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Associação tabagismo-alcoolismo: introdução às grandes dependências humanas

Association between smoking and alcoholism: initiation into the major human dependencies

Resumos

OBJETIVO: Verificar a existência da associação tabagismo-alcoolismo em amostra da população geral e comparar uma amostra alcoolista com outra abstêmia, pareadas pela idade e sexo. MATERIAL E MÉTODO: Na Unidade Sanitária Murialdo de Porto Alegre, RS numa área delimitada, com uma população estimada de 65.000 habitantes, foi feito estudo por corte transversal em que se definiu uma amostra representativa de indivíduos com 35 anos e mais. Através da Escala CAGE, identificou-se a população alcoolista que foi comparada a uma amostra aleatória de não-alcoolistas, pareada à alcoolista pela idade e sexo. Dentre 1.387 adultos com 35 anos ou mais, identificaram-se 129 indivíduos alcoolistas. Da listagem geral, selecionou-se aleatoriamente, uma amostra-controle de 129 indivíduos não-alcoolistas, criando-se, assim, dois grupos comparativos. Foram obtidos dados comparativos através de 19 itens de um questionário. As informações de caráter genérico eram pessoais ou familiares, como renda e hábito tabágico. O grau de escolaridade, ocupação, doenças e sintomas respiratórios, medida do fluxo expiratório (Pico do Fluxo) e história de alcoolismo eram exclusivas dos indivíduos com 35 anos ou mais que responderam ao questionário. RESULTADOS: Dos 129 indivíduos (9,3%) alcoolistas, 109 (84,4%) eram do sexo masculino e 20 (25,6%) do feminino. Entre alcoolistas, é maior a prevalência de fumantes (67%) se comparada com a prevalência entre os não-alcoolistas (43%) (p<.002). O tipo de ocupação profissional distinguiu os dois grupos. A ocupação de grau elementar prevalece entre alcoolistas enquanto a de grau médio é mais freqüente entre não-alcoolistas (p< .003). A renda familiar bem como a pessoal é maior entre não-alcoolistas (P < .001). Há predominância não significativa de não brancos e iletrados bem como é maior o número de fumante na família dos alcoolistas, do que na de abstêmios (p< .06). Mesmo não atingindo níveis de significância, houve tendência dos alcoolistas iniciarem-se no tabagismo mais cedo, fumarem durante mais tempo um maior número de cigarros. CONCLUSÕES: O estudo demonstra que, na amostra da população geral, houve associação estatística entre a dependência alcoólica e a tabágica. Nessa amostra o alcoolismo predominou entre as categorias de mais baixa renda e de nível cultural e profissional, considerados elementares.

Tabagismo; Alcoolismo


OBJECTIVE: To establish the existence of an association between smoking and alcoholism in a general population sample and to compare two samples of alcoholics and non alcoholics matched by age and sex. MATERIAL AND METHOD: Health Teaching Unit Murialdo - State Health Department - RS - Brazil in a limited area of 65,000 predicted population a cross-sectional study was undertaken in which adults of 35 y.o. or more were sampled. Of this sample, the alcoholics were selected by applying the CAGE Scale. A non alcoholic random sample was compared with the alcoholic one. It was identified 129 alcoholics among 1,387 adults of 35 y.o. or more. From the general list of adults a random sample of 129 non alcoholics were selected and matched to the alcoholics by age and sex. Both groups were compared. Data were obtained from a 19 item questionnaire. Answers to generic questions were obtained from all family members, such as: income and smoking habit. Specific data were obtained from the interviewed person of 35 y.o. or more, such as: schooling grade, occupation, diseases and respiratory symptoms, smoking habit, Peak Expiratory Flow and alcoholism. RESULTS: Of 129 alcoholics, 109 (84.5%) were male and 20 (15.5%) were female. The smoking prevalence among alcoholics (67%) was greater than among non alcoholics (43%) (p < .002). The kind of occupation distinguished both groups. Among alcoholics unemployment and elementary levels of occupation are more usual while among the abstemious intermediate and superior levels are more frequent (p <.003). The family as well as the personal income are higher among the abstemious (p < .001). There is an increased non significant number of non whites, illiterate people and family smokers among the alcoholics (p < .06). The tendency to start smoking earlier in life and to smoke more cigarettes for a longer period of time was noticed among alcoholics. CONCLUSIONS: There is a statistical association between smoking and alcoholism in the sample studied. Alcoholism in this sample is more prevalent among people who fulfil the following conditions: smokers, low income, rudimentary cultural and professional levels.

