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O BOM FILHO À CASA TORNA: FORMAÇÃO HUMANISTA EUROPEIA E SENTIMENTO PÁTRIO EM JOAQUIM NABUCO E HENRY JAMES* * O presente trabalho foi realizado com o apoio da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES), entidade do Governo brasileiro voltada para a formação de recursos humanos.

THE GOOD SON RETURNS HOME: HUMANIST EUROPEAN EDUCATION AND NATIONAL FEELING IN JOAQUIM NABUCO AND HENRY JAMES

Resumo

Este artigo propõe uma análise comparativa entre textos de caráter autobiográfico do intelectual e político brasileiro Joaquim Nabuco e do escritor norte-americano Henry James, nos quais eles modelam suas subjetividades e confrontam-se com alguns dos problemas que mobilizaram boa parte dos intelectuais, na virada do século XIX para o XX. Tanto Minha formação (1900), de Nabuco, quanto The American scene (1907), de James, representam o sentimento a que Evaldo Cabral de Mello chama "o dilema do Mazombo", ou seja, a tensão dialética, vivida por grande parte das elites sul e norte-americanas, entre o humanismo europeu e o vínculo afetivo com o país de origem.

Palavras-chave
Joaquim Nabuco; Henry James; modernidade belle époque; humanismo europeu; sentimento nacional

Abstract

This paper proposes a comparative analysis between the autobiographical writings of the Brazilian intellectual and politician Joaquim Nabuco's and the North-American writer Henry James's. It analyzes how Nabuco's and James fashion their subjectivities and confront some of the problems that interested intellectuals at the turn of nineteenth and in the early twentieth century. Nabuco's My formation (1900) as well as James's The American scene (1907) represent the sentiment called "the Mazombo's dilemma" by Evaldo Cabral de Mello, i.e., the dialectical tension between European humanism and the emotional relation to the native country, which affected part of the South and North-American upper classes.

Keywords
Joaquim Nabuco; Henry James; Belle époque modernity; European humanism; National sentiment

Este artigo propõe uma análise comparada de textos do intelectual e político brasileiro Joaquim Nabuco (1849-1910) e do escritor norte-americano Henry James (1843-1916), nos quais eles modelaram suas subjetividades1 1 A noção de "modelagem da subjetividade" [self fashioning] foi retirada do trabalho de Stephen Greenblatt (1980), no qual a análise de textos literários do Renascimento inglês conduz ao argumento de que a concepção de individualidade autodirigida e centrada em uma interioridade coesa, representada pela razão ou consciência, que começa a se constituir nesse período, vem acompanhada da possibilidade de formação, modelagem e transformação da subjetividade pelo indivíduo. Argumento semelhante e complementar é desenvolvido no artigo de Thomas Greene (1968), que opõe a noção tomista de habitus a uma concepção de subjetividade fundamentada na ideia de flexibilidade, típica da literatura do Renascimento italiano. A ideia, presente em ambos os trabalhos, de que o Renascimento inaugura uma nova concepção de subjetividade que vai marcar, guardadas as devidas diferenciações sincrônicas e diacrônicas, toda a modernidade ocidental é de fundamental importância para que se compreenda o papel da formação humanista nos textos autobiográficos de Nabuco e James. confrontando-se com algumas das questões que mobilizaram grande parte dos intelectuais na virada do século XIX para o XX. Os livros escolhidos possuem um caráter marcadamente autobiográfico: Minha formação (1900) narra a Bildung política de Nabuco e congrega textos escritos entre 1893 e 1899, período em que o autor, vivendo no ostracismo que se seguiu à queda do regime monárquico brasileiro, dedicou-se à vida literária; The American scene (1907), por sua vez, é a compilação dos relatos da viagem de James aos Estados Unidos, em 1904, quando retorna a sua pátria de origem, depois de mais de vinte anos de ausência.

A escolha de textos de natureza autobiográfica, pertencentes à fase tardia da obra de cada um dos autores, não é aleatória, uma vez que minha análise partirá, precisamente, de um ponto de convergência em suas biografias: a relação dialética entre a formação humanista europeia e o vínculo sentimental ao país de nascimento. Em outras palavras, interessa-me a relação tensa que é estabelecida, por cada um deles, entre Europa e América. Esta tensão, a que Evaldo Cabral de Mello chama o "dilema do mazombo", informa culturalmente "o descendente de europeu ou reputado como tal, com um pé na América e outro na Europa, e equivocadamente persuadido de que cedo ou tarde, terá de vencer a indecisão, plantando-os ambos de um lado só do oceano." (Mello, 1999Mello, Evaldo Cabral de. (1999). No centenário de Minha Formação. In: Nabuco, Joaquim. Minha Formação. Rio de Janeiro: Topbooks, p. 9-16.: 12). Segundo Mello, tal ambiguidade não foi exclusivamente brasileira ou latino-americana: alguns intelectuais norte-americanos, sobretudo da "costa leste, alguns dos quais entraram para a história literária, como Henry Adams ou Henry James" (Mello, 1999Mello, Evaldo Cabral de. (1999). No centenário de Minha Formação. In: Nabuco, Joaquim. Minha Formação. Rio de Janeiro: Topbooks, p. 9-16.: 12), também enfrentaram tal dilema.2 2 Para um estudo comparado entre as obras de Nabuco e Henry Adams, ver Jaguaribe (1994).

James e Nabuco viveram em comum, não apenas esse dilema, como também o fato de que, enquanto a experiência europeia exerceu um papel fundamental em sua formação, sobretudo no período da juventude, o retorno à pátria, simbólico ou geográfico, veio coroá-la na maturidade. Assim é que Nabuco declara, no famoso capítulo "Atração do mundo", que 1873, data da primeira viagem à Europa, é o ano de sua "metamorfose pessoal, que é em [sua vida] a passagem da crisálida para a borboleta" (Nabuco, 1999Nabuco, Joaquim. (1999). Minha Formação. Rio de Janeiro: Topbooks .: 46), e, ao fim do mesmo capítulo, referindo-se à idade madura, afirma: "Quando, porém, entre a pátria, que é o sentimento, e o mundo, que é o pensamento, vi que a imaginação podia quebrar a estreita fôrma em que estavam a cozer ao sol tropical os meus pequenos debuxos de almas, [...] deixei ir a Europa, a história, a arte, guardando do que é universal só a religião e as letras" (Nabuco, 1999Nabuco, Joaquim. (1999). Minha Formação. Rio de Janeiro: Topbooks .: 51).

Esta última afirmação enuncia a tensão entre os dois polos que se encontram em relação na subjetividade de Nabuco: a formação humanista - universal e intelectual - e a relação com o país - particular e sentimental. Esta tensão é reiterada em diversos momentos, sobretudo quando o autor confessa que, a despeito de toda uma vida dedicada à ação pública, pouco se interessou pela "política propriamente dita, que é a local, a do país, a dos partidos" (Nabuco, 1999Nabuco, Joaquim. (1999). Minha Formação. Rio de Janeiro: Topbooks .: 44). A política que lhe atrai, em contrapartida, escreve-se com "P grande"; trata-se, afirma ele, "da política que é história", na qual se pode procurar "o lado moral" (Nabuco, 1999Nabuco, Joaquim. (1999). Minha Formação. Rio de Janeiro: Topbooks .: 44-45). Daí que seu interesse público e sua paixão política tenham se concentrado, segundo ele próprio, na causa da emancipação dos escravos - causa a um só tempo nacional e universal, através da qual lhe foi possível "ajudar o [seu] país" e "prestar os ombros à [sua] época" (Nabuco, 1999Nabuco, Joaquim. (1999). Minha Formação. Rio de Janeiro: Topbooks .: 154).

Na obra de James, ainda que por caminhos bastante distintos, encontra-se uma tensão semelhante entre sentimento pátrio e tradição humanista europeia. A princípio, pode parecer estranho que um escritor tão cosmopolita - termo que, aplicado a um americano, na segunda metade do século XIX, era sinônimo de "europeizado" - tenha escrito, na maturidade, que "a suprema relação de alguém [...] é a relação com seu próprio país"3 3 As citações retiradas de obras em inglês ou francês foram por mim traduzidas e cotejadas com suas traduções para o português, quando existam. (James, 1993James, Henry. (1993). Collected travel writings: Great Britain and America. Nova York: The Library of America .: 427). Mais estranha ainda esta afirmação deve parecer àquele que, conhecendo a biografia do autor, saiba que ele passou a maior parte de sua vida fora dos Estados Unidos e adquiriu nacionalidade inglesa um ano antes de morrer.4 4 Henry James viveu com os pais e os irmãos, em diversos países europeus, durante quase toda infância, e, após o interregno da adolescência, passado em Massachusetts, retornou à Europa, ainda jovem adulto, fixando-se definitivamente, aos 33 anos, na Inglaterra, onde viveu até sua morte, em 1916. Entretanto, a estranheza se reduz consideravelmente, caso procuremos compreendê-la à luz da própria ficção jamesiana.

