Resumo
A disposição para morrer como mártir sempre existiu e sempre foi objeto de louvor. Entretanto, a participação do Japão na Segunda Guerra Mundial trouxe consigo uma novidade que foi logo varrida desse país, mas prosperou nos países islâmicos: a demanda por combatentes suicidas, isto é, por pessoas dispostas, não a morrer como mártir, mas a fazer da própria morte (de mártir) um projeto de vida. Eu argumento que uma demanda de tal natureza não seria concebível se certas concepções filosóficas (“vida interior”, “experiências vividas”, “mito”, “êxtase”), provenientes da Lebensphilosophie (“filosofia da vida”), um movimento filosófico que prosperou na Alemanha da década de 1920, não tivessem sido absorvidas pelos ideólogos da identidade cultural japonesa das décadas de 1930 e 1940, e pelos ideólogos islâmicos das décadas de 1960 e 1970.
Palavras-chave
Combatentes Suicidas; Caracterologia; Filosofia da Vida; Tipos Superiores; Racionalismo Ocidental
Abstract
The disposition to die as a martyr has always existed and has always been an object of praise However, Japan’s participation in World War II brought about a novelty that was soon swept away from Japan itself but prospered in Islamic countries: a demand for suicide fighters, that is, for people with disposition, not to die as a martyr, but to turn their own death (as a martyr) into a life project. I argue that such a demand would not be conceivable if a set of philosophical conceptions (“inner life”, “living experience”, “myth”, “ecstasy”) brought about by Lebensphilosophie (“philosophy of life”), a philosophical movement that thrived in Germany in the 1920s, had not been absorbed by the ideologues of Japanese identity of the 1930s and 1940s, and by the Islamic ideologues of the 1960s and 1970s.
Keywords
Suicide Fighters; Characterology; Philosophy of Life; Superior Types; Western Rationalism
Hoje assisti uma Conferência do Professor T. Sua voz era tão baixa que era difícil escutar. Em resumo, ele disse: ‘A filosofia é um treinamento para a morte. A realidade demanda a morte de alguém, isto é, o sacrifício de uma vida’ 1 .
O tema deste ensaio é uma excentricidade macabra que surgiu na Segunda Guerra Mundial: a demanda por pessoas dispostas a fazer da própria morte um projeto de vida. A disposição para fazer da própria morte um projeto de vida não se confunde com a disposição para morrer como mártir, que sempre existiu e sempre foi objeto de louvor. Tiradentes, por exemplo, se dispôs a morrer como mártir, e isso lhe rendeu a glória póstuma de ter um feriado nacional instituído em sua memória. Mas não se dispôs a programar a própria morte ou a permitir que o fizessem por ele. Ele se dispôs a assumir o risco de morrer em um cadafalso, mas não a fazer da própria morte em um cadafalso um objetivo a ser alcançado. Nos marcos da excentricidade a que aqui me refiro, uma recusa de tal natureza não vale. No mundo inverossímil a que ela nos remete, a morte de mártir não é, como sempre foi, uma fatalidade ou infortúnio a que se sujeita quem faz certas escolhas; ela é, em si, uma escolha que poucos estão à altura de fazer - ou, quando não pode ser uma questão de escolha, uma “missão” que poucos estão à altura de cumprir. Nesse novo e assombroso mundo, um novo tipo de martírio passa a ser glorificado: o do combatente suicida.
Essa figura funesta, o “combatente suicida”, surgiu no dia 25 de outubro de 1944, data em que, pela primeira vez, foi executado um ataque kamikaze. Embora essa modalidade programada de autossacrifício tenha sido inventada no Japão 2 , não foi lá que ela prosperou; de lá, aliás, ela foi definitivamente varrida quando, cerca de dez meses após ter sido instituída, o Japão se viu forçado a se render aos Aliados. Entretanto, cerca de 40 anos mais tarde essa figura reapareceu no Líbano sob o nome de “shahid”, termo que foi posteriormente, no ano 2000, substituído por “ istishhadi ” (plural, istishhadiyn ). Ambos podem ser traduzidos por “mártir”, mas o segundo tem uma conotação ativa, sendo, por isso, o mais apropriado para se referir a um combatente suicida que provoca mortes e destruição, ao passo que o termo “ shahid ” se aplica melhor a quem executa uma missão suicida sem provocar outras mortes 3 . Vou usar um outro termo dependendo das exigências do contexto.
Com raras exceções, um istishhadi não atua por meio de aviões ou navios, mas de veículos pesados e cintos explosivos. O palco de sua primeira aparição foi Beirute, cidade em que, no dia 18 de abril de 1983, sob o comando do grupo xiita Hezbollah, uma van carregada de explosivos se chocou contra a Embaixada dos Estados Unidos causando a morte de 62 pessoas. Naquele mesmo ano, e mais uma vez em Beirute, no dia 23 de outubro, o Hezbollah voltou a atuar 4 . Embora radicado no Líbano, esse grupo paramilitar atuava sob a autoridade do líder supremo da Revolução Iraniana de 1979, o Aiatolá Khomeini, conforme se mostra evidente, por exemplo, na seguinte declaração, de 16 de fevereiro de 1985, do então porta voz do Hezbollah , o xeique Ibrahim al-Amim: “Nós obedecemos às ordens de um líder, sábio e justo, nosso tutor e faqih (jurista islâmico), que preenche todas as condições necessárias: Ruhollah Musawi Khomeini” 5 . Dois anos antes, após o referido atentado de 23 de outubro, esse mesmo porta-voz declarou que aqueles que cometeram o atentado suicida “o fizeram porque o Imã Khomeini os autorizou a fazê-lo”, acrescentando que foi “o Imã da Nação quem mostrou a eles esse caminho” (Kramer, 1991 apud Costa, 2006: 177).
O que há ou pode haver em comum entre a modalidade programada de autossacrifício que surgiu no Japão na década de 1940 e a que surgiu nos países islâmicos quase quatro décadas mais tarde? Uma resposta possível é a de que não há nada em comum, posto que há pelo menos três argumentos que convergem nessa direção: um primeiro diz respeito às singularidades históricas em que cada uma dessas modalidades foi concebida; um segundo, ao modo como, em cada uma delas, é concebido, planejado e executado, em uma palavra, é “gerido”, o ataque suicida; um terceiro, ao sentido que os pilotos kamikazes e os istishhadiyn atribuem às próprias mortes e ao modo como enxergam o meio sociocultural que as demanda.
Este ensaio tem cinco seções. Nas seções 1, 2 e 3 apresento, respectivamente, cada um desses argumentos para, posteriormente, na seção 4, contrapô-los a minha própria visão, que, em linhas gerais, pode ser expressa nos seguintes termos: por mais singulares que se mostrem as circunstâncias em que foram concebidas as figuras do piloto kamikaze e do istishhadi , o simples fato de ser concebível, em ambos os casos, a demanda por jovens dispostos a planejar a própria morte já sugere a existência de algo em comum entre essas circunstâncias. Se esse algo em comum não tem relação com os contextos históricos em que surgiram as referidas figuras, nem com as políticas de estado vigentes nos países em que elas foram concebidas, nem com as tradições culturais peculiares a esses países, com o que mais poderia ter? Na seção 4 apresento minha resposta. Na seção 5, concluo.
1
Se há alguma singularidade histórica do Japão que poderia ter, em tese, relação com o surgimento do piloto kamikaze, essa seria a existência, nesse país, de uma casta privilegiada de guerreiros feudais, os samurais, aos quais era imposto um código de honra (conhecido como “ bushido ”) que prescrevia o suicídio, mais exatamente, uma forma ritualizada de suicídio, o seppuku (rasgar o próprio ventre com a katana , a espada que um samurai sempre trazia consigo), como o único meio de reparar uma desonra 6 .
