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A língua franca da ciência

The international language of science

Resumos

São feitas considerações sobre a adoção da língua inglesa para publicações científicas cuja temática focalize problemas nosológicos da América Latina. Questiona-se o fato de com essa atitude se objetiva maior visibilidade do artigo e internacionalidade do periódico. Conclui-se que, no nosso ambiente, o ideal seria considerar três "línguas francas" para atingir aquelas finalidades, ou seja, o inglês, o português e o espanhol.

Redação; Periódicos; Ciência


There is a trend, with a view to achieving greater scientific visibility and international projection, that favors the adoption of the English language in Brazilian journals dealing with nosological problems. This argument is here questioned. Latin America is a large continent with characteristic health problems. Thus it is to be recommended that scientific public health journals should accept for publication papers written in the three main language: English, Portuguese and Spanish.

Writing; Periodicals; Science


Artigo Especial

Special Article

A língua franca da ciência

The international language of science

Oswaldo Paulo Forattini

Departamento de Epidemiologia da Faculdade de Saúde Pública da Universidade de São Paulo. São Paulo, SP - Brasil

Resumo São feitas considerações sobre a adoção da língua inglesa para publicações científicas cuja temática focalize problemas nosológicos da América Latina. Questiona-se o fato de com essa atitude se objetiva maior visibilidade do artigo e internacionalidade do periódico. Conclui-se que, no nosso ambiente, o ideal seria considerar três "línguas francas" para atingir aquelas finalidades, ou seja, o inglês, o português e o espanhol. Redação. Periódicos, tendências. Ciência. Abstract There is a trend, with a view to achieving greater scientific visibility and international projection, that favors the adoption of the English language in Brazilian journals dealing with nosological problems. This argument is here questioned. Latin America is a large continent with characteristic health problems. Thus it is to be recommended that scientific public health journals should accept for publication papers written in the three main language: English, Portuguese and Spanish. Writing. Periodicals, trends. Science.

Por razões socioeconômicas, os países têm concedido regime administrativo especial a algumas regiões de seus territórios, o que inclui a franquia aduaneira. Estabelece-se assim o que se conhece pelo nome de zona franca. Objetiva-se dessa forma, atrair investimentos, gerar empregos e, pois, desenvolver economicamente alguma parcela populacional da região. Livres de encargos aduaneiros, os produtos podem ali ser comercializados, instala-se linhas de montagem e emprega-se mão-de-obra local. No Brasil, desde 1968, criou-se uma dessas zonas, em Manaus, concentrando indústrias de montagem eletrônica, levando à movimentação de alguns bilhões de dólares, bem como empregando alguns milhares de trabalhadores, além de comercializar mil e um produtos importados e livres de taxas. Tais considerações vêm à mente, diante da palavra "franca". Ela implica o significado de "franquia", ou seja, traduz expressões como, "entrada franca", "sinal verde", "acesso irrestrito", "ausência de limites" e várias outras. Em decorrência, ao se pensar em "língua franca", subtende-se modo de exprimir, escrito ou verbal, que sirva para povos de diferentes idiomas se comunicarem entre si. Em se tratando da população constituída pelos pesquisadores científicos, atualmente verifica-se a tendência de aceitar, tacitamente, o idioma inglês como a "língua franca da ciência". Com isso pretende-se abolir as barreiras que, pretensamente, obstaculariam a comunicação entre eles e mesmo no âmbito global do conhecimento. Ou então, como diz jargão, atualmente muito em voga, possibilitar a "visibilidade" dos resultados alcançados. Parte-se assim da premissa, para muitos incontestável, que com a adoção ou mesmo a imposição de tal conduta, o trabalho do pesquisador, em qualquer parte do mundo, teria assim garantida a sua parcela no "ibope" científico.