Smoking; Alcoholism


Associação tabagismo-alcoolismo: introdução às grandes dependências humanas** Pesquisa financiada pela Fundação de Amparo à Pesquisa do Rio Grande do Sul /FAPERGS (Processo nº 90/0370-0). Pesquisa financiada pela Fundação de Amparo à Pesquisa do Rio Grande do Sul /FAPERGS (Processo nº 90/0370-0).

Association between smoking and alcoholism: initiation into the major human dependencies

José A . Chaieb e Cassio Castellarin

Secretaria da Saúde. Porto Alegre, RS - Brasil (J.A.C.), Conselho Municipal e Estadual de Entorpecentes. Porto Alegre, RS - Brasil (C.C.)

Resumo Objetivo Verificar a existência da associação tabagismo-alcoolismo em amostra da população geral e comparar uma amostra alcoolista com outra abstêmia, pareadas pela idade e sexo. Material e Método Na Unidade Sanitária Murialdo de Porto Alegre, RS numa área delimitada, com uma população estimada de 65.000 habitantes, foi feito estudo por corte transversal em que se definiu uma amostra representativa de indivíduos com 35 anos e mais. Através da Escala CAGE, identificou-se a população alcoolista que foi comparada a uma amostra aleatória de não-alcoolistas, pareada à alcoolista pela idade e sexo. Dentre 1.387 adultos com 35 anos ou mais, identificaram-se 129 indivíduos alcoolistas. Da listagem geral, selecionou-se aleatoriamente, uma amostra-controle de 129 indivíduos não-alcoolistas, criando-se, assim, dois grupos comparativos. Foram obtidos dados comparativos através de 19 itens de um questionário. As informações de caráter genérico eram pessoais ou familiares, como renda e hábito tabágico. O grau de escolaridade, ocupação, doenças e sintomas respiratórios, medida do fluxo expiratório (Pico do Fluxo) e história de alcoolismo eram exclusivas dos indivíduos com 35 anos ou mais que responderam ao questionário. Resultados Dos 129 indivíduos (9,3%) alcoolistas, 109 (84,4%) eram do sexo masculino e 20 (25,6%) do feminino. Entre alcoolistas, é maior a prevalência de fumantes (67%) se comparada com a prevalência entre os não-alcoolistas (43%) (p<.002). O tipo de ocupação profissional distinguiu os dois grupos. A ocupação de grau elementar prevalece entre alcoolistas enquanto a de grau médio é mais freqüente entre não-alcoolistas (p< .003). A renda familiar bem como a pessoal é maior entre não-alcoolistas (P < .001). Há predominância não significativa de não brancos e iletrados bem como é maior o número de fumante na família dos alcoolistas, do que na de abstêmios (p< .06). Mesmo não atingindo níveis de significância, houve tendência dos alcoolistas iniciarem-se no tabagismo mais cedo, fumarem durante mais tempo um maior número de cigarros. Conclusões O estudo demonstra que, na amostra da população geral, houve associação estatística entre a dependência alcoólica e a tabágica. Nessa amostra o alcoolismo predominou entre as categorias de mais baixa renda e de nível cultural e profissional, considerados elementares. Tabagismo. Alcoolismo. Abstract Objective To establish the existence of an association between smoking and alcoholism in a general population sample and to compare two samples of alcoholics and non alcoholics matched by age and sex. Material and Method Health Teaching Unit Murialdo - State Health Department - RS - Brazil in a limited area of 65,000 predicted population a cross-sectional study was undertaken in which adults of 35 y.o. or more were sampled. Of this sample, the alcoholics were selected by applying the CAGE Scale. A non alcoholic random sample was compared with the alcoholic one. It was identified 129 alcoholics among 1,387 adults of 35 y.o. or more. From the general list of adults a random sample of 129 non alcoholics were selected and matched to the alcoholics by age and sex. Both groups were compared. Data were obtained from a 19 item questionnaire. Answers to generic questions were obtained from all family members, such as: income and smoking habit. Specific data were obtained from the interviewed person of 35 y.o. or more, such as: schooling grade, occupation, diseases and respiratory symptoms, smoking habit, Peak Expiratory Flow and alcoholism. Results Of 129 alcoholics, 109 (84.5%) were male and 20 (15.5%) were female. The smoking prevalence among alcoholics (67%) was greater than among non alcoholics (43%) (p < .002). The kind of occupation distinguished both groups. Among alcoholics unemployment and elementary levels of occupation are more usual while among the abstemious intermediate and superior levels are more frequent (p <.003). The family as well as the personal income are higher among the abstemious (p < .001). There is an increased non significant number of non whites, illiterate people and family smokers among the alcoholics (p < .06). The tendency to start smoking earlier in life and to smoke more cigarettes for a longer period of time was noticed among alcoholics. Conclusions There is a statistical association between smoking and alcoholism in the sample studied. Alcoholism in this sample is more prevalent among people who fulfil the following conditions: smokers, low income, rudimentary cultural and professional levels. Smoking. Alcoholism.