Se, por outro lado, há alguma “singularidade histórica” que possa ter, em tese, relação com o surgimento do istishhadi , essa seria o modo peculiarmente xiita de preservar a memória de um mazlum , termo persa que se refere a alguém que tenha sido alvo de uma grande injustiça. Presumo que a presença dessa figura, o mazlum , seja muito mais marcante na memória coletiva dos xiitas do que o é a do samurai na memória coletiva dos japoneses ou a de qualquer outra figura na memória coletiva de qualquer outra nacionalidade. Essa “presunção” está baseada na história do martírio do Imã Hussein ibn Ali, a quem o historiador iraniano Hamid Dabashi se referiu, com propriedade, como o “epítome arquetípico” de um mazlum (Dabashi, 2008: 302).
Jamais conheci um xiita pessoalmente, mas, ainda assim, duvido que haja uma única criança xiita que não saiba contar a história do martírio do referido Imã. Eu próprio a conheço pela pena do ensaísta alemão de origem iraniana Navid Kermani ( 2002 ). Eis, em brevíssimas palavras, do que se trata: em 2 de outubro do ano de 680, uma pequena caravana com 73 homens liderada pelo Imã Hussein ibn Ali, que havia saído de Meca em direção a Cufa, acampou em Karbala, uma pequena faixa de terra à margem do rio Eufrates, 70 quilômetros ao sul de Cufa (hoje, Iraque). Os habitantes desse lugarejo (uma grande cidade nos dias atuais) haviam se recusado a reconhecer a autoridade local do califa omíada Yazid, a quem viam como um déspota e traidor da mensagem de Maomé. Para se protegerem de Yazid, pediram a ajuda do Imã Hussein, que até então levava uma vida retirada em Meca. No dia seguinte à chegada da caravana de Hussein em Karbala, o exército de Yazid a localizou e barrou o acesso de todos ao rio. Passados alguns dias, Hussein, já enfraquecido pela sede, e antevendo o massacre que se avizinhava, liberou seus comandados do juramento de lealdade e os exortou a fugir. Mas nenhum deles fugiu. Enfrentaram o exército de Yazid sabendo que não teriam qualquer chance de sobrevivência e foram abatidos, um a um, a começar por Hussein, até morrerem todos.
Passados quase 1300 anos, isto é, em 1970, o teólogo e jurista Mortezza Mottahari (1920-1979), o principal ideólogo (no plano jurídico) da Revolução Iraniana de 1979, a quem Khomeini uma vez se referiu como “o fruto da minha vida” (Dabashi, 2008: 150), declararia, em um discurso para seus correligionários, que “Karbala não é só em um dia, ela sempre é” (Mottahari, 1982: 89 apud Dabashi 2008: 175). Com efeito, ainda hoje, quando um xiita (homem, mulher ou criança) bebe água, presume-se que aos seus lábios virão palavras - tais como: “Oooh!, vou sacrificar minha vida por seus lábios sedentos!” - que possam trazer a lembrança da sede infligida a “Hussein, o Mazlum ”. (Dabashi, 2008: 302).
Diante do que foi exposto, seria possível não enxergar, na disposição do piloto kamikaze para se matar, “a marca”, por assim dizer, do suicida samurai, essa espécie peculiar de guerreiro feudal que foi extinta em 1867? E seria possível não enxergar no destemor característico de um shahid, ou de um istishhadi , “a marca” de um mazlum como Hussein? Conforme veremos nas próximas seções, em ambos os casos a resposta é “sim”.
2
Uma das maneiras de mostrar que a resposta pode ser “sim” é examinar os modos como os ataques suicidas são “geridos” em cada um dos casos. Vejamos, portanto, separadamente.
Para examinar o caso japonês, vou iniciar mencionando algo que existiu no Japão sob o regime do xogunato (1603 a 1868), deixou de existir quando esse regime foi derrubado e o império japonês restaurado, em 1868, e só voltou a existir quase 80 anos mais tarde, em 1946, após o Japão ter sido derrotado na Segunda Guerra Mundial e, logo em seguida, um Rescrito Imperial ter negado formalmente a natureza divina do Imperador. O “algo” a que me refiro é, na verdade, bastante trivial: trata-se da distinção, bastante elementar, entre assuntos internos e externos; entre assuntos de cunho privado e de cunho público.
Toda experiência democrática pressupõe essa distinção, mas a recíproca não é verdadeira. Talvez nada ilustre isso melhor do que o regime de xogunato. No Japão feudal, governado pelas sucessivas dinastias de xoguns, havia lei até para determinar quem tinha ou não o direito de ter um sobrenome, que roupas os membros de cada um dos cinco estratos sociais - guerreiros (samurais), agricultores, artesãos, comerciantes e párias - estavam autorizados a vestir e que alimentos os membros de cada um desses estratos estavam autorizados a comprar (Benedict, 1947: 61 ss.), mas, não obstante tudo isso, a distinção entre assuntos internos e externos era preservada. Tomemos, por exemplo, o caso dos samurais. Eles tinham que se sujeitar às leis do direito feudal japonês e às prescrições do bushido , aí incluída a prescrição de se matar em certas circunstâncias, mas não tinham que se sujeitar a alguma concepção “oficial” de verdade, moralidade, justiça ou beleza. A sujeição obrigatória a prescrições legais, por mais bizarras que nos possam parecer, é um assunto externo; as crenças e juízos a respeito de o que deve ser considerado verdadeiro ou falso, bom ou ruim, justo ou injusto, bonito ou feio, etc. é um assunto interno. Quando essa distinção não é admitida, conforme aconteceu quando o império japonês veio a ser restaurado (em 1868), os assuntos internos passam a ser externos, o que equivale a dizer que passam a estar sujeitos ao controle do estado. Esse controle se manifesta na formulação de concepções oficiais de verdade, moralidade, justiça, beleza, amizade, piedade, solidariedade, patriotismo, religiosidade, amor, sexualidade, enfim, de tudo. Daí podem resultar uma ciência oficial, uma moralidade oficial, uma ética oficial, uma estética oficial, etc.
Conforme esclarece o cientista político japonês Masao Maruyama ( 2022 ), durante o xogunato Tokugawa, os assuntos internos ficavam sob o controle do micado (Tennō), o Imperador, cuja autoridade se limitava ao que se passava no “plano espiritual” e, os externos, exatamente aqueles cujo controle asseguravam o poder político, ficavam sob a jurisdição do tycoon (Xogun), o senhor feudal. Com o fim do xogunato, os assuntos internos e os externos foram unificados; eles foram “unidos em um só espírito”, o da “nação japonesa”, representado pela pessoa do Imperador, a quem se atribuía um status de mediador entre Deus e os homens. Essa “união em um só espírito” se consumou quando o Japão incluiu, em sua “política nacional”, todos os valores internos, mas todos mesmo, a ponto de sequer valores como a erudição e as artes poderem existir apartadas dos valores nacionais (Maruyama, 2022: 170-173).
Assim, se, no plano das “singularidades históricas”, o que faria do piloto kamikaze uma figura única teria sido o fato de ter um samurai como “ancestral”; no plano político teria sido o de viver sob um sistema de governo que aboliu a distinção entre assuntos internos e externos, mais especificamente, que a aboliu concebendo uma estética oficial à qual qualquer juízo estético tinha que estar subordinado.
Para me fazer entender melhor, solicito ao leitor que considere o modo como no Brasil são homenageados os pracinhas da Força Aérea. Um monumento foi construído em memória deles, esta é periodicamente reverenciada por meio de uma cerimônia em que autoridades civis e militares comparecem ao monumento e depositam flores em seus túmulos, há a execução do hino nacional com a bandeira do Brasil hasteada a meio mastro em sinal de luto e, salvo engano, isso é tudo. Não há, por parte do estado, ou de qualquer governo, uma exortação para que se veja algo de “belo” no fato de brasileiros terem perdido a vida “pela pátria” em um campo de batalha. Não é um “valor nacional” considerar que há algo de “belo” no militarismo. E, sobretudo, não há uma estetização da morte dos “pracinhas”, nem no plano conceitual, nem no visual. No plano conceitual, a morte de um “pracinha” não é associada, como o seria no caso do Japão, à beleza de uma pétala da flor de cerejeira que se desprega da flor e flutua no ar até cair aos poucos no chão. A operação de recrutá-los e de treiná-los para o combate não é associada à beleza de uma cerejeira mantendo-se intacta enquanto caem as pétalas de suas flores. No plano visual, não há imagens de objetos “oficialmente” belos estampadas nos uniformes, capacetes, tanques ou aviões a serem utilizados. Talvez, apenas a imagem de uma bandeira do Brasil. No Japão, a imagem de uma cerejeira é estampada em todos os referidos objetos. Certamente o Brasil não é um país que prima por fazer do ato de honrar a memória daqueles que morrem “pela pátria” um “valor nacional”, mas, nesse “quesito”, temo que não haja país que seja páreo para o Japão.
