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Violência e desigualdade social: mortalidade por homicídios e condições de vida em Salvador, Brasil

Violence and social inequalities: mortality rates due to homicides and life conditions in Salvador, Brazil

Resumos

OBJETIVO: A relação entre pobreza e violência tem sido questionada por alguns autores. Nesse sentido, foi realizado estudo com o objetivo de analisar os diferenciais intra-urbanos de mortalidade por homicídio segundo as condições de vida. MÉTODOS: Estudo de agregados referente aos anos de 1991 e 1994, considerando as 75 zonas de informação de Salvador, BA, e a classificação de sua população em quatro estratos de condições de vida, a partir das variáveis renda e escolaridade. Para cada estrato, foram calculados a taxa de mortalidade por homicídios e o risco relativo de morte para o estrato de piores condições de vida em relação aos demais. Os dados foram obtidos de declarações de óbito, dos registros do Instituto Médico Legal e do Censo Demográfico de 1991. Foram calculados os intervalos de confiança a 95%, mediante o aplicativo Confidence Interval Analysis. RESULTADOS: As taxas de mortalidade por homicídio mais elevadas foram registradas nas áreas mais pobres da cidade. O risco relativo de morte por essa causa entre o estrato de piores e o de melhores condições de vida variou entre 2,9 e 5,1, sendo essa relação estatisticamente significante em nível de 5%. CONCLUSÃO: Os achados são sugestivos das possíveis relações entre homicídios e desigualdades sociais, o que levou a discussões sobre a relevância de iniciativas organizadas para a redução da violência.

Homicídio; Condições de vida; Mortalidade; Violência; Iniqüidade social; Iniqüidade na saúde; Coeficiente de mortalidade; Causa da morte; Zonas urbanas; Áreas de pobreza; Renda; Escolaridade; Brasil


INTRODUCTION: Some studies have been questioning the association between poverty and violence. This study's purpose is to assess the distribution of homicide indicators associated with living conditions in Salvador, Brazil. METHODS: A cluster study for the years 1991 to 1994 was carried out including the 75 data centers of the city of Salvador, BA, Brazil. Using death certificates for the study period, yearly mortality rates and mortality ratios were estimated. The 1991 census data of monthly wages and years of education for all family providers were used to define a four-category variable related to living conditions. Mortality rates due to homicide and the relative risk regarding the lowest living condition area were calculated for each social stratum. The 95% confidence intervals were calculated using the Confidence Interval Analysis software. RESULTS: The highest mortality rates due to homicide were seen in the poorest areas. The relative risk due to homicide for the lowest and the highest living condition areas was statistically significant at 5% level and ranged from 2.9 to 5.1. CONCLUSIONS: The data show a strong association between social inequalities and homicide in this urban area, emphasizing the importance of crime reduction programs.

Homicide; Living conditions; Mortality; Violence; Social inequity; Health inequity; Mortality rate; Cause of death; Urban zones; Poverty areas; Income tax; Educational status; Brazil


Violência e desigualdade social: mortalidade por homicídios e condições de vida em Salvador, Brasil

Violence and social inequalities: mortality rates due to homicides and life conditions in Salvador, Brazil

Adriana C Macedo* * Bolsista de iniciação científica do Instituto de Saúde Coletiva da Universidade Federal da Bahia ¾(PIBIC/CNP/UFBa. Processo nº 520 997/95-6 ¾ SU). , Jairnilson S Paim, Lígia M Vieira da Silva e Maria da Conceição N Costa

Instituto de Saúde Coletiva da Universidade Federal da Bahia. Salvador, BA, Brasil

DESCRITORES

Homicídio.# Condições de vida.# Mortalidade.# Violência.# Iniqüidade social.# Iniqüidade na saúde. Coeficiente de mortalidade. Causa da morte. Zonas urbanas. Áreas de pobreza. Renda. Escolaridade. Brasil.

RESUMO

OBJETIVO:

A relação entre pobreza e violência tem sido questionada por alguns autores. Nesse sentido, foi realizado estudo com o objetivo de analisar os diferenciais intra-urbanos de mortalidade por homicídio segundo as condições de vida.