A ficção de James é, em grande parte, marcada por aquilo a que seus comentadores costumam aludir como o "tema internacional". Com isto, fazem referência ao fato de que um grande número de suas narrativas desenvolve-se a partir de uma mesma situação: o jovem norte-americano que viaja pela Europa e cujo senso moral, tipicamente americano, passa, por assim dizer, por um "processo civilizador",5 5 Tomo de empréstimo, aqui, a expressão cunhada por Norbert Elias e que dá título a sua obra clássica ([1939] 1994), por considerar que a formação humanista dos personagens ficcionais de Henry James representa metafórica e metonimicamente, no plano individual, o processo civilizador por que passam as sociedades ocidentais. Segundo a sugestão do próprio Elias, "mesmo na sociedade civilizada, nenhum ser humano chega civilizado ao mundo e [...] o processo civilizador individual que ele obrigatoriamente sofre é uma função do processo civilizador social" (Elias, 1994: 15, primeira nota [*]). ao entrar em contato com as tradições milenares, os hábitos, costumes e modos de sociabilidade do Velho Mundo. Os resultados deste processo revelam-se os mais diversos, mas é o processo que importa nas tramas de James, pois ele implica tanto o amadurecimento moral quanto o desenvolvimento da sensibilidade estética do indivíduo.

The American scene completa, portanto, uma espécie de círculo biográfico e narrativo que se inicia com o estabelecimento do jovem James na Europa e com o "tema internacional" em sua ficção. Se os romances, contos e novelas narram a experiência de norte-americanos transformados pelo contato com a cultura europeia, como ocorrera com o próprio autor quando jovem, os relatos narram, por sua vez, a experiência do reencontro de um norte-americano maduro e europeizado com seu país de origem. A ficção guarda afinidades com o gênero dos romances de formação, pois, nas histórias de James, a experiência europeia é o fundamento da Bildung humanística dos norte-americanos. O vínculo com a cultura europeia desenvolve nesses americanos sua "humanidade", i.e., os traços universais de sua subjetividade, ao permitir a integração de tradições milenares à experiência individual. A Bildung só se completa, entretanto, quando o bom filho torna a seu torrão natal. Pois o retorno aos Estados Unidos, narrado em The American scene, renova a relação do narrador com a porção mais particular, subjetiva e individual de sua essência humana.

A síntese entre sentimento pátrio e classicismo humanista está na base, tanto em Nabuco quanto em James, de uma relação bastante peculiar com sua época. Em outras palavras, esta síntese informa sua representação da modernidade belle époque, de modo a colocá-los simultaneamente dentro e fora dela. Dentro, pois seus textos representam, tanto através dos aspectos formais, quanto dos temas e conteúdos, as questões de seu tempo: um tempo em que, parafraseando Alexis de Tocqueville, o passado não mais ilumina o futuro (Tocqueville, 2004Toqueville, Alexis. (2004). Democracy in America. Nova York: The Library of America .: 831). Fora, pois se trata de um tempo em que o sentimento pátrio, aquele que vincula um homem a seu "torrão natal", há muito vinha sendo substituído pelo sentimento nacional, que vincula cidadãos à nação; um tempo de crise da Bildung tradicional, em que um modelo de formação que pretende desenvolver a humanidade do homem em sua totalidade perde o sentido ante a necessidade de especialização profissional e de produtividade.

Para grande parte dos intelectuais europeus deste período, a vida do espírito, tal como cultivada por aquela tradição humanista, apartara-se para sempre da vida cotidiana e só tinha sua sobrevivência garantida em esferas muito particulares e exclusivas da existência. Sobretudo no perímetro das grandes cidades europeias, o cálculo, a mecanização, a velocidade, a precisão, o intelectualismo e o predomínio da quantidade sobre a qualidade, típicos das relações de produção e de consumo no alto capitalismo, penetraram também as relações entre os seres humanos (ver Simmel, 2005Simmel, Georg. (2005). As grandes cidades e a vida do espírito. Mana, 2/11, p. 577-591. : 577-591). Neste mundo, o indivíduo - antes ancorado no passado e nas tradições e, por isto mesmo, de posse do leme de sua própria vida - passava agora a se perceber como uma mera peça de engrenagem na grande máquina social, em relação à qual ele não tinha o menor controle.

Era este o sentimento que informava, de maneira mais ou menos explícita e consciente, os textos filosóficos, sociológicos, médicos, bem como a literatura de ficção do período. O presente, não mais iluminado pelo passado e em relação ao qual o futuro tornara-se imprevisível, transformara-se na jaula de ferro (ver Weber, 2004Weber, Max. (2004). A ética protestante e o "espírito" do capitalismo. São Paulo: Companhia das Letras . : 163-164), em que o cotidiano dos homens fluía em alta velocidade e, ainda assim, monotonamente. "Não temos todos que lutar contra o cotidiano cinzento da vida, contra a mesquinhez, contra a alegria mecanizada, contra a desconfiança?", pergunta-se a personagem de um romance de E. M. Forster, publicado em 1910 (Foster, 2006Foster, Edward Morgan. (2006). Howards end. São Paulo: Globo.: 174). Tal pergunta já havia sido esboçada, em meados do século XIX, em contos de Edgar Allan Poe, Nathaniel Hawthorne e nos poemas de Baudelaire. Não por acaso, o spleen baudelairiano foi traduzido para o alemão por Erich Auerbach como das graue Elend, "a miséria cinzenta" (Auerbach, 2007Auerbach, Erich. (2007). Ensaios de literatura ocidental. São Paulo: Duas Cidades/Ed. 34.: 311). Ao fim deste mesmo século, a cultura se transformava a tal velocidade que, como sugeriu Walter Benjamin, "se reduziram as chances dos fatos exteriores se integrarem à nossa experiência" (Benjamin, 1989Benjamin, Walter. (1989). Sobre alguns temas em Baudelaire. In: Charles Baudelaire: um lírico no auge do capitalismo. São Paulo: Brasiliense, p. 103-149 (Obras escolhidas III).: 106). Trata-se, aqui, da experiência através da qual "entram em conjunção, na memória, certos conteúdos do passado individual, com outros do passado coletivo" (Benjamin, 1989Benjamin, Walter. (1989). Sobre alguns temas em Baudelaire. In: Charles Baudelaire: um lírico no auge do capitalismo. São Paulo: Brasiliense, p. 103-149 (Obras escolhidas III).: 107); experiência que é "matéria da tradição", em oposição à "experiência inóspita, ofuscante da época da industrialização em grande escala" (Benjamin, 1989Benjamin, Walter. (1989). Sobre alguns temas em Baudelaire. In: Charles Baudelaire: um lírico no auge do capitalismo. São Paulo: Brasiliense, p. 103-149 (Obras escolhidas III).: 105). Para grande parte dos intelectuais da belle époque, a verdadeira experiência - ou a "autêntica" experiência, para utilizar uma noção que, segundo Lionel Trilling, sintetiza uma certa configuração da subjetividade moderna que se estabelece no século XIX, baseada em um nexo tenso entre indivíduo e sociedade (ver Trilling, 1972Trilling, Lionel. (1972). Sincerity and Authenticity. Cambridge/Londres: Harvard University Press. ) - poderia ser retomada apenas caso se escapasse ao cotidiano cinzento das grandes cidades europeias, refugiando-se na arte, na literatura, na sociabilidade ou na aventura, como quis Simmel; ou caso se voltasse à natureza em busca de uma existência estetizada e organicizada, como quis Ruskin; ou, ainda, caso se propusesse a transformar o cotidiano revolucionariamente, como quiseram Marx e Engels. Outros ainda tentaram uma fuga literal, abandonando a modernidade europeia em busca da autenticidade que a vida nas Américas ou na África poderia proporcionar, como foi o caso exemplar do jovem Rimbaud.