Com efeito, para centralizar os rituais em homenagem aos soldados que morreram lutando ao lado do imperador Meiji contra as forças que, até 1869, mantiveram-se leais ao xogunato Tokugawa, foi construído o Santuário Nacional Yasukuni, um templo xintoísta de proporções monumentais, no qual foram plantadas dezenas de cerejeiras. Originalmente foram plantadas com a expectativa de que suas belas flores pudessem servir de consolo para a perda dos soldados mortos. Entretanto, com a aceleração do processo de militarização no início do século XX:
[…] esse simbolismo sofreu uma transformação básica: as pétalas de cerejeira caindo passaram a representar os soldados que sacrificavam suas vidas pelo Imperador. As flores de cerejeira no Santuário Nacional de Yasukuni passaram a ser vistas como suas almas metamorfoseadas. Com isso, não apenas a apoteose dos soldados estava garantida, mas estes seriam homenageados pelas visitas regulares do Imperador ao Santuário (Ohnuki-Tierney, 2006: 28-29).
Nos marcos dessa história, a concepção da figura de um piloto kamikaze não poderia estar mais associada à figura do samurai, mas à do soldado dos tempos modernos cuja coragem o faz merecer a glória de ter a alma metamorfoseada nas flores das cerejeiras plantadas em um santuário nacional que o Imperador, em pessoa, visita regularmente. Nessa nova perspectiva, os pilotos kamikazes teriam morrido satisfeitos (e não amargurados, como um samurai), pois, o que mais pode alguém pretender além da apoteose e da glória de ter o Imperador, em pessoa, orando por sua alma? Conforme veremos na próxima seção, muitos dos jovens que viriam a morrer como piloto kamikaze constituíam a nata intelectual do país e, como tal, eram impermeáveis a doutrinações ideológicas de tal natureza. Eles não tinham satisfação alguma em morrer “pela nação”, nem, muito menos, pelo Imperador. Mas essa era a versão oficial e, como tal, se impunha a qualquer outra versão.
Nos países islâmicos, em contraste, os ataques suicidas são executados sem que seja sob a orientação de alguma ideologia oficial e sem que haja qualquer esforço no sentido de centralizar os rituais em homenagem aos que morrem 7 . Na verdade, sequer há rituais em homenagem a eles. Com raras exceções, seus nomes sequer são tornados públicos. Não há, agora, a intervenção de uma ideologia de estado determinando que o sentimento que rege o comportamento de um combatente suicida é a honra, a coragem, ou algum tipo de satisfação. Ele bem pode ser o desespero, a frustração, ou a inveja. Agora, não se morre por alguma razão bem definida, por alguma ‘causa nobre’, mas por razões de natureza pessoal as mais diversas tais como, por exemplo, a crença na existência de alguma recompensa celestial, a expectativa de recompensas materiais para os familiares que permanecerão vivos, ou, o que talvez seja o principal motivo, poupar os pais, as irmãs e os irmãos mais jovens do constrangimento de fazer parte de uma família que não tem ainda o seu mártir 8 .
3
Até o momento, nada em comum, nem no que se refere ao plano que estou aqui chamando de “histórico”, tratado na seção 1, nem no que se refere ao plano que estou aqui chamando de “político”, tratado na seção 2. Vejamos, agora, se há algo em comum no plano que poderia ser chamado de sociocultural, isto é, o que diz respeito aos sentidos atribuídos aos atos de autossacrifício e aos modos de perceber os contextos socioculturais que demandam esses atos.
Em um artigo intitulado “Betrayal by idealism and aesthetics”, a antropóloga Ohnuki-Tierney (Ohnuki-Tierney, 2004 ) argumenta que é um equívoco grosseiro associar o piloto kamikaze - que no Japão, a propósito, nem sequer é chamado de kamikaze, mas de Tokkotai , nome da instituição militar que treinava os pilotos suicidas - ao combatente suicida que veio a surgir quatro décadas mais tarde. Tal associação só passou a ser feita após os atentados de 11 de setembro, quando, por uma bizarra “fusão de estereótipos”, o piloto Tokkotai tornou-se o modelo para a interpretação da série de atentados suicidas que vieram a ser cometidos no Oriente Médio e em outros lugares (Ohnuki-Tierney, 2004: 15). Por obra e graça dessa infeliz fusão de estereótipos, a autora explica, todos os combatentes suicidas concebíveis, dos sequestradores dos aviões que derrubaram as torres gêmeas em 2001 aos “homens-bombas” que se explodiam em Israel na década de 1980 e proliferaram na década de 1990, dos mencionados condutores de veículos que cometeram os atentados no Líbano em 1983 aos próprios pilotos Tokkotai, passaram a ser vistos como se fizessem parte de um único grupo homogêneo. A autora assevera que nada pode ser mais enganoso do que isso. Ela se dedicou ao estudo da trajetória intelectual dos pilotos recrutados no meio universitário, os quais constituem 85% do total dos oficiais mortos “em missão”. Tendo tido acesso aos diários desses estudantes, que viriam a morrer aos 23 e 24 anos de idade, chamou-lhe a atenção o cosmopolitismo, a prontidão para rejeitar a ideologia militarista peculiar ao império japonês e, sobretudo, o elevadíssimo nível intelectual que lhes era próprio. Nas boas universidades do Japão era usual demandar de um calouro (presumo que apenas da área de humanidades), cuja idade dificilmente era superior a 18 anos, a leitura, em alemão , de a Crítica da razão pura . Mostrar-se familiarizado com esse livro era uma espécie de “rito de passagem” para a vida universitária. Uma vez tornados veteranos, liam, para mencionar apenas os autores citados com mais frequência nos diários: em francês, Rousseau, Martin du Gard, André Gide e Romain Rolland; em alemão, Kant, Hegel, Nietzsche, Goethe, Schiller, Marx e Thomas Mann; autores russos, estes lidos em japonês mesmo, embora houvesse quem os lesse em russo: Lenin, Dostoiévski, Tolstói e Nikolai Berdyaev e, para finalizar a lista, o filósofo dinamarquês Kierkegaard (Ohnuki-Tierney, 2006: 12).
Pode-se, certamente, objetar que apenas uma ínfima minoria dos estudantes tornados pilotos kamikazes poderia ostentar uma bagagem intelectual como a descrita, mas, ainda assim, o simples fato de ser concebível uma ínfima minoria dessa natureza já é, em si, muito significativo. Onde mais existe uma ínfima minoria de estudantes universitários que leem as obras de Kant, Hegel, Nietzsche, Goethe, Schiller, Marx e Thomas Mann em alemão não tendo o alemão como língua nativa? Certamente não é no meio em que são recrutados os istishhadiyn , posto que, conforme assevera o historiador Hamid Dabashi, nesses meios até mesmo os clérigos (xiitas) mais eruditos “conheciam muito pouco do que é geralmente chamado ‘a filosofia ocidental’” (Dabashi, 2008: 300).
