunde nem com a ditadura nem com a tirania, e que independente de como a produção está organizada. O totalitarismo, seja ele nazista ou estalinista, baseia-se na ideologia e no terror. Os primeiros estágios desta nova forma de governo consistem na liquidação de todos os pontos de referência e estruturas mundanas tradicionais: Estado, família, associações sociais e políticas de todos os tipos. Depois, a arbitrariedade total se instala; a legalidade é suprimida em favor de decisões que não seguem nenhuma lógica a não ser a da própria instauração e fortalecimento do regime. Os passos finais consistem em liquidar fisicamente aqueles seres humanos que já foram espiritualmente destruídos: no seu juízo moral, no seu poder de iniciativa e no seu pertencimento a uma comunidade. A obra de Arendt foi pioneira ao mostrar que os campos de concentração, e por fim o Holocausto, não eram peças acessórias do regime totalitário, mas a sua consumação: a expressão extrema de um processo de desenraizamento e destruição sistemáticos do ser humano. Nunca antes nenhuma ditadura e nenhuma opressão de um povo por seus inimigos tinham chegado a este ponto.

Essas reflexões abrem um duplo caminho de investigação, que deixa os leitores de Arendt muitas vezes perplexos. A riqueza do obra de Arendt é o seu sentido para identificar que o totalitarismo foi algo novo, mas também ao mesmo tempo apontar sob que aspectos ele foi uma radicalização de possibilidades na própria tradição. O que totalitarismo mostrou como novidade foi o esgotamento das bases do viver em comum que marcaram o Ocidente romano e cristão: tradição, autoridade e religião. Se os seres humanos ainda acreditassem que era correto obedecer às instituições herdadas dos antepassados, que a alma era imortal e que o fogo do inferno castigaria os criminosos, regimes baseados no crime e na mentira jamais teriam sido possíveis.

Contudo, Arendt em muitos momentos relativizou o ponto de vista da novidade radical. Ela também frisa que o totalitarismo despertou menos surpresa e horror do que deveria, que foi assimilado por tantos sem maiores conflitos internos, e que causou uma destruição sem precedentes, indício de um alto poder organizador. Nada disso teria sido possível se de algum modo o mundo já não estivesse preparado. Por quem, pelos filósofos? O confronto com Marx em A condição humana é uma instância desta confrontação com a tradição. Na reconstrução que Arendt faz de Marx, o trabalho toma o lugar da contemplação como a atividade fundamental e humanizante do homem. Por meio do trabalho, ou seja, da produção dos meios de subsistência, os homens realizam a própria essência humana. Nesta glorificação do trabalho, Arendt vê uma glorificação da mentalidade estratégica e instrumental que justamente não deve existir na política. Quando o modo utilitarista de pensar invade todos os domínios, nada pode conservar uma grandeza intrínseca. É neste contexto que Arendt começa a elaborar a sua famos distinção entre "fabricação" (work) e "ação" (action). A ação no espaço público é não-calculadora, não-estratégica e exclui a violência. Ela é desprovida de um objetivo alheio ao próprio processo (enérgeia, não kúnesis). A fabricação ao contrário é instrumental, violenta e teleológica. O caráter plural, imprevisível e fugaz da ação sempre despertou desconfiança. A filosofia política, de uma maneira geral, ficou marcada pela busca de uma instância extra-política que pudesse guiar e orientar os homens: o Bem, a lei divina, as leis da história, o progresso técnico são exemplo de princípios supra-políticos utilizados para resolver as dificuldades do viver em comum.

André Duarte não se detem considerando a justeza da compreensão arendtiana de Marx, que ele admite ser "violenta" (p. 80). Um pensador sempre tem uma compreensão de outro pensador diferente daquela que um historiador da filosofia tem. A partir de sua leitura de Marx, Arendt encontrou aquilo que ela considera ser o pecado original da tradição: a confusão categorial entre ação e fabricação. Arendt encontra a valorização da fabricação em detrimento da ação como um traço comum a todos os filósofos políticos desde Platão. Marx radicaliza a tendência de toda a tradição que a modernidade enfatizou. A sua visão do trabalho como fabricação não apenas dos meios de subsistência mas também do próprio processo histórico significa a máxima desvalorização da ação em favor da fabricação, bem como a máxima desvalorização do debate não-violento em detrimento da violência. Não que ele tenha causado diretamente o estalinismo, ou possa ser responsabilizado por execuções em massa e outros crimes (p. 79-80). Mas tampouco ele é inocente na esfera do pensamento, a qual envolve o seu tipo específico de responsabilidade.

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A obra política de Arendt posterior a Origens do totalitarismo seguiu um projeto único: identificar os elementos básicos da política que foram negligenciados. Arendt escreve uma "ontologia política", ou seja, descobre as realidades políticas fundamentais (p. 269). Só um olhar liberado, pelas experiências do século XX, da familiaridade e da evidência da filosofia política poderia levar alguém a encontrar as experiências políticas "originárias", ainda que "recalcadas" pela tradição (p. 131-2). Os elementos básicos da visão arendtiana da política tem nos seus fundamentos a recusa da força da violência. O que ela faz com a pólis grega e, mais ainda, com as revoluções modernas é a "reconstituição conceitual das manifestações políticas originárias": o amor ao mundo, a ação, o discurso, a capacidade de fazer pactos e mantê-los (p. 269). A experiência de uma relação de que não emprega nem a força nem a hierárquia entre desiguais ainda faz a sua aparição em momentos especialmente significativos, como Arendt argumenta no último capítulo de Da revolução.

