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Integralidade da assistência terapêutica e farmacêutica: um debate necessário

RESUMO

A polêmica em torno de diferentes interpretações sobre a integralidade da assistência terapêutica e farmacêutica levou à delimitação de sua abrangência por meio de uma lei, mas sem que a questão tenha sido completamente pacificada. Como contribuição a esse debate, o objetivo deste texto é o de discutir os desafios à garantia da integralidade da assistência terapêutica e farmacêutica, a partir de uma abordagem conceitual sobre os sentidos da integralidade no Sistema Único de Saúde (SUS). Identificam-se desafios importantes para a garantia da integralidade da assistência terapêutica e farmacêutica no SUS. Esses desafios estão relacionados às práticas profissionais, à organização das ações e serviços e à resposta governamental para problemas de saúde ou para tratamento de grupos populacionais específicos. Isso exige dos governos ações estruturantes e eficiência no uso dos recursos disponíveis, a fim de que os problemas existentes sejam superados.

DESCRITORES
Assistência Farmacêutica; Legislação & Jurisprudência; Integralidade em Saúde; Sistema Único de Saúde; Direito à Saúde

ABSTRACT

The controversy surrounding the different interpretations on the integrality of therapeutic and pharmaceutical care has led to the delimitation of its scope by a law, but the issue has not been completely pacified. As a contribution to this debate, we aim to discuss the challenges to ensure the integrality of the therapeutic and pharmaceutical care, based on a conceptual approach on the meanings of integrality in the Brazilian Unified Health System (SUS). We identified important challenges to ensure the integrality of the therapeutic and pharmaceutical care in the SUS. These challenges are related to professional practices, the organization of actions and services, and the governmental response to health problems or to the treatment of specific population groups. For this end, governments need to carry out structuring actions and be efficient in using available resources so that existing problems can be overcome.

DESCRIPTORS
Pharmaceutical Services; Legislation & Jurisprudence; Integrality in Health; Unified Health System; Right to Health

INTRODUÇÃO

O acesso a medicamentos essenciais é considerado importante instrumento de política pública para melhorar a qualidade de vida das populações e o uso apropriado desses medicamentos é um dos componentes mais custo-efetivos da atenção à saúdea a Organización Mundial de la Salud. Selección de medicamentos esenciales. Ginebra: OMS; 2002 [citado 30 set 2017]. (Perspectivas Políticas de Medicamentos de la OMS, 4). Disponível em: http://apps.who.¡nt/med¡c¡nedocs/es/p/printable.html . A garantia de acesso a eles demanda articulação de um conjunto de ações e serviços no âmbito do sistema de saúde, bem como de ações governamentais mais amplas, como o fomento à pesquisa e ao desenvolvimento de fármacos e a regulação sanitária e econômica do mercado.

No Brasil, esse conjunto de ações e serviços foi denominado assistência farmacêuticab b Ministerio da Saúde (BR), Secretaria de Políticas de Saúde, Departamento de Formulação de Políticas de Saúde. Política Nacional de Medicamentos. Brasília (DF); 2001 [citado 30 set 2017]. (Série C. Projetos, Programas e Relatórios, 25). Disponível em: http://bvsms.saude.gov.br/bvs/publicacoes/politica_medicamentos.pdf e ganhou projeção no debate público nacional a partir de meados dos anos 2000, quando se ampliaram as decisões judiciais que determinam aos gestores do Sistema Único de Saúde (SUS) o fornecimento de medicamentos aos cidadãos. No centro desse debate, surge o tema da integralidade da assistência terapêutica (IAT), com interpretações distintas sobre suas implicações, levando à delimitação de sua abrangência, mas sem resolver a questãoc c Brasil. Lei n° 12.401, de 28 de abril de 2011. Altera a Lei n° 8.080, de 19 de setembro de 1990, para dispor sobre a assistência terapêutica e a incorporação de tecnologia em saúde no âmbito do Sistema Único de Saúde - SUS. Diário Oficial União. 29 abr 2011; Seção 1:1-2. .

Menos discutida é a integralidade da assistência farmacêutica (IAF). O que significa, qual o seu alcance e como garanti-la são questões que precisam ser analisadas e este parece ser um momento oportuno, uma vez que se apresentam ideias para a substituição da dispensação de medicamentos na atenção básica no SUS pela dispensação em estabelecimentos farmacêuticos privados, em modelo semelhante ao do Programa Farmácia Popular.

