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Morbidade referida e busca de ajuda nos transtornos mentais na infância e adolescência

Referred morbidity and help seeking on mental disorders in childhood and adolescence

Resumos

INTRODUÇÃO: A avaliação da taxa de prevalência de transtornos mentais na infância e adolescência contribui para o aumento do conhecimento de sua distribuição numa dada população e fornece dados para o planejamento, execução e avaliação dos serviços de saúde. Objetivou-se avaliar queixas referidas a "problemas dos nervos" na população de 1 a 19 anos, como forma de aproximação à questão da prevalência da doença mental nessa faixa etária. MÉTODOS: Foi estudado um grupo de 141 crianças e adolescentes com queixas referidas a "problemas dos nervos" a partir de um levantamento populacional realizado numa amostra de 3.158 indivíduos, residentes na região sudoeste da Grande São Paulo, de julho de 1989 a julho 1990. Foram analisados: tipos de queixas, causas referidas, idade, sexo e conduta. RESULTADOS: A prevalência obtida foi de 4,7%. Houve crescimento das queixas com o aumento da idade, predomínio do sexo masculino nos mais jovens e do feminino a partir dos 14 anos. A busca de ajuda foi referida em 22,6% dos casos e o preditor mais importante foi a gravidade da queixa. CONCLUSÕES: A taxa de prevalência encontrada referiu-se à capacidade de reconhecimento dos transtornos mentais pela população, refletindo a representação que a família tem destes problemas. Foi encontrada baixa procura de atendimento; foram apontadas as possíveis causas e discutidos mecanismos possíveis de intervenção para o resgate da necessidade não atendida.

Transtornos mentais; Inquéritos de morbidade; Atitude frente à saúde; Serviços de saúde mental


INTRODUCTION: Determining the prevalence of mental disturbances in childhood and adolescence gives us a better knowledge of their distribution in a given age group and provide us data for planning, implementing and evaluating health care programs. This survey was centered on complaints of "nervous problems" in a population group ranging from 1 to19 years old as a tool to measure mental illness prevalence in that age group. METHODS: A group of 141 children and teenagers with complaints of nervous problems participated in the study, drawn by applying questionnaires from June, 1989 to July, 1990 to a sample of 3,158 people in the age group 1-19 years old, living in the Southeast area of Grande São Paulo. It was conducted an analysis of the nature of the complaints, their referred reasons and behavior, age, and gender. RESULTS: The prevalence of complaints of nervous problems was 4.7%. The older they were the more they complained. It was noticed a male predominance in the younger group and female preponderance in the group 14 years old or older. One in five tried to get any help, and severity of their complaint was the most important predictor for that. CONCLUSION: The prevalence was due to the population's ability to identify mental illnesses and it also reflects the family understandings of these problems. As only a few sought for health care, possible causes were identified and intervention actions were proposed to satisfy the unattended needs.

Mental disorders; Morbidity surveys; Attitude to health; Mental health services


Morbidade referida e busca de ajuda nos transtornos mentais na infância e adolescência* * Parte da dissertação de mestrado em saúde pública apresentada à Faculdade de Saúde Pública da USP, em 1998.

Referred morbidity and help seeking on mental disorders in childhood and adolescence

Edith P P Lauridsen** ** Aluna de pós-graduação. e Oswaldo Y Tanaka

Departamento de Saúde Materno-Infantil da Faculdade de Saúde Pública da Universidade de São Paulo. São Paulo, SP - Brasil

Descritores
Transtornos mentais, epidemiologia. Inquéritos de morbidade. Atitude frente à saúde. Serviços de saúde mental, utilização. Resumo

Introdução

A avaliação da taxa de prevalência de transtornos mentais na infância e adolescência contribui para o aumento do conhecimento de sua distribuição numa dada população e fornece dados para o planejamento, execução e avaliação dos serviços de saúde. Objetivou-se avaliar queixas referidas a "problemas dos nervos" na população de 1 a 19 anos, como forma de aproximação à questão da prevalência da doença mental nessa faixa etária.

