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Confiabilidade e viés do informante secundário na pesquisa epidemiológica: análise de questionário para triagem de transtornos mentais

Proxy informant reliability and bias in epidemiological research: analysis of a screening questionnaire for mental disorders

Resumos

OBJETIVOS: Avaliar a confiabilidade e vieses na aplicação do Questionário de Morbidade Psiquiátrica de Adultos (QMPA) a informantes secundários comparando-os com informantes primários. MÉTODO: Foram estimados os índices Kappa para as questões do QMPA em uma amostra de 69 casais selecionados aleatoriamente em uma área da Região Metropolitana de Salvador, Bahia, Brasil. Analisaram-se a magnitude e direção dos vieses com base na variação proporcional da prevalência. Cada entrevistado foi avaliado como informante primário, quando respondia sobre seus próprios sintomas, e como informante secundário, quando respondia sobre o cônjuge. RESULTADOS: O uso de informantes secundários leva a estimativas de morbidade enviesadas, cuja magnitude e direção dependem do gênero do informante. Embora ambos, esposo e esposa tendam a subinformar a presença de sintomas do seu cônjuge, as esposas produzem informações mais confiáveis. CONCLUSÕES: Frente às limitações no uso de informante primários, as esposas ou donas-de-casa podem ser recomendadas como informantes secundárias na aplicação do QMPA em estudos da comunidade.

Viés; Inquéritos de morbidade; Reprodutibilidade de resultados


OBJECTIVES: To evaluate the reliability, magnitude and direction of the resulting bias in the application of a screening instrument for mental disorders by considering proxy informants in comparison to primary informants. METHODS: Data are taken from a general morbidity community-based survey carried out in 520 randomly selected households of an industrial area of the Metropolitan Region of Salvador, the capital of Bahia state, Brazil. During the pilot phase, the first 70 families of the total sample were asked to participate in the evaluation of research instruments. The Questionnaire of Adult Psychiatric Morbidity, QAPM, consists of 44 questions about psychiatric symptoms widely used in Brazil. The husbands and wives of the selected families answered QAPM questions regarding themselves and their respective partners. One family refused to participate. The Kappa index was estimated for each QAPM question. To assess the magnitude and direction of bias, the proportional variation of prevalence was estimated from proxy and primary respondents. Each informant was analyzed as a primary informant when answering about his/her own symptoms and as a proxy informant when answering those about his/her partner. RESULTS: Proxy informants as compared to primary informants show weak reliability, as measured by the Kappa Index, particularly when husbands reported on their wives' symptoms. An overall underestimation of prevalence estimates was found, which reveals the potential negative bias with the use of proxy informants for psychological symptoms. No bias was found for only two questions (lack of appetite and globus hystericus) when women were taken as proxy informants for their husbands. In addition, departures of proxy informants from primary informant-based estimates were greater among men than to women. CONCLUSIONS: Proxy informants underestimate the occurrence of psychological symptoms in this community-based study. When the feasibility of a research project, based on the QAPM depends on the use of proxies, wives may be recommended as better informants than their husbands.

Bias; Reprodutibility of results; Morbidity surveys


Confiabilidade e viés do informante secundário na pesquisa epidemiológica: análise de questionário para triagem de transtornos mentais**Pesquisa subvencionada pelo Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico/CNPq (Processos nº 520607/94-5, nº 522621/96.1 e PIBIC/UFBa). Pesquisa subvencionada pelo Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico/CNPq (Processos nº 520607/94-5, nº 522621/96.1 e PIBIC/UFBa). **Bolsista do Programa de Iniciação Científica do CNPq.

