Resumo
O artigo destaca a importância de canções da música pop que ultrapassam os limites do universo pasteurizador e comercial da indústria cultural. Nesse sentido, desenvolve uma crítica às concepções estéticas de Theodor Adorno que atribuía à música popular características de regressão espiritual para as grandes massas admiradoras dessas trilhas sonoras. O texto atualiza discussões sobre a indústria cultural e assimila contribuições de estudiosos que sugerem métodos de interpretação da canção popular pela valorização da inovação musical. Na produção desses argumentos, o artigo inclui uma digressão sobre a música de Leonard Cohen e de Lou Reed.
Palavras-chave:
Música pop; Indústria cultural; Canção popular; Inovação musical; Entretenimento
Abstract
The article highlights the importance of pop music songs that go beyond the limits of the pasteurizing and commercial universe of the cultural industry. In this sense, it develops a critique of Theodor Adorno’s aesthetic conceptions, which attributed to popular music characteristics of spiritual regression for the great masses that admired these soundtracks. The text updates discussions on the cultural industry and assimilates contributions from scholars who suggest methods of interpreting popular songs by valuing musical innovation. In producing these arguments, the article includes a digression on the music of Leonard Cohen and Lou Reed.
Keywords:
Pop music; Cultural industry; Popular song; Musical innovation; Entertainment
Rock and roll, afinal, é a arte de tornar o lugar comum algo revelador. Greil Marcus (2016).
Este artigo visa destacar a importância de canções da música pop que ultrapassam os limites do universo pasteurizador e comercial da indústria cultural. “Pop”, de popular, de fato está referido muito mais ao consumo da música produzida pela indústria do que às obras gestadas por artistas ou grupos em uma dada inserção ou experiência social. A música pop, realizada por profissionais, gravada em estúdios e destinada a grandes vendagens, não se confunde com a “cultura popular”, aquela “feita pelo povo”, ou surgida na interação direta entre os participantes em uma criação cuja expressividade não aspira atingir primordialmente o mercado. No entanto, tais distinções não devem ser tomadas de forma inequívoca ou exclusiva, como bem mostra Luiz Tatit ao acentuar, por exemplo, que a canção brasileira surgida no século XX “veio ao encontro do anseio de um vasto setor da população que sempre se caracterizou por desenvolver práticas ágrafas” e, importante ressaltar, se definiu como expressão artística da “porção da fala que merece ser gravada” em seu “registro técnico”, isto é, nas condições industriais dessa reprodução (Tatit, 2016: 44).
Nesse campo, nem tudo é diluição ou contribui para a regressão espiritual das grandes massas que consomem seus produtos, como acreditava Theodor Adorno. Apesar da predominância da vasta coleção de quinquilharias ofertadas pela indústria cultural, obras esteticamente relevantes encontram lugar nas preferências dos ouvintes com repercussões no ambiente e na circulação dos gostos musicais. Fazer sonhar através das canções pode ser um clichê, mas o gosto do público amante da música popular não merece ser igualado à assimilação de qualidades artísticas pobres e ao entretenimento fácil, quando as possibilidades abertas pelo avanço de linguagens musicais ultrapassam o conforto do já conhecido. O argumento de que as inovações e a inserção de elementos de vanguarda na música popular acabam diluídas em favor do giro da roda do dinheiro não cancela seus efeitos culturais, assim como suas extensões no misterioso trabalho da memória, na sensibilidade e na experiência existencial daqueles que se deixam tocar por melodias, poesias, vozes e instrumentos ouvidos presencialmente ou através de algum dispositivo de reprodução sonora.
Theodor Adorno escreveu que “a banalidade da atual música ligeira, implacavelmente controlada devido à vendagem, marca a ferro e fogo o que há de decisivo em sua fisionomia: o vulgar” (Adorno, 2017: 95-96). Tal juízo esteve ancorado na ideia de que a massificação do consumo de objetos artísticos pelo cinema, rádio, revistas, indústria fonográfica e publicidade produzia alienação. Na música popular, segundo Adorno, distração, entretenimento e relaxamento surgiam como compensação ao dispêndio de energias na incessante e frustrante atividade laboral: “a diversão favorece a resignação, que nela quer se esquecer” (Adorno e Horkheimer, 1985: 133), como se lê em Dialética do esclarecimento. Desse ponto de vista, o gênero musical estaria cativo dos padrões “familiares”, aqueles facilmente reconhecíveis pelas plateias, em fórmulas de aceitação prévia pela repetição do mesmo. A estandardização das canções e dos hits não proporcionavam a introdução do novo em uma experiência da arte destituída da “promessa de felicidade”, entendida como dimensão crítica postulante da liberdade, felicidade e engrandecimento espiritual remetidos ao futuro diante das repressões do presente.
A música dodecafônica de Schoenberg e o teatro de Beckett figuravam entre as preferências de Adorno, obras cujo hermetismo não se prestava à comercialização homogeneizadora e instigava a recepção das plateias a um entendimento mais elevado das linguagens artísticas. Ainda assim, para o hipotético futuro, é incerta a imagem de que tais aptidões se confirmariam de maneira disseminada nas grandes massas. O valor da crítica de Adorno, amplamente reconhecido, foi ter elaborado um pensamento de tensão, voltado para o “vir a ser”, pelo questionamento dos limites engendrados no presente. No entanto, a criatividade dos artistas nem sempre esteve submetida aos ditames dos controladores da produção, com a correlata assimilação “resignada” do público aos artifícios acionados pela indústria. Muita coisa fica de fora quando não se exercita a análise de obras que caem no gosto popular ou que são sumarizadas como um seleto refugo cuja riqueza se vê prisioneira de uma lógica sistêmica inescapável. A degradação do gosto na música popular não é um fenômeno definitivo diante da abrangência, concebida sem rachaduras, da indústria cultural.