Métodos

Foi estudado um grupo de 141 crianças e adolescentes com queixas referidas a "problemas dos nervos" a partir de um levantamento populacional realizado numa amostra de 3.158 indivíduos, residentes na região sudoeste da Grande São Paulo, de julho de 1989 a julho 1990. Foram analisados: tipos de queixas, causas referidas, idade, sexo e conduta.

Resultados

A prevalência obtida foi de 4,7%. Houve crescimento das queixas com o aumento da idade, predomínio do sexo masculino nos mais jovens e do feminino a partir dos 14 anos. A busca de ajuda foi referida em 22,6% dos casos e o preditor mais importante foi a gravidade da queixa.

Conclusões

A taxa de prevalência encontrada referiu-se à capacidade de reconhecimento dos transtornos mentais pela população, refletindo a representação que a família tem destes problemas. Foi encontrada baixa procura de atendimento; foram apontadas as possíveis causas e discutidos mecanismos possíveis de intervenção para o resgate da necessidade não atendida.

Keywords
Mental disorders, epidemiology. Morbidity surveys. Attitude to health. Mental health services, utilization. Abstract

Introduction

Determining the prevalence of mental disturbances in childhood and adolescence gives us a better knowledge of their distribution in a given age group and provide us data for planning, implementing and evaluating health care programs. This survey was centered on complaints of "nervous problems" in a population group ranging from 1 to19 years old as a tool to measure mental illness prevalence in that age group.

Methods

A group of 141 children and teenagers with complaints of nervous problems participated in the study, drawn by applying questionnaires from June, 1989 to July, 1990 to a sample of 3,158 people in the age group 1-19 years old, living in the Southeast area of Grande São Paulo. It was conducted an analysis of the nature of the complaints, their referred reasons and behavior, age, and gender.

Results

The prevalence of complaints of nervous problems was 4.7%. The older they were the more they complained. It was noticed a male predominance in the younger group and female preponderance in the group 14 years old or older. One in five tried to get any help, and severity of their complaint was the most important predictor for that.

Conclusion

The prevalence was due to the population's ability to identify mental illnesses and it also reflects the family understandings of these problems. As only a few sought for health care, possible causes were identified and intervention actions were proposed to satisfy the unattended needs.

INTRODUÇÃO

A atenção à saúde mental infantil, como parte integrante da assistência à saúde integral da criança, ainda constitui desafio na organização do atendimento cotidiano. As questões relativas à identificação dos problemas prioritários a serem enfrentados, aos planejamentos terapêuticos racionalmente efetuados e à organização de serviços, que permitam tornar concretas as questões relativas à operacionalização das propostas de trabalho, ainda necessitam ser amplamente discutidas pelos vários grupos de atores sociais interessados na melhoria desse tipo de atenção.

Os estudos epidemiológicos contribuem para melhorar os serviços de saúde mental para crianças pelo conhecimento da distribuição, magnitude, causas e curso dos transtornos mentais e por proporcionar dados essenciais para o planejamento, execução e avaliação das ações de prevenção, controle e tratamento. Na área da saúde mental, os estudos epidemiológicos começaram a ser realizados em meados do século XIX, mas, apesar dos grandes progressos realizados, persistem dificuldades importantes. Permanecem como desafios a problemática da definição de caso, em relação à confiabilidade e validade dos casos diagnosticados, as questões relativas à comorbidade entre transtornos psiquiátricos e a padronização da definição de variáveis psicológicas e demográficas. (Ministério da Saúde10, 1989)

Os trabalhos de investigação epidemiológica dos transtornos mentais na infância e adolescência têm características e dificuldades próprias. Verhulst, em 1990 (citado por Pedreira et al.13, 1993), esquematizou algumas das principais características do levantamento de informações sobre morbidade em saúde mental na infância: 1) critérios de morbidade: quais condutas podem ser consideradas normais?; 2) aspectos do desenvolvimento: variações relacionadas à idade; 3) escolha dos informantes: pais, professores, pediatras, crianças; e 4) escolha dos instrumentos de avaliação. A questão da definição de caso é central e problemática. Existe a necessidade de avaliar normalidade/patologia na infância, adequando-a a cada grupo etário e catalogando a conduta detectada como patológica ou como uma variação quali-quantitativa da norma. (Brandenburg et al.2, 1990;Costello6, 1989; Pedreira et al.13, 1993; Rutter15, 1989)

