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Saúde e desenvolvimento: uma nova abordagem para uma nova política

APRESENTAÇÃO

Saúde e desenvolvimento: uma nova abordagem para uma nova política

Carlos Augusto Grabois Gadelha

Secretaria de Ciência, Tecnologia e Insumos Estratégicos. Ministério da Saúde. Brasília, DF, Brasil

Correspondência | Correspondence Correspondência | Correspondence: Carlos Augusto Grabois Gadelha Av. Brasil, 4.365 - Manguinhos 21040-900 Rio de Janeiro, RJ, Brasil E-mail: carlos.gadelha@saude.gov.br

Este suplemento da Revista de Saúde Pública constitui um marco na perspectiva teórica e política do campo da ciência, tecnologia e inovação em saúde ao abrir espaço em uma das mais importantes revistas científicas da área de saúde pública para o tema complexo e contemporâneo da relação entre saúde e desenvolvimento. De fato, os artigos publicados procuram superar as noções economicistas que apontam que para o desenvolvimento é necessário uma população saudável, como se essa relação superasse a questão ética e civilizatória de que a saúde é um direito social.

A despeito de essas abordagens funcionalistas terem sido dominantes no passado recente, quando instâncias internacionais, com destaque para o Fundo Monetário Internacional (FMI) e o Banco Internacional para Reconstrução e Desenvolvimento (BIRD), formavam a base teórica multilateral e da estratégia de ação do "Consenso Liberal", hoje se evidencia que são completamente insuficientes para dar conta de estratégias nacionais de desenvolvimento como a brasileira. Isso porque reflete tanto descaso pela dimensão da luta política pelos direitos sociais quanto pelo contexto de globalização assimétrica do desenvolvimento tecnológico em saúde (que vem ameaçando a sustentabilidade dos sistemas universais de saúde e limitando os graus de autonomia das políticas nacionais, inclusive as sociais).

De fato, torna-se necessário pensar a relação entre saúde e desenvolvimento, recuperando e atualizando uma abordagem estruturalista e de economia política que dialogue com o campo da saúde coletiva para a construção de uma nova agenda sanitária que se insira no contexto de uma estratégia nacional de desenvolvimento. Em síntese, essa abordagem remete para a interdependência entre a política e a economia, destacando que as estratégias de desenvolvimento produtivo, de inovação e de proteção social são partes integradas e indissociáveis de uma nova agenda de desenvolvimento.

Esse esforço é essencial para atualizar os grandes objetivos da reforma sanitária brasileira, que inscreve a saúde como direito na Constituição Brasileira de 1988, no cenário contemporâneo de uma globalização fortemente assimétrica, de revolução tecnológica e de (re)colocação da situação de dependência e de atraso no campo da saúde.

O progresso técnico, reconhecido como base do desenvolvimento desde Adam Smith, Marx e Schumpeter e todos os pensadores estruturalistas e desenvolvimentistas, como Celso Furtado, cria, no campo da saúde, oportunidades de construção de uma base tecnológica capaz de gerar uma estrutura produtiva de suporte ao acesso universal. Ao mesmo tempo, traz os riscos de ressurgimento de sistemas nacionais que contribuam para cindir a sociedade e acirrar a desigualdade nesses "tempos difíceis", mesmo nas experiências europeias bem-sucedidas que estruturaram Estados de Bem-Estar no pós-guerra.

No caso do Brasil, é como se tivéssemos chegado a um limite em que o País enfrenta os novos e velhos fatores que reproduzem um círculo vicioso entre dependência e iniquidade e uma estrutura econômica pouco dinâmica na área da saúde. Os objetivos "setoriais" para a saúde parecem encontrar barreiras intransponíveis ligadas ao nosso próprio padrão de desenvolvimento.

Essa perspectiva, teórica e política, parte (e procura avançar) na concepção de que a saúde constitui uma condição de cidadania, sendo parte inerente do próprio conceito do desenvolvimento. Não há país que possa ser considerado como desenvolvido com a saúde precária. Nessa direção, não se torna necessário nenhum vínculo entre saúde e crescimento econômico para justificar as ações universalizantes e o gasto em saúde. Isso permite superar falsos e perniciosos dilemas entre uma dimensão econômica restrita e uma visão ampla da saúde como um direito, que constitui uma premissa, inclusive ética, para pensar o desenvolvimento.

A associação entre saúde e desenvolvimento pela via linear de sua contribuição para o "capital humano" e para a "produtividade" geral da economia embute riscos que passaram despercebidos por diversos atores da área da saúde. E se os países pudessem crescer - como os casos da China ou da Índia ilustram - com condições sanitárias perversas? A agenda sanitária perderia credibilidade ou voltaríamos a ter apenas ações compensatórias, recriando, por exemplo, intervenções que se aproximem de uma reedição da Lei dos Pobres dos séculos XVIII e XIX para viabilizar uma ajuda humanitária de "mínimos" para atenuar o conflito social e moral?