Evidentemente a reprodução em série envolve a padronização e a “estandardização” (Adorno, 1986: 121-122) das canções com a imposição de hábitos de audição. No entanto, segundo Tatit, “não se trata apenas de fabricação de gosto” e dos “excessos eufóricos ou românticos divulgados no grande mercado musical”, quando se tem em mente que “dos incontáveis empreendimentos associados a grupos e artistas, somente alguns vingam por encontrar respaldo no anseio popular” (Tatit, 2016: 56):
Segundo o Tropicalismo, precisamos de todas as dicções - comerciais ou não comerciais - para que a linguagem funcione em sua plenitude. Caetano Veloso e Gilberto Gil, representantes incontestáveis da canção “de qualidade”, jamais deixaram de flertar com a música comercial e, de quando em quando, promovem um rico intercâmbio entre as diferentes faixas de consumo (Tatit, 2016: 56).
O exemplo do Tropicalismo, movimento cultural promovido por artistas intelectuais, trouxe inovações decisivas nas linguagens sonoras e poéticas, em amálgama das fontes musicais brasileiras, a incorporação da explosão do rock e qualidade literária conferida às canções. Sob a inspiração da Antropofagia e da Semana de Arte Moderna de 1922, o Tropicalismo buscou uma linguagem singular e contemporânea do Brasil que continha “uma crítica alegre ou uma alegria crítica do Brasil” (Duarte, 2018: 13), com nítida intervenção no debate cultural e político da época. Seus cantores e compositores lançaram-se no mercado, nos programas de televisão (com destaque para o programa do Chacrinha), nos festivais de música, obtiveram grande repercussão na mídia em geral e bons números nas vendagens de discos. Ao se aventurarem nos meandros da indústria cultural, os tropicalistas alcançaram aceitação de massa e difundiram elementos artísticos de vanguarda na música popular, forçando os limites da lógica comercial regressiva e homogeneizadora. Na conjugação entre o erudito e o popular, o movimento cultural trazia uma visão crítica do processo de modernização do Brasil e, segundo Duarte, “o Tropicalismo foi uma vanguarda estética na música popular - fato raro, se não único, no mundo - exposta ao enfrentamento político e social de sua época. O disco Tropicália ou Panis et circensis foi seu principal resultado” (Duarte, 2018: 108). O consumo alienante não é uma lei de ferro na música popular.
Não é incomum que cantores e compositores tenham alcançado o reconhecimento mais alto no mundo das artes. Em 2019, Chico Buarque foi condecorado com o Prêmio Camões, o mais importante da literatura em português. Em 2016, a Academia Sueca conferiu a Bob Dylan o Prêmio Nobel de Literatura. Patti Smith, cantora e compositora inicialmente vinculada à música punk e posteriormente baladista de sucesso, é uma ficcionista com livros publicados internacionalmente, inclusive no Brasil. Em 2011, Leonard Cohen recebeu o Prêmio Príncipe das Astúrias em Literatura na Espanha e Arnaldo Antunes, ex-integrante das bandas Titãs e Tribalistas, conquistou o Prêmio Jabuti em 1992 na categoria Poesia. É duvidoso separar as letras das canções do conjunto das obras que mereceram tais honrarias.
“Hallelujah”, sucesso mundial de Leonard Cohen, levou quatro anos para ser finalizada, algo que não corresponde às demandas vorazes da indústria fonográfica. “Tatuagem”, de Chico Buarque, tem uma letra que não é exatamente uma amenidade. O jogo de palavras das canções de Arnaldo Antunes tem nítida influência dos concretistas (a passagem dos Titãs, “polícia pra quem gosta de polícia”, é inesquecível) e as imagens de Dylan fizeram a América se deparar com as vicissitudes de sua vida moral. Essas composições não perderam seus conteúdos por força do comércio e dos lucros, nem contribuíram para o amortecimento das consciências, apesar da ascendência e do domínio da indústria cultural na fabricação de inutilidades para o espírito.
INDÚSTRIA CULTURAL, OUTRAS REFLEXÕES
Segundo Zygmunt Bauman, o acesso diferenciado a bens espirituais deixou de funcionar como termômetro das estratificações e divisões da sociedade. As preferências de gosto cultural não mais se restringem a elementos de distinção, segregação e manifestação de pertencimento de classe, como apontou pioneiramente Pierre Bourdieu em La distinction. Atualmente a cultura está referida ao mercado e ao consumo. A afirmação está em consonância com seu diagnóstico da sociedade atual como “modernidade líquida”, cuja dinâmica nuclear está no fato de que “nenhuma das formas consecutivas da vida social é capaz de manter seu aspecto por muito tempo” (Bauman, 2013: 16). Nas atuais configurações institucionais, “produzir, semear e plantar novos desejos e necessidades” adaptáveis a mudanças constantes (Bauman, 2013: 18) resulta na criação de engenhos e artifícios sucessivamente renovados para a satisfação de apetites culturais, em que há de tudo um pouco para todos no mercado, desde a produção mais elaborada às mixarias da arte: “Seria possível dizer que ela [a cultura] serve nem tanto às estratificações e divisões da sociedade, mas a um mercado de consumo orientado para a rotatividade” (Bauman, 2013: 18). Para tratar o fenômeno, Bauman reproduz as sugestões de Stephen Fry, conhecido ator, roteirista e apresentador do programa QI da tevê britânica BBC e voz acatada na circulação de opiniões e estilos da sociedade inglesa:
Bem, as pessoas podem ser loucas por tudo que é digital e ainda assim ler livros, podem frequentar a ópera, assistir a uma partida de críquete e reservar bilhetes para o Led Zeppelin sem por isso se segmentarem... Gosta de comida tailandesa? Mas o que há de errado com a italiana? Espere aí,... calma. Gosto das duas. Sim. Isso é possível. Posso gostar de rúgbi e dos musicais de Stephen Sondheim. Do gótico vitoriano e das instalações de Damien Hirst. De Herb Alpert com sua Tijuana Brass e das peças para piano de Hindemith. Dos hinos ingleses e de Richard Dawkins. Das primeiras edições de Norman Douglas e de iPods, sinuca, dardos e balé [...] (Bauman, 2013: 8).