Os estudos epidemiológicos de base populacional sobre a distribuição das doenças mentais na faixa etária pediátrica começaram a ser realizados na década de 50. Os trabalhos de Long, em 1941, Glidwell, em 1957 e Lapouse e Monk, em 1958 foram pioneiros (Links9, 1983). É de 1970 o trabalho de Rutter et al.14, considerado um marco e referência obrigatória para todos os estudos posteriores. Os estudos realizados até o final da década de 70 trouxeram valiosas informações para o entendimento da distribuição dos transtornos mentais na infância. Entretanto, uma análise, mesmo superficial, mostra uma grande heterogeneidade metodológica, o que acaba levando à ampla faixa de resultados encontrados. As taxas de prevalência variaram de 6,8% a mais de 50%. (Links9, 1983).

A partir do início da década de 80, as pesquisas caminharam da consideração de sintomas isolados para a construção de síndromes clínicas. Um dos métodos encontrados foi desenvolver síndromes, clinicamente definidas "a priori", utilizando critérios explícitos de inclusão e exclusão como os encontrados no Diagnostic and Statistical Manual 3rd edition (DSM-III)6. Essa classificação, desenvolvida pela American Psychiatric Association e publicada em 1980, foi um importante passo nas pesquisas comunitárias (Links9, 1983). Quando os critérios do DSM-III são utilizados, as taxas de prevalência encontradas variaram de 17,6% a 22% em cinco estudos de base populacional revistos por Costello6 (1989). Aspecto importante é a inclusão de critérios de gravidade na definição de caso. Quando são incluídos necessidade de tratamento e critérios de disfunção social, as taxas de prevalência podem cair até para 5%. No Brasil, Almeida Filho1 (1982) encontrou taxa de prevalência de transtornos mentais de 23,2%, em crianças de 5 a 14 anos. A despeito dessas variações, pode-se estimar que pelo menos 12% das crianças e adolescentes têm transtornos mentais clinicamente importantes e que metade desses estão gravemente incapacitados por esses transtornos (Offord, Fleming11, 1996).

Uma outra possibilidade de abordagem da questão de definição de caso é a utilizada pelos inquéritos de morbidade referida. Esses levantamentos iniciaram-se na década de 20 nos países industrializados e a partir da década de 50 nos países em desenvolvimento. Eles são caracterizados pela sua base populacional, o que significa maior aproximação da ocorrência real dos problemas de saúde com possibilidade de reconhecimento da demanda reprimida, e pela forma como os problemas de saúde são definidos. Esses inquéritos são realizados por entrevistadores leigos e a definição de caso é dada pelo próprio entrevistado, o que possibilita o conhecimento das representações da população sobre os problemas de saúde estudados (Cesar5, 1997).

O objetivo do presente trabalho é estudar as queixas referidas como "problemas dos nervos" numa população de 1 a 19 anos, residente na região sudoeste da Grande São Paulo, como uma forma de aproximação à questão de prevalência da doença mental nessa faixa etária. São analisados os tipos de queixas, as causas referidas e as variáveis idade e sexo. Analisa-se também a conduta da família ou do adolescente perante a queixa.

MÉTODOS

A região estudada está localizada a sudoeste da cidade de São Paulo, compreendendo os municípios de Taboão da Serra, Embu, Itapecerica da Serra, São Lourenço da Serra, Embu-Guaçu, Juquitiba, Cotia e Vargem Grande Paulista. A população dessa região, de acordo com o Censo Demográfico de 1991, era de 588.789 pessoas, sendo cerca de 50% do sexo feminino e ao redor de 46% menores de 20 anos.

Os dados primários utilizados foram obtidos por entrevistas domiciliares, realizadas através do levantamento populacional "Morbidade referida e utilização de serviços de saúde no ERSA 12 - 1989/90", cuja metodologia foi detalhadamente descrita por César et al.3 (1996). Esse levantamento teve uma amostra de 10.796 indivíduos e 10.199 entrevistas realizadas no período de junho de 1989 a julho de 1990. Os resultados dessa pesquisa e o questionário completo utilizado encontram-se em Cesar5 (1997).

