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Subsídios à discussão sobre a proposta de regulamentação para farmácias magistrais

Input to the discussion on proposed regulation of prescription pharmacies

INFORMES TÉCNICNOS INSTITUCIONAIS

Subsídios à discussão sobre a proposta de regulamentação para farmácias magistrais

Agência Nacional de Vigilância Sanitária - Anvisa

Endereço para correspondência Endereço para correspondência ANVISA - Assessoria de Imprensa SEPN 515 Bloco B - Edifício Ômega 1º subsolo 70770-502 Brasília, DF E-mail: imprensa@anvisa.gov.br Site: www.anvisa.gov.br

Em 1999, alguns fatos mobilizaram a população brasileira. A descoberta de que tínhamos no mercado medicamentos falsificados, atentando contra a saúde e a vida dos brasileiros, gerou o clamor por segurança e qualidade desses produtos. A Anvisa foi criada nesse cenário, com a missão de proteger e promover a saúde da população. E não fugiu ao seu dever, colocando em prática várias atividades e novas regulamentações.

A Lei de Genéricos estabeleceu um novo padrão para os medicamentos-cópia. São medicamentos-cópia aqueles que, após expirado o prazo de proteção patentária, são industrializados com a mesma formulação do medicamento que detinha a patente aquele obtido depois de todas as fases de pesquisa (pré-clínica e clínica) terem demonstrado eficácia e segurança para seu uso. O medicamento-cópia não tem que passar novamente por esses caros estudos e ensaios clínicos, desde que seja comprovado que sua formulação é igual ao medicamento de referência teste de equivalência farmacêutica, em laboratório e que é absorvido e distribuído na corrente sangüínea da mesma forma estudo de bioequivalência em seres humanos quando administrado oralmente. Um produto que passa nesses testes é considerado um equivalente terapêutico, ou seja, pode adotar para si os resultados de eficácia e segurança que o medicamento de referência comprovou quando aquela droga foi inventada.

Naquela ocasião, o mercado brasileiro era composto por medicamentos inovadores, que hoje denominamos de novos, e medicamentos similares cópias ou pequenas inovações tecnológicas registradas sem qualquer comprovação de equivalência, segurança ou eficácia. A Lei dos Genéricos, que originalmente despertou reações de boa parte da indústria farmacêutica, atraiu um conjunto de empresas brasileiras e mais tarde de empresas estrangeiras a oferecer ao mercado brasileiro medicamentos-cópia de qualidade. Isso ocorreu 30 anos após a América do Norte e 20 anos após a Europa terem feito o mesmo movimento. A ação do Sistema Nacional de Vigilância Sanitária, inspecionando anualmente cada indústria, e a vinculação de registro de produtos ao certificado de boas práticas de fabricação por linha de produção visam garantir que a qualidade dos genéricos, comprovada por ocasião do registro do produto, seja mantida ao longo do tempo. Essas inspeções também têm conseguido elevar cada vez mais os padrões de produção de similares.

Em 2003, já no atual governo, após um debate profícuo com o Ministério da Saúde, a Anvisa estabeleceu uma transição de todo o mercado de similares para as mesmas exigências de segurança e eficácia que são aplicadas aos genéricos.

Hoje podemos acompanhar alguns desfechos:

  • Todos os produtos similares registrados nos últimos dois anos já passaram pelos testes de equivalência farmacêutica e bioequivalência.

  • Todos os produtos similares classificados como de alto risco, qualquer que tenha sido a data de registro, já passaram pelos testes de equivalência farmacêutica e bioequivalência. Os que ainda têm estudos em andamento tiveram a fabricação suspensa e os que não apresentaram os testes tiveram os registros cancelados.

  • Todos os similares das categorias de antibióticos, anti-retrovirais e antineoplásicos estão apresentando estudos de equivalência farmacêutica e bioequivalência no momento da renovação de seus registros.

  • Todos os demais similares, para permanecer no mercado, estão apresentando testes de equivalência farmacêutica no momento da renovação de seus registros.