James e Nabuco fizeram, quando jovens, o movimento inverso. Para eles, aquela experiência que é "matéria da tradição" ainda poderia e deveria ser encontrada no Velho Mundo; mesmo em se tratando de um velho mundo bastante transformado pelas inovações da modernidade. A ambos a Europa ainda parecia concentrar os atributos da civilização e da cultura, não no sentido que lhe é dado pela moderna disciplina antropológica, mas significando a equilibrada combinação entre "pietas e παιδεία" - ou seja, respeito pelos valores morais e aquela graciosa mistura de erudição e urbanidade" (Panofsky, 2009Panofsky, Erwin. (2009). Significado nas artes visuais. São Paulo: Perspectiva. : 20), que constituía, na tradição humanista europeia, o fundamento do humano. Uma metrópole tão moderna quanto Londres na segunda metade do século XIX poderia ainda exercer o papel de difusora de valores humanos universais justamente por estar ancorada em sólidas tradições. Tal paradoxo dificilmente seria encontrado na América.

2 Segundo Nabuco, o Brasil, em particular, e o continente americano, em geral, constituem "um trecho do planeta de que a humanidade não tomou posse; é como um paraíso terrestre antes das primeiras lágrimas do homem, uma espécie de jardim infantil." (Nabuco, 1999Nabuco, Joaquim. (1999). Minha Formação. Rio de Janeiro: Topbooks .: 50). A observação do escritor brasileiro torna-se tanto mais valiosa, para a análise que ora se desenvolve, quanto mais notamos que a identificação do continente americano com o paraíso pré-lapsariano é um topos central na literatura norte-americana do século XIX e o mito do Adão americano, o mito fundador da identidade nacional nos Estados Unidos. Este mito, que identifica o indivíduo da nova sociedade construída pelos colonizadores puritanos da América do Norte com Adão antes da Queda, é contado e recontado por escritores como Walt Whitman, Nathaniel Hawthorne e Herman Melville (ver Lewis, 1975Lewis, Richard W. B. (1975). The American Adam: innocence, tragedy and tradition in the nineteenth century. Chicago/Londres: The University of Chicago Press .). James é herdeiro desta tradição literária e seu último romance publicado em vida, A taça de ouro, é uma alegoria crítica do mito do Adão americano.6 6 Para uma análise deste romance de Henry James e da alegorização do mito adâmico nele presente, ver o capítulo "A era da inocência (o mito)" de minha tese de doutorado (Mello, 2010).

Sem dúvida, ao associarem a América ao Éden pré-lapsariano, Nabuco e James enfatizam elementos distintos do universo edênico e o fazem de acordo com as particularidades de suas respectivas tradições literárias nacionais. Embora Nabuco não se alinhe ao nativismo do movimento romântico brasileiro,7 7 Para Nabuco, os fundamentos civilizacionais da sociedade brasileira deveriam ser buscados na Europa e não na natureza americana ou na cultura dos seus primeiros habitantes. "A nossa imaginação", diz ele, "não pode deixar de ser europeia, isto é, de ser humana; ela não para na Primeira Missa no Brasil, para daí continuar recompondo as tradições dos selvagens que guarneciam nossas praias no momento da descoberta" (1999: 49). Esta discordância de Nabuco com o nativismo romântico refletira-se na polêmica pública que travara com José de Alencar, em sua juventude (ver Coutinho, 1965). ele concebe a América, na esteira dessa tradição romântica, como a "mata virgem" (Nabuco, 1999Nabuco, Joaquim. (1999). Minha Formação. Rio de Janeiro: Topbooks .: 49), a natureza selvagem que predomina, em toda a sua potência e esmagadora beleza, sobre os incipientes avanços civilizatórios. Mas a concebe também como o cenário de sua pátria e de seus vínculos nacionais, o lugar da política - a pequena política, comezinha, local e partidária, com a qual Nabuco diz ter estabelecido uma relação apenas superficial e efêmera - em oposição à grande política, universal, cosmopolita, que concerne à humanidade.

Nas representações da América de Henry James, a ênfase recai, antes, sobre o senso moral dos colonizadores puritanos que conquistaram e subjugaram a wilderness americana, para sobre ela erigir uma sociedade inteiramente nova, do que sobre a natureza conquistada e subjugada.8 8 Uma das maneiras de compreender esta diferença de ênfase é o estudo das distintas expressões do mito do paraíso terrestre e dos correspondentes motivos edênicos no imaginário dos cronistas da colonização anglo-saxã e ibérica, nas distintas latitudes do continente americano. George H. Williams, em seu livro Wilderness and paradise in Christian thought (1962), argumenta que no imaginário dos colonizadores da América do Norte, informado pela religiosidade protestante, o paraíso terrestre deveria ser construído a partir da conquista da natureza e dos selvagens habitantes das terras americanas, e da imposição a eles do Verbo divino. A wilderness americana assumiria, neste contexto, tanto um sentido negativo, de terra selvagem e devastada que não conhece a palavra divina, quanto um sentido positivo de um local que, apesar de vazio, e talvez por este motivo mesmo, foi escolhido por Deus para que nele seja erigido o paraíso terreal. Este duplo sentido da wilderness remontaria a Canaã, terra prometida por Iahweh aos israelitas, aludida no Pentateuco. A famosa interpretação de Max Weber na Ética protestante e o "espírito" do capitalismo, acerca da importância da ideia de conquista do mundo para a glória divina, no protestantismo puritano, é fundamental para o desenvolvimento do argumento de Williams. Sérgio Buarque de Holanda retoma este argumento, no prefácio à segunda edição de Visão do paraíso (2000), e compara o paraíso terrestre "conquistado" dos anglo-saxãos com o paraíso terrestre "encontrado", como dádiva e graça da Providência, que está no centro do imaginário da colonização ibérica do Novo Mundo. Para uma análise mais extensa do argumento destes dois autores, ver o excelente artigo de Robert Wegner (2003). Neste sentido, James se relaciona com a tradição do que se poderia aludir como o romantismo norte-americano, cujo maior expoente foi o filósofo Ralph Waldo Emerson. O ideal emersoniano é aquele do indivíduo cujo senso moral é caracterizado pela inocência de Adão, antes do pecado original; um indivíduo cujo senso moral não tenha sido corrompido por séculos e séculos de história e cuja potência intelectual não tenha sido solapada por uma sobrecarga de conhecimento obsoleto (ver Emerson, 1983Emerson, Ralph Waldo. (1983). Essays & lectures. Nova York: The Library of America.). Conquanto seja extremamente crítico desta perspectiva, James é, sem dúvida alguma, herdeiro direto da tradição que associa a América ao locus por excelência da inocência e a um vazio de história. Mas, ao contrário do que ocorre na perspectiva emersoniana, para James, assim como para seu pai, o filósofo swedenborgiano Henry James Sr., esta é uma associação profundamente negativa. Ambos os James, pai e filho, estavam de acordo quanto ao fato de que o senso moral plenamente inocente aponta, na verdade, para uma condição "pré-moral" e, nas palavras de James Sr., "nada pode, de fato, ser mais distante (exceto de forma puramente imagética) de atributos especificamente humanos [...] do que a escorregadia e atraente condição adâmica" (James Sr., 2009James Sr., Henry. (2009). Christianity the logic of creation. Nova York: Bibliolife. : 120).

Seja como locus da natureza selvagem, seja como locus do senso moral marcado pela inocência, tanto a América de Nabuco quanto a de James são caracterizadas por uma falta. No livro que James escreve sobre a vida e a obra de Nathaniel Hawthorne, encontra-se a famosa lista de "faltas" que, à época do autor de A letra escarlate, marcariam a distância entre os Estados Unidos e a civilização europeia:

Poder-se-ia enumerar os itens da alta civilização, tal como existem em outros países, que se encontram ausentes da textura da vida norte-americana, de modo que se tornaria espantoso descobrir que tenha ainda restado algo. Nenhum Estado, no sentido europeu da palavra, e em realidade praticamente nenhuma nacionalidade específica [national name]. Nenhum soberano, nenhuma corte, nenhuma lealdade pessoal, nenhuma aristocracia, nenhuma igreja, nenhum clero, nenhum exército, nenhum serviço diplomático, nenhum aristocrata rural [country gentleman], nenhum palácio, nenhum castelo, nenhum feudo [manor], nem antigas casas campestres, nem residências paroquiais [parsonages], nenhum chalé revestido de colmos, nenhuma ruína recoberta de hera; nenhuma catedral, nenhuma abadia, nenhuma igreja normanda; nenhuma grande universidade, nem escolas públicas - nenhuma Oxford, nenhuma Eton, nem Harrow; nenhuma literatura, nenhum romance, nenhum museu, nenhuma pintura, nenhuma sociedade política, nenhuma classe esportiva - nenhuma Epson nem Ascot! (James, 2004: 35-352).