Com o intuito de rastrear todos os casos com algum tipo de queixa relacionada à área de saúde mental, foram identificadas nos questionários todas as queixas referidas a "problemas dos nervos", na faixa etária de 1 a 19 anos. Foram selecionados os casos com resposta "sim" às perguntas: "E problemas de nervos, o Sr(a) teve?" e "O Sr(a) tem problemas dos nervos?", sendo que a primeira pergunta era referente a problemas nos últimos 15 dias e a segunda a problemas crônicos. Essas questões eram compostas de duas partes: na primeira, o entrevistado respondia "sim" ou "não"; caso a resposta fosse "sim", era inquirido qual o tipo de problema apresentado, que era anotado com as próprias palavras do entrevistado. Para as crianças com menos de 14 anos, o questionário foi respondido pela mãe ou responsável. Esses casos constituíram o grupo com queixas de "problemas dos nervos", sobre o qual foi realizada a presente análise.

Do universo de 3.158 questionários (1.283 na faixa etária de 1 a 6 anos e 1.875 na de 7 a 19 anos), foi selecionado um grupo de 141 crianças e adolescentes (sendo 36 do grupo de 1 a 6 anos e 105 do grupo de 7 a 19 anos) com queixas referidas a "problemas dos nervos". Na análise de algumas variáveis foi utilizada a divisão da faixa etária de 7 a 19 anos em dois grupos: de 7 a 13 anos (com 1.068 casos) e de 14 a 19 anos (com 807 casos).

No grupo com queixas referidas a problemas dos nervos, foram analisados os tipos de queixas e sua distribuição por sexo e idade. A freqüência das queixas foi tabulada pelo método das respostas múltiplas. Foi também analisada a causa do problema imaginada pelo informante, visando descrever o entendimento que a população tem das causas desses problemas. Para esta análise foi feito um levantamento das respostas abertas à questão "Por que o Sr(a) acha que este problema apareceu?". As questões que envolviam conduta perante a queixa foram analisadas em conjunto, tentando descrever a atitude das crianças e adolescentes, bem como de suas famílias diante desses problemas.

A análise dos dados obtidos foi realizada em três etapas. Na primeira, foi feita a análise global dos tipos de queixas e causas referidas dos "problemas dos nervos". Na segunda, foi feita uma análise descritiva do grupo com queixas referidas. As variáveis analisadas foram: idade e sexo; presença de outras queixas de saúde; limitação de atividade; presença do pai no domicílio; tamanho da prole; idade da mãe ao nascimento do filho; característica da área de residência; migração e variáveis socioeconômicas. Na terceira etapa, foi realizada a análise da conduta da família perante a queixa. Foi feita a tentativa de identificar fatores relacionados com a busca ou não de ajuda para a resolução do problema. Com essa finalidade, foram selecionadas, entre as variáveis acima referidas, as que, segundo a literatura, teriam influência sobre a decisão da família de buscar ajuda. Também foram descritos os motivos ou barreiras que impediram a procura de atendimento especializado e, naqueles casos em que se buscou ajuda, qual foi a fonte escolhida.

As descrições e análises realizadas foram feitas a partir das freqüências percentuais obtidas com a amostra submetida ao processo de ponderação e ajuste, com o que os resultados podem ser diretamente referidos à população de 1 a 19 anos da região estudada. O total de casos nas tabelas não é constante, o que foi devido às questões não respondidas ou respostas tipo "não sei", que foram excluídas da análise. Tal fato ocorre principalmente na análise da busca de ajuda, pois as perguntas respondidas referentes ao atendimento eram distintas, dependendo se o "problema dos nervos" fosse referido na questão (do problema agudo ou na questão do problema crônico).

RESULTADOS

A prevalência de queixas relativas a problemas dos nervos encontrada foi de 4,7%. Houve nítido crescimento das queixas com o aumento da idade, sendo que no grupo de 1 a 6 anos a prevalência foi de 2,8% e no grupo de 7 a 19 anos a prevalência subiu para 5,6%.