Esse enorme esforço de adequação da indústria nacional de medicamentos ao novo patamar de qualidade já está dando seus frutos. A população está mais segura quando precisa consumir medicamentos de qualquer das categorias e já existe, inclusive, reconhecimento fora do país com relação aos nossos produtos e ao conhecimento acumulado. Algumas indústrias já começam a exportar seus produtos para Portugal e Estados Unidos e a Anvisa passou a ser vista no cenário internacional como um órgão regulador importante, sendo convidada para vários processos de decisão junto à Organização Mundial de Saúde na área específica de regulamentação de medicamentos.

Não acompanharam esses processos os medicamentos preparados pelas farmácias. Esse segmento passou por transformações nos últimos anos, com um crescimento importante, sem que houvesse definições claras pela sociedade e pelo Estado quanto ao seu papel. Várias farmácias passaram a copiar ou modificar as fórmulas dos medicamentos inovadores, sem submetê-los a testes de equivalência farmacêutica e bioequivalência. Se o contraste nas regras para comprovação de qualidade era antes entre genéricos e similares, passa agora a ser entre medicamentos industrializados e medicamentos manipulados.

Em países onde já há regulamentação definindo o papel das farmácias de manipulação, estas têm papel complementar às indústrias. Chamadas, em inglês, compounding pharmacies, manipulam produtos somente quando não há formulação industrializada em concentrações ou formas adequadas a certos pacientes cujo estado clínico particular e excepcional exige uma medicação que foge à padronização. Em algumas províncias do Canadá, a compounding pharmacy só existe dentro de hospitais universitários. Por quê? Porque é impossível garantir o mesmo controle de qualidade de uma indústria moderna para um medicamento produzido artesanalmente. Se há a necessidade de uma produção artesanal de um medicamento, ele deve ser a exceção e isso deve ser muito bem justificado clinicamente.

Em nosso meio, diversas têm sido as razões para preocupação com a manipulação do ponto de vista da saúde pública, todas reforçadas pelos relatos de nossas equipes de inspeção e por casos investigados pela farmacovigilância, incluídos vários óbitos. Em primeiro lugar, a expansão da manipulação levou a uma heterogeneidade muito grande, indo desde a tradicional farmácia que executa fórmulas individualizadas até verdadeiras indústrias de médio porte, ligadas a redes de postos de atendimento, que produzem medicamentos em série, copiando a composição dos produtos registrados. Para que não se imagine que a figura é exagerada, a própria revista da Associação Nacional de Farmacêuticos Magistrais (Anfarmag), entidade corporativa do setor, traz propagandas de máquinas capazes de produzir três mil cápsulas por hora!

A garantia de segurança é um item fundamental. As exigências da vigilância sanitária obrigam as indústrias a realizar procedimentos de validação nas várias fases do processo produtivo. Quando chega um lote de matéria-prima, além de verificar os relatórios de análises enviados pelo fornecedor, a indústria tem que realizar seus próprios testes, mantendo o insumo em quarentena até a conclusão desses testes. Após o início do processo, são coletadas amostras em várias etapas, até que cada lote do produto final, antes de ser liberado, passa mais uma vez por verificação laboratorial. A exigência do atendimento de tais regras, além das demais que configuram as boas práticas de fabricação, tem sido uma luta constante da Anvisa. Felizmente para o consumidor, são cada vez mais raros os casos de empresas que ainda não assimilaram suas responsabilidades. No caso da manipulação, os procedimentos para a garantia da qualidade são praticamente inviáveis, pois exigem equipamentos específicos e uma quantidade de produto que permita a realização de amostras representativas. Como conseqüência, o usuário final fica exposto ao risco dos erros não detectados durante o processo de produção do medicamento.

Quando se trata de medicamentos de alta potência e baixa dosagem, pequenas variações no processo de produção, incluindo a possibilidade de erros aleatórios imprevisíveis, podem levar a resultados catastróficos. Na ordem de grandeza de milionésimos de grama, uma partícula do tamanho de um grão de areia pode significar uma dose fatal.