INTRODUÇÃO

Os estudos sobre as grandes dependências humanas, como o tabagismo e o alcoolismo, vêm polarizando a atenção médica há algumas décadas. A verificação de que muitas vezes os dependentes utilizam drogas associadamente foi demonstrada pela primeira vez, em 1972, quando Walton29 chamou a atenção para as altas cifras de tabagismo encontrada entre pacientes hospitalizados. A partir daí vários estudos confirmaram a associação e correlação positiva entre tabagismo e alcoolismo1,10,21.

Experimentalmente sugeriu-se que quanto maior a dependência à nicotina tanto maior o consumo de álcool2,28, ou que o álcool exercesse um estímulo inespecífico em várias áreas comportamentais, aumentando o consumo de cigarros15, 23. Demonstrou-se também que além da correlação quantitativa positiva entre álcool e tabaco havia a mesma correlação com a cafeína, o que não acontecia com outras drogas como heroína, maconha e cola e sugere-se que esse tipo de dependência deva ter a mesma origem, isto é, que seja determinada pelos mesmos fatores19. Estudo com gêmeos idênticos sugere que a correlação positiva entre o consumo de álcool, tabaco, café e taxas de lipoproteínas de alta densidade tenham origem genética25. Ultimamente, formulou-se a hipótese de que o déficit hereditário do número de receptores D2 dopamina (gene DRD2) do alelo A1, em áreas cerebrais do prazer, esteja associado ao alcoolismo severo e predisponha esses indivíduos ao abuso de drogas, inclusive ao do tabaco24.

Em pesquisa realizada no Brasil com droga-aditos, em dois pequenos grupos em que se testaram métodos terapêuticos diversos, as cifras entre alcoolistas e tabagistas foram respectivamente: 95 e 66%, num grupo, e 97 e 74%, no outro13. Bertolote3 encontrou 86% de tabagistas entre alcoolistas hospitalizados. Esses estudos sugerem a existência de forte associação entre as duas dependências.

Com a finalidade de investigar a associação entre as maiores dependências humanas, bem como a existência de possíveis fatores condicionantes que pudessem servir de subsídios a pesquisas ulteriores é que foi selecionada, da população geral, uma amostra alcoolista e comparada com outra amostra-controle. Admitindo que exista suporte na literatura para supor que o caminho da delinqüência resultante do abuso no consumo de drogas ilícitas seja precedido pelo tabagismo e/ou alcoolismo17, buscou-se os seguintes objetivos: verificar a existência da associação tabagismo-alcoolismo em amostras oriundas da população geral, uma vez que a maioria dos estudos referidos na literatura foram realizados em alcoolistas ou droga-aditos em tratamento hospitalar ou ambulatorial; comparar a amostra alcoolista com outra abstêmia, do mesmo sexo e idade, a fim de conhecer melhor suas características.