Como cada criança podia ter mais de um tipo de queixa, obteve-se número maior de queixas do que de casos. Foram encontradas 224 queixas entre os 141 casos, com média de 1,6 queixas por caso. O número de queixas variou de zero (casos em que a resposta à pergunta sobre o problema agudo ou crônico foi "sim", mas a especificação da queixa estava em branco no questionário) até três queixas diferentes por caso. Os oito tipos de queixas mais comuns estão descritos na Tabela 1. Quando foram analisadas as queixas por grupo etário, observou-se que a queixa mais importante dependia do grupo etário analisado. Irritação apareceu como a mais importante no grupo de 1 a 6 anos (15,7%), seguida de gritar (10,9%). Na faixa etária de 7 a 13 anos, a principal queixa foi agitação (22,6%), seguida de nervoso (11,4%). No grupo mais velho, as queixas inespecíficas predominaram; irritação em 24,0% dos casos e nervoso em 14,4%. A queixa relativa à agitação, provavelmente mais relacionada a problemas hipercinéticos, mostrou nítido aumento na faixa etária de 7 a 13 anos, com queda importante na faixa etária seguinte. Queixas como choro e desmaio tiveram queda expressiva com o aumento da idade e praticamente desapareceram na adolescência. Queixas inespecíficas, como irritação e nervoso, aumentaram progressivamente com a idade e as queixas na área psicossomática, praticamente inexistentes no grupo mais jovem, também cresceram.

A análise das causas referidas mostrou uma ampla gama de relações realizadas pela população estudada com o intuito de explicar a gênese dos problemas referidos. Analisando-se as causas referidas por sexo, notou-se que as alterações do ambiente familiar foram muito valorizadas nos dois sexos. Havia uma tendência da hereditariedade e problemas na gestação serem mais importantes nas crianças do sexo masculino e características de personalidade nas do sexo feminino. Em relação ao grupo etário, as variações podem ser vistas na Tabela 2.

Em relação à idade, nota-se pela Tabela 3 uma distribuição heterogênea, com tendência de aumento do número de casos e da prevalência com o aumento da idade, sendo a moda aos 17 anos e a mediana de 11,5 anos. Com a divisão por faixa etária, foi possível notar a tendência de predomínio do sexo masculino nos grupos de 1 a 6 anos e de 7 a 13 anos, e que essa tendência desaparecia no grupo mais velho, não sendo estatisticamente significante. Em relação a sexo (Tabela 3), foi observado que a maioria das crianças (58,9%) era do sexo masculino, apesar da diferença entre os sexos não ser estatisticamente significante. Na população total estudada a distribuição por sexo foi de 48,8% para o sexo masculino e 51,1% para o feminino. Ao relacionar-se idade e sexo, notou-se que, apesar da prevalência aumentar com a idade nos dois sexos, o aumento no sexo masculino foi mais intenso do grupo de 1 a 6 anos para o de 7 a 13 anos, estabilizando-se no de 14 a 19 anos. No sexo feminino, o aumento da prevalência ocorreu do grupo de 7 a 13 anos para o de 14 a 19 anos.

Em 109 (74,0%) casos (Tabela 4), apesar de ter sido referida queixa relacionada com "problemas dos nervos", não houve busca de ajuda de qualquer tipo, nem do tipo formal (médico, psicólogo) nem informal (parente, amigo, vizinho). Desses 109 casos, 101 esclareceram por que não procuraram atendimento. A maior parte (56,4%) respondeu "não achar preciso". Outras questões relacionadas a crenças e atitudes também apareceram de forma importante, como não gostar de ir ao médico ou ter medo de injeção. A questão do acesso aos serviços foi citada em apenas dois casos ("as consultas com psicólogo são difíceis de marcar" e "aqui não tem neurologista"). A falta de tempo apareceu em 10 casos (9,6%) e pode representar também dificuldade de acesso a serviços especializados.

Dos 27 casos que buscaram ajuda, 19 (55,6%) procuraram médico. A maior parte buscou auxílio em centros de saúde ou hospitais gerais. A referência a serviço especializado foi feita em apenas um caso. Busca de ajuda informal também foi citada em 6 casos (31,5%); parentes próximos foram a fonte de ajuda. Em dois casos (12,9%) apareceu o psicólogo. Outras fontes de ajuda possíveis, como escolas, igrejas e outras entidades da comunidade, não foram citadas. Dos 76 casos que responderam à questão "como resolveu o problema?", 51 (74,1%) informaram que continuavam com o problema e 17 (16,5%) que tiveram cura espontânea. Isto mostra que o papel dos serviços de saúde é muito pequeno na evolução dos transtornos mentais dessa população. Em 4 casos foi indicado algum tipo de tratamento e 3 tiveram a prescrição de medicamento. Apesar de apenas 22,6% dos casos terem relatado atendimento recente ou de rotina, foi possível observar que dos 115 casos (80,9% do total) que responderam à questão "Foi algum médico quem disse que o Sr(a) tem essa doença?", 47,3% informaram que sim.

