Resumo
Este registro de pesquisa analisa a formulação das primeiras hipóteses de W. E. B. Du Bois sobre o lugar da igreja na vida das comunidades negras norte-americanas. O fio condutor da exposição é o texto “O Problema da diversão” (1897), considerado pela crítica especializada o primeiro trabalho do sociólogo afro-americano em sociologia da religião, traduzido pela primeira vez para língua portuguesa neste dossiê. Este texto possui dois argumentos centrais: (1) que as principais hipóteses orientadoras de toda sociologia da religião de Du Bois já estão elaboradas no ensaio de 1897; (2) que O Problema da Diversão é um texto central para compreenderemos o lugar da religião na intepretação mais abrangente de Du Bois sobre o significado cultural da modernidade em sociedades pós-coloniais e pós-escravistas naquele fim de século.
Palavras-chave:
W. E. B. Du Bois; Sociologia da religião; Igreja negra; Raça
Abstract
This research records analyzes the formulation of W. E. B. Du Bois’s first hypotheses about the place of the church in the life of black North American communities. The guiding thread of the exhibition is the text “The problem of amusement” (1897), considered by specialized critics to be the African-American sociologist’s first work on the sociology of religion, translated for the first time into Portuguese in this dossier. This text has two central arguments: (1) that the main hypotheses guiding Du Bois’ entire sociology of religion are already elaborated in the 1897 essay; (2) that “The problem of amusement” is a central text for understanding the place of religion in Du Bois’s most comprehensive interpretation of the cultural meaning of modernity in post-colonial and post-slavery societies at the end of the century.
Keywords:
W. E. B. Du Bois; Sociology of Religion; The Negro Church; Race
SOBRE TRÊS HIPÓTESES DE W. E. B. DU BOIS
Um dos acontecimentos mais relevantes da história recente das ciências sociais é a compreensão, cada vez mais globalizada no mundo universitário, de W. E. B. Du Bois (1868-1963) como um dos autores clássicos e fundadores da sociologia como disciplina acadêmica. Esse esforço internacional de revisão que, aos poucos, chega ao Brasil tem ajudado a colocar em xeque os limites científicos do eurocentrismo estreito dos currículos nas áreas de humanidades, bem como as hierarquias raciais constitutivas do trabalho intelectual de canonização acadêmica1.
O conjunto dessas releituras também desafia a visão tradicional sobre o próprio Du Bois no mundo anglófono enquanto um clássico da literatura afro-americana e a eleição de As Almas do Povo Negro (1903) como marco hegemônico para interpretar o significado cultural de suas diversas obras. A diversidade dos problemas de pesquisa enfrentados pela sociologia contemporânea tem valorizado as investigações do autor em áreas como o estudo da violência e o crime, a racialização das formações urbanas, a constituição do método na ciência social - realizados ainda na década de 1890 no conjunto de relatórios produzidos pelo Laboratório de Sociologia da Universidade de Atlanta - e obras como O Negro da Filadélfia (1899). Também chama atenção o interesse despertado por sua abordagem sobre o colonialismo, imperialismo, luta de classes, a teoria política democrática, em livros como Darkwater (1920), Black Reconstruction (1935), Dusk of Dawn (1940) e Color and Democracy (1945), entre outros textos escritos nos últimos 43 anos de sua longa vida.
Esse contexto tem levado um punhado de especialistas a se debruçar sobre a originalidade da sociologia da religião desenvolvida por Du Bois, particularmente, no período de 1897-19142. Fase que compreende a intensa atuação do sociólogo afro-americano como professor universitário e cientista na Universidade da Pensilvânia (1896-1898) e na Universidade de Atlanta (1897-1910), onde organizou as famosas Conferências de Atlanta sobre os então chamados “problemas negros”. Um dos feitos mais expressivos desses eventos foi dedicado à apresentação dos dados da pesquisa sobre a organização religiosa das comunidades negras, publicados no livro A Igreja Negra (1903), trabalho coletivo dirigido por Du Bois, recentemente traduzido para o português3, que é considerado um dos primeiros exemplares de uma pesquisa empírica em sociologia da religião em todo o mundo4. Daí o caráter problemático e discriminatório, para dizer o mínimo, do apagamento e da invisibilização das contribuições do autor para emergência da sociologia da religião como área de pesquisa. Nas palavras de Robert Wortham:
Sociólogos da religião rotineiramente discutem as contribuições clássicas de Durkheim, Weber e Simmel, ao mesmo tempo que basicamente ignoram Du Bois. Isso é lamentável, porque os primeiros trabalhos de Du Bois sobre religião vão muito além da descrição etnográfica e da formulação teórico-filosófica. De fato, a seção sobre religião em O Negro da Filadélfia e o estudo da Conferência da Universidade de Atlanta sobre A Igreja Negra baseiam-se em dados obtidos a partir de estudos etnográficos de congregações, entrevistas de campo, surveys e dados de censo do corpo religioso. Para além disso, A Igreja Negra parece ser o primeiro livro sobre um grupo religioso baseado em um estudo sociológico empírico. Devido às múltiplas abordagens empíricas utilizadas por Du Bois nestes estudos clássicos da religião nos Estados Unidos, ele deve ser incluído como uma das figuras fundadoras deste campo... Apesar de Du Bois ter escrito sobre uma variedade de tópicos sociológicos, o seu trabalho inicial sobre religião é seminal. A sua abordagem empírica ao estudo dos fenômenos religiosos não tinha precedentes. Os estudos clássicos sobre religião de Durkheim, Weber e Simmel não integram abordagens qualitativas e quantitativas à análise de dados tão extensivamente como Du Bois. Atualmente, os investigadores falam de meta-análise e de triangulação metodológica como se estes conceitos fossem algo de novo. Em muitos aspectos, A Igreja Negra é um exemplo pioneiro de cada uma destas abordagens. (Wortham, 2005: 434, 448 tradução nossa).