Há certa concordância de pontos de vista para explicar tal conduta. O que mais se ouve, à saciedade, é que se trata de evolução cultural do ocidente. Diz-se que, há cerca de trezentos anos, o latim ocupava essa posição. Ao longo dos oitocentos, talvez pela influência do iluminismo setecentista, o francês e o alemão disputavam essa preferência. E isso até a primeira metade do presente século. Melhor dizendo, até a época da primeira guerra mundial (1914-1918) quando, progressivamente foram sendo substituídas pelo inglês o qual, a partir da segunda guerra (1939-1945), assumiu a hegemonia lingüística que ostenta até os dias atuais. Assim é que, de minoritário no século dezessete, passou hoje a ser o idioma internacional por excelência. A bem da verdade, deve-se convir que isso, ao menos em boa parte, se deveu ao sucesso das sociedades anglófonas na disputa pelas riquezas do mundo. Com efeito, o sucesso idiomático pode ser encarado como resultante das conquistas, colonizações e imposições comerciais do Império Britânico, ao longo dos dois séculos. Como fator de aceleração desse processo emergiu a liderança mundial representada pelo poder militar e tecnológico dos Estados Unidos da América do Norte (EUA), culminando nesta segunda metade do século vinte. Dessa maneira, o fato de o inglês deter, na atualidade, a dominância na ciência e na tecnologia, além de demais setores da atividade humana, deve-se, historicamente, mais a razões de evolução econômica do que propriamente cultural da humanidade. A menos, é bom dizê-lo, que se considere esta como parte daquela, como querem alguns.

A expansão da língua inglesa acompanha paralelamente a da tecnologia. Pode-se mencionar o exemplo frisante da computação. À medida que o montante de informações ultrapassou a capacidade de armazenamento do homem, os computadores entraram em ação. À medida que se pretendeu globalizar a comunicação, a linguagem vem sendo substituída.

Em qualquer dos casos, o inglês exerce a sua predominância, injetanto nos outros idiomas, palavras e neologismos que são incorporados por estes. "Clicar", "plugar", "deletar", "lincar", são exemplos dentre inúmeros outros. O poder invasivo é tão penetrante que surge a necessidade de se cogitar da adoção de medidas para minimizá-lo. E isso objetivando enfrentar neologismos, como os exemplificados acima, que comprometem a preservação de conquistas culturais representadas pelo idioma autóctone. Assim, por exemplo, o governo das Filipinas, na Ásia, estabeleceu para seu sistema educacional a distinção entre o que ele designa como "disciplinas não étnicas", como a matemática, e as "étnicas", como as das ciências humanas. Aquelas poderiam ser ensinadas em inglês, enquanto que estas devem ser ministradas obrigatoriamente na língua nacional.

A presente situação da anglofonia no mundo compreende cerca de 7,0% da população que têm o inglês como língua materna, enquanto outros 22,6% o tem como segundo idioma. Esta última circunstância reflete resultado de múltiplos fatores históricos, como colonizações e práticas comerciais. Mesmo nos EUA, a oficialização do inglês, até há pouco tempo, encontrava-se em nível federal. No que concerne aos estados daquele país, o idioma foi tornado oficial apenas recentemente. E isso como reação, provocada para contornar pressões demográficas que tendiam a propor a inclusão de outros idiomas como, por exemplo, o espanhol. De qualquer maneira, cerca de 30,0% da população mundial da atualidade, é anglófona (Truchot9, 1990). Resta os demais 70,0%, ou seja, ao redor de quatro bilhões de pessoas que vivem na ignorância oficial desse idioma, como meio de comunicação entre elas. Ou então, enfrentam a contingência de aprendê-lo "a posteriori" da sua alfabetização (ou não) na língua materna que lhe é própria. Como se pode ver, a hegemonia anglofônica não se avalia quantitativamente. Em sendo assim é de se admitir que o simples fato de conhecer o idioma inglês não pode ser qualificado como indício de erudição ou de avanço cultural, a exemplo do que querem alguns (Burchfield, R. apud Phillipson8, 1992). Certamente existem no mundo milhões de indivíduos cultos e intelectualmente produtivos, mesmo estando na ignorância dessa língua.

Em resumo, mais do que evolução, melhor seria considerar o estado atual como resultante de imperialismo cultural. E esse alcançado de múltiplas maneiras, precipuamente dirigidas para esta finalidade. Tais são, a comercialização dos mais variados artigos, o cinema, os seriados de televisão, a música popular, a publicidade e muitos outros, além dos acordos da diplomacia que influenciam a orientação educacional. Dos mais significantes, pelas conseqüências a médio e a longo prazo que dela poderiam advir, vem a ser a influência cultural sobre a juventude. Se por "cultura" entende-se sentido amplo, englobando o conjunto de relações econômicas, políticas e militares, então forçosamente a dominância terá implicações ideológicas. A sociedade alvo da dominação estará sujeita a verdadeira catequese cultural, implicando toda sorte de atrações, pressões e induções, visando superar-lhe as conquistas culturais próprias e substituí-las pelas da sociedade dominante.