Com o objetivo de entender melhor os motivos que levaram algumas famílias a buscar ajuda e outras não, algumas variáveis foram analisadas nos dois grupos (com busca de ajuda e sem busca de ajuda). Apenas limitação de atividade apresentou diferença significativa nos dois grupos (Tabela 5).

DISCUSSÃO

Utilizando como base de dados a pesquisa de morbidade referida realizada na região sudoeste da Grande São Paulo, o presente estudo buscou contribuir para o conhecimento da prevalência dos transtornos mentais na infância e adolescência. A definição de caso utilizada foi feita a partir da representação social que a população estudada tem do que é "problemas dos nervos". Devido às particularidades do desenho da pesquisa, foi possível aprofundar nas questões relativas ao entendimento que a população faz dos tipos de queixas mais freqüentes e das possíveis causas desses problemas.

Os estudos de prevalência encontrados na literatura mostram uma grande amplitude de resultados. Esta variação deve-se a vários fatores, sendo de particular importância a metodologia utilizada para definição de caso. Quando utilizados critérios do DSM-III, as taxas de prevalência variaram de 17,6% a 22,0% (Costello6, 1989). Quando são incluídos critérios de prejuízo funcional ou necessidade de tratamento especializado (Offord e Fleming11, 1996), a prevalência pode cair até 5%.

A taxa de prevalência de "problemas dos nervos" encontrada no presente trabalho foi de 4,7%. Esse número é consideravelmente inferior aos dados de literatura citados acima.

Numa pesquisa de morbidade referida, a "definição de caso" é dada pela percepção, da mãe ou do próprio adolescente, de suas dificuldades. Essa percepção está fortemente calcada na representação social que a comunidade estudada tem do que é "problema dos nervos" e também nas atitudes e preconceitos que cada família tem da dificuldade da criança, sendo que o reconhecimento deve passar por esses filtros para poder se explicitar.

Para melhor compreender as razões desse comportamento, vários autores têm utilizado o modelo de níveis e filtros de Goldberg e Huxley8 (1980). Esse modelo é utilizado para descrever como uma população trilha o caminho que vai do reconhecimento da patologia mental até a obtenção de atendimento psiquiátrico especializado. Os níveis seriam a comunidade, a consulta médica e os serviços psiquiátricos. Para mover-se de um nível para outro é necessário que o paciente e sua família ultrapassem um filtro. Goldberg e Huxley8 (1980) descrevem quatro filtros: 1) decisão do paciente de ir à consulta; 2) reconhecimento do problema pelo médico clínico; 3) decisão do médico de encaminhar ao serviço psiquiátrico especializado; e 4) decisão do psiquiatra de tratar. No caso de crianças, segundo Pavuluri et al.12 (1996), o caminho seria um pouco diferente. O reconhecimento do problema pelos pais seria o primeiro filtro; a seguir, os pais teriam de avaliar a necessidade de buscar ajuda. É pouco provável que a demanda por atendimento parta da própria criança. O filtro final seria cruzar as barreiras percebidas para obter atendimento.

Tendo em vista esse modelo, pode-se dizer que a prevalência de "problemas dos nervos", referidos pela família, na população estudada (4,7%), já é o segundo nível, tendo ultrapassado o filtro do reconhecimento pelos pais das dificuldades dos filhos o que justifica, pelo menos em parte, a taxa mais baixa encontrada. A questão dos motivos pelos quais os pais levam ou não seus filhos ao médico seria o segundo filtro.