MATERIAL E MÉTODO

A Unidade Sanitária Murialdo, objeto do estudo, possui 7 postos avançados que prestam assistência médico-sanitária a 7 vilas delimitadas por uma linha imaginária, que tem origem na numeração das casas limítrofes e que engloba o total de 143 ruas ou trechos de ruas.

A população residente foi estimada e atualizada por vila e faixa etária, com base nos setores censitários utilizados pelo IBGE16, no censo demográfico de 1980 atualizado para 1990, segundo as taxas anuais de crescimento, estimadas em 2,43%.

Para determinar o tamanho da amostra, estimou-se uma prevalência de fumantes de 40% definindo-se um intervalo de confiança de 95% e um erro de 2%. Com uma população de 35 anos ou mais, estimada em 17.148 pessoas, calculou-se o tamanho da amostra em 2.090, ou seja: 12,18% do total. Assim, escolheram-se, por sorteio, 19 ruas distribuídas proporcionalmente pelas 7 vilas segundo sua população, perfazendo 13,2% do total das 143 ruas. Todas as casas existentes, nos trechos de rua considerados, foram visitadas pelas equipes de campo. Todas as famílias, cujo número total foi de 1.227, residentes sob o número da primeira casa, foram inquiridas (é freqüente existir mais de uma habitação sob o mesmo número). Tendo como base um questionário contendo 50 perguntas, a entrevista era dirigida a qualquer pessoa adulta, com 18 anos ou mais, responsável pela família.

Sempre que a entrevista não pudesse ser concretizada no momento, as equipes retornavam uma ou mais vezes, até a consecução da mesma. A partir de outubro de 1990, as equipes iniciaram as pesquisas de campo nos fins de semana e feriados, quando se esperava encontrar o maior número de adultos no domicílio. Em meados de dezembro de 1990 a pesquisa de campo estava concluída.

Seis equipes de dois residentes (médicos, enfermeiros e assistentes sociais) foram treinados na aplicação do questionário e na utilização do "Mini-Wright Peak Flow Meter", (Medidor do Pico do Fluxo (MPF)) instrumento de medida do Pico do Fluxo Expiratório (PFE). Durante o treinamento, procedia-se a um rodízio dos MPF entre os membros da equipe a fim de aferir-se sua reproducibilidade. O MPF é um instrumento de fabricação inglesa, inicialmente metálico e atualmente de plástico. O instrumento que é calibrado de fábrica contra um rotâmetro, é bastante resistente, porém, pouco preciso. Através do pneumotacógrafo mede-se o fluxo aéreo em litros/minuto com uma variação média de +/- 40 a 50 l/m segundo o sexo. O PFE comparado com o Volume Expiratório Forçado VEF é mais variável e, por isso, alguns recomendam que o seu resultado seja obtido pela média de três determinações8; outros, que o utilizam na monitorização da asma, recomendam a escolha do melhor dos três resultados7, tendo em vista que na asma, devido a reatividade brônquica, pode haver variação do calibre brônquico, com reducão progressiva do fluxo. No presente caso deu-se preferência à escolha do melhor dos três resultados, pois em trabalho de massa há a necessidade do treino para obter-se um melhor resultado. Escolheu-se como medida de fluxo o PEF por ser o mais prático para fins epidemiológicos. As medidas de fluxo variam de acordo com o sexo, idade e altura. A altura era obtida encostando-se os entrevistados numa parede e, com um lápis tangenciando horizontalmente à cabeça, marcava-se na parede uma linha, medindo-se com uma fita métrica a distância entre a linha e a rés do chão. De acordo com a idade, altura e sexo, em tabela apropriada, verificava-se o PFE previsto calculando-se, posteriormente, a percentagem do PFE obtido pela fórmula: PFE obtido/ PFE previsto X 100. Calculava-se assim as variações do fluxo para cada indivíduo.