A Atividade Científica - Em sua conceituação original, a ciência foi considerada como sendo a busca, altruística e desinteressada, da verdade. No entanto, atualmente, tão nobre missão deve ser encarada de maneira moderada. E isso, face ao reconhecimento de que a atividade científica nem sempre obedece àquelas condutas. No mundo hodierno ela tem adquirido, cada vez mais, feição altamente competitivo, às vezes vicioso, e manejado por elevados interesses, pessoais ou corporativos. Daí o observar-se frenética corrida à reputação do trabalho que, desse modo, perde muito daquela acima mencionada feição "altruística". No meio dos pesquisadores tem crescido acentuadamente o consenso de que esse objetivo é alcançado graças à divulgação dos resultados em periódicos científicos com arbitragem. As qualidades desses, para merecerem o epíteto de "excelência", já foram objeto de considerações anteriores (Forattini5, 1996). Além disso, e para garantir a já referida "visibilidade", há que se "redigir em inglês". Segundo tal pensamento, assim procedendo a pesquisa poderá fazer jus a avaliação positiva, o que implica o reconhecimento da capacidade de seus autores. Com isso, eles conquistarão maiores oportunidades de promoção acadêmica, conseguirão a credibilidade que lhes poderá propiciar obter maiores recursos, terão convites para participar de colegiados destinados a discutir os magnos problemas da humanidade, além de honrarias diversas. Em sentido lato, trata-se de conquistar nome científico e, talvez, fortuna.

Obviamente as considerações feitas no parágrafo precedente adquirem significado quando ponderadas em nível individual. Porém, em se tratando de empresa ou de corporação, tais fatores sofrem alguma mudança. Com efeito, o objetivo de divulgar os resultados alcançados, em tais casos pode não ser conveniente. Mais do que as pretendidas reputação e honrarias, o que o grupo empresarial almeja é o ganho. Portanto, a exclusividade constitui algo a se desejar e a exploração comercial, daí resultante, torna-se altamente conveniente. Eis porque, em tais circunstâncias, a ciência deixa de ser "desinteressada", mas sim dirigida para vantagens que possam dela advir. Pode-se mencionar, como exemplo, o projeto do genoma humano, cujos resultados iniciais têm provocado discussões sobre a conveniência ou não, de serem amplamente divulgados (Bentley3, 1996; Adams e Venter1, 1996).

O Imperialismo Científico - No que tange ao que, como se costuma dizer, "o ocidente (América do Norte, Europa, Austrália, Japão) e o resto", este "resto", com algumas possíveis exceções, seria representado pelos países do terceiro mundo, ou seja, o conjunto daqueles que são considerados como subdesenvolvidos ou em desenvolvimento. Diante disso, é de se admitir o pensar em imperialismo cultural do primeiro em relação ao segundo. Segue-se daí que, a ciência que medra neste último, enquadra-se em subdivisão daquele fenômeno, à qual se poderia dar o nome de "imperialismo científico". São vários os aspectos que o caracterizam, podendo-se identificá-los pelos seguintes postulados:

1 - O primeiro mundo (acima referido como "ocidente") é sempre aquele que detém o conhecimento. Deduz-se daí que é ele que desempenha o papel de "ensinar", cabendo aos demais somente o de "aprender". Esse quadro tende a se eternizar e, nos países acoimados de "em desenvolvimento", apresenta efeitos que não podem deixar de ser curiosos. Eis que, além da mencionada eterna dependência, tende-se a valorizar tal formação de além-fronteiras, dando-lhe o nome de "exogenia", em detrimento daquela "intra muru" à qual se dá o nome de "endogenia", tida por de menor valor. Como exemplo, pode-se mencionar o testemunho de quem redige estas linhas. Após militar perto de meio século, de maneira ininterrupta e na mesma unidade universitária de seu País, pôde observar a valorização continuada da exogenia e a persistente desvalorização da endogenia. E isso desde os dias em que iniciou as suas atividades profissionais, até agora. Tal aspecto caracteriza-se por ser uniforme nessa instituição universitária, como um todo. Inclusive, fora dela pôde-se verificar a existência de escolas superiores que restringem o acesso ao seu quadro docente apenas a candidatos que tenham tido formação profissional nas sociedades do primeiro mundo, implicando a ostentação de títulos de doutorado ou de pós-doutorado ali conquistados. Salvo melhor juízo, tal orientação poderá redundar em algum efeito perverso. Eis que, a excessiva valorização da exogenia, se assumida de maneira abrangente, ou seja, indistintamente para todas as áreas da pesquisa científica, poderá frustrar a disposição em desenvolver ciência autóctone. Além de ser, por si só atraente, o passar alguns tempos fora do país de origem, os jovens voltam com garantias de reconhecimento e de posição profissionais. Apenas, "a posteriori" esquecem-se de assumir o papel de "ensinar". Quando não ocorre que, tendo estagiado em ambiente altamente tecnológico, passam a desprezar o autóctone, freqüentemente regressando para aquele. E assim, além do país ter perdido profissional competente, vê-se na contingência de retomar o mesmo processo, correndo os mesmos riscos. É o que se costuma chamar de "êxodo de cérebros".