Infelizmente os istishhadiyn não eram dados a escrever diários e, por essa razão, não temos como saber qual era a sua “bagagem intelectual”. Mas podemos ter uma ideia a respeito do sentido que atribuíam às próprias mortes e ao meio social em que estas eram demandadas pelas cartas testamentos que os shahids enviavam para as suas mães e para o próprio Imã Khomeini quando, em 1983, durante a guerra contra o Iraque, este último aprovou uma lei religiosa permitindo que meninos com mais de doze anos lutassem voluntariamente na frente de batalha mesmo sem a permissão dos pais. Eles teriam por “missão” atravessar campos minados a pé para desarmar as minas ao pisar nelas. Aos jovens voluntários foram prometidas a proteção pessoal de Khomeini (não consegui entender de que serviria ser um “protegido do Imã” nessas circunstâncias, mas é o que consta) e a entrada no Jardim do Éden se viessem a morrer. Dezenas de milhares de jovens voluntários recebiam a “chave do jardim do Éden” (uma chave de plástico feita em Taiwan) e bandanas roxas com o slogan “viva Khomeini” antes de serem enviados aos campos minados ou a campos de batalhas como “ondas humanas” para enfrentarem o exército do Iraque (Shay, 2017 ).
Nota-se que pode haver uma semelhança entre as promessas feitas a um piloto kamikaze e a um istishhadi . O primeiro, ao se explodir com um avião, teria sua apoteose assegurada e sua memória honrada no Santuário de Yasukuni; o segundo, ao se explodir com um caminhão, ou com um cinturão, teria assegurada (como o tem um shahid ) a sua entrada no Jardim de Éden. Ocorre, entretanto, que se para um istishhadi essa promessa fazia (e ainda faz) todo sentido, para os pilotos kamikazes uma promessa de tal natureza não tinha significado algum porque, não obstante a intensa campanha de propaganda do governo japonês para transformá-los em símbolos de martírio para a nação imperial, suas “lutas desesperadas para encontrar algum sentido em um destino que não puderam evitar, em nada se assemelham à entrega de quem pretende morrer como um mártir” (Ohnuki-Tierney, 2006: xvii). Exatamente o oposto se passa em relação aos istishhadiyn: o modo como estes morrem constitui exatamente um exemplo paradigmático de entrega de quem pretende morrer como um mártir.
Recorro à contribuição do historiador militar Shaul Shay (Shay, 2017 ) para dar ao leitor uma ideia do que seja essa mencionada “entrega”. Durante a guerra Irã-Iraque, a imprensa iraniana publicava diariamente as cartas que os shahids 11 escreviam para suas respectivas mães ou para o próprio Aiatolá Khomeini antes de se lançarem nos campos minados ou em confrontos dos quais nunca retornariam. Eis um exemplo do que usualmente se lia nessas cartas: “Quão miserável, quão ignorante eu fui durante todos os meus lamentáveis anos que passei sem conhecer Alá. O Imã abriu meus olhos… Quão doce, doce, doce é a morte, ela é como uma bênção concedida por Alá àqueles a quem ama” (Shay, 2017 ). Muitas dessas cartas terminavam citando o verso do Alcorão: “Não pense que os shahids estão mortos; eles vivem e florescem no abrigo sombreado das asas de Allah” (Shay, 2017 ). Algumas encerravam com citações de fontes islâmicas e cartas de Khomeini, que descreviam a deliciosa vida eterna dos shahids no Jardim do Éden, e prometiam que era esse o destino de quem se entrega em uma guerra santa. Um tom semelhante podia ser observado nos obituários publicados nos jornais. Esses, em vez de expressarem condolências pelas perdas, saudavam as famílias pelo privilégio de terem tido um filho transformado em um shahid . Para coroar tudo isso, a imprensa iraniana estava repleta de histórias sobre mães iranianas que tinham sacrificado quatro de seus cinco filhos e expressavam alegria por eles terem tido o privilégio de alcançar o Jardim do Éden. No Líbano, o líder do Hezbollah fez algo semelhante quando perdeu um de seus filhos 12 .
Se para um istishhadi a morte de mártir podia ter, pelo menos em tese, um sentido claro, embora nunca tornado “oficial”, a saber, o acesso ao “Jardim de Éden”, ou ao “abrigo sombreado das asas de Allah”, seja lá o que isso possa significar - um sentido que, diga-se de passagem, torna toda a linha de argumentação a respeito da conexão entre o shahid ou o istishhadi e seu suposto ancestral, o mazlum , irrelevante -, para um piloto kamikaze o sentido de sua própria morte sempre foi escorregadio. Não obstante, fossem quais fossem, no Japão, as motivações pessoais para o autossacrifício, o estado buscou ter controle sobre elas, o controle não aconteceu, mas, ainda assim, os autossacrifícios aconteceram. Nos países islâmicos, em contraste, o problema não estava em ter controle sobre as motivações pessoais, mas em saber fazer “bom uso” delas. Khomeini, por exemplo, estando ciente de que havia milhares de jovens xiitas “motivados” a ter uma “morte de mártir”, fez “bom uso” dessa “motivação” presenteando-os com chaves de plásticos para que pudessem abrir os portões do Jardim de Éden depois que morressem ao desativarem alguma mina.
Entretanto, o ato de fazer bom uso de uma motivação para morrer como mártir não se confunde com o ato, comum ao estado japonês e às organizações paramilitares islâmicas 13 , de demandar uma disposição para planejar a própria morte (de mártir) a despeito da motivação pessoal daquele que vem a se dispor. Recapitulemos as palavras do filósofo japonês Hajime Tanabe, o Professor T., citado na epígrafe deste ensaio: “a realidade demanda a morte de alguém, isto é, o sacrifício de uma vida”. Por mais profundas que se mostrem as diferenças entre o Japão e o Irã em qualquer plano concebível, ambos acabaram por se afigurar como “realidades” que “demandam” um autossacrifício planejado. Como vieram a se afigurar como tal? Se a resposta não está no plano das suas respectivas singularidades históricas (conforme vimos na seção 1), nem políticas (conforme vimos na seção 2), nem socioculturais (conforme vimos nesta seção), onde mais pode estar?
4
Em linhas gerais, minha resposta é: no modo como cada um desses países faz, ou, melhor dizendo, em algum momento já fez, o “acerto de contas consigo mesmo”. Em termos gerais, um país “acerta contas consigo mesmo” quando se põe a refletir sobre suas singularidades históricas e culturais, sobre suas potencialidades e perspectivas, sobre os obstáculos que precisa superar e sobre como fazer para superá-los. O Brasil, por exemplo, já “acertou contas consigo mesmo” em muitos momentos de sua história ao buscar respostas para perguntas do tipo: qual o legado “nos” deixado por “nosso” passado escravocrata e colonial? Em que sentido ele tem “nos” impedido de avançar nos planos social e econômico? Quais são as “nossas” perspectivas de desenvolvimento tendo em vista as “nossas” singularidades históricas e socioculturais? Muitos são os países, de todos os continentes, que já se viram forçados a acertos de contas de tal natureza em um ou mais momentos de sua história. Nesse particular, nem o Japão nem o Irã são uma exceção. Entretanto, pelo menos nos momentos que dizem respeito à presente discussão, nenhum dos dois fez o “acerto de contas” por meio da busca de respostas para perguntas como as listadas acima. É esta a convergência que interessa à presente discussão.
Nesse sentido, eis o que os faz semelhantes: a rejeição de qualquer “perspectiva histórica” que se baseie em uma concepção linear e unidirecional do tempo, isto é, que o segmente em “passado”, “presente” e “futuro”. Nos “acertos de contas” feitos por ambos, não se buscam respostas para perguntas tais como as que mencionei acima porque se presume que estas, na medida em que pressupõem (como, de fato, o fazem) uma concepção linear do tempo, retiram da história exatamente aquilo que lhe confere sentido, a saber, a sua capacidade de proporcionar, para todos aqueles que compartilham uma cultura comum, o permanente renascimento de suas experiências particularmente significativas. Nessa perspectiva, admitir uma concepção linear do tempo implicaria abrir mão da própria possibilidade de “ter uma história”, uma vez que, agora, “ter uma história” é, sobretudo, poder viver, intensa e recorrentemente, as experiências mais primordiais, genuínas e pujantes da comunidade (religiosa e/ou política) a que se pertence, não importando se essas experiências, tais como vêm a ser vividas, têm ou não algum lastro em alguma experiência real. Tudo o que importa é que tenham sido e possam continuar a ser representadas e revividas por meio dos símbolos imagéticos que possam emanar de narrativas míticas (lembremo-nos das flores de cerejeiras e dos “lábios sedentos” de Hussein).