Nesse painel de preferências, Bauman percebe “aqueles que consomem de maneira onívora um amplo espectro de formas de arte, tanto populares quanto intelectualizadas” (Bauman, 2013: 8), atividade que torna o consumo de cultura desprovido de seletividade expressiva. A palavra de ordem dos “onívoros” é “Não seja enjoado, não seja exigente” ou ainda “consuma mais”. A distinção, estabelecida e permanente, não mais se realiza através de acessos diferenciados a bens culturais e da consequente hierarquização entre o gosto refinado e o gosto vulgar. Há um apagamento das fronteiras entre a cultura de elite e a cultura de massa, em que se conjuga Led Zeppelin e Hindemith, futebol e Richard Dawkins, ou, se quisermos, Heitor Villa-Lobos, João Guimarães Rosa, Tom Jobim e Anitta.
Em seus estudos seminais sobre estética, Theodor Adorno destinava um papel relevante às vanguardas diante da estereotipia, da atrofia da imaginação e da espontaneidade promovidas pela indústria cultural, com o consequente embotamento intelectual na satisfação das necessidades “regressivas” das massas. (Adorno, 1985: 119). A produção em série de mercadorias culturais acentuava o acesso diferenciado das classes sociais às aquisições do que era relevante na arte e demarcava a separação entre cultura de elite e cultura de massa:
A arte séria recusou-se àqueles para quem as necessidades e a pressão da vida fizeram da seriedade um escárnio e que têm todos os motivos para ficarem contentes quando podem usar como simples passatempo o tempo que não passam junto às máquinas. A arte leve acompanhou a arte autônoma como sombra. Ela é a má consciência social da arte séria (Adorno e Horkheimer, 1985: 127).
Segundo Bauman, na atualidade o “elevado” e o “vulgar” estão imiscuídos, com a interpenetração das linguagens artísticas disponíveis no mercado a um largo contingente de interessados. A colonização exercida pela indústria cultural na “modernidade líquida” se opera pela criação permanente de necessidades, caracterizadas pelo definhamento prematuro e a ativação subsequente de novos desejos:
A nossa é uma sociedade de consumidores, em que a cultura, em comum com o resto do mundo por eles vivenciado, se manifesta como arsenal de artigos destinados ao consumo, todos competindo pela atenção, insustentavelmente passageira e distraída, dos potenciais clientes, todos tentando prender essa atenção por um período maior que a duração de uma piscadela. Como já observamos, ela afasta todos os rígidos padrões e exigências, aceita todos os gostos com imparcialidade e sem uma preferência unívoca, com “flexibilidade” de predileções (o termo politicamente correto com que hoje se designa a falta de coragem), com impermanência e inconsequência da escolha (Bauman, 2013: 18).
O consumo “onívoro” indica compradores que colecionam experiências e sensações e a “flexibilidade” das predileções deriva para o consumo “passageiro” e “distraído”, compatível com a autoafirmação do indivíduo e a natureza de suas escolhas:
Pode-se dizer que, em tempos líquido-modernos, a cultura (e, de modo mais particular, embora não exclusivo, sua esfera artística) é modelada para se ajustar à liberdade individual de escolha e à responsabilidade, igualmente individual, por essa escolha; e que sua função é garantir que a escolha seja e continue a ser uma necessidade e um dever inevitável da vida, enquanto a responsabilidade pela escolha e suas consequências permaneçam onde foram colocadas pela condição humana líquido-moderna - sobre os ombros do indivíduo, agora nomeado de gerente principal da “política da vida”, e seu único chefe executivo (Bauman, 2013: 17)
Os conselhos de Stephen Fry celebram as flutuações do gosto dos consumidores e a liberdade de expansão do gosto nessa pletora de aquisições. Em contraste com a atenção “passageira” e “distraída”, Bauman remete a Kafka e Camus:
Em outras palavras, a arte de Kafka está em evitar a tentação de abarcar o que é impossível abarcar e em fechar questões fadadas a permanecer para sempre em aberto, a nos intrigar e enervar - portanto, nunca parar de questionar e provocar o leitor, ao mesmo tempo que estimula e aumenta seus esforços para repensar. Graças a essa peculiaridade, as criações de Kafka não morrem nunca. Gostaria até de sugerir que as controvérsias e polêmicas que essas criações continuam a provocar são o exemplo mais próximo que se pode conceber do sonho dos alquimistas com uma “pedra filosofal” da qual se poderia extrair o “elixir da vida”, para todo o sempre. Em seu retrato de Kafka, Camus esboçou o modelo de todos os pensamentos imortais: a marca registrada de todos os grandes pensadores, inclusive ele mesmo (Bauman, 2011: 219).
A literatura de Kafka e de Camus em nada enseja uma aproximação passageira, que não comporta o consumo “onívoro” por solicitar elaboração densa. Mas o aceno às grandes obras de caráter universal torna a crítica de Bauman parcial, pois há uma vasta produção estética que não se enquadra nessa categoria especial e, no entanto, não se presta à superficialidade dispersiva e acumuladora. Tal fato encaminha a discussão para os critérios de avaliação da qualidade dos produtos culturais em um mercado de massas, tendo em vista o esmaecimento das fronteiras entre o erudito e o popular.