Como contribuição ao debate, o objetivo deste texto é discutir os desafios à garantia da integralidade da assistência terapêutica e farmacêutica (IATF), a partir de uma abordagem conceitual sobre os sentidos da integralidade da atenção à saúde no SUS.

Universalidade e Integralidade do Acesso a Ações e Serviços de Saúde

A Constituição Federal estabelece a integralidade do atendimento no SUS como uma das diretrizes do sistema, com foco nas atividades preventivas e sem comprometimento dos serviços assistenciaisd d Brasil. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília (DF); 1988 [citado 19 out 2017]. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm . Posteriormente, definiu-se que a assistência terapêutica integral, inclusive farmacêutica, está incluída no campo de atuação do SUSe e Brasil. Lei n° 8.080, de 19 de setembro de 1990. Dispõe sobre as condições para a promoção, proteção e recuperação da saúde, a organização e o funcionamento dos serviços correspondentes e dá outras providências. Diário Oficial União. 20 set 1990; Seção 1:1-5. .

Mattos11. Mattos RA. A integralidade na prática (ou sobre a prática da integralidade). Cad Saude Publica. 2004;20(5):1411-6. https://doi.org/10.1590/S0102-311X2004000500037
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,22. Mattos RA. Os sentidos da integralidade: algumas reflexões acerca de valores que merecem ser defendidos. In: Pinheiro R, Mattos RA, organizadores. Os sentidos da integralidade na atenção e no cuidado à saúde. 8.ed. Rio de Janeiro: UERJ; ABRASCO, 2009 [cited 2017 Sep 30]. p.43-68. Available from: https://www.cepesc.org.br/wp-content/uploads/2013/08/Livro-completo.pdf
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discute três conjuntos de sentidos relacionados à integralidade, no tocante: (i) às práticas dos profissionais de saúde, onde reside a preocupação em discernir as necessidades dos usuários; (ii) à organização dos serviços e das práticas de saúde, porque esses devem estar organizados para realizar uma apreensão ampliada das necessidades da população, a articulação entre a prevenção e a assistência, e a organização contínua dos processos de trabalho; e (iii) às respostas governamentais a certos problemas de saúde ou às necessidades de grupos específicos.

No âmbito do SUS, esse entendimento mais abrangente sobre a integralidade parece ser uma realidade. Contudo, o fenômeno da judicialização da saúde veio mostrar que, em contexto social mais geral, essa não é uma interpretação hegemônica33. Vieira FS. Ações judiciais e direito à saúde: reflexão sobre a observância aos princípios do SUS. Rev Saude Publica. 2008;42(2):365-9. https://doi.org/10.1590/S0034-89102008005000010
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, algo que tem preocupado os gestores da saúde pelo número expressivo de ações judiciaisf f Asensi FD, Pinheiro R. Judicialização da saúde no Brasil: dados e experiências. Brasília (DF): Conselho Nacional de Justiça; 2015 [citado 30 set 2017]. Disponível em: http://www.cnj.jus.br/files/conteudo/destaques//arquivo/2015/06/6781486daef02bc6ec8c1e491a565006.pdf .

Está claro que o aumento das demandas judiciais por medicamentos mostra maior acesso da população ao Poder Judiciário e maior consciência sobre o direito à saúde44. Travassos DV, Ferreira RC, Vargas AMD, Moura RNV, Conceição EMA, Marques DF, et al. Judicialização da Saúde: um estudo de caso de três tribunais brasileiros. Cienc Saude Coletiva. 2013;18(11):3419-29. https://doi.org/10.1590/S1413-81232013001100031
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. Indica também que parte significativa das solicitações se refere a produtos farmacêuticos que constam nas políticas públicas, mas que por problemas diversos as pessoas têm dificuldade de ter acesso a eles55. Ventura M, Simas L, Pepe VLE, Schramm FR. Judicialização da saúde, acesso à justiça e a efetividade do direito à saúde. Physis. 2010;20(1):77-100. https://doi.org/10.1590/S0103-73312010000100006
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. Entretanto, também se observa que, se as decisões judiciais não consideram as políticas públicas e os princípios do SUS, têm grande potencial para desorganizá-lo66. Vieira FS, Zucchi P. Distorções causadas pelas ações judiciais à política de medicamentos no Brasil. Rev Saude Publica. 2007;41(2):214-22. https://doi.org/10.1590/S0034-89102007000200007
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e aumentar a iniquidade no acesso às ações e serviços de saúde77. Chieffi AL, Barata RB. Judicialização da política pública de assistência farmacêutica e eqüidade. Cad Saude Publica. 2009;25(8):1839-49. https://doi.org/10.1590/S0102-311X2009000800020
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.