MÉTODOS:

Estudo de agregados referente aos anos de 1991 e 1994, considerando as 75 zonas de informação de Salvador, BA, e a classificação de sua população em quatro estratos de condições de vida, a partir das variáveis renda e escolaridade. Para cada estrato, foram calculados a taxa de mortalidade por homicídios e o risco relativo de morte para o estrato de piores condições de vida em relação aos demais. Os dados foram obtidos de declarações de óbito, dos registros do Instituto Médico Legal e do Censo Demográfico de 1991. Foram calculados os intervalos de confiança a 95%, mediante o aplicativo Confidence Interval Analysis.

RESULTADOS:

As taxas de mortalidade por homicídio mais elevadas foram registradas nas áreas mais pobres da cidade. O risco relativo de morte por essa causa entre o estrato de piores e o de melhores condições de vida variou entre 2,9 e 5,1, sendo essa relação estatisticamente significante em nível de 5%.

CONCLUSÃO:

Os achados são sugestivos das possíveis relações entre homicídios e desigualdades sociais, o que levou a discussões sobre a relevância de iniciativas organizadas para a redução da violência.

KEYWORDS

Homicide.# Living conditions.# Mortality.# Violence.# Social inequity.# Health inequity. Mortality rate. Cause of death. Urban zones. Poverty areas. Income tax. Educational status. Brazil.

ABSTRACT

INTRODUCTION:

Some studies have been questioning the association between poverty and violence. This study's purpose is to assess the distribution of homicide indicators associated with living conditions in Salvador, Brazil.

METHODS:

A cluster study for the years 1991 to 1994 was carried out including the 75 data centers of the city of Salvador, BA, Brazil. Using death certificates for the study period, yearly mortality rates and mortality ratios were estimated. The 1991 census data of monthly wages and years of education for all family providers were used to define a four-category variable related to living conditions. Mortality rates due to homicide and the relative risk regarding the lowest living condition area were calculated for each social stratum. The 95% confidence intervals were calculated using the Confidence Interval Analysis software.

RESULTS:

The highest mortality rates due to homicide were seen in the poorest areas. The relative risk due to homicide for the lowest and the highest living condition areas was statistically significant at 5% level and ranged from 2.9 to 5.1.

CONCLUSIONS:

The data show a strong association between social inequalities and homicide in this urban area, emphasizing the importance of crime reduction programs.

INTRODUÇÃO

A violência como fenômeno complexo, multifacetário e resultante de múltiplas determinações articula-se intimamente com processos sociais que se assentam, em última análise, numa estrutura social desigual e injusta. Minayo & Souza11 (1993) têm apresentado uma tipologia na qual se destacam: a violência estrutural, configurada nas desigualdades sociais de acesso ao mercado de trabalho e ao consumo de bens essenciais à vida; a violência cultural, que se expressa entre pares, a exemplo das agressões entre cônjuges; e a violência da delinqüência, referente a indivíduos ou grupos que desencadeiam ações contra cidadãos (crimes contra a pessoa física e o patrimônio), incluindo disputas violentas entre os criminosos e determinadas ações ilegais do próprio aparato policial. Portanto, as violências não se reduzem à criminalidade e, no campo da saúde, correspondem a "qualquer ação intencional realizada por indivíduo ou grupo, dirigida a outro, que resulte em óbito, danos físicos, psicológicos e/ou sociais" (Franco,5 1992).

As mortes violentas estão incluídas na 9ª Classificação Internacional de Doenças (CID-9) da Organização Mundial da Saúde (OMS) sob a denominação de "Causas externas de lesões e envenenamentos". As taxas de mortalidade por esse grupo de causas apresentaram, nas décadas de 80 e 90, elevação em seus valores, passando a ocupar, no Brasil, a segunda posição em relação aos demais grupos.15 Comparativamente a outros países da região das Américas, a mortalidade proporcional por causas externas no Brasil é semelhante às do México, da Nicarágua, do Panamá e da Venezuela (ao redor de 15%), apenas superada pela da Colômbia15 e corresponde ao dobro do valor apresentado pelos Estados Unidos e Canadá.9

Embora o Brasil não se encontre entre os países com maior mortalidade por causas violentas, foi um dos que experimentaram maior crescimento desse indicador no período de 1979 a 1990.20 Na década de 90, os homicídios chegaram a ocupar a primeira posição entre essas causas de morte, com uma elevação de 160% no período de 1977 a 1994.9 Isto fez com que a violência passasse a despertar o interesse de pesquisadores na área da saúde pública e de outros campos disciplinares.5,20