André Duarte faz uma aproximação entre Arendt e o Walter Benjamin das "Teses sobre a Filosofia da História". Neste texto, cujo manuscrito o próprio Benjamin confiou a Arendt para que o levasse para os Estados Unidos, Benjamin define a tarefa do historiador. O papel do historiador "materialista dialético", para Benjamin, consiste em "contar a história a contrapelo", ou seja, mostrar como o passado encerra signos e auspícios favoráveis à libertação, ainda que reprimidos. O historiador e o político devem se reapropriar do passado, não repeti-lo de maneira saudosista: isto é o que Benjamin chama de "salto tigrino em direção ao passado". Além disso, o autor indica como esta visão da tarefa do historiador pressupõe uma outra concepção do tempo que não é o tempo "homogêneo e vazio" das ciências históricas e naturais. A idéia de progresso histórico é recusada, e em seu lugar ele sugere que tomemos o tempo como algo que permite instantes de ruptura. O momento de libertação é o momento em que os oprimidos rompem com o continuum do tempo e instauram um outro conceito do presente, o Jetztzeit ou "instante significativo do agora". O instante do agora revela as possibilidades do presente até então insuspeitadas, ele promete o início de uma nova época histórica que nenhum discurso consagrado aponta. O historiador só pode escolher no passado os momentos mais significativos, e recontar a história a partir deles, porque o próprio tempo é formado por instantes significativos, que projetam uma nova luz tanto sobre o passado como sobre o futuro. Robespierre é o modelo desta atitude, mostrando que o homem de ação e o historiador não se diferenciam: ele considerava a Revolução francesa como uma repetição da Roma antiga. Roma "ainda era um passado carregado de atualidade" que a Revolução tinha usado, e ao mesmo tempo liberado dos moldes narrativos da história oficial.

O instante significativo é um "modelo do tempo messiânico", o momento de ruptura que o historiador pode enfatizar. O instante do agora é messiânico porque salva toda a história, ao contá-la de modo diferente. André Duarte parece atribuir a Arendt também uma concepção messiânica. Nos dias de hoje, nada causa mais desconfiança do que um elogio das personalidades e dos momentos messiânicos, mas temos que compreender o sentido positivo visado aqui. O "messianismo" significa aqui um modo radicalmente anti-determinista de conceber o tempo e a história. Messianismo aqui denomina a crença que sempre é possível de algum modo escapar da lei da causalidade e das tendências esboçadas pelas estatísticas. Mas esta fuga não implica um começo totalmente novo. Ao contrário, o historiador messiânico apenas enfatiza certos instantes do passado que prometem novas formas de existência. No caso de Arendt, as experiências privilegiadas da pólis e das revoluções atualizaram uma possibilidade inscrita na própria condição humana: a possibilidade de iniciar novas formas de viver em conjunto. O seres humanos são sempre capazes de, juntos, realizar o "infinitamente improvável". Neste processo, eles se tornam extemporâneos, ou seja, desajustados às tendências dominantes na sua época. Mas eles sempre podem selecionar do passado os momentos significativos e auspiciosos, e apresentar uma narrativa que comporte o seu próprio projeto.

Heidegger também é incluído neste debate, mas a sua posição é menos clara. Na parte principal da obra, André Duarte assinala a semelhança entre entre a visão benjaminiana e o projeito heideggeriano de "desconstrução da ontologia tradicional" em Ser e tempo: "Arendt, tanto quanto Benjamin e Heidegger, [...] também concebeu a tradição do pensamento filosófico ocidental como uma força ativa e seletiva capaz de relegar ao esquecimento certas experiências e conceitos fundamentais, motivo pelo qual assumiu a necessidade de um desmantelamento dos sedimentos da tradição a fim de alcançar o que teria permanecido impensado" (p. 130). Também Heidegger está interessado em desmontar as constelações de significado tradicionais para encontrar, por baixo da tradição, as "experiências originárias" que podem e devem ser olhadas com novos olhos. Pois Heidegger também define a tarefa do historiador-pensador contemporâneo como aquela de libertar o passado dos moldes explicativos fornecidos pela tradição, em nome de uma repetição inventiva. Deste modo, Arendt repete o "gesto filosófico fundamental [heideggeriano] que orienta esse retorno violento às 'fontes'originais de onde as categorias e conceitos tradicionais forma hauridos, a fim de desbloquear o acesso às camadas mais originárias dos fenômenos ocultados pela tradição"(p. 131). Além disto, ele também recusa a noção linear do tempo, e afirma ser possível uma outra concepção do tempo, que inclui instantes de ruptura (que Heidegger chama de "decisão" ou "acontecimento").