A IAT não pode ser interpretada como tudo para todos, como direito indiscriminado a qualquer tecnologia. Até porque no mercado farmacêutico, nacional ou internacional, muitos medicamentos se sobrepõem, têm menor potencial terapêutico ou apresentam maiores riscos em relação a outros já disponíveis no SUS, podendo ser muito mais caros.

A polêmica envolvendo a compreensão sobre a IAT e a judicialização da saúde motivou a aprovação da Lei 12.401, definindo-se a integralidade como sendo, basicamente, a garantia de acesso aos medicamentos constantes em protocolos clínicos e em relações de medicamentos elaboradas pelos gestores do SUSc c Brasil. Lei n° 12.401, de 28 de abril de 2011. Altera a Lei n° 8.080, de 19 de setembro de 1990, para dispor sobre a assistência terapêutica e a incorporação de tecnologia em saúde no âmbito do Sistema Único de Saúde - SUS. Diário Oficial União. 29 abr 2011; Seção 1:1-2. . Mas a aprovação dessa lei não resolve a questão. Primeiro, porque ela tensiona o princípio da universalidade, como no caso dos medicamentos não incorporados ao SUS para tratamento de doenças raras88. Aith F, Bujdoso Y, Nascimento PR, Dallari SG. Os princípios da universalidade e integralidade do SUS sob a perspectiva da política de doenças raras e da incorporação tecnológica. Rev Dir Sanit. 2014;15(1):10-39. https://doi.org/10.11606/issn.2316-9044.v15i1p10-39
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. Todos os cidadãos têm direito ao acesso universal e igualitário a políticas para a promoção, proteção e recuperação de sua saúde, e esse princípio é compreendido como aquilo que é comum a todos99. Paim JS, Silva LMV. Universalidade, integralidade, equidade e SUS. BIS Bol Inst Saude. 2010 [cited 2017 Sep 30];12(2):1-6. Available from: https://repositorio.ufba.br/ri/bitstream/ri/5975/1/Paim%20JS.%202010%20Artigo2.pdf
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. Segundo, porque o Supremo Tribunal Federal já firmou jurisprudência a respeito e o entendimento é de que: (i) o fornecimento de medicamento sem registro na Anvisa só é admitido em condições excepcionais; (ii) a separação entre os Poderes veda a possibilidade de que uma lei substitua o registro do medicamento, que é ato típico do Poder Executivo; (iii) é preciso observar, em princípio, os protocolos; (iv) contudo, a universalidade tem de ser garantida, podendo o Judiciário intervir em casos de omissão do Executivo; e (v) o direito público subjetivo à saúde representa prerrogativa indissociável do direito à vida1010. Zebulum JC. O julgamento do caso da fosfoetanolamina e a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal. Rev Dir Sanit. 2017;17(3):212-23. https://doi.org/10.11606/issn.2316-9044.v17i3p212-223
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. Como se vê, a garantia da IATF envolve um conjunto de desafios complexos ao Estado.

Desafios à Garantia da IATF no SUS

O SUS ainda enfrenta problemas importantes para assegurar o acesso e o uso racional de medicamentos à população. Algumas avaliações da assistência farmacêutica que trazem também a discussão da integralidade mostram que muitos problemas ainda precisam ser resolvidos1111. Lima-Dellamora EC, Caetano R, Osorio-de-Castro CGS. Dispensação de medicamentos do componente especializado em polos no Estado do Rio de Janeiro. Cienc Saude Coletiva. 2012;17(9):2387-96. https://doi.org/10.1590/S1413-81232012000900019
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12. Bueno D, Guerin GD, Rossoni E. Itinerários terapêuticos de usuários de medicamentos em uma unidade de Estratégia Saúde da Família. Rev APS. 2014;17(1):50-7.