Uma das variáveis de difícil definição foi a ocupação dos entrevistados. Face à complexidade dos sistemas classificatórios, optou-se por uma simplificação operacional, dividindo-os em: sem ocupação; ocupação de grau ou nível elementar; de grau ou nível médio; de grau ou nível superior, conforme exposto em publicação anterior6.

A categoria 1 e 2, denominada de elementar ou primária, é constituída por: desempregados, domésticos e toda atividade braçal, que não requeira treinamento, de duração parcial ou permanente e com remuneração não superior a 3 salários-mínimos (SM). Exemplos: pedreiro, auxiliar, servente, vigilante, estivador, pintor, biscateiro, empregado rural, cobrador, entregador, vendedor e outras similares. Na categoria 3 ou de nível médio foram incluídas as atividades que requeriam treinamento, cursos e educação pós-primária, com remuneração entre 3 e 20 SM, tais como: técnicos industriais, de laboratório, bancário, metalúrgico, comerciante, funcionário público, eletricitário, escriturário, chefe de setor, auxiliar administrativo, professor e similares. Na categoria 4 ou de nível superior incluíram-se: profissional de nível superior, industrial, empresário e outras atividades com rendimento superior a 20 SM.

Obtiveram-se 1.795 entrevistas, sendo que 585 eram de homens e 1.210 de mulheres, que responderam às primeiras 21 perguntas que eram de ordem genérica, designada de AMOSTRA A, motivo de uma primeira publicação5. A AMOSTRA B foi constituída por 1.387 indivíduos, sendo 816 mulheres e 571 homens (excluídas 366 mulheres). A AMOSTA C (que não será objeto deste estudo) foi formada por 366 mulheres, com menos de 35 anos, que confirmaram o uso de anticoncepcionais. Por mau desempenho ou negativa na realização o dos testes, 42 exclusões adicionais, (26 mulheres e 16 homens) foram realizadas da AMOSTRA A. Assim a AMOSTRA A = AMOSTRA B + AMOSTRA C + 42.

A qualidade das informações obtidas foi avaliada através de uma amostra aleatória de 48 fichas, 8 por equipe. O coordenador, acompanhado por um dos membros de cada equipe, comparecia nos endereços das fichas selecionadas e conferia as informações nelas contidas.

As informações colhidas pelo coordenador foram comparadas com as das equipes e foram consideradas adequadas.

Os dados obtidos foram analisados, codificados, digitados e processados pelo pacote SPSS/R e seus resultados foram expressos em números, médias, desvios-padrão e os testes de significância: X2 e t de Student.

O banco de dados foi desenvolvido e armazenado no programa Epi-info9. O alcoolista era identificado através da escala CAGE*** Pesquisa financiada pela Fundação de Amparo à Pesquisa do Rio Grande do Sul /FAPERGS (Processo nº 90/0370-0). Pesquisa financiada pela Fundação de Amparo à Pesquisa do Rio Grande do Sul /FAPERGS (Processo nº 90/0370-0). , teste de triagem auto-informativo que, com duas ou mais respostas afirmativas, identifica os indivíduos alcoolistas22, 27. Cada uma das palavras ou expressões da escala CAGE são a idéia central de uma frase a que o indivíduo deve responder de modo casual. Por esse motivo elas não foram ordenadas no questionário e foram incluídas entre outras perguntas que visavam a outros objetivos. A desordem, portanto, foi intencional. Isso se deve à tendência do alcoolista de negar sua dependência, quando as perguntas forem diretas. As perguntas formuladas aos alcoolistas foram:

• Alguma vez você sentiu que deveria beber menos? ("cut down")

• Alguém já pediu para que não bebesse tanto ou criticou seu modo de beber ? ("annoy")

• Alguma vez você se arrependeu de ter bebido ? ("guilty")

• Tem acontecido de ter vontade de beber ao acordar, mesmo que seja para não tremer as mãos ? ("eye opener").

Definiu-se, portanto, como alcoolista, todo o indivíduo que respondesse afirmativamente a duas ou mais perguntas das 4 formuladas. O método CAGE tem sido usado sobretudo em pacientes hospitalizados, na maioria das pesquisas em que se estudou a associação alcoolismo-tabagismo. No Brasil, foi usado e validado em pacientes hospitalizados22. Em estudos populacionais foi utilizado pela primeira vez em 1991 por Smart e col.28.