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Alguns pontos, a meu ver, poderiam ter sido mais aprofundados, como a discussão sobre a concepção do tempo e da história partilhada por Arendt, Benjamin e Heidegger. Os apêndices sobre Heidegger não retomam os temas aos quais ele foi associado na parte principal. Arendt faz questão de se diferenciar de Heidegger, ao afirmar que ele errou precisamente por ater-se apenas à esfera do pensamento. Ele errou por negligenciar o caso concreto e explicar o movimento nazista de modo idealizado e idiossincrático. Como o pensador que tinha uma teoria da temporalidade aparentemente totalmente compatível com a de Arendt pode ser o mesmo filósofo que não sabia julgar, e do qual ela visa se distanciar? Onde traçamos a linha que separa os maus juízos do homem das descobertas do pensador, se é que queremos traçar esta linha?

A indefinição das relações entre Arendt e Heidegger é um reflexo, talvez, do fato de que o autor não entra em detalhes sobre o que seria esta "outra tradição" e o que ela nos promete. A peculiaridade do projeto arendtiano é o seu resgate de fragmentos deixados pelo passado, em especial da noção de ação, das experiências revolucionárias e das tentativas de instaurar governos de participação (p. 320). Assim, se Arendt tenta liberar o passado dos óculos que a tradição nos legou, é para resgatar o que ainda está vivo e pode servir de inspiração para o futuro. A frase que resume o projeto de André Duarte poderia ser esta: "[A] ênfase [de Arendt] na capacidade humana para estabelecer novos começos em uma história não-apocalíptica, que permanece sempre aberta, não constitui mera declaração de fé, mas volta-se para o exame de momentos históricos [privilegiados], a fim de constituir o que poderia ser chamado como uma "outra" tradição política" (p. 320).

O que Arendt chama de "tradição revolucionária" seria essa "outra" tradição: ela consiste exatamente nos momentos de irrupção da ação e da liberdade que nunca foram devidamente compreendidos, mas que um pensamento liberado da tradição pode desocultar. Mas como o presente deve se relacionar como os fragmentos resgatados do passado?

Trabalhos de Philippe Lacoue-Labarthe e Jürgen Habermas mostram que a maneira "interessada" de conceber a tarefa do historiador perpassa o pensamento alemão, desde o Romantismo artístico (para Lacoue-Labarthe) ou o neo-hegelianismo de esquerda (para Habermas). O historiador se volta para o seu objeto, e se apropria ao seu modo da tradição, interessadamente, ou seja, com a intenção de construir um futuro diferente. Alguém poderia contar a história da filosofia alemã dos séculos XIX e XX como a história das variantes desta concepção. O projeto de resgatar a "outra tradição" se apresenta de várias formas. Mas há diferenças enormes entre os autores. A volta interessada aos gregos, no primeiro Nietzsche, significa recuperar o sentido trágico diante da existência, contra o otimismo superficial e leviano do séc. XIX. Para o Heidegger das décadas de trinta a cinqüenta, o retorno ao passado visa entabular um diálogo com os gregos visando a superação da relação calculadora com o ente. Até Habermas, no que talvez seja o seu melhor livro, O discurso filosófico da modernidade, visa recuperar o que ele chama de "consciência moderna do tempo". Ele sustenta que a modernidade descobriu racionalidade comunicativa, mas deixou que ela fosse soterrada pela racionalidade instrumental.

Nesse ponto, parece-me que o intérprete é forçado a fazer uma escolha, se quiser situar a visão pluralista de Arendt. Numa leitura habermasiana, Arendt nos dá subsídios para criar esferas públicas justificadas de modo radicalmente intra-mundano que se orientarão pelo princípio do diálogo não-coagido. Para a teoria crítica, seria o caso de, daqui por diante, suprir os procedimentos e regras de uma esfera pública autônoma. Por outro lado, se queremos apresentar Arendt como tendo mais afinidade com Benjamin, então a dimensão messiânica nunca pode ser excluída do seu pensamento, no sentido em que se nega que a irrupção da liberdade possa ser controlada procedimentalmente. Se a chave de leitura é dada por Heidegger, o único resultado prático possível da recordação é tão-somente a abertura para o evento.

Recebido para publicação em 10 de junho de 2000.

Claudia Drucker (drucker@cultura.com.br) é Professora do Departamento de Filosofia da Universidade Federal de Goiás (UFG).

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

ADEODATO, J. M. L. 1989. O problema da legitimidade — no rastro do pensamento de Hannah Arendt. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1989.

LAFER, C. 1999. A reconstrução dos direitos humanos — um diálogo com o pensamento de Hannah Arendt. 3a reimp. São Paulo: Companhia das Letras, 1999.

ORTEGA, F. 2000. Para uma política da amizade — Arendt, Derrida, Foucault. Rio de Janeiro: Relume Dumará.

SOUKI, N. 1998. Hannah Arendt e a banalidade do mal. Belo Horizonte: Editora da UFMG.

XARÃO, F. 2000. Política e liberdade em Hannah Arendt. Ijuí: Editora da UNIJUÍ.

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    26 Maio 2003
  • Data do Fascículo
    Jun 2000
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