Essa enfática recusa a admitir uma concepção linear do tempo em favor da ideia de que não há história sem o ato de viver, intensa e recorrentemente, as experiências primevas que possam ser ditas “genuinamente nacionais” aparece com toda clareza nos “acertos de contas” contidos nas obras dos pensadores mais influentes do Japão das duas décadas que antecederam à sua desastrosa participação na Segunda Guerra Mundial e do Irã das três décadas que antecederam a vitoriosa Revolução Iraniana de 1979. Vejamos, então, esses “acertos de contas”.
Talvez não tenha havido acadêmico mais influente tanto no plano intelectual quanto no político em seu próprio país, no século XX, do que o iraniano Jamal Al-e Ahmad (1923 - 1969), cuja obra, nas palavras do historiador Hamid Dabashi, significou o “alvorecer da ‘ideologia islâmica’” ( 2008: 39) - refiro-me à que se tornou hegemônica no Irã sob Khomeini. Quanto ao “segundo colocado”, não é possível ter tanta clareza sobre quem seria e, por isso, tenho que me contentar em mencionar apenas aqueles pensadores que poderiam ser chamados de, digamos assim, “extraordinariamente influentes”. No próprio Iran, o filósofo Ali Shariati (1933-1977), “o ideólogo islâmico por excelência”, cujo retrato era às vezes carregado, ao lado do de Khomeini, nas manifestações que culminaram na deposição do xá em 1979 (Hanson, 1983) e, no Japão, o filósofo Tetsuro Watsuji (1889-1960), professor nas Universidades de Kyoto e de Tóquio. A ele nunca foi dado um epíteto, mas, modestamente, eu me arriscaria a chamá-lo de “o ideólogo da identidade cultural japonesa”.
Eis o que há de comum entre todos eles: a rejeição de tudo o que pode ser considerado característico do racionalismo peculiar ao Ocidente, a começar pela referida concepção de história que pressupõe uma visão linear e unidirecional do tempo. Quando examinamos o modo como Al-e Ahmad e Ali Shariati, por um lado, e Tetsuro Watsuji, por outro, exprimem suas respectivas repulsas a tudo o que sugere “o Ocidente”, mal parece estarmos diante de autores cujas obras foram escritas em contextos históricos, políticos e socioculturais tão manifestamente distintos.
Iniciemos por Al-e Ahmad, aquele cuja obra representou o início do “acerto de contas” do xiismo consigo mesmo em um cenário de um Irã crescentemente “ocidentalizado” pelo governo do xá Reza Pahlevi. Eis o que aparece de particularmente relevante nesse acerto: uma queixa pelo desinteresse dos iranianos por sua própria mitologia. Com efeito, em seus ensaios sociais, Al-e Ahmad exprime sua decepção com o fato de no Irã se dar mais atenção à mitologia grega, da qual, segundo ele, um iraniano conseguiria ter apenas um “conhecimento artificial”, do que aos mitos ancestrais persas, os quais, estes sim, se prestam a um “entendimento genuíno”. O historiador iraniano Dabashi o cita: “Nenhum iraniano medianamente alfabetizado conhece nossa mitologia nacional. Quem é Zarir ou Garshap? Qual é o mito da criação nessa parte do mundo? Mas todo jornal está repleto de mitologia grega […]” (Al-e Ahmad, 1958: 22 apud Dabasi, 2008: 62-63).
É curioso que uma queixa de tal natureza tenha sido feita em um país que reverencia a mitologia nativa a ponto de instituir uma data (15 de maio) para cultuar a memória de um poeta épico, nascido no século X, em reconhecimento por seu trabalho de preservação dos mitos persas ancestrais. Refiro-me a Fergusi (935- ?), cuja memória é reverenciada no Irã de uma forma que certamente rivaliza com a forma como se reverencia a memória de Shakespeare na Inglaterra, de Cervantes na Espanha, de Goethe na Alemanha, de Dante na Itália, de Camões em Portugal e de ninguém no Brasil. Digo isso porque ainda hoje é possível ver, nas paredes das tradicionais casas de chá em qualquer parte do Irã, pinturas de imagens de alguns personagens míticos do Xanamé (Livro dos Reis), o mais conhecido épico de Fergusi 15 .
Mas, que diferença pode fazer os iranianos conhecerem ou não os citados personagens míticos a ponto de Al-e Ahmad se queixar da falta desse conhecimento? Por que essa queixa? Por que, para Al-e Ahmad, não era suficiente a preservação da memória de Fergusi nos termos descritos acima? A resposta é: porque ele estava convencido de que os mitos são “a mais real de todas as realidades” (Al-e Ahmad, 1978: 183 apud Dabashi, 2008: 61) e, como tal, constituem, para aqueles que vivenciam essas realidades, os marcos mais imediatos e mais essenciais de referência para a definição dos parâmetros de sua ação (Dabashi, 2008: 61). Nesse sentido, os iranianos xiitas só poderiam agir em conformidade com a sua condição de iranianos xiitas se os parâmetros para a sua ação tivessem como “marco mais imediato e mais essencial de referência” a própria mitologia persa. Daí, a conclusão de Al-e Ahmad de que a atenção ao trabalho daqueles que se dedicam ao estudo da mitologia genuinamente nacional era imprescindível para a definição de uma agenda política para a nação. Sem isso, imaginava Al-e Ahmad, uma ideologia propriamente “anti-Ocidente” não poderia ser construída no Irã e, como corolário, as próprias tradições culturais que conferem identidade a esse país (inclusive a de manter sempre viva a lembrança do trabalho de Fergusi) como um país islâmico (xiita) estariam em perigo. Al-e Ahmad exprimiu sua preocupação com esse “perigo” no título de seu livro mais bem conhecido, Gharbzadeg ( em inglês, Westoxication ). Publicado originalmente em 1962, parte dele está agora disponível em português sob um título que já diz tudo: “Ocidentose: uma praga do Ocidente” (Al-e Ahmad, 2022 ).
Shariati, até mesmo pela natureza de sua atividade (ele era muito mais um militante da causa revolucionária islâmica do que um estudioso como Al-e Ahmad), exprimiu sua preocupação com a ocidentalização do Irã muito mais por meio de discursos do que de reflexões acadêmicas. Não sendo, ele próprio, um clérigo, como Khomeini, ele não podia ter a autoridade da “voz de Deus” por trás de si, mas podia contar com a autoridade da “voz da história”. Não, entretanto, da “história” tal como é concebida no Ocidente. Como Shariati não padecia dessa doença contagiosa chamada “ocidentose”, ele não concebia a história como o registro de uma sucessão de experiências que vieram a ser, de fato, compartilhadas, mas como “a reconstrução ideológica de um eu revolucionário em torno da qual todas as outras experiências teriam que ser redefinidas” (Dabashi, 2008: 105). Não consegui entender direito quem é, exatamente, esse ‘eu revolucionário’, mas suspeito que seja literalmente alguém, tido como ‘revolucionário’, que possa ser considerado uma figura prototípica de autoridade a ser seguida. Seria alguém como, por exemplo, nosso já conhecido Imã Hussein? Talvez, mas não aquele Hussein que quase morreu de sede sem ter movido um dedo para alterar o curso dos acontecimentos, posto que a experiência de ter sido vítima não é um bom modelo para a redefinição de todas as outras experiências. Quem sabe, então, um “outro” Hussein, um Hussein “ideologicamente reconstruído” como um modelo mais ativo de herói? Poderia ser, mas Shariati tinha um candidato melhor, um modelo já pronto, o proporcionado por um beduíno chamado Abu Dahr ( ? - 652). Abu Dahr fazia parte do restrito círculo de companheiros de Maomé e era admirado por seu apego à vida retirada no deserto, completamente despojada de bens materiais, combinado com a disposição para participar de campanhas militares (Dabashi, 2008: 118). Abu Dahr! Era esse, segundo Shariati, o modelo de herói revolucionário a ser emulado para que o Irã pudesse se curar da “ocidentose” e assumir sua feição genuinamente xiita. Nesse sentido, qualquer “perspectiva histórica” que se permitisse confinar as experiências de um beduíno nascido há 1300 anos a um tempo passado seria apenas um registro de banalidades.