Proxy informant reliability and bias in epidemiological research: analysis of a screening questionnaire for mental disorders

Vilma S. Santana, Naomar de Almeida Filho, Cristina O. da Rocha***Pesquisa subvencionada pelo Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico/CNPq (Processos nº 520607/94-5, nº 522621/96.1 e PIBIC/UFBa). Pesquisa subvencionada pelo Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico/CNPq (Processos nº 520607/94-5, nº 522621/96.1 e PIBIC/UFBa). **Bolsista do Programa de Iniciação Científica do CNPq. e Adriana S. Matos***Pesquisa subvencionada pelo Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico/CNPq (Processos nº 520607/94-5, nº 522621/96.1 e PIBIC/UFBa). Pesquisa subvencionada pelo Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico/CNPq (Processos nº 520607/94-5, nº 522621/96.1 e PIBIC/UFBa). **Bolsista do Programa de Iniciação Científica do CNPq.

Instituto de Saúde Coletiva da Universidade Federal da Bahia. Salvador, BA - Brasil (V.S.S., N.A.F.)

Resumo Objetivos Avaliar a confiabilidade e vieses na aplicação do Questionário de Morbidade Psiquiátrica de Adultos (QMPA) a informantes secundários comparando-os com informantes primários. Método Foram estimados os índices Kappa para as questões do QMPA em uma amostra de 69 casais selecionados aleatoriamente em uma área da Região Metropolitana de Salvador, Bahia, Brasil. Analisaram-se a magnitude e direção dos vieses com base na variação proporcional da prevalência. Cada entrevistado foi avaliado como informante primário, quando respondia sobre seus próprios sintomas, e como informante secundário, quando respondia sobre o cônjuge. Resultados O uso de informantes secundários leva a estimativas de morbidade enviesadas, cuja magnitude e direção dependem do gênero do informante. Embora ambos, esposo e esposa tendam a subinformar a presença de sintomas do seu cônjuge, as esposas produzem informações mais confiáveis. Conclusões Frente às limitações no uso de informante primários, as esposas ou donas-de-casa podem ser recomendadas como informantes secundárias na aplicação do QMPA em estudos da comunidade.

Viés [Epidemiologia]. Inquéritos de morbidade. Reprodutibilidade de resultados.

Abstract Objectives To evaluate the reliability, magnitude and direction of the resulting bias in the application of a screening instrument for mental disorders by considering proxy informants in comparison to primary informants. Methods Data are taken from a general morbidity community-based survey carried out in 520 randomly selected households of an industrial area of the Metropolitan Region of Salvador, the capital of Bahia state, Brazil. During the pilot phase, the first 70 families of the total sample were asked to participate in the evaluation of research instruments. The Questionnaire of Adult Psychiatric Morbidity, QAPM, consists of 44 questions about psychiatric symptoms widely used in Brazil. The husbands and wives of the selected families answered QAPM questions regarding themselves and their respective partners. One family refused to participate. The Kappa index was estimated for each QAPM question. To assess the magnitude and direction of bias, the proportional variation of prevalence was estimated from proxy and primary respondents. Each informant was analyzed as a primary informant when answering about his/her own symptoms and as a proxy informant when answering those about his/her partner. Results Proxy informants as compared to primary informants show weak reliability, as measured by the Kappa Index, particularly when husbands reported on their wives' symptoms. An overall underestimation of prevalence estimates was found, which reveals the potential negative bias with the use of proxy informants for psychological symptoms. No bias was found for only two questions (lack of appetite and globus hystericus) when women were taken as proxy informants for their husbands. In addition, departures of proxy informants from primary informant-based estimates were greater among men than to women. Conclusions Proxy informants underestimate the occurrence of psychological symptoms in this community-based study. When the feasibility of a research project, based on the QAPM depends on the use of proxies, wives may be recommended as better informants than their husbands. Bias [Epidemiology]. Reprodutibility of results. Morbidity surveys.

INTRODUÇÃO

Na área da saúde mental, os estudos epidemiológicos de base populacional adotam, em sua maioria, desenhos de múltiplos estágios para a detecção de casos. Nesses estudos, subgrupos com alterações psicopatológicas são identificados mediante a aplicação sucessiva de instrumentos de validade diagnóstica, complexidade e custo operacional crescentes14. Nesse contexto, uma estratégia para a redução de custos de pesquisas de larga escala é o uso de informantes secundários, ou seja, a obtenção de dados sobre um indivíduo é realizada através de um informante substituto. Esta técnica tem sido utilizada especialmente para pessoas com dificuldades de comunicação, problemas ou limitações cognitivas, ou quando se focaliza aspectos como o consumo inadequado de álcool ou drogas ilegais21.

