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MÁSCARAS COVID-19 E OUTRAS MÁSCARAS

COVID-19 AND OTHER MASKS

Resumo

Esta contribuição visa examinar alguns dos significados das máscaras covid-19 à luz da reflexão antropológica sobre máscaras. Argumenta que o uso da máscara covid-19 tem como consequência involuntária uma sinalização ra- dical da suspensão do corpo como instância principal do relacionamento social. Aborda também as guerras culturais travadas em torno desse uso.

Palavras-chave
Máscaras covid-19; laço social; anonimato

Abstract

This paper seeks to examine the meanings of covid-19 masks from the perspective of the anthropological discussion of masks. It argues that the use of covid-19 masks has as its involuntary consequence a radical suspension of the body as an important instance of social relationships. It also addresses the cultural wars that surround this use.

Keywords
Covid-19 masks; social relations; anonymity

Podemos reconhecer na máscara – abordada a partir de uma perspectiva cross cultural – um conjunto de sentidos. Um deles prende-se a sua capacidade de presentificação de entidades não humanas – geralmente entidades espirituais – por intermédio de personagens mascarados. Estes são percebidos como sendo as próprias entidades espirituais, que se fazem assim presentes. É esse o significado de muitas máscaras em diversas sociedades tradicionais, da Papua-Nova Guiné à Amazônia ou à África. Um segundo significado que muitas máscaras assumem é um significado não tanto de presentificação, mas de representação. É o que se passa com máscaras que representam entidades – humanas, animais, personagens de comics etc. – que tanto os mascarados como sua audiência sabem que são representações; mais ou menos conseguidas, com maior ou menor capacidade de criar a ilusão de uma outra presença, mas sempre representações. É esse o caso de muitas máscaras de carnaval ou, para dar um exemplo mais recente, de máscaras usadas em eventos de cosplay. Finalmente, as máscaras têm um sentido de mera ocultação da identidade – mais evidente nas máscaras venezianas ou em máscaras mais ou menos neutras de carnaval.

Pode-se argumentar que nas sociedades do Norte global, a máscara perdeu generalizadamente o seu valor de presentificação, mesmo em comunidades onde podemos presumir que outrora tiveram esse valor. É o que se passa em Portugal, com as máscaras associadas ao ciclo dos 12 dias, estudadas por an- tropólogos como Benjamim Pereira (1973)Pereira, Benjamim. (1973). Máscaras portuguesas. Lisboa: Junta de Investigações do Ultramar., Paula Godinho (2010)Godinho, Paula. (2010). Festas de inverno no nordeste de Portugal. Património, mercantilização e aporias da “cultura popular”. Castro Verde: 100Luz., Paulo Raposo (2010)Raposo, Paulo. (2010). Por detrás da máscara. Ensaio de antropologia da performance sobre os caretos de Podence. Lisboa: Instituto dos Museus e da Conservação. ou Miguel Vale de Almeida (2006)Almeida, Miguel Vale. (2006). Quando a máscara esconde uma mulher. In: Rituais de inverno com máscaras. Bragança: Museu do Abade do Baçal, p. 61-74.. É provável que essas máscaras, como sugeriu Benjamim Pereira (1973)Pereira, Benjamim. (1973). Máscaras portuguesas. Lisboa: Junta de Investigações do Ultramar., tenham tido originariamente um sentido de presentificação, que, entretanto, perderam, oscilando hoje entre a representação e a mera ocultação da identidade.

NOVAS MÁSCARAS: A REPRESENTAÇÃO DE VALORES

Simultaneamente, têm surgido novos tipos de máscaras que alargaram o campo das suas virtualidades representativas. É o que se passa com a máscara de Guy Fawkes tal como foi adotada pelo movimento Anonymous. Guy Fawkes foi um católico inglês que esteve envolvido, em 1605, numa conspiração contra Jaime I, o então rei (protestante) da Inglaterra. A conspiração foi descoberta a 5 de novembro, e três meses depois Guy Fawkes foi executado. A comemoração da descoberta da conspiração deu origem, na Inglaterra, à noite de Guy Fawkes, marcada pela queima da sua efígie em fogueiras para isso erguidas. Gradualmente, essas comemorações foram perdendo terreno, mas a partir de 2006 – na sequência da publicação da novela gráfica V for Vendetta, de Alan Moore e David Lloyd – Guy Fawkes ganhou uma “segunda vida”, como máscara emblemática do movimento Anonymous. No quadro de manifestações e outras ações de rua promovidas pelo movimento, a máscara, além do seu eventual valor de ocultação da identidade – os manifestantes podem não querer ser identificados –, ganhou o sentido de uma máscara de representação. Só que esse sentido, remete tanto a um personagem histórico quanto a um conjunto de ideias e valores abstratos: a revolução, o anticapitalismo. As virtualidades das máscaras ganharam nesse caso – como no caso das máscaras arco-íris utilizadas em paradas de orgulho LGBT – um novo sentido representacional.