Na abordagem adotada neste suplemento assume-se que o processo de desenvolvimento envolve rupturas, conflitos e mudanças estruturais na base econômica, política e social.

A relação funcional, harmônica e linear (ou não estrutural) da relação entre saúde e desenvolvimento - e que deixou alguns dos comprometidos com a saúde quase em estado de euforia - foi retratada com força acadêmica e política no famoso relatório da Organização Mundial da Saúde "Macroeconomia e Saúde: investindo na saúde para o desenvolvimento econômico".3 A despeito de enfatizar que a saúde é um fim em si, traz, como grande novidade, que é um fator que fornece fortes externalidades para o desenvolvimento econômico. Essa direção fica clara ao ressaltar, sobretudo, regiões com condições de saúde explosivas, como a epidemia da aids na África Subsaariana, indicando que a carga de doenças relacionadas a essa doença é de tal envergadura que limita qualquer possibilidade de crescimento econômico e de desenvolvimento nas economias nacionais.

Essa percepção é seguida em diversos outros trabalhos com foco especial na África Subsaariana, como se a região fosse desenvolvida antes do aparecimento da aids e que tivesse alguma trajetória de desenvolvimento que teria sido abortada. Até organismos antes considerados como conservadores, como o FMI, e representantes da hegemonia liberal, concordavam em associar e justificar a saúde como uma área peculiar, cuja intervenção, focalizada, se justifica em função das falhas de mercado e de seu impacto nas condições mais elementares de trabalho de certas populações e regiões. Com relação à questão tecnológica, essas abordagens convencionais, travestidas de modernidade e de elegância acadêmica, se limitam a propor utilização de tecnologias de baixo custo e complexidade para o combate a doenças de alto impacto epidemiológico.

Retomando o tema em debate neste suplemento, a relação entre saúde e desenvolvimento acaba se reduzindo na visão tradicional de que a saúde deve ser apoiada por ser um elemento inerente das políticas sociais básicas e que também gera um efeito indireto sobre o crescimento econômico, decorrente apenas de sua dimensão social, implicando melhoria das condições de vida dos trabalhadores e do ambiente geral para os investimentos privados.

A agenda estrutural que envolve o padrão nacional de desenvolvimento, a concentração regional e pessoal da renda e a fragilidade da base produtiva em saúde ficam completamente subsumidas nessa agenda "genérica" extremamente empobrecedora.

Necessitamos repensar a saúde, retomando e atualizando uma agenda estruturalista que privilegia os fatores histórico-estruturais que caracterizam nossa sociedade - nosso passado escravista e colonial e a conformação de uma sociedade desigual - , nossa inserção internacional e sua relação com uma difusão extremamente assimétrica do progresso técnico e, nos termos atuais, do conhecimento e do aprendizado, dissociados das necessidades locais.

A agenda de saúde tem que sair de uma discussão intrínseca, insulada e intra-setorial e entrar na discussão do padrão do desenvolvimento brasileiro. Ou seja, a saúde como qualidade de vida implica pensar em sua conexão estrutural com o desenvolvimento econômico, a equidade, a sustentabilidade ambiental e a mobilização política da sociedade. A saúde, nessa perspectiva, se torna parte endógena de discussão de um modelo de desenvolvimento.

No âmbito da economia política, há um processo teórico e político de recuperação do pensamento desenvolvimentista em novas bases, considerando as especificidades do mundo contemporâneo. As questões centrais que se colocam nessa agenda em um esforço de leitura a partir do olhar de saúde coletiva referem-se a como compatibilizar progresso técnico e necessidade social [saindo do dilema apontado por Furtado (apud Saboia & Carvalho2) da modernização com marginalização] e a como reduzir as assimetrias no conhecimento global, sem o que nenhum sistema nacional poderá orientar a pesquisa e a inovação para atender suas necessidades e garantir a saúde universal.

É nessa perspectiva analítica que emerge a capacidade de aprendizado e de inovação em âmbito produtivo como fator crítico para o desenvolvimento. Apesar do modismo que o tema envolve, o que se discute é a dinâmica e os rumos de um novo padrão de desenvolvimento brasileiro, remetendo a pensar qual o padrão tecnológico e, consequentemente, quais os rumos e as necessidades de transformação na base produtiva que uma sociedade dinâmica e menos desigual requer.

É nessa dimensão que se coloca o tema do Complexo Econômico-industrial da Saúde (CEIS), enfatizado ao longo deste suplemento. Em substância, aponta a necessidade de uma mudança profunda na estrutura econômica brasileira que permita, mediante um intenso processo de inovação, adensar o tecido produtivo e direcioná-lo para compatibilizar a estrutura de oferta com a demanda social de saúde. Aqui chegamos a uma visão alternativa do vínculo entre saúde e desenvolvimento.