Considerando que informantes substitutos podem produzir vieses em resultados de pesquisa, impõe-se o estudo dos erros decorrentes desse tipo de informação. Além de identificar a presença de vieses, é necessário também estimar a sua magnitude, grau de concordância entre as respostas dos diferentes informantes, primário e secundário, e a sua direção, se para a superestimação ou subestimação. Medidas de confiabilidade, embora não sejam costumeiramente relacionadas com vieses, mantêm relações estreitas com a validade21. Por introduzirem erro de classificação, podem produzir vieses tanto de medidas proporcionais, tais como a prevalência ou o risco, quanto de medidas de efeito ou associação, ou ainda inabilitando a identificação de modificadores de efeito e até mesmo o ajuste adequado para variáveis de confusão22.

Estudos sobre a validade e confiabilidade de informantes secundários têm se avolumado na literatura epidemiológica nas duas últimas décadas21. Seus resultados mostram que dados de informantes secundários têm excelente grau de concordância com as informações dos sujeitos-índice, embora, no geral, sejam subestimadas21. Há evidências também de que as esposas são melhores informantes secundários do que os seus esposos, e que existe uma associação positiva entre o grau de concordância e a escolaridade16, 21.

Menos comuns são estudos onde o informante secundário é utilizado para a obtenção de dados sobre ocorrência de sintomas, notadamente psicológicos. Todavia, a coleta de informações mediante a entrevista com familiares é prática comum na psiquiatria ou psicologia14. Devido à subjetividade e diversidade das concepções culturais sobre as enfermidades mentais19, os padrões de reconhecimento e verbalização de sintomas psicológicos mentais diferem de acordo com o cenário sociocultural da população do estudo, a idade ou o gênero do informante. Por exemplo, são mulheres que predominam na clientela de serviços de saúde, e a maioria dos estudos epidemiológicos revela serem estas as que concentram maiores estimativas de morbidade mental15. Todavia, este excesso de casos entre as pessoas do sexo feminino se deveria principalmente a maior facilidade de identificação, comunicação ou expressão de aspectos da subjetividade como a sintomatologia psicológica, em relação aos homens15.

No Brasil, o QMPA (Questionário de Morbidade Psiquiátrica de Adultos) é o instrumento de triagem para estudos multifásicos de transtornos mentais na comunidade mais comumente empregado1, 2, 17, 26. Desde a sua origem, vem sendo aplicado a informantes secundários em inquéritos domiciliares, considerando especialmente o contexto da investigação epidemiológica em populações de baixo poder aquisitivo e escolaridade. Embora existam alguns estudos sobre sua validade1, 2, 26 e estrutura fatorial4, ainda não se dispõe de dados sobre o grau de concordância das respostas dadas a esse instrumento, por diferentes membros da família.

O objetivo do presente estudo é avaliar a confiabilidade e a ocorrência de vieses em estimativas de morbidade geradas pela aplicação do QMPA a informantes secundários, em comparação com informantes primários, em uma amostra de cônjuges de famílias nucleares. Analisa-se a direção e a magnitude dos vieses devido a erros de classificação, o que poderá permitir uma melhor interpretação dos dados obtidos com informantes secundários.