Estudioso da obra de Adorno, Fredric Jameson trata a questão considerando as mudanças institucionais ocorridas nas últimas décadas. Primeiramente, revê o conceito de “indústria cultural” no contexto atual, onde a mídia e a publicidade fazem uso de diversas linguagens artísticas para induzir a novas necessidades de consumo. Segundo Jameson, um conjunto de recursos estéticos são destinados a incorporar o imaginário, as pulsões da intimidade e as maneiras de ser - a “penetração e colonização do inconsciente” - ao universo das mercadorias (Jameson, 1986: 61). Além disso, a indústria cultural não se compõe mais de comédias de rádio, musicais e romances de Hollywood, mas uma produção muito mais sofisticada em que a televisão, o cinema e as diversas mídias expandem a predominância da imagem através de técnicas cada vez mais desenvolvidas e o uso de experiências de vanguarda para atrair os indivíduos para a aquisição de mercadorias. Linguagens assim aprimoradas trouxeram uma crescente interpenetração entre a alta cultura e a cultura de massa. Ou ainda, “o “apagamento da antiga (característica do alto modernismo) fronteira entre a alta cultura e a assim chamada cultura de massa ou comercial” (Jameson, 1986: 28). Para Adorno, as vanguardas modernistas estabeleciam o padrão de apreciação estética. Sem abandonar tais marcos analíticos, Jameson questiona “o domínio intemporal do juízo estético absoluto [a ser substituído] por uma abordagem genuinamente histórica e dialética desses fenômenos” (Jameson, 1994: 6), isto é, a necessidade de critérios de interpretação compatíveis com a magnitude das mudanças ocorridas com a diluição da demarcação entre cultura de elite e cultura de massa. Reivindica um método de análise das obras da cultura de massa que as trate em sua especificidade e relevância, para além do diagnóstico generalizante da “denúncia vazia da função manipulatória e do [seu] estado degradado” (Jameson, 1994: 21) e da sumarização de Adorno em torno da distração e do entretenimento. Ou seja, tais argumentos não restringem a criação artística à condição de rebaixamento inevitável pela indústria cultural.
Em sua crítica ao “juízo estético absoluto”, Jameson critica os “falsos problemas” quando se opõe Shakespeare, Dickens, Dom Quixote e grandes obras que obtiveram apelo popular a “autores contemporâneos de alta qualidade” como Chaplin, John Ford, Hitchcock, Simenon, Robert Frost e outros (Jameson, 1994: 7). Não parece fora de lugar adicionar a essa lista o Prêmio Nobel de Literatura concedido a Bob Dylan, cujas soluções poéticas se alimentaram da leitura de Camus, Thomas Mann, Hemingway, Allen Ginsberg, Kerouac, Milton e tantos outros. O maestro Leonard Bernstein (que conduziu por muitos anos a Filarmônica de Nova York) ouvia no LP Revolver, dos Beatles, passagens que o remontavam a Wagner. A parceria entre Caetano Veloso (letra) e Milton Nascimento (música) na canção “A terceira margem do rio” foi baseada no conto de João Guimarães Rosa, gravada no álbum Circuladô lançado em 1991. Ainda uma vez, Jameson reconhece a força da análise de Adorno sobre a indústria cultural e a introdução da estrutura mercantil na própria forma e conteúdo das obras de arte, no entanto alega “mas como pode a mera materialidade de uma sentença poética ser ‘usada’ nesse sentido?” (Jameson, 1994: 4). As reverberações de uma frase poética nem sempre são comercializáveis.
O historiador inglês Eric Hobsbawm, atento às possibilidades negadas pela hierarquização entre as expressões “elevadas” e “regressivas” na arte, foi um amante do jazz. Suas pesquisas sobre a música popular envolveram o reconhecimento dos momentos de inovação e das circunstâncias de sua produção, sem supor necessariamente que estivessem a salvo de toda distorção do comércio e do consumo. Em suas palavras, sem “buscar aquele pote no fim do arco-íris”, esforço duvidoso de encontrar algo incólume na indústria cultural. O talento e o gênio de Duke Ellington, por exemplo, apreciado por sucessivas gerações, produziu uma obra em condições completamente diferentes dos atributos requeridos à arte de vanguarda e à elaboração estética avançada e logrou alcançar patamares únicos de criação artística. O jazz, para Hobsbawm, povoou de forma luxuriante o terreno dominado pelas fórmulas fáceis e acabou por se firmar como a mais importante contribuição musical norte-americana à cultura, para além de suas fronteiras nacionais:
O jazz é importante na história das artes modernas porque desenvolveu uma maneira alternativa de criar arte, em relação à vanguarda da alta cultura, cuja exaustão legou muitas artes convencionais e “sérias” a programas optativos no ensino das universidades, assim como a investimentos de capital especulativo ou filantropia... Mais do que outra pessoa, Ellington representou essa habilidade do jazz em transformar pessoas que não se preocupavam com a “cultura”, perseguindo a seu modo suas paixões, ambições e interesses, no sentido de uma grande arte séria e em pequena escala (Hobsbawm, 2016: 449).
Essa atenção não livrou Hobsbawm de cometer enganos, como aquele que subestimou os versos daquele que viria a ser escolhido para receber o Prêmio Nobel de Literatura em 2016:
Acontece que eu tinha admiração pelos Beatles e reconhecia fragmentos de gênio em Bob Dylan, um grande poeta em potencial demasiadamente indolente ou absorvido por si mesmo para conseguir manter a atenção da musa por mais de dois ou três versos de cada vez (Hobsbawm, 2002: 280).
Mais tarde, em seu livro Pessoas extraordinárias: resistência, rebelião e jazz, Hobsbawm desenvolveu uma crítica contundente às alegações sumárias de padronização, estereotipia e “exclusão do novo” na indústria cultural e suas imposições aos avanços das linguagens artísticas como dado incontornável:
Assim como os primeiros filmes foram efetivamente mais revolucionários que o cubismo, os empresários do rock transformaram o cenário musical mais profundamente que as vanguardas ditas clássicas ou que o free-jazz” (Hobsbawm, 2016: 485).