Apesar dos três sentidos que podem ter (presentificação, representação, ocultação da identidade), as máscaras têm, entretanto, aspetos comuns. Entre eles conta-se, por um lado, a momentânea suspensão dos signos da identidade pessoal dos mascarados. E conta-se, por outro lado, a associação das máscaras a eventos sob a forma de ajuntamentos festivos ou reivindicativos em que o relacionamento social ou a afirmação da identidade de grupos é um dos aspetos relevantes,

A COVID-19 E A CORPORALIDADE DO SOCIAL

É talvez a partir desse quadro que pode ser interessante analisar as máscaras sanitárias associadas à covid-19. Elas começam por ser diferentes de outras máscaras porque são utilitárias, usadas com o objetivo de evitar a transmissão interpessoal do vírus. Ao mesmo tempo, porém, recuperam, involuntariamente, esses dois traços comuns que podemos reconhecer às máscaras.

De fato, a covid-19 teve um conjunto de impactos sobre o relacionamento social. O confinamento foi um confinamento das relações sociais, seja no registro de pesquisa | joão leal 159 nível dos relacionamentos interpessoais – à maneira do Goffman (1956)Goffman, Erving. (1956). The presentation of self in everyday life. Edinburgh: Edinburgh University. de A apresentação do eu na vida quotidiana –, seja no nível dos pequenos e grandes ajuntamentos festivos sobre os quais repousa a produção e a (re)produção de grupos – à la Durkheim (1912)Durkheim, Émile. (1912). Les formes élémentaires de la vie religieuse. Paris: F. Alcan. em Formas elementares da vida religiosa –, seja no nível dos eventos reivindicativos “de classe” – ao modo de Marx e Engels (1848)Marx, Karl & Engels, Frederick. (1848). Manifest der Kommunistischen Partei. London: The Workers’ Educational Association. no Manifesto do Partido Comunista.

Esse confinamento incidiu com particular força sobre um conjunto de convenções culturais que – tomando o caso da sociedade portuguesa – rodeiam o relacionamento social: os beijos, os abraços, os apertos de mão, a pancadinha nas costas, a proximidade física entre as pessoas. Esta última em particular, como indicou Durkheim, é central em eventos festivos (e também, acrescento eu, em ações reivindicativas). Em qualquer caso, essas convenções têm no corpo a sua instância principal. Foi essa corporalidade do social que ficou em suspenso. Não é que certos tipos de relacionamento social tenham sido eles mesmos suspensos – muitos migraram para o ciberespaço –, mas a sua expressão corporal foi momentaneamente posta em causa.

A máscara covid-19, usada como uma das formas principais de atenuar a transmissão do vírus, tem como consequência involuntária uma sinalização ainda mais radical dessa suspensão do corpo como instância principal do relacionamento social. Não são só os gestos, mas o rosto e a sua capacidade expressiva – de emoções e sentimentos sobre os quais repousam as sociabilidades – ficam confinados. A própria identidade da pessoa fica suspensa ou, nos casos em que as pessoas se conhecem, meio oculta. De alguma forma, as máscaras alternativas às simples máscaras cirúrgicas – pretas, de cores que podem coincidir com a da roupa, com arcos-íris ou com motivos do patrimônio nacional – tentam contrariar essa lógica despersonalizadora da máscara sanitária.

O que, entretanto, é também relevante nas máscaras covid-19 é o modo como podemos encará-las à luz de uma lógica de representação, se considerarmos que essa lógica se estende hoje, como sugeri, a ideias e sistemas de valor. O uso da máscara covid-19 transmite valores que têm sido centrais no combate à pandemia: a segurança própria e alheia, a preocupação com os outros, o civismo, as pessoas antes da “economia”. Usar a máscara é uma forma de exprimir a adesão a esse conjunto de ideias.

Por isso, em vários eventos reivindicativos que têm contrariado a lógica da suspensão do social – desde algumas manifestações do Primeiro de Maio promovidas por centrais sindicais europeias (como em Lisboa) até as manifestações desencadeadas pelo assassinato de George Floyd –, o uso da máscara se tornou obrigatório (ou altamente aconselhado). É também por isso, inversamente, que certas personalidades políticas, como Trump e Bolsonaro, ou muitos dos seus apoiadores, fazem questão de não usar a máscara covid-19 (bem como em não cumprir outras normas de distanciamento social): não só porque a sua atitude é de negação da amplitude e dos riscos da atual pandemia, mas também porque o não uso da máscara é para eles um instrumento de uma guerra cultural contra os valores que a máscara covid-19 representa.

REFERÊNCIAS

  • Almeida, Miguel Vale. (2006). Quando a máscara esconde uma mulher. In: Rituais de inverno com máscaras Bragança: Museu do Abade do Baçal, p. 61-74.
  • Durkheim, Émile. (1912). Les formes élémentaires de la vie religieuse Paris: F. Alcan.
  • Godinho, Paula. (2010). Festas de inverno no nordeste de Portugal. Património, mercantilização e aporias da “cultura popular”. Castro Verde: 100Luz.
  • Goffman, Erving. (1956). The presentation of self in everyday life Edinburgh: Edinburgh University.
  • Marx, Karl & Engels, Frederick. (1848). Manifest der Kommunistischen Partei London: The Workers’ Educational Association.
  • Pereira, Benjamim. (1973). Máscaras portuguesas Lisboa: Junta de Investigações do Ultramar.
  • Raposo, Paulo. (2010). Por detrás da máscara. Ensaio de antropologia da performance sobre os caretos de Podence Lisboa: Instituto dos Museus e da Conservação.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    27 Set 2021
  • Data do Fascículo
    Ago 2021

Histórico

  • Recebido
    04 Nov 2020
  • Aceito
    06 Maio 2021
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