Definiu-se como fumante todo o indivíduo que por ocasião da entrevista fumasse qualquer tipo ou quantidade de tabaco, diariamente, por pelo menos, seis meses; como ex-fumante todo o indivíduo que tendo sido fumante, não tenha fumado qualquer tipo ou quantidade de tabaco nos últimos 6 meses; e como não fumante o indivíduo que nunca tenha fumado ou que tenha fumado tão pouco ou de forma esporádica, qualquer tipo ou quantidade de tabaco, em qualquer período da vida, não sendo, portanto, considerado ex-fumante 30.

As relações de prevalência entre fumantes, ex-fumantes e alcoolistas foram obtidas pelos dados fornecidos pelo programa SPSS/R e que constituíram a AMOSTRA B.

Os alcoolistas foram comparados com uma amostra emparelhada de não-alcoolistas que foi obtida segundo o sexo e idade de seu parceiro alcoolista, por seleção seqüencial da listagem geral dos entrevistados, cuja ordenação foi aleatória.

Na análise univariada utilizou-se para as variáveis categóricas o teste Chi-quadrado e para as variáveis contínuas o teste t de Student. A análise multivariada (regressão logística) foi realizada com o objetivo de controlar o efeito medido para possíveis confusores.

RESULTADOS

As Tabelas 1 e 2 resumem a análise univariada das características da população estudada de um total de 258 indivíduos, 129 (50%) identificados como alcoolistas e 129 (50%) não-alcoolistas, este último representando o grupo-controle, selecionado aleatoriamente. Entre os alcoolistas, 67% eram fumantes, enquanto entre os não-alcoolistas 44% fumavam. Os não-tabagistas eram, em sua maioria (74%), não-alcoolistas.

Tabela 1-
Análise univariada das características da população estudada. N=258.

* Comparações estatisticamente significativas (p<0,05)

Tabela 2
- Análise univariada das características da população estudada.

*Comparações estatisticamente significativas (p < 0,05)

**(SM) = Salário-Mínimo.

As variáveis idade e sexo foram pareadas entre alcoolistas e não-alcoolistas o que se confirma pela semelhança das médias e pela distribuição por sexo. O número de fumantes, ex-fumantes e não-fumantes na família não diferiu entre os grupos. A renda pessoal e familiar foi, em média, maior entre os não- alcoolistas do que entre os alcoolistas.

Observa-se uma diferença estatisticamente significativa entre alcoolistas e não-alcoolistas quanto à categoria fumante, havendo predominância maior de fumantes entre os alcoolistas e maior predominância de não-fumantes entre os não-alcoolistas. Em relação à cor, é maior o número de alcoolistas entre os não brancos. A renda pessoal e familiar é significativamente maior entre os não-alcoolistas e independe da categoria tabágica (Tabela 3). A variável ocupação comportava 3 possibilidades: E (de nível elementar ou primário); M (de nível médio) e S (de nível superior). Verificou-se que predominam entre os alcoolistas as atividades de nível elementar enquanto entre não-alcoolistas predominam as de nível médio. O número de fumantes na família não difere estatisticamente entre alcoolistas e não-alcoolistas. Esse achado não se modifica ao se considerar a categoria tabágica.

Tabela 3
- Relação entre álcool e outras variáveis (análise estratificada) segundo a categoria tabágica.

* "Odds Ratio" (método Mantel - Haenszel) e intervalo de confiança de 95% correspondente.

A análise multivariada corrigiu os efeitos dos possíveis confusores e a Tabela 4 representa o modelo final. A variável idade, apesar de não apresentar significância estatística, devido ao pareamento, foi mantida no modelo pela sua relevância em relação ao desfecho estudado. A renda familiar é significativamente maior entre os não-alcoolistas e é um fator independentemente associado com o alcoolismo. Existe uma associação estatisticamente significativa entre nível de ocupação e alcoolismo, indicando que há uma maior prevalência do alcoolismo entre os níveis mais elementares de ocupação.