METODOLOGIA

Os dados do presente estudo provêm de um inquérito de morbidade geral realizado na área urbana de Camaçari, Município da Região Metropolitana de Salvador. Um dos subprojetos buscava estimar a prevalência de enfermidades mentais e fatores associados, empregando um desenho de dois estágios: 1) aplicação de um instrumento de triagem, o QMPA a informantes de cada uma das famílias selecionadas para a identificação de suspeitos de transtornos mentais, que se baseava no número de respostas positivas (escores); 2) todos os indivíduos selecionados, na etapa anterior, eram examinados por um psiquiatra para avaliação e classificação diagnóstica. De modo a se evitar tendenciosidades, a este grupo, incluía-se uma subamostra de não suspeitos, selecionada aleatoriamente. A população total do estudo original foi uma amostra aleatória por conglomerados de 510 famílias residentes na área urbana de um dos municípios da Região Metropolitana de Salvador, Camaçari. Todos os domicílios identificados foram visitados por entrevistadores treinados, em sua maioria estudantes de medicina. Após a apresentação e consentimento em participar da pesquisa, identificava-se um membro da família, geralmente a dona de casa, como informante qualificado. Nesta entrevista registravam-se dados relativos à composição familiar, características sociodemográficas individuais e, com base nessas informações, selecionavam-se os indivíduos elegíveis para os diversos subestudos. Para a avaliação de alguns procedimentos metodológicos e a viabilidade geral das estratégias dos múltiplos subestudos, realizou-se um estudo piloto com as primeiras 70 famílias selecionadas, número definido de acordo com critérios operacionais da investigação. O estudo de confiabilidade é parte dessa etapa da pesquisa, quando se avaliou especificamente o desempenho de um informante secundário, a dona de casa, em relação aos demais membros da família. Maiores detalhes da metodologia encontram-se em publicações anteriores2,23.

Para avaliar o grau de confiabilidade do informante secundário, além das donas de casa, os seus esposos ou companheiros foram convidados a responder ao QMPA sobre seu próprio estado mental e, respectivamente, da sua esposa ou companheira. Trata-se, portanto, de um estudo de desenho emparelhado, onde cada par (casal) se constitui na unidade de observação para as análises de concordância. Cada entrevista era realizada separadamente pelo mesmo entrevistador, seguindo os procedimentos padronizados da coleta de dados2. A aplicação dos questionários aos informantes primário e secundário foi realizada no mesmo dia em 60% dos casais, com uma semana de diferença em 25,7%, e com mais de uma semana em 14,3%. O QMPA foi desenvolvido em formato apropriado para aplicação por pessoal não médico treinado. Compõe-se de 44 questões elaboradas com termos populares sobre a ocorrência dos sinais e sintomas mais comuns de enfermidades mentais. As respostas são dicotômicas (sim=1, não=0), cujo somatório representa escores finais que podem ser utilizados, mediante um adequado ponto de corte, para seleção de indivíduos a serem submetidos a procedimentos confirmatórios como a entrevista psiquiátrica26. No presente estudo analisam-se apenas 17 das questões que abrangem sintomas relativos a transtornos psiconeuróticos.

Para avaliação da confiabilidade entre informantes primários e secundários, as respostas a itens específicos do QMPA foram comparadas de modo a se estimar a magnitude da concordância e a direção do viés correspondente à cada questão. A definição de `acordo' corresponde a respostas iguais, sejam positivas ou negativas. Para a análise, cada entrevistado foi considerado, alternadamente, como informante primário, quando respondia sobre seus próprios sintomas, e como informante secundário quando respondia sobre o seu cônjuge. Devido à raridade de alguns sintomas, especialmente aqueles de natureza psicótica e deficiências cognitivas graves, restringiu-se a análise a 17 perguntas que compunham as dimensões ansiedade-somatização e depressão-irritabilidade, identificadas através de análise fatorial4. A preparação da base de dados foi realizada com o Epi Info 6 7 e a análise foi conduzida com o SAS Windows V.6.1227.