2 - O segundo aspecto, diz respeito à certa atitude que se verifica comumente por parte dos pesquisadores e entidades do primeiro mundo. Isoladamente ou em bandos, consideram eles os países do terceiro mundo meramente como sedes para a coleta de dados. É o que denominam de "raw material", destinado a ser estudado e subseqüentemente divulgado em seus país e por seus periódicos. Também aqui observa-se, por parte dos pesquisadores e entidades autóctones, o suceder de comportamentos curiosos.

Assim, não falta estímulo para propiciar convite aos chamados "professores visitantes" procedentes daquela parte do mundo. Quando concretizados, têm revertido em credibilidade científica regional, tanto para a instituição como para os pesquisadores nacionais que o solicitaram. Além disso, é surpreendente o zelo com que estes propiciam o material que aqueles almejam obter. E isso, mesmo tendo, como retorno, participação mínima nas publicações daí resultantes. De qualquer maneira, associar-se à autoria de artigo publicado em periódicos de "primeira grandeza" e estrangeiros, permite-lhe o reconhecimento na avaliação local. Claro está que o mesmo não se poderá dizer, caso um pesquisador nacional solicite préstimos análogos. Afinal, é muito verdade que o santo de casa não faz milagres.

3 - A terceira característica identificadora, vem a ser a sujeição ao idioma dos países dominantes. Como já foi referido, na atualidade trata-se da língua inglesa, utilizada como meio de comunicação científica. Esse é o tema precípuo do presente texto, motivo pelo qual a ele serão dedicados os parágrafos apresentados a seguir.

O Idioma - O elemento nuclear de qualquer cultura é o idioma. Caso a civilização pretenda alcançar foro universal, então é de se esperar que surja a tendência de instituir idioma com a mesma função. Por ocasião do fim do século passado e início deste surgiram várias proposições de idiomas artificiais, como o esperanto. Por não se tratar de linguagens naturalmente evoluídas, não lograram êxito. Atualmente e para muitos, a questão da língua universal encontra-se resolvida, com o inglês assumindo esse papel. No entanto, para justificar essa opinião, haveria que se argumentar com o aumento proporcional, dentro da população mundial, da parcela anglófona. Porém, ao que tudo indica, é bem o contrário o que tem ocorrido. Assim considerando-se os anos de 1958 e 1992, os que falavam originalmente inglês naquela época eram 9,8% e passaram a 7,2% na última. Ao mesmo tempo, registrou-se ligeiro incremento em relação ao espanhol e português, idiomas focalizados neste texto (Huntington6, 1996). Não obstante, como já se referiu anteriormente, a dominância do inglês não pode ser medida quantitativamente, mas sim em termos de hegemonia econômica gerando o imperialismo cultural (Truchot9, 1990; Phillipson8, 1992).

Seja como for, há questão medular a exigir resposta. Trata-se de perguntar a que finalidade serve o instrumental lingüístico de qualquer cultura. A resposta reside, principalmente, para a construção de valores culturais. O que se espera, em qualquer população, ao se ensinar e alfabetizar a infância e a juventude no idioma que lhe é próprio? Obviamente, espera-se que elas encaminhem as suas vidas para atividades produtivas, objetivando o enriquecimento cultural de sua sociedade. E não que se tornem subservientes a outras. Extinguir um idioma, marginalizando-o das atividades culturais humanas, equivale a proceder à extinção de uma espécie da biosfera.