Em sentido semelhante, Stuart Hall, em suas reflexões sobre o panorama cultural contemporâneo, assinala que grandes massas escutam, leem, veem, consomem e gostam das produções provenientes da indústria cultural. No debate das questões aí envolvidas, contesta a concepção de uma consciência aviltada ou manipulada e que tal consumo seria protagonizado por “tolos culturais” (Hall, 2013: 280). Apesar de perceber todas as dificuldades de sua utilização conceitual, persevera no termo “popular” para a qualificação dessas manifestações, que provém de definições comerciais e de mercado e contém os traços evidentes de sustentação ideológica do próprio sistema. No entanto, segundo Hall, “popular” também pode significar um campo de luta na esfera da cultura, que ele busca discutir para além da mera manipulação. Nota-se aqui a influência da obra de Antonio Gramsci e as disputas em torno da hegemonia cultural:
Faz-se a contraposição dessa cultura com outra cultura “alternativa”, íntegra, a autêntica “cultura popular”, e sugere-se que a “verdadeira” classe trabalhadora (seja lá o que isso for) não é enganada pelos substitutos comerciais. Esta é uma alternativa heroica, mas não muito convincente. Seu problema básico é que ela ignora as relações absolutamente essenciais do poder cultural - de dominação e subordinação - que é um aspecto intrínseco das relações culturais. Quero afirmar o contrário, que não existe uma “cultura popular” íntegra, autêntica e autônoma, situada fora do campo de força das relações de poder e de dominação culturais. Em segundo lugar, essa alternativa subestima em muito o poder da inserção cultural. Este é um ponto delicado, pois ao ser apresentado abre-se a acusação de que se está apoiando a tese da implantação cultural. O estudo da cultura popular fica se deslocando entre esses dois polos inaceitáveis: da “autonomia” pura ou do total encapsulamento (Hall, 2013: 281).
Os equívocos de interpretação podem advir da concepção de uma suposta cultura “ilesa” (nas palavras de Hall: íntegra, autêntica e autônoma), livre da contaminação da cultura dominante, como se houvesse um estoque de manifestações autenticamente populares a ser resguardado e resgatado. A objeção à polaridade entre “autonomia” e “assimilação/encapsulamento” se estabelece diante da relação dinâmica entre dominação e subordinação e do entrecruzamento das linguagens artísticas, o que enseja o detalhamento de um campo de luta:
Creio que há uma luta contínua e necessariamente irregular e desigual, por parte da cultura dominante, no sentido de desorganizar e reorganizar constantemente a cultura popular; para cercá-la e confinar suas definições e formas dentro de uma gama mais abrangente de formas dominantes. Há pontos de resistência e também momentos de superação. Esta é a dialética da luta cultural. Na atualidade, essa luta é contínua e ocorre nas linhas complexas da resistência e da aceitação, e da recusa, e da capitulação, que transformam o campo da cultura em uma espécie de campo de batalha permanente, onde não se obtém vitórias definitivas, mas onde há sempre posições estratégicas a serem conquistadas ou perdidas (Hall, 2013: 282).
Diante da supremacia evidente do que é produzido para consumo ligeiro e embotamento de consciência, Hall destaca as tarefas de análise dos embates nesse campo, tendo em vista que produções que comovem grandes públicos não indicam necessariamente entorpecimento e conformismo. Segundo Hall, quase todas as formas culturais são compostas de elementos antagônicos e instáveis (Hall, 2013: 285), que podem ser absorvidas pela indústria cultural a qualquer tempo ou firmar-se como aquisição substantiva sobre a própria arte e a experiência vivida. Considera que “o significado de um símbolo cultural é atribuído em parte pelo campo social ao qual está incorporado, pelas práticas as quais se articula e é chamado a ressoar” (Hall, 2013: 285), o que define um critério para análises específicas de obras. O olhar para o jogo de forças na cultura pode ultrapassar questões de forma e conteúdo de produções artísticas. Jameson chega a abordar o “sentido do inerradicável impulso na direção da coletividade que pode ser detectado, não importa quão vaga e debilmente, nas mais degradadas obras da cultura de massa, tão certo como nos clássicos do modernismo” (Jameson, 1995: 25). Percebe-se aqui uma afinidade analítica com os elementos antagônicos e instáveis aludidos por Hall.
Tais observações podem ser remetidas à aceitação de uma canção por parte de grandes públicos ou, repetindo a observação de Hall, o fato de que grandes massas escutam, leem, veem, consomem e gostam das produções provenientes da indústria cultural. Busca-se um método de reconhecimento de fontes e criações musicais que trazem mais do que outra inutilidade da indústria cultural. Na cultura brasileira, Caetano Veloso se destaca como artista e intelectual que pugnou nesse sentido e valorizou preciosidades que de outra maneira teriam seu destino remetido ao gosto “inferior” ou “brega”. “Sonhos”, uma grande canção de corações partidos composta por Peninha e associada precipitadamente ao gosto “popularesco”, revelou-se uma bela obra de arte resgatada na voz do cantor e compositor baiano.
Segundo o depoimento de um ex-agente do FBI, J. Edgar Hoover, o poderoso diretor da agência americana, “odiava [Mick] Jagger provavelmente mais do que a qualquer outra figura da cultura pop de sua geração”, temeroso dos “efeitos subversivos” que poderia exercer sobre os jovens americanos (Norman, 2012: 434). Nos termos de Stuart Hall, a música dos Rolling Stones “ressoava” em um tempo de insurgências da juventude e, independentemente da qualidade melódica, poética e rítmica das canções, seus hits mexiam com um dado quadro de relações de força ou, como escreve Hall, “o significado de uma forma cultural e seu lugar ou posição no campo cultural não está inscrito no interior de sua forma” (Hall, 2003: 258). Os Stones, totalmente imersos na indústria cultural, gravaram composições que alcançaram grande aceitação popular e movimentaram (e ainda movimentam) quantidades imensas de dinheiro e lucros para a indústria fonográfica. Em outro plano, estiveram inseridos no “campo de batalha permanente”, com seus avanços e recuos que envolvem resistência e resignação:
O perigo surge porque tendemos a pensar as formas culturais como algo inteiro e coerente: ou inteiramente corrompidas ou inteiramente autênticas, enquanto que elas são profundamente contraditórias, jogam com as contradições” (Hall, 2003: 255).