O grau de concordância entre as respostas dadas ao QMPA foi inicialmente estimado através do percentual bruto de acordos. Para a análise da confiabilidade, com medidas ajustadas para concordância aleatória, utilizou-se o Índice Kappa (IK)8. Este indicador varia de 0 a 1,0, com o valor máximo representando a concordância perfeita. Para facilidade de interpretação, os níveis do Índice Kappa podem ser considerados como: fracos para valores abaixo de 0,4; bons de 0,41 a 0,75, e excelente quando acima de 0,758. Para identificar a presença, magnitude e direção de vieses de mensuração, especificamente de classificação, em comparação com os informantes primários, um indicador de Viés Proporcional (VP) foi calculado para cada item, através da seguinte fórmula:

VP= (Ppx - Ppr) / Ppr

onde Ppx é a proporção de respostas positivas dadas pelos informantes primários e Ppr é a proporção de respostas positivas de acordo com os informantes secundários, para as situações onde Ppx é maior do que Ppr, ou seja, viés negativo. Para mais rápida compreensão os resultados são apresentados em percentuais com o sinal da direção do viés. Trata-se, portanto, de uma medida relativa da magnitude do viés, onde valores negativos representam subestimação, e os positivos, superestimação das respostas dos informantes secundários em comparação às do informante primário.

Não se realizou testes para diferenças estatísticas relativas às estimativas de vieses desde que se trata de um problema de desempenho do instrumento e não de inferência estatística. Vale notar que este é um estudo exploratório realizado com uma população definida em bases de conveniência operacional (estudo-piloto). Outras diferenças de proporções foram testadas empregando-se o Teste de X2, adotando-se um alfa de 0,05.

RESULTADOS

Da população do estudo-piloto, composta por 70 famílias, houve recusa de participação em apenas um domicílio. Portanto, 138 pessoas compõem a população do presente estudo, que corresponde a 69 casais de famílias nucleares. Na Tabela 1 mostram-se os dados que caracterizam os pares componentes da população do estudo. Verifica-se que as esposas são mais jovens do que os maridos, diferenças estatisticamente significantes (p<0,05). Não se observam diferenças em relação ao grau de escolaridade e experiência de migração recente.

Proporções de acordos entre as respostas do informante secundário e primário para cada uma das perguntas são apresentadas na Tabela 2. Na maioria das estimativas observa-se uma alta concordância, destacando-se, com percentual de 93,0%, a questão relativa a isolamento ("fechado no quarto sem querer ver ninguém"), seguida pelas respostas sobre irritabilidade e choro freqüente com 80,0% de acordos. As perguntas referentes a experiências subjetivas encontram-se na faixa mais baixa de acordos, entre 60,0 e 70,0%, exceção para "fica agressivo, explode com facilidade?" que apresentou um percentual de 62,0%.

Tabela 1
- Características da população do estudo.
Table 1 - Characteristics of the study population.

Migrante recente - pessoas que passaram a viver no local há pelo menos dois anos.

N - número de indivíduos.

Na Tabela 3 são mostradas as estimativas dos Índices Kappa e respectivos erros-padrão para cada uma das questões selecionadas, de acordo com o gênero do informante secundário (esposos e esposas). A maioria das estimativas apresentam-se na faixa abaixo de 0,4 considerada como de fraca concordância além daquela devida à chance. Para o total da população, verifica-se que todos os Índices Kappa estimados expressam fraca concordância, exceção para a pergunta "crises de irritação com freqüência" que apresenta valores de 0,42 denotando, portanto, concordância moderada. Ainda nessa Tabela, verifica-se que todas as estimativas do Índice Kappa entre os maridos representam fracas concordâncias, enquanto que entre as esposas cinco das 17 questões em análise revelam-se com níveis de concordância moderada. Vale notar o valor negativo estimado para esse indicador (IK= -0,03, Erro-padrão=0,21) quando são os esposos que informam sobre as suas mulheres para a pergunta "fica fechada no quarto sem querer ver ninguém?". Ainda para o desempenho dos esposos como informantes secundários, observam-se valores muito baixos de Índice Kappa (0,03, Erro-padrão=0,11), para as perguntas "já esteve descontrolada, fora de si?" e "sente bolo na garganta ou empaixamento no estômago?".