Entre as capitais brasileiras que apresentam mortalidade por causas externas mais elevadas (superior a 100/100.000), destacam-se Vitória, Rio de Janeiro e Aracaju, enquanto Belém, São Luís e João Pessoa exibiam os menores coeficientes (abaixo de 60/100.000). Em uma posição intermediária, encontram-se São Paulo, Recife e Salvador, com taxas entre 80 e 99/100.000 habitantes.9

Em Salvador, também ocorreu crescimento da mortalidade proporcional por causas externas a partir da segunda metade da década de 80, de modo que, ao final desse período, passaram a representar, tal como no País, a segunda principal causa de mortalidade.16 A taxa de mortalidade nessa cidade passou de 4,5 óbitos por 100 mil habitantes, em 1977, para 37,2 óbitos por 100 mil habitantes, em 1994.9

A ocorrência de mortes violentas nos espaços urbanos vem sendo associada a alguns fatores existentes nesses ambientes, como concentração populacional elevada, desigualdades na distribuição de riquezas, iniqüidade na saúde, impessoalidade das relações, alta competição entre os indivíduos e grupos sociais, fácil acesso a armas de fogo, violência policial, abuso de álcool, impunidade, tráfico de drogas, estresse social, baixa renda familiar e formação de quadrilhas.9

As estatísticas oficiais, divulgadas de forma agregada e descrevendo as populações como se fossem homogêneas, deixam de evidenciar as distribuições espaciais diferenciadas da mortalidade por causas externas. Essa heterogeneidade, no entanto, tem sido apontada por investigações8,16 que analisam relações com variáveis socioeconômicas como renda, educação, consumo de bens e serviços, que tendem a assumir um papel relevante na determinação de desigualdades em saúde,18 especialmente no que se refere aos homicídios.1 A mortalidade por essa última causa apresenta algumas particularidades em relação a sua distribuição por sexo, idade, raça, condições socioeconômicas e regiões geográficas. Assim, o grupo mais intensamente atingido pela violência constitui-se de adolescentes e adultos jovens do sexo masculino, pobres e negros.10

As relações entre violências e condições de vida não são unívocas nem lineares, o que tem levado a certo questionamento sobre os seus determinantes.21 Como adverte Soares,17 "quem atribui o envolvimento com o crime a necessidades econômicas freqüentemente esquece o papel que a cultura, os valores, as normas sociais e os símbolos desempenham. A auto-estima é tão importante para a sobrevivência humana quanto um prato de comida". Contudo, se é verdade que pobreza não gera, necessariamente, violência, e que os bairros populares e as favelas não devem ser estigmatizados como espaços violentos, também não se deve eludir o fato de que evidências empíricas acumuladas apontam tais áreas como as que concentram maior proporção de vítimas das violências, expressas pelas maiores taxas de homicídios e pelas baixas condições de vida.1,4,6 Nesse sentido, caberia explorar diferentes metodologias de investigação potencialmente capazes de verificar possíveis relações entre condições de vida das populações e determinadas manifestações da violência, como é o caso dos homicídios.

Desse modo, o presente estudo tem como objetivo analisar os diferenciais intra-urbanos de mortalidade por homicídio, segundo as condições de vida de distintos segmentos populacionais.

MÉTODOS

Foi realizado um estudo de agregados em Salvador, capital do Estado da Bahia, região Nordeste do Brasil, referente aos anos de 1991 e 1994, tendo como unidade de análise cada uma das 75 Zonas de Informação (ZI) que compõem o espaço urbano da cidade. Essas ZI foram classificadas de acordo com critérios físico-urbanísticos, administrativos, de planejamento e de compatibilidade com os setores censitários da Fundação Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (FIBGE), estabelecidos pela Companhia de Desenvolvimento da Região Metropolitana de Salvador (Conder).