13. Ungari AQ, Pereira LMV, Abramovicius AC, Pereira LRL, Forster AC, Grande MM. Estratégias para a garantia da integralidade na perspectiva do Componente Especializado da Assistência Farmacêutica. Rev Adm Saude. 2014;16(63):43-50. https://10.5327/Z1519-1672201400630002
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14. Miai ET, Nogueira-Martins MCF. Farmacêuticos na atenção básica: estudo qualitativo sobre necessidades e possibilidades de qualificação dos profissionais para a integralidade do cuidado aos usuários-cidadãos. BIS Bol Inst Saude. 2014 [cited 2017 Sep 30];15 Supl:71-9. Available from: http://www.saude.sp.gov.br/resources/instituto-de-saude/homepage/bis/pdfs/12973_internet.pdf
http://www.saude.sp.gov.br/resources/ins...
-1515. Rover MRM, Vargas-Peláez CM, Farias MR, Leite SN. Da organização do sistema à fragmentação do cuidado: a percepção de usuários, médicos e farmacêuticos sobre o Componente Especializado da Assistência Farmacêutica. Physis. 2016;26(2):691-71 1. https://doi.org/10.1590/S0103-73312016000200017
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.

Quanto às práticas profissionais, constituem desafios para a IATF a formação e a capacitação dos farmacêuticos para o exercício da farmácia clínica, o reconhecimento do papel deles nas equipes de saúde e a atuação integrada a dos demais profissionais de saúde. Algumas iniciativas tiveram sucesso nesse sentido1616. Almeida RB, Mendes DHC, Dalpizzol PA. Ensino farmacêutico no Brasil na perspectiva de uma formação clínica. Rev Cienc Farm Basica Apl. 2014;35(3):347-54. Available from: http://serv-bib.fcfar.unesp.br/seer/index.php/Cien_Farm/article/view/2864/1595
http://serv-bib.fcfar.unesp.br/seer/inde...
,g g Ministério da Saúde (BR), Secretaria de Ciência, Tecnologia e Insumos Estratégicos, Departamento de Assistência Farmacêutica e Insumos Estratégicos, Coordenação-Geral de Assistência Farmacêutica Básica. Resultados do projeto de implantação do cuidado farmacêutico no Município de Curitiba. Brasília (DF); 2015 [citado 30 set 2017]. (Cuidado Farmacêutico na Atenção Básica, caderno 4). Disponível em: http://bvsms.saude.gov.br/bvs/publicacoes/resultado_projeto_implantacao_cuidados_farmaceuticos.pdf , mas as dimensões do SUS impõem a necessidade de implantação de medidas mais estruturantes a esse respeito, com foco na promoção do uso racional de medicamentos.

Do ponto de vista da organização dos serviços, em muitos municípios ainda é preciso garantir: a) a tempestividade nos processos de aquisição e distribuição de medicamentos; b) a integração e comunicação entre as farmácias; c) a disponibilidade de farmacêuticos; d) informação aos pacientes sobre a organização dos serviços; e) a prática da farmácia clínica; f) infraestrutura adequada, inclusive com informatização das farmácias e centrais de abastecimento, além de sua conexão com os demais serviços de saúde; e g) garantia de economicidade, tanto em relação aos medicamentos quanto ao modelo de gestão da assistência farmacêutica.

No tocante a este último aspecto, tem-se observado novos arranjos organizacionais que trazem consigo vantagens e desvantagens à garantia de acesso a medicamentos, seu uso racional e à economicidade no SUS (Quadro).

Quadro
Modelos de gestão da assistência farmacêutica e possíveis consequências para o acesso a medicamentos e para a administração pública.

Obviamente, as questões envolvendo modelos e seus resultados não se esgotam nas poucas variáveis apresentadas no Quadro, que ilustra a fragmentação potencial dos serviços e do cuidado. Vale notar que, mesmo se uma determinada secretaria de saúde decidisse adotar um modelo privatizado de dispensação de medicamentos, ainda teria de manter serviços sob sua gestão, pois vários medicamentos da Relação Nacional de Medicamentos Essenciais (Rename) não são comercializados por drogarias; e, também, que a fragmentação do cuidado ocorre no SUS, mas pode ser agravada nos modelos mistos.