Tabela 4
- "Odds Ratio" estimado para a associação entre o consumo de álcool e as variáveis estudadas (regressão logística múltipla).

* Intervalo de Confiança para a "Odds Ratio" a 95%

DISCUSSÃO

Não se teve conhecimento de que tenha sido feita no Brasil investigação da associação dessas duas dependências. Sendo assim, será comentada e comparada a prevalência do tabagismo e alcoolismo isoladamente como tem sido referido na literatura. Luz Júnior20, em pesquisa pioneira, encontrou a cifra de 6,2% de alcoolistas, em maiores de 15 anos, na mesma área do presente estudo. Busnello e col4, estudando uma amostra adulta de indivíduos com um questionário de morbidade psiquiátrica positivo, encontrou cifras de 8,6% de alcoolistas e 23,3% de tabagistas. As cifras do alcoolismo são muito semelhantes às do presente estudo (9,3%), porém, estranha-se que tenham obtido tão baixas taxas para o tabagismo uma vez que esperar-se-ia, entre indivíduos com algum distúrbio psiquiátrico, uma prevalência tabágica superior a da população geral. Duncan e col11 encontraram a cifra de 7% de alcoolistas em amostragem do Município de Porto Alegre. As cifras de prevalência do tabagismo (40%) foram coincidentes com as de estudo anterior5, 6 em que dentre os 1.387 indivíduos encontrou-se 39,8% de tabagistas. No presente estudo foi encontrada a cifra de 44% de tabagistas na amostra não- alcoolistas.

A prevalência do alcoolismo é mais difícil de ser determinada porque seu conceito é bem mais complexo e variável, dependendo do conceito e metodologia utilizados, bem como de fatores regionais tais como: tradição, religião e, obviamente, legislação. Duas publicações norte-americanas demonstraram essas possíveis discrepâncias. Grant e col.14 usando os critérios diagnósticos do "Diagnostic and Statistical Manual of Mental Disorders (DSMIII-R)" encontram as cifras de 13,4% entre homens e 4,4% entre mulheres (3:1). Rodriguez e col.26 na Colombia, valendo-se da escala CAGE, encontraram as cifras de 20% entre homens e 4,4% entre mulheres (4,5:1). Na presente publicação, entre 1.387 indivíduos, 571 eram homens e 816 mulheres. Eram alcoolistas masculinos, 109 (19%) e femininos, 20 (2,5%) (7,6:1). Luz Júnior20 pesquisando na mesma área deste estudo encontrou a proporção homem/mulher de 8:1, enquanto Busnello usando outro método e outra população encontrou a proporção de 3.8:1. Nos EUA o alcoolismo é mais prevalente entre as idades de 21 e 34 anos18. No presente estudo, não foi possível comparar idades entre alcoolistas e não-alcoolistas, porém, esperar-se-ia que a idade média da população geral fosse superior à da amostra alcoolista ou, em outras palavras, que o não-alcoolista vivesse mais.

Utilizou-se, na conceituação de alcoolista, a classificação CAGE que tem sido considerada útil nos estudos epidemiológicos mas que pode ter nível de imprecisão de até +/- 20% quando comparada com outros métodos de investigação clínica. O método foi usado pela primeira vez em pesquisa epidemiológica recente por Smart e col.27, (1991), merecendo, portanto, uma observação mais rigorosa e segura de seus resultados. A experiência do método, no presente trabalho, permitiu observar que os indivíduos que bebem mais pesadamente são melhor abrangidos pelo método do que os que bebem menos. Porém, o método não foi validado.

O fato de haver apenas 2,3% de indivíduos com 70 anos ou mais entre alcoolistas, quando comparados com 6,2% na população geral, sugere fortemente que a população alcoolista seja mais jovem pois a mortalidade é mais precoce entre alcoolistas, como tem sido referido12.