O tema da falta dos elementos da "alta civilização" é caro também ao autor de Minha formação, e é esta mesma falta que o leva a afirmar que "as paisagens do Novo Mundo, a floresta amazônica e os pampas argentinos, não valem para [ele] um trecho da Via Appia, uma volta da estrada de Salerno a Amalfi, um pedaço do cáis do Sena à sombra do velho Louvre" (Nabuco, 1999Nabuco, Joaquim. (1999). Minha Formação. Rio de Janeiro: Topbooks .: 49). O que falta à America de Nabuco, bem como à de James, poderia ser sintetizado em uma única palavra: história, i.e., camadas de cultura sedimentadas pela ação do tempo. É na história que se manifestam os "atributos especificamente humanos", de que fala Henry James Sr. Quando Nabuco afirma que a humanidade ainda não tomou posse das paisagens americanas, ele significa por humanidade menos o conjunto dos seres humanos e mais o conjunto de atributos que definem o homem enquanto tal. Nós nos consideramos homens, pois somos dotados do sentimento de humanidade e este sentimento tem fundamentos históricos. "A nossa imaginação", diz Nabuco, "não pode deixar de ser europeia, isto é, de ser humana", pois nós temos com os europeus "o mesmo fundo comum de língua, religião, arte, direito, poesia, os mesmos séculos de civilização acumulada, e, portanto, desde que haja um raio de cultura, a mesma imaginação histórica" (Nabuco, 1999Nabuco, Joaquim. (1999). Minha Formação. Rio de Janeiro: Topbooks .: 49). E mais adiante, Nabuco desenvolve esta ideia da seguinte maneira:

Não quero dizer que haja duas humanidades, a alta e a baixa, e que nós sejamos desta última; talvez a humanidade se renove um dia pelos galhos americanos; mas, no século em que vivemos, o espírito humano, que é um só e terrivelmente centralista, está do outro lado do Atlântico; o Novo Mundo para tudo o que é imaginação estética ou histórica é uma verdadeira solidão, em que aquele espírito se sente tão longe das suas reminiscências, das suas associações de ideias, como se o passado todo da raça humana se lhe tivesse apagado da lembrança e ele devesse balbuciar de novo, soletrar outra vez, como criança, tudo o que aprendeu sob o céu da África..." (Nabuco, 1999Nabuco, Joaquim. (1999). Minha Formação. Rio de Janeiro: Topbooks .: 50).

A solidão que Nabuco associa ao Novo Mundo atinge todo aquele que, como James, experimenta os "prazeres do sentimento histórico" (James, 1993James, Henry. (1993). Collected travel writings: Great Britain and America. Nova York: The Library of America .: 146). É por isto que ambos os autores associam a América à infância da humanidade: como toda criança, o continente americano não possui uma história, a não ser aquela herdada da velha Europa, associada, por sua vez, à maturidade. A falta de imaginação estética, a que Nabuco se refere, é também central nas representações da América de James. Alguns de seus mais importantes comentadores chamaram a atenção para a polarização, na ficção jamesiana, entre os pares Estados Unidos e senso moral, de um lado, e Europa e sensibilidade estética de outro (ver Ozouf, 1998Ozouf, Mona. (1998). La muse démocratique: Henry James ou les pouvoirs du roman. Paris: Calmann-Lévy. ; Winters, 2007Winters, Yvor. (2007). Maule's well, or Henry James and the relation of morals to manners. In: In Defense of Reason. Londres: Routledge & Kegan Paul.).

Há, entretanto, que se atentar para uma importante diferença nos discursos que relacionam a América à falta dos atributos da civilização nos casos de Nabuco e de James, i.e., nos casos do Brasil e dos Estados Unidos, respectivamente. Nos trechos de Minha formação acima citados, o autor projeta para o futuro a possibilidade de se construir uma tradição civilizatória especificamente americana. Para Nabuco, tanto os aspectos culturais que constituem as tradições históricas milenares, quanto aqueles que caracterizam a modernidade, possuem raízes europeias. "Talvez a humanidade se renove um dia pelos galhos americanos", diz ele.9 9 Em 1909, Nabuco escreve a conferência "A parte da América na civilização", como baccalaureate address a ser proferido na cerimônia de formatura da Universidade de Wisconsin. Nessa conferência, ao contrário do que ocorre em Minha formação e textos anteriores de Nabuco, o continente americano parece dar uma contribuição original à civilização: a democracia norte-americana - que se diferencia da inglesa, em particular, e da europeia, em geral, por instituir não apenas a igualdade de condições, como também a igualdade das posições na sociedade, e pela feição particular que lhe é dada pela imigração. Nos Estados Unidos, "a imigração", diz Nabuco, "fez da pátria simples questão de vontade". E continua: "Quando o espírito de liberdade, que fora caracteristicamente anglo-saxônico, se enraizou num país sem tradição monárquica, tomou a forma de democracia, ou de república. Existem, sem dúvida, elementos fundamentalmente ingleses na democracia americana, como existem outros de origem greco-latina. Não se pode quebrar a cadeia que une, através da história, a evolução de uma ideia ou um sentimento. No entanto, a democracia americana é novidade genuína de feitio desconhecido. Nem os antigos a produziram, nem a produziria a Europa" (Nabuco, 2010: 538-539). A contribuição americana, entretanto, é, sobretudo, norte-americana, como declara o autor, ao final do discurso: "Falando da América, quis tomar sempre a parte como o todo e ocupar-me só deste país [os Estados Unidos]. É cedo ainda para estudar o papel que a história reserva à América Latina. Não recebemos ainda ordem de entrar em cena e as peças de Deus são muito longas. Seus atos são séculos" (Nabuco, 2010: 546). Por ora, a América está aquém tanto de uma tradição histórica, quanto está aquém da modernidade. Como observa Maria Alice Rezende de Carvalho, "Nabuco encontraria, porém, nas concepções universalistas da história, uma via de integração da jovem nação brasileira na marcha do mundo. Tornava-nos, assim, uma realidade que transcendia a tosca realidade local" (Carvalho, 2001Carvalho, Maria Alice Rezende de. (2001). Joaquim Nabuco: Minha formação. In: Mota, Lourenço Dantas (org.). Um banquete no Trópico. São Paulo: Ed. Senac, p. 219-236.: 229). A América de Nabuco é uma criança no sentido de que ela se encontra na fase inicial de sua história e, portanto, ainda que embrionariamente, ela faz parte da história.

Em The American scene, a América e, mais particularmente, os Estados Unidos são representados não simplesmente como pertencendo a um estágio menos evoluído na escala civilizacional, mas, sim, em grande medida, como estando fora do perímetro da civilização, tal como ela foi constituída no Velho Mundo europeu, e mesmo fora da história. Voltando à citação retirada do livro sobre Hawthorne, podemos sugerir que, embora a construção de um Estado e de uma nacionalidade específica, bem como de escolas e universidades, de uma literatura nacional e uma sociedade política fosse meramente uma questão de tempo, certos elementos da alta civilização, alguns dos quais compõem o "fundo comum de cultura" que temos com os europeus, não existiram e nunca existirão na América. Se, como James, entendermos que feudos, residências paroquiais, aristocracias de sangue e mesmo antiquíssimos chalés revestidos de colmos integram esse fundo de cultura e de história, somos levados, com ele, a concluir que a América se encontra fora da história.

A explicação para este fato assenta-se na equação entre América e democracia. A democracia é, segundo James, o assunto do qual se fala quando se fala de qualquer assunto que diga respeito à América e aos americanos. A democracia é o elemento que torna coerente as relações entre os elementos que compõem a cena contemporânea nos Estados Unidos. E James é suficientemente tocquevilleano para associar estreitamente democracia e modernidade. O ethos democrático está, na modernidade, ligado à difusão do ideal de um novo homem e uma nova sociedade, plenamente livres das amarras da história e da tradição. Por conseguinte, o traço que mais intensamente caracteriza a virada do século XIX para o XX, qual seja, a velocidade acelerada com que a cultura se transforma, solapando as bases das tradições constituídas na longa duração da história, potencializa-se sobremaneira na sociedade norte-americana. Os relatos são, de um modo geral, fortemente pontuados pela impressão da intensidade das transformações que alteram as paisagens e modos de sociabilidade nos Estados Unidos; transformações que a ausência de sólidas tradições históricas, tais como as que fundamentam as sociedades europeias, torna irrefreáveis a oeste do Atlântico.