Tabela 2
- Acordos para as respostas sobre questões selecionadas do QMPA na população do estudo (N=138).
Table 2 - Agreement for answers to selected questions of the QAPM in the study population (N=138).

QMPA: Questionário de Morbidade Psiquiátrica de Adultos.

Tabela 3
- Índice Kappa de acordo com o informante e estimativas do viés para o total da população do estudo (N = 138).
Table 3 - Kappa index according to the informant and bias estimates for the total study population (N=138).

* Concordâncias moderadas, entre 0,40 e 0,60; ausência de * - fracas concordâncias, abaixo de 0,40.

QMPA - Questionário de Morbidade Psiquiátrica de Adultos.

Tabela 4
- Prevalência de respostas positivas ao QMPA de acordo com o informante e estimativas de viés para o total da população do estudo (N=138).
Table 4 - Prevalence of positive answers to QAPM according to the informant and bias estimates for the total study population (N=138).

** viés entre 30 e 50,0%; ausência representa viés abaixo de 30,0%.

*** viés acima de 50,0%.

QMPA - Questionário de Morbidade Psiquiátrica de Adultos.

Tabela 5
- Prevalência de respostas positivas ao QMPA de acordo com o informante e estimativa de viés para o grupo de esposos (N=69).
Table 5 - Prevalence of positive answers to QAPM according to the informant and bias estimates among husbands (N=69).

** viés entre 30 e 50,0%; ausência representa viés abaixo de 30,0%.

*** viés acima de 50,0%.

QMPA - Questionário de Morbidade Psiquiátrica de Adultos.

Tabela 6
- Prevalência de respostas positivas ao QMPA de acordo com o informante e estimativas de viés entre as esposas (N=69).
Table 6 - Prevalence of positive answers to QAPM according to the informants and Bias estimates among wives (N=69).

** viés entre 30 e 50,0%; ausência representa viés abaixo de 30,0%.

*** viés acima de 50,0%.

QMPA - Questionário de Morbidade Psiquiátrica em Adulto.

Uma conseqüência de concordâncias imperfeitas é a ocorrência de vieses em estimativas epidemiológicas. As Tabelas 4 a 6 mostram para o total da população, e especificamente para cada um dos gêneros, valores estimados das prevalências baseados em ambos, o informante primário e secundário, bem como as respectivas diferenças relativas entre essas medidas. Na população geral do estudo (Tabela 4), todas as estimativas obtidas com o informante secundário foram subestimadas. As questões que apresentaram subestimação acima de 50,0% foram "fica fechado no quarto sem querer ver ninguém?", "já esteve descontrolado, fora de si?" e "sente tremores ou frieza nas mãos?".

Quando os maridos são tomados como informantes secundários das suas esposas (Tabela 5), verifica-se uma substancial presença de vieses, sempre com tendência à subestimação, em sua maioria para valores acima de 50,0%. Especificamente, encontram-se nesta faixa, todas as perguntas relativas à sintomatologia depressiva (de número 14 a 17), além da "fraqueza nas pernas, dores nos nervos?", "zumbido nos ouvidos, agonia na cabeça?", "palpitação ou aperto no coração?", "tremores ou frieza nas mãos", e "já esteve descontrolada fora de si?".

Para o desempenho das mulheres como informante secundária dos seus esposos (Tabela 6) verifica-se também que a maioria das prevalências foram subestimadas, embora em menor intensidade. Observa-se que não existe viés para duas questões: "sente bolo na garganta, empachamento no estômago?"e "falta de apetite?". Enquanto que não ocorre nenhum viés acima de 50,0%, sendo apenas três perguntas que apresentam subestimação na faixa entre 30,0 e 50,0%: "fraqueza nas pernas, dores nos nervos?", "dificuldade para dormir?, e "já esteve descontrolado, fora de si?".