DIGRESSÃO: LEONARD COHEN E LOU REED
Norbert Elias, em Mozart - a sociologia de um gênio, já havia destacado que a autonomia de Mozart em relação à corte de sua época influíra decisivamente no “estilo e no caráter da música” (Elias, 1995: 45). Segundo Elias, artistas criativos propiciam o surgimento de fenômenos culturais abrangentes, pois “com seus modelos inovadores, podem guiar para novas direções o padrão estabelecido de arte, e então o público em geral pode ir lentamente aprendendo a ver e ouvir com os olhos e ouvidos dos artistas” (Elias, 1995: 47). A inovação propiciada pelo singular talento musical de Mozart é assim descrita:
Vale a pena explorar com mais detalhes a capacidade peculiar de Mozart que temos em mente quando o chamamos de “gênio”. Sem dúvida, seria melhor evitar este conceito romântico. O que ele quer dizer não é difícil de definir. Quer dizer que Mozart sabia fazer coisas que a grande maioria das pessoas não sabia, que estão além de seus poderes de imaginação: Mozart sabia dar rédea livre às fantasias. Elas borbulhavam num fluxo de padrões sonoros que, quando ouvidos por outras pessoas, estimulavam seus sentimentos de maneiras as mais diversas. O fator decisivo nisto é que, apesar de sua imaginação se expressar em combinações de formas que se situavam na estrutura do padrão social de música que tinha assimilado, tais formas iam muito além das combinações já conhecidas e dos sentimentos que despertavam. Esta capacidade de criar inovações no campo do som comunicam uma mensagem real ou potencial aos outros, produzindo neles uma ressonância, é o que tentamos classificar em conceitos como “criatividade” quando aplicados à música e, mutatis mutandis, à arte em geral (Elias, 1995: 60).
A clareza da exposição de Elias, situada historicamente e referida a um gigante da música erudita, alcança a arte em geral. No decurso do tempo, quando se estabelece o domínio da indústria cultural, a imaginação que vai “além das combinações já conhecidas” não se restringe à “música séria”. O desenvolvimento da linguagem na música popular, ou a expansão dos padrões sonoros até então existentes, permanece atuante mesmo com as imposições advindas do comércio e da dinâmica de interesses voltados para o lucro. A “ressonância” da canção popular, e seu impacto nas mais diversas culturas, também inclui o aprendizado de ver e ouvir do público mencionado por Elias.
Além disso, a questão não se reduz ao aprendizado e ao cultivo do gosto. Greil Marcus lembra que Roland Barthes e Simon Frith utilizaram o conceito de signifiance - o “trabalho de significação”, a “feitura de significados” - como resposta à criação de símbolos ao invés de uma ideia, emoção ou momento importante de uma trilha sonora ou de uma canção. Segundo Marcus, no rock, por exemplo, “na perdição nos acordes macabros e nas letras apocalípticas de ‘Gimme Shelter’, fuga e libertação nos refrões amadurecidos de ‘Like a Rolling Stone’” (Marcus, 2006: 108). Quando uma canção nos toma, nos transtorna, nos leva para onde não imaginávamos poder estar e impele a sentimentos gozosos, tal explosão ou deriva mostra o que a música de Elvis Presley ou dos Beatles foi capaz de provocar nas mentes e corações. Ou ainda, preencheram algumas linhas que faltavam nos contornos do “zeitgeist”. Trata-se da “celebração das possibilidades de significação” ou “criação de símbolos em si” (Marcus, 2006: 109) e, portanto, de algo novo em relação aos símbolos até então existentes:
Se é assim, então aquele momento pode ser entendido e devolvido à vida cotidiana: nesse nível, a música desconstrói o quadro de símbolos que usamos para representar tanto nós mesmos como o mundo, e assim nos confronta com a perspectiva de criar novos símbolos (Marcus, 2006: 109).
Desse ponto de vista, obras relevantes do rock deixam de ser apreciadas como uma amenidade estética, ou uma linguagem pobre ofertada pela indústria cultural, para alcançar outras regiões do vivido e provocar alterações na cultura. A poesia e as baladas de Leonard Cohen não compõem uma arte ligeira. Ao se lançar como baladista no mundo pop, em carreira musical tardia iniciada aos 33 anos, já era um literato destacado no Canadá com a publicação de romances e coletâneas de poesia. Seu primeiro livro de poesias, Let Us Compare Mythologies, escrito entre os 15 e os 20 anos, foi publicado em 1956. Na ocasião, recebeu o Prêmio Literário McGill, da universidade americana, e passou a ser considerado o melhor jovem poeta do Canadá. Em 1961, com 27 anos, chegou ao público The Spice-Box of Earth, sua segunda coletânea de poesias, que consolidou a opinião de melhor poeta de língua inglesa do Canadá. Em 1963, surge seu primeiro romance, A brincadeira favorita, pelo qual recebeu o Prix Littéraire du Québec em 1964. No mesmo ano é editado Flowers for Hitler, também de poesia, com a epígrafe de Primo Levi: “Tome cuidado para não sofrer na sua própria casa o que nos foi infligido aqui”. Em 1966, foi publicado Parasites of Heaven, também de poesias. O segundo romance, Beautiful Losers, também de 1966, foi escrito ouvindo Ray Charles no disco The Genius sings the Blues, e recebeu críticas contrastantes como o “livro mais revoltante já escrito no Canadá” e “o livro canadense do ano”. Em 1969, recebeu o prêmio General Governor de Literatura do Canadá por Selected Poems 1956-1968. Da década de 1970 em diante, seguiram-se The Energy of Slaves (1972), Death of a Lady’s Man (1978), Book of Mercy (que recebeu o prêmio CAA de Poesia Lírica da Associação Canadense de Escritores, 1984), Stranger Music: Selected Poems and Songs (1993), Book of Longing (poesia, prosa e desenhos, 2006), The Lyrics of Leonard Cohen (2009), Poems and Songs (2011) e Fifteen Poems (2012). Beautiful Losers foi publicado na China em 2000 (Simmons, 2016).
