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Comentário: Rodolfo Mascarenhas e a história da saúde pública em São Paulo

Rodolfo Mascarenhas and public health history in São Paulo

CLÁSSICOS DOS PRIMEIROS DEZ ANOS LANDMARKS FROM THE FIRST TEN YEARS

Comentário: Rodolfo Mascarenhas e a história da saúde pública em São Paulo

Rodolfo Mascarenhas and public health history in São Paulo

Luiz Antonio Teixeira

Casa de Oswaldo Cruz, Fundação Oswaldo Cruz. Rio de Janeiro, RJ, Brasil

Correspondência/ Correspondence Correspondence Correspondência/ : Luiz Antonio Teixeira Casa de Oswaldo Cruz - Fiocruz Av. Brasil, 4365 Sala 406 Manguinhos 22290-080 Rio de Janeiro, RJ, Brasil E-mail: teixeira@fiocruz.br

Sem dúvida, o grande mérito dos trabalhos de Rodolfo Mascarenhas consiste em seu pioneirismo. Num período onde os escritos sobre a saúde pública no Brasil se limitavam a crônicas institucionais, elaboradas por antigos funcionários ou dirigentes destes mesmos serviços, e voltavam-se, na maioria das vezes, para as ações do governo central no âmbito do distrito federal, Mascarenhas ampliou o campo de estudos sobre a saúde pública brasileira. O artigo ora em tela foi publicado em 1973 e, seguindo os passos de trabalhos anteriores, observa a estrutura da saúde pública paulista do final do Império até a década de 1960. Não se trata de um estudo voltado para a análise de um aspecto específico, mas de um amplo inventário da organização administrativa da saúde pública paulista, enfatizando as transformações decorrentes das mudanças em suas estruturas. Antes de observarmos alguns de seus aspectos, é conveniente uma curta referência aos primeiros passos da historiografia da saúde pública paulista e ao papel do nosso autor nesse conjunto.

Em 1948, Mascarenhas publicou um extenso artigo em que analisava as despesas do governo paulista com a saúde pública na era republicana (Mascarenhas, 1948). Já no ano seguinte ele defenderia sua tese de livre docência "Contribuição para o Estudo da administração sanitária estadual em São Paulo" (Mascarenhas, 1949). Este opulento trabalho, com mais de 500 páginas, apresenta um detalhado inventário da estrutura da saúde pública paulista, remarcando as principais transformações em suas estruturas e seus efeitos, aspecto que o autor denomina de 'evolução administrativa dos serviços estaduais de saúde pública'. Seu valor, no entanto, não se resume à sistematização de informações, pois com olhos de sanitarista, Mascarenhas discute a cada período analisado, os pontos positivos e negativos das estruturas criadas ou modificadas. É assim que, observando a primeira reorganização do serviço de saúde paulista, em 1892, avalia a impossibilidade de seu pleno sucesso em virtude da amplitude de seu projeto inicial, que contava, por exemplo, com repartições de saúde em todas as cidades e vilas do Estado, fato até hoje não realizado. Para o historiador contemporâneo pode parecer criticável esse tipo de análise, em virtude de se tomar como base para a avaliação histórica aspectos contemporâneos ao período em que foi escrita. No entanto, não podemos de deixar de levar em conta o caráter pedagógico de seu trabalho que, diferentemente de uma tese histórica, que busca continuidade e descontinuidades dentro de um determinado processo, se interessa por mostrar um caminho viável para a organização sanitária, tomando como base a racionalidade administrativa. Além disso, a observação arguta de Mascarenhas, muitas vezes também envereda com desenvoltura no campo da análise histórica. É assim, por exemplo, quando analisa comparativamente a organização sanitária de 1892 frente as suas predecessoras, mostrando a influência do desenvolvimento dos saberes microbiológicos na estruturação de um sistema de saúde centrado em um conjunto de laboratórios de analise e produção de vacinas.

Durante muito tempo, os trabalhos de Mascarenhas foram os únicos exclusivamente voltados para a história da saúde pública paulista. Somente dois anos antes da publicação do artigo que agora observamos, o tema veio a ser estudado pelo historiador americano John Allen Blount, que analisou a reforma sanitária ocorrida em São Paulo no início da República (Blount, 1971 e 1972). Seus trabalhos utilizavam fartamente os dados de Mascarenhas sobre a estruturação e o financiamento estadual dos serviços de saúde paulistas, realçando que o investimento na área foi de grande valia, visto que os indicadores de saúde da época mostram o decréscimo da mortalidade por doenças contagiosas entre 1894 e 1917, período de grande ampliação da população em virtude da imigração. Além da importância das ações do Serviço Sanitário Paulista na conservação da vida dos trabalhadores do Estado, a análise de Blount mostrou que a saúde pública paulista teve importante papel na manutenção da política de imigração, afirmando sua importância na definição dos rumos do desenvolvimento mais geral do Estado.