Em resumo, verifica-se que o uso de informante secundário, especificamente entre esposos, leva à subestimação de informações e que as mulheres são melhores informantes secundárias do que seus esposos. Aparentemente, a pergunta que representa o pior desempenho, tanto para esposos como esposas, é aquela referente ao "descontrole, fora de si", que necessitaria uma revisão da sua formulação. As questões referentes a "fraqueza nas pernas, dores nos nervos" e distúrbios do sono expressam vieses, para ambos os cônjuges, na faixa de 30,0 a 50,0%.

DISCUSSÃO

Os dados do presente estudo são sugestivos de que o uso de informantes secundários pode levar a estimativas de indicadores populacionais de morbidade enviesados, sempre na direção da subestimação, e que a magnitude desses vieses depende da posição conjugal e, nesse caso específico, do gênero. A ocorrência de níveis fracos de concordância, medida pelo Índice Kappa, para a maioria das respostas dessas perguntas do QMPA, confirma também a baixa repetibilidade, em geral, das informações prestadas pelo esposo sobre a sua esposa em inquéritos epidemiológicos de saúde mental. Por outro lado, o desempenho das esposas como informante secundária evidenciou-se como bastante superior ao dos esposos, alcançando concordância aceitável para um instrumento de triagem como o QMPA. Além disso, enquanto as esposas obtiveram índice moderado de concordância para várias questões, entre os homens não houve nenhuma pergunta que atingisse esse patamar de desempenho.

No âmbito da saúde mental, a obtenção de informações confiáveis de informantes substitutos vai mais além da questão da repetibilidade de respostas per se, de natureza tão somente baseada na disponibilidade da informação. Estão envolvidos sentimentos, valores, especialmente aqueles relacionados a auto-imagem e auto-estima, que demarcam o que pode ser reconhecido e expresso verbalmente, tanto para o companheiro ou companheira, como para o entrevistador da pesquisa. A melhor qualidade da informação produzida em pesquisas de campo por mulheres, principalmente as donas-de-casa, vem sendo compreendida como uma decorrência das características de gênero e da sua posição e tipo de relação com os demais membros da família, o que as colocaria em uma posição privilegiada nas redes de comunicação familiar6.

Estes resultados são consistentes com a maioria dos estudos21, 22, especialmente sobre a subestimação de informantes secundários. Todavia, o presente estudo se distingue dos encontrados na literatura por tratar de sintomatologia psíquica e não de fatores de risco potenciais. Sob esta consideração, dados publicados sobre o melhor desempenho da esposa como informante secundária são menos consistentes e parecem variar principalmente com a informação de interesse. Nesse caso, estudos sobre o efeito do informante secundário em relação a padrões de dieta11,18, hábitos pessoais13, características sociodemográficas10, alcoolismo9 e problemas mentais5 indicam menor confiabilidade para os esposos do que as esposas. Ao contrário, pesquisas sobre a confiabilidade do hábito de fumar21, causas de óbito25 e problemas neurológicos16, 24 e dados quantitativos sobre consumo de bebidas alcoólicas, ou gasto energético em atividades físicas22 sugerem o oposto.

Além da superioridade da esposa como informante secundária em inquéritos psiquiátricos, que está a merecer a devida importância para o aperfeiçoamento da metodologia de estudos de campo, deve-se buscar compreender esta questão no contexto de uma teoria geral do erro (confiabilidade e viés) na pesquisa epidemiológica. Nesta perspectiva considera-se três elementos do processo de produção de dados como fonte potencial de erro: o informante, o investigador e o instrumento de coleta3, 12. Magaziner16 desenvolveu um modelo teórico geral que incorporava o informante secundário indicando como determinantes de concordância e viés: a questão da investigação, as características do informante secundário e as características do referente. Buscando uma interpretação mais apropriada para esta problemática, propõe-se condensar os elementos de ambos os modelos, identificando agora quatro determinantes essenciais do erro: o investigador, o informante (incorporando aqui a questão dos informantes substitutos), o instrumento e o caso. Especificamente sobre este último, e referindo-se à questão em estudo, caberia considerar a dimensão psicopatológica per se. Ou seja, é necessário situar a questão da validade e da confiabilidade no âmbito empírico mais restrito das próprias queixas e sintomas que compõem as questões do QMPA (ou qualquer instrumento de pesquisa com objetivos similares).