A transição de Leonard Cohen da literatura para a arte musical de mercado amplo não implicou na assimilação das exigências da indústria cultural e em concessões de forma e conteúdo nos seus discos. Assaltado em grande parte de sua vida por severas depressões, Cohen escreveu sobre temas complexos e jamais subestimou seu público. A adesão dos ouvintes às suas canções envolve imagens que suscitam elaborações intelectuais e emocionais que vão muito além do mero entretenimento. Nos anos 1960, junto com Bob Dylan, Jim Morrison, Patti Smith, Joni Mitchell e outros, que conviveram nos ambientes artísticos de Nova York, gravaram passagens importantes da poesia americana em discos de rock.
Em Nova York, Lou Reed conheceu Leonard Cohen, no balcão do bar Max’s Kansas City, apresentando-se como leitor de Beautiful Losers que havia vendido apenas algumas cópias nos Estados Unidos. Judeu de formação religiosa e conhecedor profundo dessa tradição, Cohen escreveu sobre guerra e traição, saudade e desespero, desejo sexual e espiritual, em estilo denso e comovedor (Simmons, 2016: 178). As canções de Songs from a Room, lançado em 1969, lidam com os seguintes temas:
O erotismo resignado de “Joan of Arc” e o tom agridoce e sereno de “Famous Blue Raincoat” (outra canção sobre um triângulo amoroso, é uma carta escrita para um rival, amigo ou ambos nas horas escuras antes do amanhecer) soam quase insuportavelmente adoráveis ao lado das sombrias e perturbadoras “Sing Another Song, Boys”, “Dress Rehearsal Rag” (da qual Leonard diz: “Eu não compus essa canção, eu a sofri”) e “Avalanche”, a canção intensa e cativante que abre o álbum. Essa última é cantada por um corcunda, criatura grotesca, dona de uma montanha de ouro, a caricatura de um judeu feita por um nazista. Ou poderia ser cantada nas profundezas do inferno por um homem atormentado que anseia pela conexão com o Divino. Ou ainda, por um homem que já conquistou a mulher, mas não a quer ou rejeita a domesticidade oferecida por ela. Além disso, poderia ser cantada por Deus, o Jesus gentil do Novo Testamento, com os farelos da última ceia na mesa e uma ferida lateral, um personagem que acaba sendo tão duro e exigente quanto Jeová do Antigo Testamento. Nesses seis versos cantados em tom menor e sem o tempero dos vocais femininos, há múltiplas camadas, toda uma casa de espelhos, mas os sentimentos que permanecem constantes são de solidão e saudade, depressão e desespero (Simmons, 2016: 226 e 227).
Na década de 1970, Leonard Cohen era tão cultivado na Europa quanto Bob Dylan. Na época, o jornal inglês The Guardian fez o seguinte comentário sobre uma apresentação em Manchester, sem apelo a emoções fáceis:
Ele era uma figura solitária e de aparência sensível no palco, envolvido com seu violão, arrancando com uma mal-ajambrada determinação o que passava por uma linha melódica. Cohen gerava uma atmosfera de vulnerabilidade e arrependimento, sensações estranhas ao pop. Nenhuma das canções tinha senso de humor, nenhuma era radiante e animada. Mas tudo aquilo tinha um calor soturno (Simmons, 2016: 258).
A canção “Dance Me to the end of Love”, do disco Various positions, lançado no final de 1984, resultou do impacto de um texto lido por Cohen sobre uma orquestra de detentos em um campo de concentração em que eles eram obrigados pelos nazistas a tocar enquanto outros prisioneiros se dirigiam às câmaras de gás (Simmons, 2016: 303). A letra da canção sugere vários planos de compreensão e emoção, como na estrofe inicial: Dance me to your beauty with a burning violin/Dance me through the panic till I’m gathered safely in/Lift me like an olive branch and be my homeward dove/Dance me to the end of love (Dance comigo para sua beleza com um violino em chamas/Dance comigo através do pânico até que eu esteja reunido em segurança/Levante-me como um ramo de oliveira e seja minha pomba de volta para casa/Dance comigo até o fim do amor).
Quando recebeu o Prêmio Príncipe das Astúrias em Literatura em 2011, Leonard Cohen concorreu com a escritora Alice Munro, também canadense, e o inglês Ian McEwan. Entre os laureados anteriores do prêmio figuraram Günter Grass e Arthur Miller. No ano seguinte a honraria foi para Philip Roth. Cohen tornou-se amigo de Allen Ginsberg, que conheceu em Atenas, já que passava longas temporadas na ilha de Hydra na Grécia. Conviveu com Pierre Trudeau, quando este era um jovem advogado socialista, antes de Trudeau se envolver na política e trilhar o caminho que o levou a ocupar o lugar de primeiro-ministro do Canadá. A sua obra cativou cineastas como Robert Altman, Oliver Stone, Atom Egoyan, James Cameron, Werner Herzog, Rainer Werner Fassbinder e outros, com a inclusão de suas canções nas trilhas sonoras dos filmes desses realizadores.
Lou Reed compôs, escreveu e cantou sobre gays, drag queens, heroína, a vida transgressora de Nova York e não se identificava com a celebração da vida hippie e a psicodelia da Califórnia. Na juventude, sofreu um internamento forçado por seus pais em uma clínica psiquiátrica onde foi submetido a sessões de choques elétricos para “inibir impulsos homossexuais”. Compositor prolífico na juventude e inspirador intelectual da banda Velvet Underground, anos mais tarde narrou o episódio na canção “Kill Your Sons, do disco “Sally Can’t Dance” (1974), que dizia em seus versos iniciais: “Esses psiquiatras de meia tigela aplicando terapia de choque/Eles prometem que você vai viver em casa com papai e mamãe/Ao invés de um hospital psiquiátrico/Mas sempre que você tenta ler um livro/Você não consegue chegar nem na página 17/Porque você esquece até onde está/E não consegue nem ler/Vocês não sabem que eles vão matar seus filhos?”.