Na década de 1980, a organização sanitária de São Paulo foi alvo dos estudos de Emerson Merhy. Seu primeiro trabalho se voltava para a República Velha e foi seguido por um outro, que ampliava a análise até o final dos anos 1940 (Merhy, 1985 e 1991). Merhy analisou a saúde pública paulista através de seus modelos técnico-assistências, identificando sua estruturação em diferentes momentos e as relações desta com a dinâmica dos processos sociais. Neste mesmo período vieram à luz os estudos do sociólogo Luiz Antonio Castro Santos (1985). Castro Santos viu na formação dos serviços de saúde paulistas um exemplo bem sucedido de modernização conservadora que ao mesmo tempo em que gerou importantes frutos para a população, foi responsável pela ampliação e reforço do poder oligárquico do Estado. Seus trabalhos são um marco nos estudos de políticas públicas de saúde por se afastarem dos modelos interpretativos que viam os problemas em relação à saúde como simples conseqüências da nossa forma de inserção no sistema capitalista intencional. Mais recentemente, Gilberto Hochman retomou o caminho do estudo das políticas de saúde pública como elemento de construção do Estado, analisando o desenvolvimento dos serviços paulistas vis a vis a expansão dos serviços nacionais. Seu estudo mostra a especificidade de São Paulo no âmbito dos serviços de saúde estaduais, analisando sua importância na moldagem da política nacional para o setor e na ampliação do Estado Nacional (Hochman, 1998).

É importante reafirmar que estes trabalhos – hoje clássicos na historiografia sobre a saúde pública – tiveram um caráter pioneiro na análise de um contexto geográfico e temporal até então negligenciado frente à atuação de Oswaldo Cruz no Saneamento do Rio de Janeiro. A eles, foram se somando vários outros que, gradualmente ampliaram a discussão sobre a saúde pública paulista em seus diversos aspectos. Seria uma tarefa inadequada e impossível para o presente comentário, apresentá-los ou discuti-los. O que pretendemos é reafirmar a importância do trabalho de Mascarenhas para a construção dessas análises e para as que se seguiram. Além de sistematizar um conjunto de informações de extrema utilidade para os estudiosos do período, seus trabalhos chamaram atenção para alguns aspectos centrais ao estudo da saúde pública paulista.

Doutorado na Faculdade de Higiene e Saúde Pública da Universidade de São Paulo, instituição que dirigiria a partir de 1967, Mascarenhas era discípulo direto de Geraldo Paula Souza. Ambos foram formados na tradição americana da Fundação Rockefeller – agência que financiou a criação e por muitos anos patrocinou o Instituto de Higiene, embrião da citada faculdade. Em virtude de sua formação, eles compartilhavam os novos preceitos das "ciências sanitárias" que as missões da Rockefeller começaram a disseminar, em diversas partes do mundo, a partir do início do século XX. Atendimento local baseado em centros de saúde de ação integral e permanente; ênfase na educação sanitária e na promoção à saúde; base multiprofissional dos serviços; ação sanitária disseminada por agentes de saúde visitadores e atuação em tempo integral dos profissionais ligados a pesquisa e ao ensino em saúde são alguns deles que até hoje são da maior atualidade.

Não é a toa que as estruturas de saúde mais citadas no artigo Mascarenhas são os centros de saúde. Paula Souza foi o pioneiro na implantação desses postos no País a partir da reforma que efetuou nos serviços de saúde paulistas em 1925. A reforma dos serviços de saúde que elaborou, previa a criação, em diversas regiões do interior do Estado, de vários postos de atendimento local, onde a população deveria ter acesso a um conjunto de ações integradas e permanentes, fortemente voltadas para a prevenção via educação sanitária. Sua proposta era extremamente inovadora para a época, visto que, até então, as ações de saúde pública tinham um caráter provisório e tomavam como pilares as campanhas contra doenças epidêmicas.1 1 Existe uma controvérsia sobre a questão do modelo de saúde pública preconizado por Paula Souza. Emerson Merhy caracterizou-o como um sistema de rede local permanente e postulou que após a saída Paula Souza da direção da saúde pública em 1927, optou-se por um modelo de saúde diverso, centrado em serviços verticais (Merhy, 1991). Mais recentemente, os trabalhos de Castro Santos e Faria vem mostrando que, apesar de criticado por vários sanitaristas e políticos e de sofrer diversos reveses no período que seguiu a reforma de 1925, o ideário de Paula Souza acabou se impondo após a década de 1930, o que se observa pela progressiva implantação de postos de saúde no interior do estado e em outras regiões do País (Faria, 2002 e Castro-Santos e Faria, 2002).