Nesse sentido, e de acordo com os achados do estudo, a tendência geral à baixa concordância entre informantes concentra-se principalmente em queixas que, de algum modo, poderiam ser consideradas mais "subjetivas" na medida em que se referem a impressões e sensações ("zumbidos nos ouvidos, agonia na cabeça?", e "bolo na garganta/empachamento no estômago") ou comportamentos socialmente não aceitáveis ("já esteve descontrolado, fora de si?"). A extrema discrepância entre o desempenho dos homens e mulheres frente à questão "fechado no quarto sem querer ver ninguém?" merece reparo por revelar um padrão peculiar, possivelmente, vinculado à menor presença dos maridos em casa, ou a diferenças no limiar de percepção desse comportamento como fora da normalidade.

As interfaces entre os conceitos de validade e confiabilidade reveladas destacam-se no presente estudo. Embora a confiabilidade não seja identificada como um problema de validade, mas sim de consistência de medidas, ou repetibilidade, a sua ocorrência pode levar a vieses de estimativas, sejam de morbidade ou de associação. Nesta análise, pode-se argumentar que a informação dada pelo próprio indivíduo em causa, seria o seu próprio padrão desde que são raros os métodos disponíveis para mensuração objetiva e externa de fenômenos de natureza subjetiva, como muitos dos sintomas de que trata o QMPA. Reconhece-se que a sintomatologia psíquica guarda singularidades no seu percurso até os níveis da consciência e da verbalização, principalmente em um contexto de investigação distante da intimidade do enquadre terapêutico. Exemplo disso é a limitação das informações sobre o consumo inadequado de bebidas alcoólicas pelo próprio indivíduo, seja do sexo masculino ou feminino.

Finalmente, é preciso assinalar que nenhum desses determinantes de variação e viés atua isoladamente. Assim, é necessário compreender o viés como resultado de um maior grau de dificuldade na apreensão de uma realidade empírica dada ou, inversamente, como fruto de desvios sistemáticos ou não produzidos pelos investigadores ou informantes que "manufaturam" um certo estudo. De fato, o que se estabelece em tal processo é uma interação dinâmica de altíssima complexidade entre todos os elementos componentes, fazendo efetivamente interpenetrar expectativas do investigador, reações do informante, mediações do instrumento e condições do caso. Nessa perspectiva, não se pode conceber a mensuração como idealmente isenta de viés e problemas de repetibilidade. De fato, aponta-se para o reconhecimento da inevitabilidade do viés como um desafio maior para todos os campos de prática científica. Dessa maneira, será possível construir, com algum nível provisório porém pragmático de objetividade, um conhecimento sobre o processo de produção científica de cada campo particular. Outro não foi o objetivo do presente estudo, dentro dos limites desta temática científica relevante e atual que é a investigação epidemiológica em saúde mental.

Correspondência para/Correspondence to: Vilma S. Santana - Rua Padre Feijó, 29 - 4º andar - 40110 - 170 Salvador, Ba - Brasil.

E-mail: vilma@compos.com.br

Recebido em 6.6.1997. Reapresentado em 22.10.1997. Aprovado em 6.11.1997.

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  • *Pesquisa subvencionada pelo Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico/CNPq (Processos nº 520607/94-5, nº 522621/96.1 e PIBIC/UFBa).
    Pesquisa subvencionada pelo Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico/CNPq (Processos nº 520607/94-5, nº 522621/96.1 e PIBIC/UFBa).
    **Bolsista do Programa de Iniciação Científica do CNPq.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      16 Ago 2001
    • Data do Fascículo
      Dez 1997

    Histórico

    • Revisado
      22 Out 1997
    • Recebido
      06 Jun 1997
    • Aceito
      06 Nov 1997
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