Os dados referentes aos óbitos foram obtidos das declarações de óbitos (DO) ocorridos nos anos de 1991 e 1994, com residentes no município de Salvador, que se encontravam arquivadas no Centro de Informações de Saúde (CIS) da Secretaria do Estado da Bahia (Sesab). A partir do registro do bairro de residência referido no endereço habitual, as DO foram classificadas e codificadas segundo as respectivas ZI. Quando um mesmo bairro abrangia duas diferentes zonas na divisão da Conder, estas eram agrupadas para constituir uma só zona, o que ocorreu com as ZI 4 e 5, 11 e 12, 39 e 40 e 50 e 51. As ZI 15 e 25 também foram consideradas conjuntamente devido a mudanças de setores censitários da FIBGE e às respectivas adaptações realizadas pela Conder para o Censo de 1991. Por possuírem populações inferiores a 5.000 habitantes, foram excluídas as ZI de número 3, 23, 35, 45, 46, 56, 72, 74 e 76 para evitar distorções das taxas. Ao reagrupar as ZI em estratos, essa exclusão foi mantida pelo fato de a ZI continuar sendo a unidade elementar de análise para que possível heterogeneidade do espaço urbano pudesse ser revelada.

Devido ao grande número de óbitos por causas externas classificados pelo CIS/Sesab como "outros acidentes",16 foram colhidas informações complementares junto ao Instituto Médico Legal Nina Rodrigues (IMLNR), a partir da guia policial e do laudo técnico, para esclarecer os tipos específicos de mortes violentas. Assim, partindo dos registros correspondentes no IMLNR, as causas básicas de óbito foram organizadas em outro banco de dados vinculado ao original por intermédio do número de registro recebido pelas declarações de óbito na Sesab.

Para a análise dos dados segundo condições de vida, considerou-se a mesma estratificação das ZI realizada em estudo anterior,19 que utilizou duas categorias de análise correspondentes a características de indivíduos (renda e educação) identificadas como determinantes das condições de vida e fundamentadas numa concepção segundo a qual os indivíduos distribuem-se no espaço social de acordo com o volume e a composição de seu capital econômico e cultural.2 Esse procedimento consistiu em classificar as ZI tendo em conta duas categorias de análise vinculadas às condições de vida: o capital econômico e o capital cultural.2

A categoria "capital econômico" foi subdividida, de acordo com o rendimento do chefe de família, nos seguintes grupos: (1) capital econômico baixo (CEB), sem rendimento ou até dois salários-mínimos; (2) capital econômico médio (CEM), rendimento maior que dois e até cinco salários-mínimos; e (3) capital econômico alto (CEA), rendimento superior a cinco salários-mínimos.

A categoria "capital cultural" tomou como referência o grau de instrução do chefe de família, subdividindo-se nos seguintes grupos: (1) capital cultural baixo (CCB), sem instrução ou com até sete anos de escolaridade (fundamental incompleto); (2) capital cultural médio (CCM), de oito a 14 anos de escolaridade (fundamental e médio completos); e (3) capital cultural alto (CCA), 15 anos de escolaridade ou mais (superior completo, mestrado ou doutorado).

A consideração simultânea dessas duas variáveis selecionadas resultou nos seguintes estratos: CCA/CEA, CCM/CEA, CCM/CEB e CCB/CEB. O censo de 1991 e as estimativas para 1994, desenvolvidos pelo IBGE, foram utilizados como fonte dos dados populacionais para o cálculo das taxas de mortalidade por homicídios. Nesse particular, foram consideradas as DO codificadas de acordo com a CID-9 (E960-E969), sendo as taxas de mortalidade calculadas para cada ZI e para cada um dos estratos estabelecidos.

Utilizou-se o programa Epi Info para o processamento e a análise dos dados. Foram estimados riscos relativos de mortalidade para o estrato de piores condições de vida em relação a todos os demais. Os respectivos intervalos de confiança a 95% foram calculados mediante emprego do aplicativo informatizado Confidence Interval Analysis/ (CIA).7

RESULTADOS

A distribuição desigual dos homicídios no espaço urbano de Salvador, entre 1991 e 1994, pode ser observada no Anexo Anexo , em que se encontram as taxas de mortalidade por zona de informação segundo seus respectivos estratos sociais. Em 1991, taxas elevadas encontram-se dispersas no espaço urbano, seja no lado da orla voltada para o Oceano Atlântico (Rio Vermelho, Itapuã, Nordeste de Amaralina), seja no lado correspondente à Baía de Todos os Santos (Centro Histórico, Lobato/Pirajá e outros) ou no "miolo" da cidade (Valéria, Pau da Lima e outros). Já em 1994, constataram-se deslocamento da violência para a área do Subúrbio Ferroviário e manutenção de certos "bolsões" de alta mortalidade no "miolo" da cidade.