O tipo de questionário utilizado no presente trabalho permitiu análise da conduta perante a queixa. Apenas cerca de um quinto (22%) dos casos buscaram algum tipo de ajuda. Esse achado também é comum nos estudos epidemiológicos tradicionais. Costello et al.7 (1993) referiram, após analisar estudos comunitários, que, apesar de ao redor de 20% das crianças estudadas apresentarem diagnóstico compatível com transtornos definidos pelo DSM III, III-R ou IV (um em dez teria prejuízo funcional importante), somente uma em 20 recebia algum tipo de atendimento na área de saúde mental e somente uma ou duas em 100 eram tratadas em serviços de saúde mental especializados. Referiram também que as razões pelas quais isso acontece são pouco claras e menos claras ainda são as estratégias para reduzir essa diferença.

"Não achar preciso" foi a principal razão pela qual as famílias não buscaram ajuda. Isso está de acordo com Pavuluri et al.12 (1996) que, estudando uma população de pré-escolares, encontrou como principais barreiras "o problema melhorará por si mesmo" (79,4%) e "os pais sentem que têm capacidade para cuidar do problema sozinhos" (58,8%). Muitas famílias, principalmente das crianças menores, dão pouca importância aos sintomas detectados, acreditando que, com o tempo, vão passar ou que estes problemas são comuns.

A análise do padrão de utilização dos serviços de saúde vem ocupando um lugar cada vez mais importante nos estudos de prevalência de transtornos mentais na comunidade. Os inquéritos de saúde permitem avaliar o padrão de utilização dos serviços de saúde e identificar as dificuldades de acesso aos mesmos. As informações obtidas não só possibilitam avaliar a rede de serviços existente, como também servem de "linha de base" para o planejamento de saúde e futuras avaliações (Cesar e Tanaka4, 1996). Os resultados encontrados mostraram que, apesar de reconhecer a existência de problema dos nervos, apenas uma em cinco famílias busca algum tipo de ajuda. Várias hipóteses podem ser aventadas. Primeiro, poder-se-ia supor que a maior parte desses problemas são de pouca gravidade, e que, apesar de haver o reconhecimento, existiria a idéia de que seriam passageiros e autolimitados. Segundo, as atitudes e preconceitos da população relacionados com os serviços e profissionais de saúde mental poderiam justificar a baixa procura desse tipo de serviço, mas não de outros tipos, como pediatras e clínicos gerais, ou mesmo atendimento em outras áreas, como escolas e outros serviços comunitários. Terceiro, as questões relacionadas com os serviços propriamente ditos merecem maior atenção. Apesar de terem sido pouco referidos de forma explícita, os problemas relativos ao acesso a este tipo de serviço parecem ter papel importante. Respostas como "não tem neurologista no hospital" ou "a consulta com a psicóloga é difícil de marcar" provavelmente indicam a ponta de um "iceberg" de dificuldades que a população encontra quando necessita deste tipo de atendimento. Isso pode levar a uma atitude de desânimo que impede a busca de ajuda na sua origem.

Os achados do presente trabalho e as altas taxas de prevalência descritas na literatura indicam que os transtornos psiquiátricos da infância configuram-se em problema de relevância para a saúde pública e merecem reflexão de todos os que estão envolvidos com a atenção integral à saúde das crianças e adolescentes. Esses achados poderão servir de base para o planejamento de ações visando à universalidade e integralidade da atenção à saúde, tanto em nível de prevenção primária, secundária e terciária como na implantação de serviços de atendimento como resposta a essa demanda que, apesar de reconhecida pela família, pouco solicita dos serviços de saúde.

Correspondência para/Correspondence to:

Oswaldo Y. Tanaka

Av. Dr. Arnaldo, 715

01246-904 São Paulo, SP - Brasil

Email: oytanaka@usp.br

Edição subvencionada pela Fapesp (Processo no. 98/13915-5).

Recebido em 3.8.1998. Reapresentado em 12.4.1999. Aprovado em 16.6.1999.

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  • *
    Parte da dissertação de mestrado em saúde pública apresentada à Faculdade de Saúde Pública da USP, em 1998.
  • **
    Aluna de pós-graduação.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      07 Ago 2001
    • Data do Fascículo
      Dez 1999

    Histórico

    • Aceito
      16 Jun 1999
    • Revisado
      12 Abr 1999
    • Recebido
      03 Ago 1998
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