A "vontade de crescer" [the will to grow] (James, 1993James, Henry. (1993). Collected travel writings: Great Britain and America. Nova York: The Library of America .: 400) é a expressão pela qual o autor define tais transformações. Ela está fundamentada no velho lugar-comum democrático dos pais fundadores da sociedade norte-americana: a supremacia do presente sobre o passado, a recorrente destruição do passado pelo presente, em nome do futuro. Ela é a reificação do voluntarismo egótico do Adão americano, o ser mítico que vive na estática temporalidade edênica, que não tem passado nem futuro. E, se ela caracteriza a própria modernidade em todo o mundo ocidental, nos Estados Unidos alcança a plenitude, pois está, por assim dizer, em casa. A modernidade americana se encontra, segundo James, para além do processo histórico de modernização, porquanto ela se encontra para além da própria história.

3 Aquém ou além da história e da modernidade histórica, as Américas e os americanos - sobretudo aqueles nos quais a consciência de sua "imaginação europeia" é mais aguda - estão "condenados", nas palavras de Nabuco, "à mais terrível das instabilidades" (Nabuco, 1999Nabuco, Joaquim. (1999). Minha Formação. Rio de Janeiro: Topbooks .: 49). Tal instabilidade explica-se pelo fato de que "na América falta à paisagem, à vida, ao horizonte, à arquitetura, a tudo que nos cerca, o fundo histórico; e que na Europa nos falta a pátria, isto é, a fôrma em que cada um de nós foi vazado ao nascer. De um lado do mar sente-se a ausência do mundo; do outro, a ausência do país" (Nabuco, 1999Nabuco, Joaquim. (1999). Minha Formação. Rio de Janeiro: Topbooks .: 49).

A instabilidade de que fala Nabuco foi enunciada novamente, 36 anos mais tarde, na polêmica afirmação de Sérgio Buarque de Holanda de que "somos ainda hoje uns desterrados em nossa própria terra" (Holanda, 2006Holanda, Sérgio Buarque de. (2006). Raízes do Brasil. São Paulo: Companhia das Letras.: 19). A afirmação foi tida como contraditória por alguns de seus comentadores. No entanto, se tentarmos compreender o sentido mais profundo que Sérgio Buarque imprime a ela, se compreendermos sua sutil ambiguidade, compreenderemos que se trata de uma contradição apenas aparente. Essa compreensão nos é, aqui, útil, pois a afirmação do autor de Raízes do Brasil pode iluminar e ser iluminada pelo sentimento de instabilidade enunciado por Nabuco e presente também na obra de Henry James.

Por que nós, americanos, nos sentimos desterrados em nossa terra? A terra é a nossa terra: estamos ligados a ela por um sentimento de familiaridade e de intimidade; nós a conhecemos e a amamos em sua particularidade e singularidade (que é a nossa), como amamos a um indivíduo naquilo que ele é único. Quando estamos "do outro lado do mar" e sentimos "a ausência do país", este sentimento origina-se da privação deste amor particularizado e individualizado que, em realidade, nós dirigimos a nós mesmos, pois a pátria é "a fôrma em que cada um de nós foi vazado ao nascer". De onde vem, então, o sentimento de desterro, que nos assombra mesmo quando estamos em nossa terra? Ele é fruto da frustração de outro amor, cujo objeto também nos parece familiar, mas não mais de uma familiaridade particularizada e individualizada. Trata-se do amor que nos impulsiona em direção a uma humanidade comum. Este amor é, entretanto, pura aspiração, uma vez que ele está fadado a jamais se realizar por completo. Os objetos de aspiração, nas palavras do poeta alemão Friedrich Schiller, "são aquilo que nós fomos; eles são aquilo que nós devemos ser novamente" (apud Lukács, 1974: 157). Como sugere Georg Lukács, contudo, este "eu" perdido não pode ser reencontrado, pois, na verdade, ele nunca existiu, senão como nossa própria criação, nosso mito de origem (apud Lukács, 1974: 157). Portanto, não basta a Nabuco (ou a James) mudar-se para o lado leste do Atlântico, na esperança de se sentir em casa, de se reencontrar consigo mesmo. Pois "do outro lado do mar", sente-se "a ausência do país": não sendo de fato europeus, nesta pátria mítica que é a Europa, estes americanos de "imaginação europeia" não conseguem particularizar e individualizar sua humanidade.

É curioso como, na correspondência que antecede sua volta aos Estados Unidos, em 1904, James se defende ardentemente contra a "fábula" de seu "desgosto" em relação à América, que se difundia entre seus familiares, amigos e conhecidos (ver Edel, 1996Edel, Leon. (1996). Henry James: A life. Londres: Flamingo.: 589). Contradizendo tal fábula, em carta a uma amiga, James afirma que "a ideia de ver novamente a vida americana, de provar da atmosfera americana, esta é uma visão, uma possibilidade, uma impossibilidade, positivamente romântica" (apud Edel, 1996Edel, Leon. (1996). Henry James: A life. Londres: Flamingo.: 589). Quando fala sobre a ideia de ver e provar novamente a América, ele utiliza dois verbos substantivados, seeing e tasting, que denotam explicitamente o desejo de restabelecer uma relação sensorial, física e pessoal com seu torrão natal. Este é um desejo "romântico", termo que o autor utiliza recorrentemente, com o sentido de sentimental. Tal como para Nabuco, também para James, nós estamos ligados ao nosso país pelo sentimento. O sentimento é, para estes homens, sempre particular, individual, subjetivo. Ver e provar a América novamente é se reconhecer nela; é encontrar a parte mais íntima de si próprio. Este reconhecimento é uma possibilidade, mas também é uma impossibilidade, uma visão. O termo que traduzimos como "visão" é, em inglês, vision, e não sight. Enquanto sight possui uma dimensão mais sensorial, estando ligado à habilidade física da visão, vision possui uma dimensão abstrata, expressa um desejo, uma ambição, um projeto ou mesmo uma fantasia. Para James reencontrar a si mesmo, em sua terra natal, é uma visão que, a um só tempo, pode e não pode se realizar. Ela pode se realizar, na medida em que está vinculada a um sentimento familiar e íntimo, que inevitavelmente se renova ao contato com o país de nascimento. Mas ela não se realiza plenamente, pois a "imaginação europeia", cultivada ao longo de décadas passadas do "outro lado do mar", solapa a imediaticidade do reconhecimento da terra pelo nativo.

Ao desembarcar nos Estados Unidos, em 1904, James começa o processo de superação do sentimento de desterro de que fala Sérgio Buarque - superação que nunca se completa plenamente. A superação requer o reconhecimento de si mesmo em sua própria terra. E para tanto, James se impõe a tarefa de conhecer sua terra. Mas por que alguém sentiria a necessidade de conhecer algo que lhe é familiar? Por que Henry James sente tal necessidade? Na origem desta necessidade se encontra a sensação de instabilidade de que fala Nabuco. Pois se a vida na Europa é, para estes homens, incompleta, uma vez que, lá, lhes falta o país, ela também é incompleta a oeste do Atlântico, pois, aqui, lhes falta o mundo. Se a vida na Europa não dá conta da individualização da humanidade de James e Nabuco, a vida na América não os conduz à humanização de sua individualidade.