As taxas de mortalidade por homicídio obtidas nos anos de 1991 e 1994 para cada um dos estratos de condições de vida estabelecidos (Tabela 1 e Figura) indicam diferentes riscos de morte violenta na cidade de Salvador. Em 1991, o estrato 1 (CEA/CCA) apresentou a taxa de 10,4, enquanto o estrato 4 (CCB/CEB) chegou a 30,3 por 100 mil habitantes. Em 1994, a variação ocorreu de forma semelhante com 6,8 no estrato 1 e 34,7 por 100 mil habitantes no estrato 4.


Entre esses dois anos, houve uma variação percentual de aumento da mortalidade nos estratos de baixas condições de vida (14,5% no estrato 4) e de queda naqueles melhor situados no espaço social, reduzindo-se em 34,6% no estrato 1. Verifica-se também que a proporção de homicídios em relação às causas externas foi maior no estrato 4 (29,2%, em 1991, e 35,9%, em 1994) e que ela apresentou variação semelhante com decréscimo nos estratos de condições de vida mais elevadas, chegando a 22,1% no estrato 2, e aumento naqueles mais precários (22,9% no estrato 4), conforme observa-se na Tabela 1.

As populações residentes nas ZI dispondo de capital cultural baixo e de capital econômico baixo (estrato 4) apresentaram, em 1991, um risco de morrer por homicídios 2,9 (1,55-5,43) vezes maior do que aquelas residentes nos espaços urbanos com capital econômico alto e capital cultural alto (estrato 1). Esse risco relativo elevou-se para 5,1(2,4-10,7) em 1994. Os riscos relativos da mortalidade entre o estrato 4 e os demais foram estatisticamente significantes com nível de 5% (Tabela 2).

DISCUSSÃO

A mortalidade por homicídios na cidade de Salvador distribuiu-se de forma desigual entre os estratos de condições de vida em ambos os anos estudados. As áreas com indicadores mais elevados (alguns superiores à média da cidade) corresponderam, na maioria das vezes, a bairros cuja população apresentava precárias condições de vida. Nos estratos com melhores condições de vida, houve redução, embora não uniforme, das taxas de 1991 para 1994, enquanto nos de piores condições ocorreu aumento, portanto aprofundando as desigualdades em relação à morte violenta.

Mesmo tendo sido excluídas as ZI que possuíam populações inferiores a 5.000 habitantes, no sentido de evitar distorções nas taxas, os valores observados em cada ZI devem ser interpretados com a devida cautela.

A estratificação adotada no presente estudo, embora feita pela aglomeração de zonas semelhantes, apresenta algumas limitações devido às particularidades do espaço urbano de Salvador. A existência de favelas em bairros de classe média-alta, como Horto Florestal e Barra, pode modificar certos indicadores de condições de vida da respectiva ZI, com repercussões em sua estratificação. Problemas relativos à qualidade das informações também deveriam ser considerados pela eventual influência na totalidade das mortes por homicídio,13 mascarando a real situação de alguns estratos.

À medida que a unidade de análise do estudo foi representada pela ZI, isto é, um agregado, as inferências não devem ser feitas em relação aos indivíduos, de modo a evitar a chamada falácia ecológica.

Apesar dessas considerações, os achados do presente estudo parecem reforçar a hipótese da relação entre homicídios e baixas condições de vida, ou seja, entre a situação de saúde e as desigualdades econômico-culturais. O risco de morte por esse tipo de causa não ocorreu de maneira homogênea, com evidentes desigualdades entre os estratos, atingindo principalmente áreas mais pobres, tal como observado em estudos anteriores6,16 e mesmo em outros indicadores de saúde utilizados em estudo de metodologia semelhante.19

Nos anos examinados, o risco relativo entre os estratos 4 e 1 variou de 3 a 5 vezes, indicando a influência das condições de vida sobre a mortalidade por homicídios, que parece se agravar de 1991 para 1994, já que houve uma queda nas taxas dos estratos 1, 2 e 3 e um acréscimo no 4. Tal resultado pode sugerir uma piora em 1994 das condições de vida das populações residentes nas áreas correspondentes ao estrato de baixo capital econômico e cultural, acentuando as desigualdades sociais. O deslocamento e a concentração dos homicídios verificados em 1994 para o Subúrbio Ferroviário podem ilustrar tal hipótese explicativa, embora se façam necessários estudos específicos.