Ademais, ressalta-se que os custos podem ser maiores para o Estado no modelo segmentado, no qual drogarias atuam na dispensação de medicamentos e são ressarcidas pelo governo tanto pelo produto quanto pelo serviço. Estudos que compararam os custos da oferta de medicamentos por meio da assistência farmacêutica pública aos do Programa Farmácia Popular concluíram que os custos são menores no SUS1717. Silva RM, Caetano R. Custos da assistência farmacêutica pública frente ao Programa Farmácia Popular. Rev Saude Publica. 2016;50:74. https://doi.org/10.1590/s1518-8787.2016050006605
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,1818. Garcia MM, Guerra Júnior AA, Acúrcio FA. Avaliação econômica dos programas Rede Farmácia de Minas do SUS versus Farmácia Popular do Brasil. Cienc Saude Coletiva. 2017;22(1):221-33. https://doi.org/10.1590/1413-81232017221.15912015
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.

No governo federal, grande preocupação com o crescimento do gasto com o Programa Farmácia Popular tem motivado a adoção de medidas para regular o acesso aos medicamentos. Em termos reais, os gastos cresceram 667% entre 2010 e 2015, havendo uma queda entre 2015 e 2016, quando passaram de R$3 bilhões para R$ 2,7 bilhões, em valores de 2016, em razão de negociação de preços feita pelo Ministério da Saúde (Figura).

Figura
Gasto do Ministério da Saúde com medicamentos no âmbito do Programa Farmácia Popular, 2010-2016.

No mesmo período, os Componentes do Bloco de Financiamento da Assistência Farmacêutica tiveram evolução bem mais modesta ou até mesmo decréscimo. Em valores de 2016, o Componente Básico passou de R$1,6 bilhões para R$1,2 bilhões (queda de 25%); o Componente Estratégico, de R$3,2 bilhões para cerca de R$5 bilhões (aumento de 53%); e o Componente Especializado, de R$4,9 bilhões para R$6,7 bilhões (aumento de 36%).

A disponibilidade de recursos financeiros para garantir o acesso a medicamentos importa muito, assim como o uso deles. Por esse motivo, a Organização Mundial da Saúde, desde a década de 1970, inclui no conceito de medicamentos essenciais e no de uso racional de medicamentos a relevância de se comparar a eficácia dos produtos aos custos e de assegurar o menor custo para os pacientes e suas comunidadesh h Organización Mundial de la Salud. Selección de medicamentos esenciales. Ginebra: OMS; 2002. (Perspectivas políticas de medicamentos de la OMS, 4.) ,i i World Health Organization. Promoting rational use of medicines: core components. Geneva: WHO; 2002. (WHO Policy Perspectives on Medicines, 5). . Por isso, a importância do uso de avaliações econômicas, as quais comparam os custos e os resultados de cada opção de política ou de tecnologia, antes de sua implantação ou incorporação.

Os recursos de fato são escassos para fazer frente às muitas necessidades da população e por isso precisam ser usados racionalmente, o que remete novamente à discussão sobre a integralidade no SUS. Parece já se construir entendimento entre bioeticistas brasileiros de que o direito universal à saúde é um princípio fundamental, mas de que a integralidade precisa ser regulada1919. Fortes PAC. Bioeticistas brasileiros e os princípios da universalidade e da integralidade do SUS. Rev Saude Publica. 2009;43(6):1054-8. https://doi.org/10.1590/S0034-89102009005000067
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. A alocação de recursos escassos deve ser feita com participação popular, considerando fatos, princípios, valores, emoções, ideias e crenças da sociedade2020. Fortes PAC. O dilema ético de priorizar recursos escassos. Rede Cancer. 2011 [cited 2017 Sep 30];(14):34-5. Available from: http://www2.inca.gov.br/wps/wcm/connect/075403004eb6942f8ba49bf11fae00ee/rede_cancer_14_artigo.pdf?MOD=AJPERES
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.