Assim é que James afirma, no prefácio a The American scene, sentir-se, nos Estados Unidos, simultaneamente um nativo e um outsider (ver James, 1993James, Henry. (1993). Collected travel writings: Great Britain and America. Nova York: The Library of America .: 353). Esta dupla condição não é simplesmente consequência da distância geográfica e temporal; ela é também fruto da aspiração a se ligar à humanidade, uma humanidade cujo "fundo comum de cultura" é europeu. Tal aspiração não elimina a familiaridade sentimental que o nativo tem com sua terra, mas retira a esta familiaridade o conhecimento imediato, natural e inconsciente - conhecimento análogo ao que Adão e Eva possuíam da natureza edênica, antes de sua expulsão do Paraíso. James deve, então, construir um novo tipo de conhecimento de seu torrão natal; um conhecimento bastante distinto do conhecimento natural e imediato daqueles que - simbolicamente - nunca deixaram sua terra. Para a construção deste novo conhecimento, James acredita que a ambígua condição do nativo-outsider o coloca em uma posição privilegiada. Pois, diz ele, "se tivera tempo de [se] tornar quase tão 'fresco' quanto um estrangeiro inquiridor, não o tivera, por outro lado, o suficiente para deixar de ser, ou ao menos de [se] sentir, como um iniciado nativo." (James, 1993James, Henry. (1993). Collected travel writings: Great Britain and America. Nova York: The Library of America .: 353). O estrangeiro stricto sensu e o nativo que nunca se distanciou, geográfica ou simbolicamente, de seu país são, ambos, incapazes de perceber a complexidade e as ambiguidades da vida americana. O primeiro, porque a falta de familiaridade o impede de ir além de aspectos superficiais e sua percepção tende a formar imagens homogêneas e coerentes do país desconhecido. O segundo, pois o excesso de familiaridade, a ausência de distância, o conhecimento imediato tendem a naturalizar e simplificar contradições e ambiguidades, dissolvendo as complexidades. A vantagem que tem o nativo-outsider em relação a estas duas figuras é a perspectiva. Perspectiva que é construída por meio deste jogo de distância e proximidade. Se estamos a uma distância muito grande de um objeto, não conseguimos enxergar seus detalhes, nuanças e matizes; se estamos muito próximos, não somos capazes de englobar o todo em nosso campo de visão e nos perdemos no emaranhado de detalhes.

É por isso que James se recusa a levar em conta "informações" que podem ser obtidas através de "jornais, relatórios, pesquisas" (James, 1993James, Henry. (1993). Collected travel writings: Great Britain and America. Nova York: The Library of America .: 353), pois informações como estas, por um lado, almejam a um conhecimento objetivo, capaz de formar uma totalidade coerente e, por outro lado, nos afogam numa enxurrada de fragmentos, a que somos incapazes de imprimir qualquer inteligibilidade. James se mostra "impenetrável" com relação às informações e somente "se fia no conjunto de suas impressões" (James, 1993James, Henry. (1993). Collected travel writings: Great Britain and America. Nova York: The Library of America .: 353). As impressões jamesianas são compostas de elementos intuitivos e sentimentais, que têm como fundamento a familiaridade com sua terra, com seu país. Mas elas também são compostas por elementos oriundos de uma determinada experiência da realidade, que apenas é possível através da distância, da separação, do olhar em perspectiva. É, portanto, o sentimento de ser um "desterrado em sua terra" que fornece a perspectiva, que forja este ponto de vista vantajoso e possibilita este novo conhecimento do próprio país.

De um lado do mar, nos falta o mundo; do outro, o país. Para se conhecer o próprio país é, antes, necessário que se conheça o mundo. A separação, o desterro físico, é o primeiro momento neste processo de autoconhecimento e de autoformação. E é dele que vamos tratar agora.

4 1873, ano crucial na vida e na formação de Joaquim Nabuco, é marcado por dois fatos fundamentais: é o ano de sua primeira viagem à Europa e o ano de sua "fixação monárquica" (Nabuco, 1999Nabuco, Joaquim. (1999). Minha Formação. Rio de Janeiro: Topbooks .: 43). Poderíamos dizer que é o ano em que ele atinge todo o esplendor da juventude e, simultaneamente, em que começa a caminhar para a maturidade. É o momento em que a instabilidade do mazombo alcança seu ponto máximo, manifestando-se na intensa volubilidade de interesses, inclinações e ideologias. Mas é também o momento em que ele inicia o processo de transmutação da volubilidade em uma outra qualidade, que o caracterizará fortemente na idade madura: a plasticidade; uma plasticidade exterior, que acompanha uma interioridade estável e serena.

Entre 1871 e 1873, ao menos exteriormente, Nabuco constrói de si um retrato de pura volubilidade. Neste período, suas inclinações políticas "flutuavam [...] entre a monarquia e a república" (Nabuco, 1999Nabuco, Joaquim. (1999). Minha Formação. Rio de Janeiro: Topbooks .: 27) e as literárias falhavam em definir uma direção, uma vez que ele "lia de tudo igualmente" (Nabuco, 1999Nabuco, Joaquim. (1999). Minha Formação. Rio de Janeiro: Topbooks .: 25). "Posso dizer", afirma ele, "que não tinha ideia alguma, porque tinha todas" (Nabuco, 1999Nabuco, Joaquim. (1999). Minha Formação. Rio de Janeiro: Topbooks .: 26). Na primeira viagem à Europa, a volubilidade se manifesta na "ambição de conhecer homens célebres de toda ordem", no desejo de "ver todas as vistas do globo", na aspiração ao "dom da ubiquidade" (Nabuco, 1999Nabuco, Joaquim. (1999). Minha Formação. Rio de Janeiro: Topbooks .: 47). Assumindo para si a qualidade de um aparato tão moderno para a época quanto a "câmara fotográfica" (Nabuco, 1999Nabuco, Joaquim. (1999). Minha Formação. Rio de Janeiro: Topbooks .: 47), Nabuco harmoniza-se com o ritmo acelerado da modernidade belle époque. É neste sentido que Ricardo Benzaquen de Araújo chama a atenção para três características com as quais o autor de Minha formação vai tecendo a imagem de sua juventude: "instabilidade, curiosidade e indecisão" (Araújo, 2004Araújo, Ricardo Benzaquen de. (2004). Através do espelho: subjetividade em OMinha Formação, de Joaquim Nabuco. ORevista Brasileira de Ciências Sociais, 56/19, p. 5-13. ):

Retratando-se como alguém que se deslocava de maneira aparentemente errática, como se apenas vislumbrasse, ou melhor, esbarrasse nos lugares que pretendia visitar, Nabuco mostra-se, consequentemente, incapaz de esboçar um quadro mais nítido e sistemático das suas impressões de viagem. Assim, ele teria se aproximado perigosamente, naquele período, do chamado "homem das multidões", título de um conto de Edgar Allan Poe e principal personagem de uma experiência que marcou profundamente o espírito de algumas das metrópoles do século XIX, experiência que, interpretada de acordo com as sugestões de Simmel, envolvia uma intensificação da vida emocional em função de uma contínua e rápida mudança de estímulos, e que costuma ser resumida pela expressão "vivência de choque" (Araújo, 2004Araújo, Ricardo Benzaquen de. (2004). Através do espelho: subjetividade em OMinha Formação, de Joaquim Nabuco. ORevista Brasileira de Ciências Sociais, 56/19, p. 5-13. ).

Ainda de acordo com a análise de Araújo, é a visita à Inglaterra que marca o ponto de virada da instabilidade juvenil para o caráter mais estável que sua personalidade assume na maturidade. Em contato com a tranquilidade e serenidade que caracterizam a atmosfera da capital britânica, Nabuco sente que "sua curiosidade de peregrinar estava satisfeita, trocada em desejo de ali parar para sempre" (Nabuco, 1999Nabuco, Joaquim. (1999). Minha Formação. Rio de Janeiro: Topbooks .: 85). O caráter inglês é, como o de nenhuma outra nação, capaz de combinar "o espírito de progresso" com a "superstição do costume". O espírito inglês é, por um lado, aquele da conservação dos elementos exteriores da tradição e da transformação de conteúdos essenciais. Mas é também, por outro lado, o da permanência de princípios fundamentais, por meio da flexibilização das bases nas quais estes estão ancorados. Para Nabuco, a superioridade da monarquia inglesa, com seu governo de gabinete, em relação ao sistema presidencial norte-americano, é precisamente sua maleabilidade, sua capacidade de se adaptar rapidamente a situações novas e imprevistas, mantendo, no entanto, princípios fundamentais (ver Nabuco, 1999Nabuco, Joaquim. (1999). Minha Formação. Rio de Janeiro: Topbooks .: 28-37).

Ao longo da narrativa de si, Nabuco parece mimetizar o espírito inglês. Tal qual este, sua subjetividade se faz maleável e adaptável. Na maturidade, isto é evidente; mas este traço já se encontra presente na juventude: sua volubilidade pode ser pensada como uma incipiente plasticidade, algo exterior e superficial, que não chega a atingir seu interior mais profundo, sua essência fundamental. Mesmo no período que antecede sua viagem à Europa, a despeito das itinerâncias literárias e oscilações ideológicas, "politicamente", afirma ele, "o fundo liberal ficou intacto. [...] Liberal eu o era de uma só peça, a minha densidade democrática era máxima" (Nabuco, 1999Nabuco, Joaquim. (1999). Minha Formação. Rio de Janeiro: Topbooks .: 26). Como com o estilo narrativo de uma pessoa, que, segundo ele, se forma muito cedo e se mantém constante, também com a essência da personalidade, "o que se faz mais tarde na madureza é tomar somente o melhor do que se produz, desprezar o restante, cortar as porções fracas, as repetições, tudo o que desafina ou que sobra" (Nabuco, 1999Nabuco, Joaquim. (1999). Minha Formação. Rio de Janeiro: Topbooks .: 28), i.e.: transforma-se plasticamente o que é supérfluo ou exterior e mantém-se o essencial.