Essas informações refletem o risco de morte por homicídio nas populações residentes em áreas com baixas condições de vida, e não o grau de periculosidade dessas áreas, visto que o estudo tomou como referência o local de residência das pessoas falecidas e não o local de ocorrência da violência. Minayo & Souza11 têm apontado os seguintes determinantes da violência nas últimas décadas: crescimento das desigualdades socioeconômicas; baixos salários e renda familiar que levam à perda do poder aquisitivo; ausência de políticas públicas integradas e condizentes com as necessidades da população em relação a saúde, educação, moradia e segurança; prioridade do desenvolvimento econômico em detrimento do social, com sacrifício para população e maior ônus para os pobres; e intenso apelo ao consumo, conflitando com o empobrecimento do País.

Nas regiões metropolitanas, são relevantes a consolidação do crime organizado em torno do tráfico de drogas, o aumento da população que vive e trabalha nas ruas, compelida pelo aumento da pobreza absoluta nessas regiões, e a consolidação dos grupos de extermínio.11 Portanto, o crescimento da violência e, principalmente, das mortes por homicídios parece refletir o aprofundamento da violência estrutural.

A taxa de homicídios tem-se mostrado fortemente correlacionada aos níveis de renda,1 mostrando que a questão da violência urbana não pode ser dissociada da aguda disparidade presente na sociedade, que tende a torná-la menos coesa, menos confiável, mais injusta e hostil.18 Portanto, a afirmação sobre a "inexistência de qualquer associação entre as taxas de mortalidade por homicídios e pobreza ou migração"21 merece ser relativizada à luz dos resultados da presente investigação e de outros estudos brasileiros.1,4

Pesquisa realizada em Recife (Lima & Ximenes,8 1998), por exemplo, ainda que apresente resultados que contrariem a idéia segundo a qual o crescimento das cidades, juntamente com a migração das populações rurais e o aumento da pobreza, seria responsável pelo crescimento da violência, motivou os seus autores a chamarem a atenção para o fato de que a acentuação das desigualdades nas condições de vida pode estar contribuindo para o aumento da violência como um todo e em especial em relação aos homicídios". Os resultados encontrados no presente estudo e nas pesquisas mencionadas parecem reforçar, portanto, a tese de que as desigualdades sociais estão relacionadas à distribuição dos homicídios no espaço urbano.

Conseqüentemente, os determinantes da violência e de seu crescimento, por envolver fatores socioeconômicos (pobreza, fome, desemprego, ausência de renda, desigualdades gerando frustrações freqüentes e ostentação de riqueza), institucionais (omissão do Estado na prevenção e na repressão da violência), de prevenção (escolas, moradia, saúde pública, transportes públicos ineficientes) e de repressão (polícia, justiça e sistema penitenciário),3 exigem resposta social organizada com planos de ação bem estruturados, além de mudanças socioeconômicas.16,12

Presentemente, distintas iniciativas e alguns projetos têm buscado alternativas de prevenção das violências e de promoção da saúde,12,14 mediante mobilização da comunidade e intervenção do poder público para atuar em defesa da paz e na melhoria da qualidade de vida e da saúde da população. Ainda que tais intervenções não incidam significativamente sobre a estrutura social geradora das desigualdades econômico-culturais, têm o potencial de reduzir as taxas atuais de violência por promover valores de paz e oferecer certas oportunidades aos grupos submetidos a maiores riscos.

Correspondência para/Correspondence to:

Jairnilson S. Paim

Rua Padre Feijó, 29, 4o andar, CHR Canela

40110-170 Salvador, BA, Brasil

E-mail: jairnil@ufba.br

Trabalho apresentado como Comunicação Coordenada no VI Congresso Brasileiro de Saúde Coletiva. Salvador, Bahia, 2000.

Recebido em 3/4/2001. Reapresentado 10/9/2001. Aprovado em 27/9/2001.

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Anexo

  • *
    Bolsista de iniciação científica do Instituto de Saúde Coletiva da Universidade Federal da Bahia ¾(PIBIC/CNP/UFBa. Processo nº 520 997/95-6 ¾ SU).
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      28 Jan 2002
    • Data do Fascículo
      Dez 2001

    Histórico

    • Aceito
      27 Set 2001
    • Revisado
      10 Set 2001
    • Recebido
      03 Abr 2001
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