Quanto às respostas governamentais aos problemas de saúde e às necessidades de grupos específicos, também se identificam lacunas importantes, especialmente no que se refere ao tratamento de algumas doenças raras e às alternativas para pacientes que não podem fazer uso dos medicamentos constantes na Rename. Ademais, o financiamento insuficiente do SUS, a regulação sanitária e econômica, o envelhecimento da população, o lançamento de novos medicamentos, a gestão das tecnologias em saúde e a sustentabilidade financeira do sistema são questões importantes para os gestores públicos.

Assim, existem ainda grandes desafios para a garantia da IATF no SUS, seja no sentido das práticas profissionais, da organização das ações e serviços ou na resposta governamental para problemas de saúde ou para grupos específicos. Isso exige dos governos ações estruturantes e eficiência no uso dos recursos disponíveis.

Em relação à delimitação da garantia de acesso a medicamentos, deve-se considerar o estabelecimento de critérios para a regulação do acesso dos pacientes em situações excepcionais àqueles que não constam nas listas do SUS. Mas, antes disso, seria preciso estabelecer alguns consensos em torno desse tema. Não é razoável que o SUS seja obrigado a oferecer medicamentos experimentais, que não tenham sua eficácia e segurança comprovadas ou que possam ser substituídos por outros já disponíveis em suas listas. Além disso, o custo do tratamento também precisa ser considerado. Se, eticamente, as questões envolvendo a alocação de recursos escassos da sociedade requerem a participação popular, não estaria na hora de se realizar uma conferência nacional de assistência farmacêutica para debater essas questões?

  • a
    Organización Mundial de la Salud. Selección de medicamentos esenciales. Ginebra: OMS; 2002 [citado 30 set 2017]. (Perspectivas Políticas de Medicamentos de la OMS, 4). Disponível em: http://apps.who.¡nt/med¡c¡nedocs/es/p/printable.html
  • b
    Ministerio da Saúde (BR), Secretaria de Políticas de Saúde, Departamento de Formulação de Políticas de Saúde. Política Nacional de Medicamentos. Brasília (DF); 2001 [citado 30 set 2017]. (Série C. Projetos, Programas e Relatórios, 25). Disponível em: http://bvsms.saude.gov.br/bvs/publicacoes/politica_medicamentos.pdf
  • c
    Brasil. Lei n° 12.401, de 28 de abril de 2011. Altera a Lei n° 8.080, de 19 de setembro de 1990, para dispor sobre a assistência terapêutica e a incorporação de tecnologia em saúde no âmbito do Sistema Único de Saúde - SUS. Diário Oficial União. 29 abr 2011; Seção 1:1-2.
  • d
    Brasil. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília (DF); 1988 [citado 19 out 2017]. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm
  • e
    Brasil. Lei n° 8.080, de 19 de setembro de 1990. Dispõe sobre as condições para a promoção, proteção e recuperação da saúde, a organização e o funcionamento dos serviços correspondentes e dá outras providências. Diário Oficial União. 20 set 1990; Seção 1:1-5.
  • f
    Asensi FD, Pinheiro R. Judicialização da saúde no Brasil: dados e experiências. Brasília (DF): Conselho Nacional de Justiça; 2015 [citado 30 set 2017]. Disponível em: http://www.cnj.jus.br/files/conteudo/destaques//arquivo/2015/06/6781486daef02bc6ec8c1e491a565006.pdf
  • g
    Ministério da Saúde (BR), Secretaria de Ciência, Tecnologia e Insumos Estratégicos, Departamento de Assistência Farmacêutica e Insumos Estratégicos, Coordenação-Geral de Assistência Farmacêutica Básica. Resultados do projeto de implantação do cuidado farmacêutico no Município de Curitiba. Brasília (DF); 2015 [citado 30 set 2017]. (Cuidado Farmacêutico na Atenção Básica, caderno 4). Disponível em: http://bvsms.saude.gov.br/bvs/publicacoes/resultado_projeto_implantacao_cuidados_farmaceuticos.pdf
  • h
    Organización Mundial de la Salud. Selección de medicamentos esenciales. Ginebra: OMS; 2002. (Perspectivas políticas de medicamentos de la OMS, 4.)
  • i
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REFERENCES

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    2017

Histórico

  • Recebido
    12 Abr 2017
  • Aceito
    04 Ago 2017
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