Cerca de cinco décadas antes de Al-e Ahmad e Shariati se perguntarem como o xiismo poderia se liberar do “artificialismo”, do “utilitarismo”, do “tecnicismo” e de outras mazelas advindas do “Ocidente”, Watsuji já se fazia exatamente a mesma pergunta em relação ao Japão. Sua resposta era muito parecida com a de Al-e Ahmad: o antídoto contra tantas mazelas só podia ser encontrado na “energia criativa” que emanava da “genuína” cultura japonesa. Em termos mais específicos:
Watsuji estava especificamente interessado em mostrar como a arte e a arquitetura budistas representaram, após a Idade Média, a mais pura expressão do espírito criativo japonês. Em uma série de obras […] Watsuji lembrou seus contemporâneos da pura expressão do poder criativo japonês que se manifestou no passado, mas era negligenciado no presente (Najita & Harootunian, 2008: 744).
Paradoxalmente, a ideia de trazer à lembrança “a mais pura expressão do espírito criativo japonês” não tem relação com alguma tradição cultural ou filosófica japonesa, mas com o pensamento de Nietzsche, com o qual Watsuji era familiarizado a ponto de ter, em 1913, escrito um livro cujo título, caso tivesse sido publicado em português, seria algo como “Um estudo sobre Nietzsche” (Bellah, 1965: 586) 16 . Conforme esclarecem Najita e Harootunian ( 2008 ), da mesma forma que Nietzsche buscou, na Grécia Antiga, um “momento autêntico e criativo”, não contaminado pelo racionalismo burguês moderno, Watsuji buscou no Japão antigo uma manifestação comparável de um espírito criativo essencial, porque temia que “da mesma forma que o”materialismo” romano havia destruído o espírito da cultura grega antiga, a civilização ocidental, exemplificada pelo individualismo autocentrado anglo-americano, poderia destruir o legado espiritual do Japão” (Najita & Harrotunian, 2008: 744).
Não sei dizer se o Japão (ou qualquer outro país) tem algum “legado espiritual”, mas suspeito que a própria ideia de que qualquer país possa ter um “legado espiritual”, isso é, uma “vida interior”, que pode ser, de alguma forma, “apreendida”, não é japonesa, mas alemã; melhor dizendo, essa ideia é uma emanação de um movimento filosófico multifacetado que remonta aos pensamentos de Nietzsche e de Dilthey, conhecido como Lebensphilosophie (“filosofia da vida”). O pensamento de Watsuji era claramente tributário desse movimento filosófico alemão. Na década de 1920, a “face” mais proeminente desse movimento era um ramo da psicologia conhecido como “caracterologia”, cujo propósito era descobrir a verdadeira “vida interior” que se esconde por trás das “máscaras de cortesia” (Ash, 1995: 290) com a qual nos apresentamos na vida cotidiana. Uma “vida interior”, quer a de um indivíduo, quer a de uma coletividade, se expressa sempre por meio de imagens. No caso do indivíduo, as imagens são a sua grafia e seus traços fisionômicos. No caso de uma nação, estas podem ser muitas, conforme veremos. Por ora, limito-me a mencionar que a caracterologia não teria o impacto que teve na Alemanha se não fosse pelo pensamento de um psicólogo chamado Ludwig Klages (1872 - 1956).
Aquilo que interessou a Al-e Ahmad e a Shariati na década de 1960 com relação ao Islã, e a Watsuji na década de 1930, com relação ao Japão, já interessava a Klages na década de 1920 com relação à Alemanha: o renascimento da “autêntica cultura” nativa. Para discutir a possibilidade do renascimento da “autêntica cultura alemã” em uma Alemanha devastada pela derrota na Primeira Guerra, Klages seguiu o rastro do seu compatriota Johann Jacob Bachofen (1815 - 1887), um estudioso de mitologias que defendia a tese de que a vida não pode ser expressa por meio de uma linguagem articulada porque esta só pode dar acesso a realidades que se acham confinadas aos limites da matéria e do espaço, e a vida não é uma dessas realidades. Onde há vida, há impulso, há sentimentos, há apreensão imediata, há as formas mais elevadas de intuição, e o acesso a todas essas realidades imateriais e não-espaciais, ou, em termos mais genéricos, o acesso ao poder visível das realidades que não se oferecem imediatamente à observação, requer uma forma de expressão que se mostre capaz de ultrapassar todos os limites impostos pela matéria e pelo espaço. Essa forma de expressão é o símbolo, sobretudo, o símbolo imagético, em uma palavra, a imagem. No rastro dessa ideia, Klages propôs que somente a sabedoria contida no impulso irrefletido, na apreensão imediata e nas formas mais elevadas de intuição, desde que expressa por meio de imagens, poderia combater “os poderes diabólicos e misteriosos da modernidade: o materialismo, a destruição e a degeneração” 17 .
O alinhamento de Watsuji a toda essa linha (nada “genuinamente japonesa”) de raciocínio é particularmente visível quando este se põe a apresentar o “caráter nacional americano” - ele chegou a publicar, em 1944, um livro sob esse título. A passagem abaixo, extraída de um trabalho de Robert Bellah, expõe a tese que veio a ser defendida no livro:
Os americanos de hoje têm uma surpreendente semelhança com os bustos romanos, não tanto em sua forma física quanto na expressão de sua vida interior . Como os romanos, os americanos dão a impressão de serem incultos, realistas e práticos. As conquistas romanas são medidas principalmente em termos de tamanho e engenhosidade técnica, assim como os arranha-céus e as máquinas dos americanos. O amor romano por esportes sangrentos no coliseu é acompanhado pela paixão americana por corridas automobilísticas insanas. […] E assim como os romanos governaram o mundo de seus dias com armas e conhecimento romano, os anglo-saxões depois da Primeira Guerra Mundial vieram para governar o mundo com armas e o poder da ciência moderna (Bellah, 1965: 583-584, grifo nosso).
Embora seja uma paráfrase dos escritos de Watsuji, o parágrafo acima bem poderia estar contido em alguma página do já mencionado livro “Ocidentose”, de Al-e Ahmad, ou no livro Reflections of a Concerned Muslim, de Shariati (Shariati, 1979 ). Não por acaso: a apresentação de imagens (arranha-céus, corridas automobilísticas, armas) que (supostamente) exprimem a vida interior de uma nação é de primordial importância para os “acertos de contas” que aparecem nas obras dos três.
Mas, conforme já vimos, o ato de apresentar imagens que (supostamente) “exprimem” alguma “vida interior” tem nome: trata-se de um exercício de caracterologia. Posto que uma vida interior se exprime por meio de imagens, ela poderá ser “superior” ou “inferior” dependendo da natureza da imagem por meio da qual ela se exprime. Nessa perspectiva, pobre da nação cuja “vida interior” se exprime por meio de imagens “artificiais” como as de arranha-céus, automóveis, ou armas e, por outro lado, feliz da nação cuja “vida interior” se exprime por meio de imagens que emanam de uma mitologia genuinamente nacional, posto que somente estas, desde que não confinadas a um “tempo passado”, podem conferir a uma nação o seu “traço fisionômico” distintivo.