A passagem da juventude para a maturidade caracteriza-se, portanto, menos por uma radical transformação, em que a firmeza de caráter substituiria a volubilidade, e mais por uma maior harmonização entre uma interioridade estável e uma exterioridade plástica. Esta harmonização implica, por sua vez, uma outra: entre o sentimento e o pensamento, i.e., entre o país e o mundo. No que concerne ao país, Nabuco é plástico o suficiente, ao lidar com a pequena política, para servir como diplomata o regime republicano poucos anos depois de escrever Minha formação, sem trair a essência de suas inclinações monárquicas. Esta virada plástica em sua carreira já se anunciara, aliás, no último capítulo de Minha formação, onde o autor descreve o exemplo dos homens da geração de seu pai, que serviram ao regime monárquico, mas nunca se colocaram o "dilema entre a monarquia e a pátria, porque a pátria não podia ter rival" (Nabuco, 1999Nabuco, Joaquim. (1999). Minha Formação. Rio de Janeiro: Topbooks .: 217). Esse exemplo do passado abria para Nabuco a possibilidade de voltar a servir à pátria no futuro, independentemente do regime político que a governasse (ver Carvalho, 2001Carvalho, Maria Alice Rezende de. (2001). Joaquim Nabuco: Minha formação. In: Mota, Lourenço Dantas (org.). Um banquete no Trópico. São Paulo: Ed. Senac, p. 219-236.: 221). Isso só seria possível porquanto, segundo ele, o fundamento de sua adesão monárquica podia ser encontrado no liberalismo, "não no sentido passageiro, político, da expressão, mas no seu sentido humano, eterno, e como liberal a aspiração sintética de [sua] vida tinha que ser a de não [se] dissociar, qualquer que fosse sua forma de governo, dos destinos de [seu] país" (Carvalho, 2001Carvalho, Maria Alice Rezende de. (2001). Joaquim Nabuco: Minha formação. In: Mota, Lourenço Dantas (org.). Um banquete no Trópico. São Paulo: Ed. Senac, p. 219-236.: 218). Esse fundamento liberal manteve-se intacto por meio da mais universal das causas nacionais, o abolicionismo.

A devoção à causa abolicionista conduziu, ao longo da vida de Nabuco, o processo de interiorização da curiosidade que, em sua primeira juventude, estivera voltada para todos os personagens, lugares e acontecimentos do mundo e fora o sentimento propulsor da inquietude do caráter juvenil. O embate político pelo fim da escravidão dirige a curiosidade para dentro de si próprio, para a memória de sua infância no Engenho de Massangana, onde o exemplo da caridade cristã dos escravos na relação com seus senhores "decidiu [...] do emprego ulterior de [sua] alma" (Nabuco, 1999Nabuco, Joaquim. (1999). Minha Formação. Rio de Janeiro: Topbooks .: 162), tanto política como religiosamente. "A abolição", declara Nabuco, "pelo seu sopro universal, isolara-me dos partidos, afastara-me de sua esfera contenciosa" e, simultaneamente, "minha esfera tornara-se toda subjetiva" (Nabuco, 1999Nabuco, Joaquim. (1999). Minha Formação. Rio de Janeiro: Topbooks .: 218-219). A "fôrma em que fora vazado ao nascer" acomodou-se, assim, às novas formas em que a experiência europeia, i.e., a experiência do mundo, modelara sua subjetividade.

5 "Eu sinto a ideia de Deus no mais afastado de mim mesmo", escreve Nabuco no famoso capítulo de Minha formação intitulado "Massangana". "O mais afastado de si mesmo" é o ponto de interseção entre uma herança ancestral, que o liga a importantes tradições da humanidade, e os aspectos mais íntimos de sua subjetividade; é, ao mesmo tempo, o "sinal amante e querido de diversas gerações" (Nabuco, 1999Nabuco, Joaquim. (1999). Minha Formação. Rio de Janeiro: Topbooks .: 160) e os símbolos familiares que infundiram sentido em sua pequena existência de criança. A infância é, por excelência, o momento deste encontro entre o particular e o universal, que somente se renovará outra vez na velhice.

É uma semelhante renovação da infância que Henry James experimenta nas primeiras impressões que forma de sua terra natal, em 1904. Essas impressões destoam daquelas que dão o tom mais geral dos relatos e exprimem a velocidade das transformações impulsionadas pela típica "vontade de crescer" americana. As primeiras impressões, ao contrário, referem-se a um "passado que remonta a bem lá atrás; parte de uma cadeia de associações que retrocedia à atmosfera indefinida da extrema juventude". E continua: "A extrema juventude estivera repleta de Nova Iorque, e estava absurdamente descobrindo-a novamente, encontrando-a ao virar de cada esquina, em visões, sons, cheiros, mesmo no caos da confusão e da mudança" (James, 1993James, Henry. (1993). Collected travel writings: Great Britain and America. Nova York: The Library of America .: 357).

Ao contrário do Nabuco da maturidade, entretanto, cuja curiosidade juvenil fora há muito saciada e substituída por uma personalidade serena e estável, o James da maturidade encontra na curiosidade um meio de conhecer novamente sua terra natal e de se reconhecer nela. A curiosidade é justamente o elemento que preserva sua singularidade ante os fenômenos que caracterizam a modernidade urbana da metrópole americana: a "vontade de crescer" e a "grande pressão equalizadora" (James, 1993James, Henry. (1993). Collected travel writings: Great Britain and America. Nova York: The Library of America .: 460) que Nova York exerce sobre seus habitantes. A curiosidade é o elemento que faz vibrar o tenso vínculo entre a distância e o perspectivismo do outsider e a proximidade familiar do nativo. Se, por um lado, os laços afetivos que vinculam o nativo a sua terra permitem que ele enxergue nela beleza e doçura, por outro lado, a distância de seu olhar outsider é capaz de perceber o aniquilamento das singularidades individuais no turbilhão da vida urbana nova-iorquina, sem ser, ele próprio, aniquilado. Como o narrador convalescente de O homem da multidão que, após retornar ao mundo do qual esteve retirado, por longos meses, em função de uma enfermidade, observa-o com renovado e intenso interesse, James, o "ausente restaurado" (James, 1993: 453) à sua cidade natal, também se acha em "um daqueles felizes estados de ânimo que são tão precisamente o inverso do ennui - estados de ânimo de agudo apetite, quando a visão mental se desanuvia [...] e o intelecto, eletrificado, ultrapassa muito sua condição cotidiana" (Poe, 1990Poe, Edgar Allan. (1990). Selected works. Nova York: Gramercy Books.: 240). E o termo através do qual o próprio James define este vivo interesse é curiosidade; a curiosidade com que ele "vibra" (James, 1993James, Henry. (1993). Collected travel writings: Great Britain and America. Nova York: The Library of America .: 353) diante de seu objeto: "era como se, toda minha vida, minha curiosidade houvesse sido maior do que eu sabia. Estes, para uma sensibilidade excitada, são os refinamentos do contato pessoal" (James, 1993James, Henry. (1993). Collected travel writings: Great Britain and America. Nova York: The Library of America .: 362).

A curiosidade de James e a plasticidade de Nabuco constituem os artifícios através dos quais estes mazombos empreendem o retorno simbólico a seus respectivos torrões natais, a suas respectivas Américas. A curiosidade torna possível, para o primeiro, viver em meio à peculiar modernidade norte-americana e representá-la literariamente, preservando sua singularidade. A plasticidade possibilita ao segundo relacionar-se com a pequena política, a política do país, sem com isso esfacelar a essência de sua personalidade ou abrir mão de princípios morais, religiosos e ideológicos fundamentais. Na idade madura ambos alcançam a percepção de que tanto a formação intelectual europeia, quanto a elaboração de vínculos sentimentais com seu país de origem são partes de um só processo, de uma só viagem: a viagem que os aproxima de sua própria humanidade.