Um outro aspecto que salta aos olhos no artigo de Mascarenhas diz respeito à valorização da racionalidade técnica e administrativa na organização dos serviços de saúde. Em todo o seu trabalho, a principal crítica a organização sanitária se volta para reformas que geraram duplicidade de serviços e estruturas pouco articuladas, que impediam uma maior eficiência dos serviços. Também herdeira de sua formação, a visão da racionalidade administrativa como forma de ampliação da eficiência e eficácia dos serviços toma como base o princípio de descentralização, sendo que Mascarenhas chega a afirmar que o apego à centralização administrativa foi um dos principais legados negativos de Portugal aos brasileiros (Mascarenhas, 1973:434).

Uma melhor compreensão desse aspecto deve ser buscada na contextualização do seu texto. Os autores que trabalham a história da saúde pública na segunda República mostram que nos anos 1960 começaram a surgir críticas ao modelo da saúde pública nacional, até então fortemente centrado na ação central e em alguns casos nos serviços estaduais. Surge assim, uma demanda por uma nova redistribuição das responsabilidades entre União, os Estados e os Municípios. Na 3ª Conferência Nacional de Saúde (1963) esta questão estava na ordem do dia, sendo que suas resoluções apontavam para uma diretriz de municipalização dos serviços (Hochman, Fonseca e Lima, 2005). No entanto, como afirmam os autores citados "este movimento na direção da descentralização, da horizontalidade, da integração das ações de saúde, da ampliação dos serviços e da articulação com as reformas sociais foi abortado três meses depois pelo golpe militar de 31 de março de 1964" (idem, p.55). Como intelectual da saúde, Mascarenhas perseverou nesse ideal, postulando-o em seus trabalhos. No entanto apenas bem mais recentemente esses ideais puderam começar a ser postos em prática.

REFERÊNCIAS

1. Blount JA. The public health movement in São Paulo, Brazil: a history of the sanitary service: 1892-1912 [Tese de Doutorado]. New Jersey (NJ): Tulane University; 1971.

2. Blount JA. A administração da saúde pública no estado de São Paulo: o serviço sanitário, 1892-1918. Rev Adm Emp 1972;12(4):40-8.

3. Castro-Santos LA. Power, ideology and public health in Braszil: 1889-1930. Cambridge (MA): Harvard University; 1987.

4. Castro-Santos LA. A reforma sanitária pelo alto: o pioneirismo paulista no início do século XX. Dados 1993;36(3):361-92.

5. Castro-Santos LA, Faria LR. Os primeiros centros de saúde nos Estados Unidos e no Brasil: um estudo comparativo. Teor Pesqui 2002;40-41:137-82.

6. Faria LR. A Fundação Rockefeller e os serviços de saúde em São Paulo (1920-30): perspectivas históricas. Hist Ciênc Saúde - Manguinhos 2002:9(3):561-90.

7. Hochman G. A era do saneamento: as bases da política da saúde pública no Brasil. São Paulo: Hucitec/Anpocs; 1998.

8. Mascarenhas RS. Contribuição para o estudo da administração sanitária estadual em São Paulo [tese de livre-docência]. São Paulo: Faculdade de Higiene e Saúde Pública da USP; 1949.

9. Mascarenhas RS. Contribuição para o estudo das despesas do governo de São Paulo com os seus serviços de saúde pública: 1890-1948. Arq Faculdade Hig Saúde Pública Univ São Paulo 1948;2(1):91-204.

10. Merhy EE. A saúde pública como política: um estudo de formuladores de políticas. São Paulo: Hucitec; 1991.

11. Merhy EE. O capitalismo e a saúde pública. São Paulo: Papirus; 1985.

12. Lima NT, Fonseca CMO, Hochman G. O Sistema Único de Saúde em perspectiva histórica. In: Lima NT, Gerschman S, Edler FC, Suárez JM, organizadores. Saúde e democracia: história e perspectivas do SUS. Rio de Janeiro: Fiocruz; 2005. p. 27-152.

  • Correspondence

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    Existe uma controvérsia sobre a questão do modelo de saúde pública preconizado por Paula Souza. Emerson Merhy caracterizou-o como um sistema de rede local permanente e postulou que após a saída Paula Souza da direção da saúde pública em 1927, optou-se por um modelo de saúde diverso, centrado em serviços verticais (Merhy, 1991). Mais recentemente, os trabalhos de Castro Santos e Faria vem mostrando que, apesar de criticado por vários sanitaristas e políticos e de sofrer diversos reveses no período que seguiu a reforma de 1925, o ideário de Paula Souza acabou se impondo após a década de 1930, o que se observa pela progressiva implantação de postos de saúde no interior do estado e em outras regiões do País (Faria, 2002 e Castro-Santos e Faria, 2002).
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      16 Ago 2006
    • Data do Fascículo
      Fev 2006
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