Se toda vida interior se expressa por meio de imagens, e se o ato, em si mesmo, de se expressar por meio de imagens não pode ser segmentado em início, meio e fim, segue-se que a própria vida não pode mais ser concebida como um processo contínuo que tem um início quando se nasce e um fim quando se morre. A essa concepção da vida como um processo contínuo, Klages contrapôs a tese de que há um vínculo necessário entre a vida e a morte, descrito em uma expressão paradoxal de Ernst Jünger (autor fundamental, a quem retorno), a saber, “experiência da morte”, a existência simultânea de um fim e de um processo contínuo que culmina nesse fim. Seu argumento (o de Klages) é o de que, posto que não há vida sem experiências vividas, e posto que toda “experiência” só pode ser vivida nos termos de um (eternamente retornável) “tempo primordial que se exprime por meio de imagens” (Lebovic, 2013: 177), segue-se que a própria vida deveria ser vista como uma imagem, refletida em um retrovisor, que exprime as experiências mais primordiais. Mas, que imagem pode exprimir “experiências primordiais” e, em primeiro lugar, o que é uma “experiência primordial”, passível de ser “eternamente revivida” na medida em que se exprime por meio de imagens? De acordo com Klages, é a experiência do sacrifício, e a imagem que pode exprimi-la é qualquer uma que possa ser encontrada nos mitos ancestrais. O próprio Klages esclarece:
Bachofen [o estudioso de mitologias em quem, conforme vimos, Klages se inspirou] descobriu que o renascimento da vida dos deuses é criado quando um deus sacrifica outro. A imortalidade, na qual os pelagianos acreditavam, faziam da morte a condição da vida. Ela renova a essência. Toda aparência era a imagem rejuvenescida de algo do passado, ou seja, ciclos da vida de volta sobre si próprios. (Klages, 1937: 178-179 apud Lebovic, 2013: 127).
Ao associar a vida (tanto a individual quanto a comunitária, que agora se tornaram indissociáveis) à imagem, vista por um retrovisor, de uma experiência primordial que sempre pode ser revivida, Klages buscou conectar, como posteriormente Watsuji também o faria no Japão, a vida individual à vida de uma nação; ele buscou demonstrar o modo como a fusão dos indivíduos em uma mesma comunidade, especialmente aquela que é orientada por mitos, pode permitir a alguém superar os limites regulares entre a vida e a morte. Uma vez ocorrida essa fusão, a morte não seria mais o ponto final, mas um constante ponto de referência para qualquer experiência vital - como o são os batimentos cardíacos ou os pequenos intervalos existentes entre eles; em outras palavras, a morte, a exemplo do silêncio entre dois batimentos cardíacos, seria a inevitável presença da ausência na “vida interior” de alguém ou de uma comunidade. (Lebovic, 2013: 127).
Suspeito que tenha sido sob o manto dessa concepção filosófica alemã que Watsuji pôde postular, por meio do exercício de caracterologia anteriormente descrito, a existência de um vínculo necessário entre a superioridade da “vida interior” do Japão, expressa em imagens que exprimem a experiência primordial do sacrifício, e a superioridade da “vida interior” de cada japonês, e seu compatriota e contemporâneo, o já citado filósofo Hajime Tanabe, levar tal exercício às últimas consequencias ao postular, conforme vimos na epígrafe deste ensaio, que “a realidade demanda a morte de alguém, isto é, o sacrifício de uma vida”.
Mas, e quanto ao Irã? Em que o “acerto de contas” feito nesse país é também tributário da “filosofia da vida”? Al-e Ahmad e Shariati também escreveram livros sobre Nietzsche? Também estudaram na Alemanha, como o fizeram Watsuji e Tanabe? Também são, ainda que inadvertidamente, “caracterólogos”?
O Irã chegou ao mesmo lugar que o Japão por um caminho um pouco diferente, ainda que igualmente pavimentado pela Lebensphilosophie . Al-e Ahmad não estudou na Alemanha nem era versado no pensamento de Nietzsche, mas atribuía o enorme (e, para ele próprio, surpreendente) impacto de sua crítica mordaz ao Ocidente, contida em seu livro Gharbzadeg , à sua proximidade com um certo autor alemão de quem ele já havia traduzido um texto para o persa (Dabashi, 2008: 74). Eis o nome do autor alemão: Ernst Jünger (1895-1998), aquele que inspirou as reflexões de Klages a respeito da existência de uma inerente relação entre a vida e a morte ao cunhar a expressão “experiência da morte”. E eis o nome do livro que Al-e Ahmad traduziu para o persa: Über die Linie (em português: Sobre a Linha), escrito em 1950 em homenagem a Heidegger. Nesse livro, Jünger postulou que o Ocidente estava em “declínio” em razão de não ter se mostrado capaz de “criar tipos superiores” (Jünger, 1998: 46-47).
Para esclarecer tanto o que seja “experiência da morte” quanto o que pode ser o “tipo superior” a que Jünger se refere, reproduzirei um pequeno trecho do próprio Jünger sobre sua experiência de combatente na Primeira Guerra Mundial:
Já na estrada junto a Mory, eu sentiria a mão da morte - mas dessa vez ela agarrava com mais clareza e mais firmeza. Quando bati com força no fundo da vala, tive a convicção de que o fim era irreversível. E, estranhamente, esse é um dos poucos instantes que foram de fato felizes. Como que iluminado por um raio, compreendi minha vida em sua feição interna (Jünger, 2013: 338-339).
Essa passagem descreve aquilo que, do ponto de vista da Lebensphilosophie , da “filosofia da vida”, é a mais sublime das experiências: o êxtase ( Rausch ) que somente uma apreensão imediata do que seja a própria vida interior pode proporcionar. Rausch , a experiência da “embriaguês além de toda embriaguês”, da “ruptura que nos libera de todos os laços”, era, para Jünger, a “condição do homem santo, dos grandes poetas e do grande amor”, a ser “também concedida aos de grande coragem” (Jünger, 1981: 74 apud Lebovic, 2013: 168). Nessa perspectiva, o “tipo superior” que o Ocidente não se mostrou capaz de criar é “o santo”, “o grande poeta”, “o que vive o grande amor”, “o que se revela de grande coragem”, em resumo, o que tem ao seu alcance a descrita experiência do êxtase. Mas, qual é a fonte suprema dessa mais elevada experiência? Eis a resposta de Jünger: o campo de batalha, posto que só esse cenário pode propiciar a “experiência da morte”, e só esta, por sua vez, pode propiciar o maior dos êxtases, a apreensão imediata da própria “vida interior”.
Na seção introdutória, perguntei o que há ou pode haver em comum entre a modalidade programada de autossacrifício que surgiu no Japão na década de 1940 e a que surgiu no mundo islâmico quase quatro décadas mais tarde. Agora posso responder: em ambos os casos há um compromisso com a criação de “tipos superiores”, seja de forma indireta (caso do Japão), isto é, por meio da realização de exercícios de caracterologia com o propósito de demonstrar a superioridade do “caráter” de uma nação cuja “vida interior” se exprima por meio de imagens que simbolizam as experiências mais primordiais de sacrifício, seja de forma direta (caso islâmico), isto é, por meio da construção de modelos de “tipos superiores” a serem emulados. Esses são construídos por meio do culto a personagens míticos, seja os que aparecem na mitologia ancestral, como Zarir e Garshap, citados por Al-e Ahmad, seja os que são tornados míticos por meio de um exercício mais contemporâneo de “reconstrução ideológica” (para falar como Shariati), como o foram o Imã Hussein, o beduíno Abu Dahr, e quem mais puder ser descrito como alguém (não importa se real ou fictício) que tenha vivido, ou que possa vir a viver, a mais elevada das experiências: a de “compreender a própria vida em sua feição interna”.
Mas, quem mais pode ser descrito dessa maneira? Quem mais pode se juntar a essa galeria de “tipos superiores” da qual já fazem parte “o santo”, “o grande poeta”, “o que vive um grande amor” e “o que revela grande coragem”? Quem mais, em outras palavras, pode “superar” os limites regulares entre si próprio e a comunidade em que vive, e entre a vida e a morte, ao ter a mais plena experiência de êxtase ( Rausch )? Quem mais, senão o combatente suicida? Quem mais, senão o tokkotai e o istishhadi ?