Posto isso, é questão pacífica que a ciência é parte importante do acervo cultural. No caso particular de estudos sobre problemas concernentes à saúde populacional dos que vivem nos países em desenvolvimento, é de se esperar estímulos para a execução de pesquisa autóctone destinada a procurar soluções. Preocupados com a tão decantada "visibilidade", os pesquisadores nacionais tendem a buscar a divulgação dos resultados obtidos, em periódicos anglófonos. Com essa atitude passam, "a priori", as informações aos leitores de outro país. O curioso é que pode dar-se o caso dela não ser mais de maior interesse para essa platéia (Zavortink10, 1994), conquanto o seja, e muito, para a de seu próprio país.

Qual pois deveria ser a conduta a seguir? Seria aquela que se situa nem tanto ao mar nem tanto à terra? Em se tratando de problemas nosológicos autóctones, parece óbvio que os resultados das pesquisas originais, com essa temática, devessem ter por alvo o público do país. E ainda mais quando os conhecimentos básicos específicos do campo de estudo, tenham sido nele desenvolvidos. Em tais circunstâncias, não há por que não se deva utilizar a língua nacional. Assim sendo, no caso de periódicos editados na América Latina seria de todo recomendável que, além do inglês para temática de interesse geral, se facultasse a divulgação de matéria de interesse regional em português ou em espanhol, conforme o país que sediou o estudo.

Há de se ponderar ainda, a existência de toda uma população jovem, potencialmente apta para a atividade científica no campo da saúde de seus povos. Diante dela, pergunta-se , seria conveniente impor-lhe, "ab initio", a obrigação de ultrapassar barreira lingüística em termos práticos e a custo exclusivamente dela? Parece racional que a resposta seja negativa. Melhor seria que, na divulgação científica da pesquisa latino-americana, se procurasse estabelecer equilíbrio no uso do inglês, do português e do espanhol. Parece lícito supor que atitude como essa somente poderia redundar em benefício, estimulando o desenvolvimento, por parte das gerações futuras, de parte tão importante do patrimônio cultural do país.

Diante disso, é de se sugerir que, em termos de pesquisa científica, focalizando problemas pertinente à América Latina, se adote postura harmonizadora. Se o inglês traduz a dominância na maioria dos campos do conhecimento por parte da América do Norte, o português e o espanhol melhor divulgariam os resultados da ciência autóctone, ainda que modesta, mas não tanto, se considerada em relação aos problemas de saúde pública que atingem as suas populações. Na circunstância em que esta passe a gerar conhecimentos que alicercem a especialidade, deixa de ter sentido que a divulgação dos resultados seja feita em idioma que não o original. Assim procedendo, e somente assim, poder-se-á criar a "massa crítica" científica que reduzirá, a níveis compatíveis com a civilização que almeja, o grau de exogenia que domina o país. Somente assim este poderá pretender deixar de ser excessivamente dependente, valorizando sua endogenia ou, melhor dizendo, passando a ser exógeno para outros países.

A Atualidade Brasileira - A Constituição do Brasil determina que o português seja a língua oficial da nação. Não obstante, os pesquisadores e os periódicos brasileiros dividem-se no que concerne ao idioma que utilizam como, o que eles chamam de "língua franca da ciência". No campo de conhecimentos que focaliza os problemas de saúde pública, ambos podem ser considerados em duas categorias, a saber:

1 - A primeira delas pode merecer o nome de "fundamentalista". Para os que nela se incluem, não há como admitir, na atualidade, que qualquer trabalho científico, digno desse nome, possa ser redigido em outro idioma que não o inglês. Para eles, o domínio de outra língua, inclusive freqüentemente a própria, é pura perda de tempo profissional. Quanto ao periódico, a sua "internacionalidade" é sinônimo de anglofonia. Obviamente, tal característica não é suficiente mas, de qualquer maneira, é condição "sine qua non".

Fiéis a essa verdadeira "religião", as convicções podem alcançar níveis como o de os pesquisadores, sistematicamente, darem preferência a encaminhar seus artigos a revistas anglófonas. Quanto aos periódicos nacionais que se incluem nesta categoria, chegam a recusar manuscritos que não sejam redigidos em inglês. E o fanatismo anglofônico chega a tal ponto de, mesmo recebendo os trabalhos dentro dessa exigência lingüística, redigem nesse idioma a correspondência (seja pelo correio comum, seja por meios eletrônicos) destinada ao próprio território do Brasil. Não é incomum encontrar temas, discussões e conselhos por parte de autores nacionais e precipuamente endereçados à ciência brasileira, publicados localmente em inglês (Fonseca e cols.4, 1994; Barreto-de-Castro2, 1995; Meneghini7, 1996).