Freqüentes têm sido também as invenções de fórmulas por estabelecimentos de manipulação, às vezes até com a utilização de substâncias cuja composição é mantida em segredo. Tais medicamentos muitas vezes são na verdade associações de princípios ativos sem racionalidade e de elevado risco, como por exemplo as chamadas fórmulas emagrecedoras, contendo uma combinação variável de hormônios tireoidianos, laxantes, diuréticos e anfetaminas, enquadradas como de controle especial em nossa legislação, por suas propriedades psicoativas.

Evidentemente, uma parcela dos problemas não pode ser atribuída à manipulação, mas ao fato de os produtos terem sido prescritos. No entanto, a facilidade para comercializar produtos ditos artesanais, cujas propriedades nunca foram testadas cientificamente, ao lado de práticas de publicidade direta junto aos profissionais, funcionam como fortes indutores, especialmente num ambiente em que o médico raramente participa de atividades de atualização ou educação continuada.

O Instituto Nacional de Controle de Qualidade em Saúde (INCQS), laboratório nacional de referência em vigilância sanitária, pertencente à Fundação Oswaldo Cruz, tem acumulado laudos de erros importantes constatados em produtos manipulados, incluindo aqueles responsáveis pela morte de treze pessoas que tinham problemas de saúde de baixo risco. Tal instituição coleciona resultados em que as concentrações encontradas chegam a mais de 30.000% da dose prescrita.

Seria pertinente o questionamento sobre a ocorrência de problemas semelhantes nos medicamentos industrializados. Indubitavelmente eles também podem ocasionar riscos graves, mas de diferente natureza. Se um produto industrializado apresentasse tais desvios sem que o controle de qualidade fosse capaz de detectá-los, teríamos óbitos às centenas, o que certamente não passaria despercebido em qualquer parte do mundo. Outro grande desafio refere-se aos produtos inovadores, porque o aparecimento de eventos adversos não observados nas fases de pesquisa anteriores à concessão do registro pode acontecer após um tempo prolongado de uso, ou em decorrência de associações e particularidades não testadas, ou ainda com uma freqüência que só permite a identificação desses eventos quando grandes grupos da população se expõem ao produto. Tivemos problemas recentes dessa natureza com antiinflamatórios não hormonais e com medicamentos para disfunção erétil.

Os casos graves relativos a produtos industrializados cuja composição apresenta desvios tendem a se tornar insignificantes ou desaparecer com o cumprimento dos regulamentos da Anvisa..

Os desafios atuais para as farmácias na melhoria da atenção à saúde são a distribuição fracionada do medicamento conquista recente do atual governo e a assistência farmacêutica, que é uma espécie de consulta pós-visita médica, quando o usuário revê a prescrição junto com o farmacêutico para dirimir dúvidas, evitar interações medicamentosas indesejáveis, programar a rotina diária para a administração adequada dos medicamentos prescritos e ficar alerta quanto a eventos adversos.

Por que as farmácias de manipulação são populares? Inicialmente, elas permitem produzir produtos com dosagem específica, de acordo com as necessidades do paciente, em contraste com os produtos industrializados disponíveis. Além disso, as farmácias que manipulam produtos geralmente cuidam mais do atendimento ao cliente. Têm razão os farmacêuticos e proprietários que investem nesse aspecto, obrigação que deve ser estendida a todo o comércio farmacêutico. Por sua vez, nossos médicos ainda desconhecem as exigências necessárias para garantia da qualidade dos medicamentos durante a sua produção. Também há o fato desses medicamentos serem muitas vezes mais baratos que os industrializados.

Por que a diferença de preços entre os produtos manipulados e os industrializados? Destaque-se que não é esperado, em nenhum segmento da economia, que o produto individualizado possa ter preços inferiores aos produzidos em grande quantidade, pois a economia de escala envolve como vantagem para redução de preços a negociação de custos com fornecedores, para a confecção de embalagens e para os testes de qualidade. Podemos cogitar como causas para a variação de preços, entre outras, o custo de matérias-primas cuja qualidade talvez não seja equivalente e da estrutura de controle de qualidade que a indústria tem que manter, diferenças no recolhimento de impostos, cujo controle é mais difícil no varejo, e diferenças nos gastos com publicidade.