NOTAS

  • *
    O presente trabalho foi realizado com o apoio da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES), entidade do Governo brasileiro voltada para a formação de recursos humanos.
  • 1
    A noção de "modelagem da subjetividade" [self fashioning] foi retirada do trabalho de Stephen Greenblatt (1980)Greenblatt, Stephen. (1980). Renaissance self-fashioning. Chicago/Londres: The University of Chicago Press., no qual a análise de textos literários do Renascimento inglês conduz ao argumento de que a concepção de individualidade autodirigida e centrada em uma interioridade coesa, representada pela razão ou consciência, que começa a se constituir nesse período, vem acompanhada da possibilidade de formação, modelagem e transformação da subjetividade pelo indivíduo. Argumento semelhante e complementar é desenvolvido no artigo de Thomas Greene (1968)Greene, Thomas. (1968). The flexibility of the self in Renaissance literature. In: Greene, Thomas; Demetz, Peter & Nelson, Lowry (orgs.). The disciplines of criticism: Essays in literary theory, interpretation and history. New Haven: Yale University Press, p. 241-264., que opõe a noção tomista de habitus a uma concepção de subjetividade fundamentada na ideia de flexibilidade, típica da literatura do Renascimento italiano. A ideia, presente em ambos os trabalhos, de que o Renascimento inaugura uma nova concepção de subjetividade que vai marcar, guardadas as devidas diferenciações sincrônicas e diacrônicas, toda a modernidade ocidental é de fundamental importância para que se compreenda o papel da formação humanista nos textos autobiográficos de Nabuco e James.
  • 2
    Para um estudo comparado entre as obras de Nabuco e Henry Adams, ver Jaguaribe (1994)Jaguaribe, Beatriz. (1994). Autobiografia e nação: Henry Adams e Joaquim Nabuco. In: Caminha, Adolfo et al. (orgs.). Brasil-EUA: antigas e novas perspectivas sobre sociedade e cultura. Rio de Janeiro: Leviatã..
  • 3
    As citações retiradas de obras em inglês ou francês foram por mim traduzidas e cotejadas com suas traduções para o português, quando existam.
  • 4
    Henry James viveu com os pais e os irmãos, em diversos países europeus, durante quase toda infância, e, após o interregno da adolescência, passado em Massachusetts, retornou à Europa, ainda jovem adulto, fixando-se definitivamente, aos 33 anos, na Inglaterra, onde viveu até sua morte, em 1916.
  • 5
    Tomo de empréstimo, aqui, a expressão cunhada por Norbert Elias e que dá título a sua obra clássica ([1939] 1994), por considerar que a formação humanista dos personagens ficcionais de Henry James representa metafórica e metonimicamente, no plano individual, o processo civilizador por que passam as sociedades ocidentais. Segundo a sugestão do próprio Elias, "mesmo na sociedade civilizada, nenhum ser humano chega civilizado ao mundo e [...] o processo civilizador individual que ele obrigatoriamente sofre é uma função do processo civilizador social" (Elias, 1994Elias, Norbert. (1994). O processo civilizador. Rio de Janeiro: Jorge Zahar (vol. 1).: 15, primeira nota [*]).
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    Para uma análise deste romance de Henry James e da alegorização do mito adâmico nele presente, ver o capítulo "A era da inocência (o mito)" de minha tese de doutorado (Mello, 2010Mello, Luiza Larangeira da Silva. (2010). Depois da queda: A representação da cultura nacional norte-americana na obra tardia de Henry James (1904-1907). Tese de Doutorado. Pós-Graduação em História Social da Cultura/Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro.).
  • 7
    Para Nabuco, os fundamentos civilizacionais da sociedade brasileira deveriam ser buscados na Europa e não na natureza americana ou na cultura dos seus primeiros habitantes. "A nossa imaginação", diz ele, "não pode deixar de ser europeia, isto é, de ser humana; ela não para na Primeira Missa no Brasil, para daí continuar recompondo as tradições dos selvagens que guarneciam nossas praias no momento da descoberta" (1999: 49). Esta discordância de Nabuco com o nativismo romântico refletira-se na polêmica pública que travara com José de Alencar, em sua juventude (ver Coutinho, 1965Coutinho, Afrânio. (1965). A polêmica Alencar-Nabuco. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro.).
  • 8
    Uma das maneiras de compreender esta diferença de ênfase é o estudo das distintas expressões do mito do paraíso terrestre e dos correspondentes motivos edênicos no imaginário dos cronistas da colonização anglo-saxã e ibérica, nas distintas latitudes do continente americano. George H. Williams, em seu livro Wilderness and paradise in Christian thought (1962), argumenta que no imaginário dos colonizadores da América do Norte, informado pela religiosidade protestante, o paraíso terrestre deveria ser construído a partir da conquista da natureza e dos selvagens habitantes das terras americanas, e da imposição a eles do Verbo divino. A wilderness americana assumiria, neste contexto, tanto um sentido negativo, de terra selvagem e devastada que não conhece a palavra divina, quanto um sentido positivo de um local que, apesar de vazio, e talvez por este motivo mesmo, foi escolhido por Deus para que nele seja erigido o paraíso terreal. Este duplo sentido da wilderness remontaria a Canaã, terra prometida por Iahweh aos israelitas, aludida no Pentateuco. A famosa interpretação de Max Weber na Ética protestante e o "espírito" do capitalismo, acerca da importância da ideia de conquista do mundo para a glória divina, no protestantismo puritano, é fundamental para o desenvolvimento do argumento de Williams. Sérgio Buarque de Holanda retoma este argumento, no prefácio à segunda edição de Visão do paraíso (2000), e compara o paraíso terrestre "conquistado" dos anglo-saxãos com o paraíso terrestre "encontrado", como dádiva e graça da Providência, que está no centro do imaginário da colonização ibérica do Novo Mundo. Para uma análise mais extensa do argumento destes dois autores, ver o excelente artigo de Robert Wegner (2003)Wegner, Robert. (2003). América, alegria dos homens: uma leitura de Visão do paraíso e de Wilderness and paradise in Christian thought. In: Rocha, João Cezar de Castro (org.). Nenhum Brasil existe - pequena enciclopédia. Rio de Janeiro: Topbooks ..
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    Em 1909, Nabuco escreve a conferência "A parte da América na civilização", como baccalaureate address a ser proferido na cerimônia de formatura da Universidade de Wisconsin. Nessa conferência, ao contrário do que ocorre em Minha formação e textos anteriores de Nabuco, o continente americano parece dar uma contribuição original à civilização: a democracia norte-americana - que se diferencia da inglesa, em particular, e da europeia, em geral, por instituir não apenas a igualdade de condições, como também a igualdade das posições na sociedade, e pela feição particular que lhe é dada pela imigração. Nos Estados Unidos, "a imigração", diz Nabuco, "fez da pátria simples questão de vontade". E continua: "Quando o espírito de liberdade, que fora caracteristicamente anglo-saxônico, se enraizou num país sem tradição monárquica, tomou a forma de democracia, ou de república. Existem, sem dúvida, elementos fundamentalmente ingleses na democracia americana, como existem outros de origem greco-latina. Não se pode quebrar a cadeia que une, através da história, a evolução de uma ideia ou um sentimento. No entanto, a democracia americana é novidade genuína de feitio desconhecido. Nem os antigos a produziram, nem a produziria a Europa" (Nabuco, 2010Nabuco, Joaquim. (2010). A parte da América na civilização. In: Mello, Evaldo Cabral de (org.). Joaquim Nabuco: essencial. São Paulo: Penguin Classics/Companhia das Letras, p. 531-547.: 538-539). A contribuição americana, entretanto, é, sobretudo, norte-americana, como declara o autor, ao final do discurso: "Falando da América, quis tomar sempre a parte como o todo e ocupar-me só deste país [os Estados Unidos]. É cedo ainda para estudar o papel que a história reserva à América Latina. Não recebemos ainda ordem de entrar em cena e as peças de Deus são muito longas. Seus atos são séculos" (Nabuco, 2010Nabuco, Joaquim. (2010). A parte da América na civilização. In: Mello, Evaldo Cabral de (org.). Joaquim Nabuco: essencial. São Paulo: Penguin Classics/Companhia das Letras, p. 531-547.: 546).

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Jan-Jun 2013

Histórico

  • Recebido
    15 Dez 2011
  • Aceito
    13 Mar 2012
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