2 - A segunda, é representada por aquela que preconiza equilíbrio, obedecendo às considerações que foram expostas em parágrafo anterior. Trata-se de pesquisadores e de periódicos que procuram estabelecer harmonia entre as línguas para a ciência, embora reconhecendo o predomínio atual do inglês. Aqueles partem do princípio de que, se o seu artigo é publicável e pois, de qualidade adequada, tratando de assunto referente à nosologia própria do país, não há por que temer menor "visibilidade" que possa comprometer-lhe a reputação profissional. Se os resultados a que chegou, em maior ou menor medida, são ignorados por tê-los divulgados em língua própria ou mesmo inglesa mas em periódico autóctone, então tanto pior para quem os ignora que passará a ser desinformado na especialidade. Quanto aos periódicos, orientam-se pelo fato de que, produzir revista dedicada à saúde pública, fazê-la crescer em audiência e difusão, implica, direta ou indiretamente, consumir recursos da sociedade à qual deve dar retorno. De maneira geral e para o Continente Americano, as revistas que se norteiam por esse sistema admitem três e não apenas uma "língua franca". Tais são , o inglês, o português e o espanhol. Dessa forma, as publicações brasileiras de saúde pública que seguem esse tipo de orientação, aceitam artigos em qualquer uma dessas línguas. Contudo, reservam-se o direito de recomendar, aos autores, a versão para o inglês (caso não tenha sido feito originalmente), de manuscritos que tratem de temática julgada potencialmente generalizável para outras populações do mundo. E vice-versa, do inglês, em que foi enviado, para o português (ou espanhol se for o caso) na circunstância de abordar temática que interessa precipuamente ao Brasil em particular e à América Latina, em geral. Obviamente, toda a correspondência nacional dos periódicos deste tipo é feita no idioma português.

Conclusões - Para finalizar o presente texto, embora longe de ter pretendido esgotar o assunto, há que se referir a algumas conclusões. Ao menos, a autoria as têm por importantes no que tange à temática da pesquisa científica em saúde pública divulgada em nosso meio. Tais são:

1 - Em se tratando de resultados que dizem respeito ou foram obtidos no âmbito do Continente Americano, há de se convencionar a utilização de três "línguas francas" de comunicação, ou seja, o inglês, o português e o espanhol.

2 - De acordo com o caso, o inglês deverá ocupar esse lugar, para os artigos cujos resultados de pesquisa são passíveis de generalização para outras partes do mundo.

3 - As outras duas línguas, deverão ter o "status" de "francas" nas temáticas de interesse particular para a América Latina.

4 - Nos casos em que, de maneira autóctone, se alcançou linguagem técnico-científica original e foram estabelecidos os alicerces de determinado campo de conhecimentos, há que se dar à língua a "franquia" que foi conquistada. E isso em respeito ao enriquecimento da cultura do país.

5 - É de se recomendar aos pesquisadores latino-americanos em geral, e aos brasileiros em particular, que mais se preocupem em estimular, através seus próprios idiomas, a criação de necessária "massa crítica" focalizando a juventude de seus países.

Como se pode ver, as "línguas francas" da ciência são mutáveis. Porém, se isso é verdade, deve sê-lo dentro do contexto da evolução cultural do país, ou seja, da população que o povoa. Para tanto, há de se estimular as gerações futuras, no sentido de valorizar as conquistas culturais que foram feitas e chegar a outras, possibilitando assim que seu idioma alcance a tão sonhada "franquia" científica.

Correspondência para/Correspondence to: Oswaldo Paulo Forattini - Departamento de Epidemiologia da Faculdade de Saúde Pública da Universidade de São Paulo. Av. Dr. Arnaldo, 715 - 01246-904 São Paulo, SP - Brasil. E-mail: opforati@usp.br

Edição subvencionada pela FAPESP. Processo 96/5999-9.

Recebido em 19.12.1996.

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    16 Ago 2001
  • Data do Fascículo
    Fev 1997

Histórico

  • Recebido
    19 Dez 1996
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