5
Neste ensaio procurei mostrar o modo como essa nova modalidade de “tipo superior”, o combatente suicida, pôde ser concebida em contextos históricos, políticos e socioculturais tão díspares quanto os constituídos pelo nacionalismo militarista de um Império agonizante e pelo sectarismo xiita de uma República Islâmica emergente. Em comum, entre eles, nenhuma tradição cultural, nenhuma política de estado, nenhuma ideologia militarista ou de qualquer outra natureza; da mesma forma, sequer é comum o significado que em cada caso se atribui ao próprio ato de executar uma “missão suicida”, mas, em compensação, é comum a rejeição visceral a tudo o que é supostamente característico da “vida interior” dos países ocidentais. Partilhar essa rejeição é convergir em reputar como inferior o “caráter”, a própria “vida”, que não se notabiliza por cultuar mitologias ancestrais, nem por reviver, permanentemente, e de forma cerimonial, as experiências de sacrifício contidas nessas mitologias; nem, sobretudo, por vivenciar a mais plena das experiências, o êxtase. “Vida interior!” “Culto a mitologias!” “Reviver experiências!”, “Vivenciar!”, “Êxtase!”. De onde vêm todas essas concepções? Do nacionalismo militarista peculiar ao Império japonês? Certamente que não. Do sectarismo xiita que se estabeleceu com a Revolução Iraniana? Também não. Vêm da Lebensphilosophie , da “filosofia da vida!” Mas não poderiam “vingar” se não se incorporassem ao referido nacionalismo e ao referido sectarismo. Uma vez ocorrida tal incorporação, tanto o Japão sob o Imperador Hirohito, quanto o Islã sob o Aiatolá Khomeini passaram a se afigurar como “realidades” que “demandam o sacrifício de uma vida”, às quais o filósofo Hajime Tanabe, o “Professor T.” mencionado na epígrafe do presente ensaio, já se referia em suas palestras antes mesmo de a figura do ‘piloto kamikaze’ ter sido oficialmente concebida.
REFERÊNCIAS
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1
Anotação do diário pessoal de um estudante secundarista japonês que morreria três anos mais tarde, aos 24 anos, ao executar um ataque kamikaze. A anotação foi feita em 18 de junho de 1942. O “Professor T.” a quem o estudante se refere é Hajime Tanabe, o mais proeminente filósofo japonês da época (Ohnuki-Tierney, 2006: 80).
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2
Certamente há precedentes de ataques suicidas, mas ataques episódicos, que nem resultam de um planejamento centralizado, nem envolvem a formação de coortes sucessivas de combatentes recrutados especificamente para desempenhar tal tarefa.
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3
Na verdade, o termo istishhadi só passou a ser usado para se referir ao combatente suicida na segunda Intifada (ano 2000). Até então, adotava-se somente o termo shahid . Para esclarecer a diferença: alguém que se disponha a morrer aceitando a “missão” de caminhar por um campo minado é um shahid , mas não um istishhad i. Um “homem bomba”, que causa outras mortes e destruição por meio de seu próprio martírio, este sim, é um “ istishhadi ”. Cf. Shay ( 2017 ), Abufarha ( 2009 ) e Aran ( 2018 ).
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4
Para uma alentada lista dos atentados suicidas cometidos por istishhadiyn , cf. Shay ( 2017 ).
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5
Essa passagem é parte de uma “Carta Aberta do Hezbollah”, lida na Mesquita al-Ouzai, em Beirute Ocidental. A carta foi posteriormente publicada “para todos os oprimidos no Líbano e no Mundo”. Cf.: Costa ( 2006: 296-300).
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6
A referência mais importante a respeito do Bushido continua sendo o livro Bushido: The Soul of Japan , de Inazo Nitobe (Nitobe, 2002 ), publicado pela primeira vez em 1899.
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Vale registrar que até a década de 1980 é possível que a própria ideia de “ataque suicida” sequer fizesse sentido para alguém em um país muçulmano, quer xiita ou sunita. Os sunitas sequer cultuam o martírio. Os xiitas primam por fazê-lo, como se pode depreender do exemplo do culto ao martírio do Imã Hussein, mas antes da década de 1980 essa peculiaridade nunca se traduziu na disposição para cometer um ataque suicida. Nem mesmo na revolução de 1979, em que ondas humanas de xiitas enfrentavam desarmadas os soldados do xá, o ataque suicida foi concebido. Impulsionado por cegueira religiosa ou extremismo político, o culto ao martírio se traduziu nas ondas de jovens que caminhavam em campos minados na Guerra Irã-Iraque, mas não em ataques suicidas. Cf.: Kermani ( 2002 ).
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Para uma discussão sobre as motivações de um “homem bomba” e de um piloto kamikaze, cf., por exemplo, as contribuições de uma coletânea organizada por Diego Gambetta ( 2005 ).
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Alguma informação, entretanto, existe disponível a respeito dos membros dos grupos palestinos: “Um pequeno número de estudos recentes […] mostra que o estrato social de origem, a renda e a educação [dos terroristas palestinos] são mais elevados do que na população geral de referência”. Ricolfi ( 2005: 105).
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O plural de shahid é shuhada, não shahids , mas, em atenção à memória do leitor (e à minha própria) vou usar a forma plural simplesmente acrescentando um “s”, como já se faz na literatura sobre o tema.
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O ideal seria poder mostrar cartas escritas pelos próprios istishhadiyn , mas só encontrei a reprodução de cartas escritas por shahids . Como, entretanto, se trata apenas de ilustrar a “entrega” de quem pretende morrer como um mártir, presumo que não deve haver diferença significativa entre os shahids e os istishhadiyn nesse particular.
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No Líbano, o jovem Hadi Nasrallah, de 18 anos, filho do líder do Hezbollah, foi abatido no dia 13 de setembro de 1997 ao invadir, ostentando um rifle, uma área militar de acesso restrito, situada perto da fronteira entre o Líbano e Israel, sob controle do exército israelense. Tão logo tomou conhecimento da morte do filho, o líder xiita fez um pronunciamento público em que se declarou “orgulhoso” por se ver, finalmente, incluído entre aqueles que têm um mártir na família. Até então, confidenciou, sentia-se “envergonhado perante os pais de outros mártires”, mas, agora, “graças à generosidade de Alá”, não tinha mais do que se envergonhar. Este pronunciamento estava disponível em http://www.youtube.com/watch?v=HalvZUHlenU .
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Na verdade, os ataques suicidas não se restringem ao Japão e ao Islã. Estes já foram promovidos por grupos seculares e por grupos com membros de procedência hindu, como é o caso dos Tigres do Tamil. Mas esses grupos agiam, digamos assim, “sob demanda”, isto é, eles não tinham o que poderia ser chamado de “‘plano de formação’ de ‘coortes’ sucessivas de combatentes suicidas”. Em outras palavras, a formação de combatentes suicidas fora do Japão e do Islã tinha um caráter episódico, e o que interessa à presente discussão é justamente o caráter contínuo (só existente no Japão e no Islã) do processo que conduz à demanda permanente por pessoas dispostas a planejar a própria morte.
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Reproduzo os termos pelos quais o historiador Hamid Dabashi o definiu (Dabashi, 2008 ).
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Cf.: https://parstoday.com/pt/radio/iran-i18856-ferdusi_poeta_de_todos_os_tempos , acesso em 23 de julho de 2022.
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Para uma detida discussão a respeito do conteúdo desse livro e da importância que ele teve no meio filosófico japonês por ocasião de sua publicação cf. Parkes, 1999 , páginas 362 e seguintes.
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Os termos entre aspas não são do próprio Klages. São uma paráfrase de Nitzan Lebovic (Lebovic, 2013: 86).
Datas de Publicação
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Publicação nesta coleção
20 Dez 2024 -
Data do Fascículo
2024
Histórico
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Recebido
09 Ago 2022 -
Aceito
03 Jul 2023 -
Revisado
01 Jun 2023