Cabe lembrar que medicamento é um bem público. O Estado abre ao setor privado a participação em etapas de pesquisa necessárias para o desenvolvimento de novas drogas e para garantir o abastecimento de todo o mercado. Por isso, como mercadoria, não prescinde de controle pelo Estado. É assim em todos os países do mundo. Para fabricar um medicamento há a necessidade de uma autorização de funcionamento emitida pelo Estado, que pode ser cancelada em caso de irregularidade. Portanto, fabricar medicamentos é uma concessão estatal. Sua produção é inspecionada, seus produtos são registrados através de comprovação laboratorial de qualidade, eficácia e segurança, e, quando lançados no mercado, são submetidos a monitoramento de qualidade e têm seus preços tabelados pelo Governo. Portanto, não cabe aqui o raciocínio de que quanto mais concorrentes melhor, mas sim o de que concorrência qualificada é melhor para a segurança do consumidor e para que o Estado possa garantir a qualidade dos medicamentos.

No Brasil, a indústria farmacêutica é submetida a um bom padrão de controle. A vigilância age também sobre os importadores e os distribuidores de medicamentos, já tendo chegado aos fornecedores de matérias-primas. É preciso intensificar a ação sobre o comércio varejista, um desafio mais complexo devido à dimensão do país e à heterogeneidade do mercado e das equipes de vigilância locais. Uma farmácia com farmacêutico presente a todo o momento, oferecendo o medicamento fracionado em número suficiente para um tratamento específico, com a devida orientação para seu uso, e a manipulação autorizada para as situações justificadas, é um estabelecimento que ajuda o Sistema Nacional de Vigilância Sanitária a garantir a qualidade dos medicamentos. Um exemplo disso é o que já vem acontecendo com o projeto de Farmácias Notificadoras, integrantes da rede de vigilância de medicamentos comercializados.

A Consulta Pública sobre novas regras de manipulação de medicamentos por farmácias não é uma luta entre o Golias industrial e o David artesão, como às vezes tem sido dito. Segundo relatam os profissionais das equipes de vigilância dos diversos estados e municípios, a aplicação integral do regulamento sobre manipulação em vigor desde o ano 2000 (Resolução RDC nº 33/2000 da Anvisa) levaria à interdição da maioria dos estabelecimentos. A nova proposta define categorias de diferentes complexidades, que permitem às pequenas farmácias continuar no negócio, desde que restrinjam sua atuação a produtos de menor risco. Aos estabelecimentos adequados às condições exigidas não faltará mercado, inclusive no que tange aos medicamentos de uso hospitalar, às dietas para infusão venosa ou por sonda e aos produtos para quimioterapia, unidades de neonatologia e terapia intensiva, além de uma infinidade de situações que podem justificar a indicação do produto artesanal frente a seus riscos.

Está em questão consagrar o medicamento qualificado em detrimento do produto de baixa qualidade, optar entre um futuro com uma indústria nacional de medicamentos forte e globalmente competitiva ou a substituição de indústrias nacionais por redes de farmácia com manipulação para fugir do rigor sanitário.

O que move a Anvisa é o controle sanitário de produtos e serviços, com inevitáveis conseqüências para a política industrial e de emprego e para os interesses comerciais. Tais aspectos são considerados na definição de prazos para adequação do mercado frente aos avanços científicos que podem beneficiar a população, mas nunca como obstáculos para a permanente busca por excelência em qualidade de produtos e serviços de saúde.

O texto, como é de conhecimento de todos, foi colocado em consulta pública exatamente para que possa haver debate. Não há dúvida sobre a necessidade de aumentar a segurança dos usuários de medicamentos, embora possa haver diferentes caminhos para atingir tal objetivo. Está em discussão uma das formas elegíveis, fruto de um ano e meio de debate envolvendo especialistas da área farmacêutica e de especialidades médicas, grupo de trabalho em que não foi permitida a representação da indústria para que não houvesse contaminação de interesses. Não se trata de um tema que possa ser decidido pela capacidade de mobilização de um ou outro segmento econômico, mas pela precedência da proteção da saúde com base no conhecimento científico e nas necessidades da população brasileira.

* Texto de difusão técnico-científica da Anvisa.

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  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      10 Out 2005
    • Data do Fascículo
      Ago 2005
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