O objetivo principal da presente pesquisa pode ser respondido uma vez que existe forte associação entre alcoolismo e tabagismo. Encontrou-se na amostra alcoolista 85 fumantes contra 57 na amostra controle, o que dá 66 e 44%, respectivamente (p< .001). O número de ex-fumantes foi de 24 em ambas as amostras.

Concordantemente o número de fumantes na família dos alcoolistas é também maior do que na dos abstêmios (p<.006). Este fato reforça a convicção de que a influência familiar pode desempenhar importante papel na formação da personalidade "dependente", bem como pode sugerir sua natureza hereditária ou genética.

Outro fato que diferenciou os grupos comparativos foi o rendimento familiar e pessoal. Em ambas as situações o alcoolismo predominou nas categorias de mais baixo rendimento, sugerindo fortemente que, no País, bebem mais os mais pobres.

Procurou-se também avaliar o tipo de ocupação dos indivíduos entrevistados, qualificando-os nos níveis: E, M e S. Como foram raros os indivíduos enquadrados no nível superior (nenhum no grupo alcoolista e oito no grupo-controle), foi comparado apenas o grupo E e M. Houve também predominância do alcoolismo nas categorias socioprofissionais mais elementares (p< .01).

Com relação aos demais aspectos comparativos das duas amostras ressalta-se que a altura das duas subpopulações foi a mesma podendo-se mesmo considerá-las como emparelhadas pelo sexo, idade e altura, o que tornam mais homogêneos os grupos comparados. Com respeito à cor das duas amostras, não foi obtida informação em 11% dos casos. Dos restantes, 84% eram constituído por brancos sendo os demais 16% constituídos por pretos e mistos. Há um aumento, não significativo, de pretos, mistos e iletrados entre alcoolistas.

Complementando o quadro da associação alcoolismo/tabagismo, entre amostras da população geral, estudaram-se outros aspectos relacionados ao comportamento tabágico dos alcoolistas que, mesmo não sendo estatisticamente significativos, indicam uma tendência que não deve ser desconsiderada. Pode-se resumir numa sentença essa tendência: os alcoolistas tendem a iniciar-se no consumo tabágico mais cedo, fumam durante mais tempo um número maior de cigarros e apresentam fluxo expiratório mais baixo do que os abstêmios.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

O estigma desse século foi sem dúvida o tabagismo e o alcoolismo - drogas consideradas lícitas - cuja história ainda terá que ser contada através do rastro que deixaram em doença, sofrimento e degradação. O dano principal, no entanto, foi o de terem propiciado a introdução do uso em larga escala das drogas ilícitas que, no final do século, se propagam de forma assustadora, solapando os alicerces da civilização ocidental. O progresso tecnológico como paradigma do sucesso econômico tem sido a meta cega das nações que, por suas elites intelectuais, têm desprezado e esmagado os valores fundamentais da alma humana, povoando de temores e incertezas o futuro que se avizinha. Urge que se entenda um pouco melhor as grandes dependências humanas, suas causas e seu controle. O investimento na pesquisa orientada no sentido de buscar as causas da dependência às drogas deveria ser o objetivo prioritário do século que se aproxima.

AGRADECIMENTOS

À Dra. Mary C. Bozzetti, médica epidemio-logista do Hospital de Clínicas de Porto Alegre, pela colaboração na realização dos cálculos estatísticos.

** CAGE é a abreviação das seguintes palavras: C = cut down = cortar; A = annoy = inconveniente; G = guilty = arrependido; E = eye opener = abridor de olhos.

Correspondência para/Correspondence to: José A. Chaieb - Rua Dona Laura, 866 - 90430-000 Porto Alegre, RS - Brasil.

E-Mail: rsf7270@pro.via-rs.com.br

Recebido em 1.4.1997. Reapresentado em 19.8.1997. Aprovado em 19.1.1998.

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    Pesquisa financiada pela Fundação de Amparo à Pesquisa do Rio Grande do Sul /FAPERGS (Processo nº 90/0370-0).
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      07 Ago 2001
    • Data do Fascículo
      Jun 1998

    Histórico

    • Aceito
      19 Jan 1998
    • Revisado
      19 Ago 1997
    • Recebido
      01 Abr 1997
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