Reed figura entre os mais reconhecidos artistas do mundo do rock, em uma carreira pontilhada de sucessos e fracassos comerciais. Nesse trajeto, em 1978, pronunciou: “Eu não me recomendaria como entretenimento”. Segundo David Cunningham, do Instituto de Cultura Moderna e Contemporânea da Universidade de Westminster, reconhecendo o papel de Dylan no alargamento de fronteiras, o Velvet realizou a “ideia do rock como modernismo colocada de forma consciente” (Cunningham, 2014: 214). Isso tem uma história, que remonta ao encontro ocorrido em 1964 entre Lou Reed com John Cale e Tony Conrad, dois jovens de formação erudita que posteriormente ganharam reconhecimento como grandes artistas experimentais de vanguarda. Na época, Cale e Conrad participavam do grupo de LaMonte Young, pioneiro do minimalismo musical. Lou Reed e John Cale produziram discos juntos e atuaram em eventos organizados por Andy Warhol, onde criaram “ [...] um tipo de música na qual as ‘metades partidas’ da arte modernista e da cultura de massas de que falava Adorno não se complementariam - mas seriam obrigadas a se entender, gostassem ou não da ideia” (Cunningham, 2014: 214). Nessa parceria, mais que ocasional e estendida no tempo, Cunningham complementa:
Esse encontro da vanguarda (minimalista) e do rock&roll (minimalista) não apenas colocou o último na posição de “tradutor” cultural, dourando a pílula dos experimentalismos contemporâneos para o mercado comercial, como o permitiu ultrapassar a vanguarda em seu próprio espírito de negação. O Velvet Underground talvez tenha sido a primeira “música pop” a insinuar que poderia ser artisticamente “importante” sem fazer sucesso e, ao fazê-lo, The Velvet Underground and Nico (1967) e White Light/White Heat (1968) também afirmaram a capacidade da sonoridade “de massa” de um Bo Diddley ou um The Crickets de reconfigurar o sentido da vanguarda na segunda metade da década de 1960 (Cunningham, 2014: 214-215).
O resgate de Bo Diddley (Ellas Otha Bates) - cantor, compositor, guitarrista e um dos mestres destacados do blues - e dos Crickets, banda criada por Buddy Holly (Charles Hardin Holley) no final da década de 1950 e pioneira do rock and roll, aliou as fontes musicais populares com as técnicas de vanguarda em apelo de massa. O rock de Lou Reed ambienta a audição no cruzamento dessas linguagens, além de um olhar para as subculturas gay dos anos 1970, como na canção “Candy says”, em que “[...] a persona do observador etnográfico fotograficamente indiferente de Reed se transforme repentinamente em sentimento afetivo que dá voz aos culturalmente despojados” (Cunningham, 2014: 216).
As canções de Leonard Cohen e de Lou Reed remetem a um dogma atualmente destinado ao esquecimento, que dizia que a arte solicita esforço para ser apreciada. Os sentidos, as emoções e o intelecto estão imbricados nessas obras, sem prejuízo para o mais puro deleite. Não são exatamente entretenimento, mas não é incomum que nos vejamos cantarolando inadvertidamente os estribilhos de “Walk on the Wild Side” (Lou Reed) ou de alguma faixa de “Songs of Love and Hate” (Leonard Cohen). Afinal, são canções populares.
REFERÊNCIAS
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- Adorno, Theodor W. (1986). Sobre música popular. In: Cohn, Gabriel (org.). Adorno. São Paulo: Editora Ática.
- Adorno, Theodor W. (2017). Introdução à Sociologia da Música. São Paulo: Editora Unesp.
- Adorno, Theodor W. & Horkheimer, Max. (1985). Dialética do esclarecimento. Rio de Janeiro: Jorge Zahar.
- Bauman, Zygmunt. (2011). 44 cartas do mundo líquido moderno. Rio de Janeiro: Zahar.
- Bauman, Zygmunt. (2013). A cultura no mundo líquido moderno. Rio de Janeiro: Zahar.
- Cunningham, David. (2014). O rock como modernismo minimalista. Novos Estudos Cebrap, 98/33, p. 213-218.
- Duarte, Pedro. (2018). Tropicália ou Panis et circencis. Rio de Janeiro: Editora Cobogó.
- Elias, Norbert. (1995). Mozart - Sociologia de um gênio. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor.
- Hall, Stuart. (2013). Da Diáspora - Identidade e mediações culturais. Belo Horizonte: Editora UFMG.
- Hobsbawm, Eric J. (2002). Tempos interessantes - Uma vida no século XX. São Paulo: Companhia das Letras.
- Hobsbawm, Eric J. (2016). Pessoas extraordinárias: resistência, rebelião e jazz. São Paulo: Paz e Terra.
- Jameson, Fredric. (1994). Reificação e utopia na cultura de massa. Crítica Marxista. São Paulo, Brasiliense.
- Jameson, Fredric. (1996). Pós-modernismo - a lógica cultural do capitalismo tardio. São Paulo: Editora Ática.
- Marcus, Greil. (2016). A última transmissão. São Paulo: Conrad.
- Norman, Philip (2012). Mick Jagger. São Paulo: Companhia das Letras.
- Simmons, Sylvie. (2016). I’m your man - A vida de Leonard Cohen. Rio de Janeiro: Best Seller.
- Tatit, Luiz. (2016). O século XX em foco. In: Marcos Lacerda (org.). Música. Rio de Janeiro: Funarte.
Datas de Publicação
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Publicação nesta coleção
25 Abr 2025 -
Data do Fascículo
2025
Histórico
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Recebido
20 Mar 2023 -
Revisado
27 Ago 2023 -
Aceito
05 Out 2023