A saúde possui uma dupla dimensão na sua relação com o desenvolvimento. Numa primeira vertente, é parte do sistema de proteção social, constituindo um direito de cidadania inerente ao próprio conceito de desenvolvimento. Numa segunda vertente, a base produtiva em saúde - de bens e serviços - constitui um conjunto de setores de atividade econômica que está na fronteira do conhecimento mundial que é um fator determinante da soberania dos Estados Nacionais, além de possuir uma participação expressiva no Produto Interno Bruto e no emprego (respectivamente, em torno de 9% e de 10% nos empregos formais qualificados).

Talvez o rumo do conhecimento científico e tecnológico e das inovações seja a grande questão de saúde pública do século XXI. Ou a saúde assume a centralidade dessa agenda ou as bases concretas da sustentabilidade dos sistemas universais estarão comprometidas em médio e longo prazo, minando um modelo bem-sucedido de promoção, prevenção e atenção à saúde.

Este suplemento procura, assim, contribuir para superar o tratamento "insulado" e setorial da saúde e o debate (restrito) em torno de sua funcionalidade para o crescimento, inserindo a área de modo endógeno no debate político sobre o padrão de desenvolvimento desejado para nosso País. Essa perspectiva pode implicar tanto a simplificação de diversas tecnologias utilizadas no sistema quanto sua complexificação, chamando a atenção para não cairmos nas "armadilhas" da "tecnologia apropriada" a quem não tem conhecimento.

Todos os novos paradigmas tecnológicos que marcam a atual assimetria global se expressam de modo importante na área da saúde, com destaque para diversos campos tratados nos capítulos deste suplemento, como os setores de base biotecnológica e química, os novos materiais e equipamentos, a eletrônica e todo o conjunto, pouco ressaltado, dos serviços e das práticas em saúde, altamente intensivas em conhecimento, e com vínculos precários com uma estratégia de desenvolvimento centrada na equidade.

Torna-se necessário que as energias mobilizadoras da sociedade brasileira sejam motivadas por novos projetos do País e a saúde é um reflexo mundial do tipo de sociedade desejada. Na realidade, após a crise do padrão de desenvolvimento do pós-guerra e das experiências neoliberais, o momento se mostra adequado para se recolocarem as bases de um novo pacto político, social e econômico, pensando-se a retomada da perspectiva de se construir um Estado de Bem-Estar contemporâneo no País, que recupere as antigas promessas e que enfrente os novos desafios.

É dessa visão que se torna relevante e inovadora a necessidade de uma economia política da saúde. A grande referência que temos o dever de privilegiar nesse contexto estruturalista é Furtado,1 numa (re)leitura atualizada, uma vez que seus trabalhos apontam tanto para as dimensões relacionadas aos limites da estrutura produtiva quanto para a desigualdade pessoal e regional como uma marca estrutural da sociedade brasileira.

Essa citação sintetiza o conceito de desenvolvimento adotado neste suplemento, que incorpora a inovação como um processo político e social, e não apenas técnico - definida como a transformação produtiva para um certo modelo de sociedade - , e que traz, como princípio inerente ao conceito, a sua dimensão ética e social vinculada ao atendimento das necessidades humanas: "o desenvolvimento (...) pode ser definido como processo de mudança social pelo qual o crescente número de necessidades humanas, pré-existentes ou criadas pela própria mudança, são satisfeitas através de uma diferenciação no sistema produtivo, gerado pela introdução de inovações tecnológicas".1

Sugere-se a leitura deste suplemento, tendo como ponto de partida essa visão totalizante que permite integrar todos os trabalhos apresentados. Com isso, será possível fazer uma leitura que, ao mesmo tempo, se dedica aos temas estudados e que também abre promissoras perspectivas de trabalho e de pesquisa numa nova agenda contemporânea da saúde coletiva.

  • 1
    Furtado C. Dialética do desenvolvimento. Rio de Janeiro: Fundo de Cultura; 1964.
  • 2
    Saboia J, Carvalho FJC, organizadores. Celso Furtado e o século XXI. Barueri: Manole/ Rio de Janeiro: Instituto de Economia da UFRJ; 2001.
  • 3
    World Health Organization. Macroeconomics and health: investing in health for economic development: report of the Commission on Macroeconomics and Health. Geneva; 2001.
  • Correspondência | Correspondence:
    Carlos Augusto Grabois Gadelha
    Av. Brasil, 4.365 - Manguinhos
    21040-900 Rio de Janeiro, RJ, Brasil
    E-mail:
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      21 Mar 2013
    • Data do Fascículo
      Dez 2012
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