O ensaio “O Problema da diversão” (1897), traduzido pela primeira vez para o português para a seção especial da Sociologia & Antropologia, é um texto basilar para compreendermos como emergiu esse programa de pesquisa original e pioneiro em torno da organização religiosa das comunidades negras nos Estados Unidos. Trata-se do primeiro trabalho publicado pelo autor dedicado à análise das igrejas negras. Algumas das principais hipóteses do sociólogo nessa área, posteriormente desenvolvidas em trabalhos mais robustos como o capítulo seminal sobre a vida religiosa dos negros de O Negro da Filadélfia, o texto “A Fé dos Nossos Ancestrais” da antologia As Almas do Povo Negro, o capítulo “A Religião no Sul” redigido por Du Bois para o livro coletivo O Negro no Sul (1907) e, sobretudo, no livro A Igreja Negra, encontram-se plenamente formuladas neste escrito.
O texto também é importante para compreendermos a análise de Du Bois sobre o lugar das instituições religiosas em sua interpretação mais geral sobre como a raça conformou a emergência de sociedades modernas nos contextos pós-escravistas e pós-coloniais das Américas. Com efeito, “O problema da diversão” foi publicado originalmente em setembro de 1897 no periódico The Southern Workman. No mesmo ano em que a pesquisa empírica no sétimo distrito da Filadélfia estava em desenvolvimento e o autor redigiu artigos seminais como “Nossos problemas espirituais” - transformado no capítulo de abertura de As Almas do Povo Negro - e “A Conservação das Raças”, endereçada para a American Negro Academy. Trabalhos nos quais Du Bois apresenta, respectivamente, as noções de véu e dupla consciência, bem como o seu conceito de raças históricas. Nesse sentido, o estudo da religião emerge em meio ao conjunto mais amplo de investigações sobre a configuração da linha de cor nos Estados Unidos.
É precisamente sobre esse ângulo que o autor analisa o significado da concentração das atividades de recreação existentes na comunidade negra no espaço das igrejas. Essa análise é feita em comparação às formas laicas de diversão que compunham o modo de sociabilidade moderno das grandes cidades industriais do país - que recebiam levas e levas de migrantes negros de origem rural vindos do sul do país naquele fim de século. Uma vida que propiciava novos prazeres desconhecidos e nocivos para estes recém-chegados. Nas palavras do autor:
Quando um homem jovem cresceu sentindo os entraves do preceito, religião ou costume como muito cansativos para ele e, então, na idade mais impressionável e imprudente da vida, é repentinamente transplantado para uma atmosfera de excesso, o resultado pode ser desastroso. No caso de homens e mulheres jovens de cor, é um desastre. A história diariamente se repete em toda grande cidade da nossa terra. Homens e mulheres jovens criados em atmosferas de diversão restrita jogam fora os limites quando entram na vida da cidade, não uma restrição ou algumas restrições, porém quase todas, atirando-se com isso na dissipação e no vício. Essa tendência é causada fortemente por causa de duas circunstâncias peculiares para a condição do Negro Americano: a primeira é sua exclusão expressa ou tácita das diversões públicas das mais grandes cidades; e a segunda, a pouca reflexão sobre o fato de que o provedor chefe da diversão do povo de cor é a igreja Negra que, em teoria, é opositora da diversão moderna.
Nesse sentido, a primeira hipótese de trabalho desenvolvida por Du Bois é que a força do racismo, a exclusão “tácita ou expressa” dos negros das diversões públicas das cidades, confere centralidade à igreja como provedora das formas de lazer e recreação nas comunidades negras. Diversão dirigida por uma instituição tradicionalista e avessa a formas laicas de divertimento existentes nas grandes cidades. Oposição que constituiria um exagero conservador e pernicioso na medida em que afastava a juventude das igrejas e contrário a “demanda perfeitamente natural e legítima por diversão (lazer) por parte da juventude, e que nenhum povo deve-se permitir rir, zombar ou forçosamente reprimir a propensão a alegria natural e busca por prazer por parte de homens e mulheres jovens”. Assim o direito de usufruir da diversão pública das grandes cidades, desde que de forma moderada e racional, teria o potencial de confrontar, a um só tempo, a racialização das formas de sociabilidade urbana e o conservadorismo religioso entre os negros.
Du Bois também formula uma segunda hipótese, de ordem histórica, para explicar a importância da igreja no provimento da diversão e outras atividades sociais entre os negros:
Entre muitas pessoas, o grupo sociológico primitivo foi a família ou pelo menos o clã. Não é assim entre os Negros americanos: cada vestígio de organização primitiva entre Negros escravizados foi destruído pelo navio negreiro; neste país, a primeira organização voluntária distintiva dos Negros foi a Igreja Negra. A Igreja Negra veio antes da casa dos Negros, é anterior a sua vida social e, em todos os aspectos, permanece hoje como a mais completa e ampla expressão da vida organizada do Negro.
Essa é uma das interpretações mais polêmicas do sociólogo afro-americano e tem sido amplamente contestada pelo estudo das famílias de pessoas em cativeiro nas Américas e a permanência de vínculos étnicos e culturais entre africanos escravizados. Mas, embora seja evidente que Du Bois opere com uma compreensão puritana e europeia de família nesse trecho, é importante destacar que a sua ênfase se concentra na capacidade organizacional da instituição familiar, suas condições para racionalizar o uso dos recursos, prover a educação moral e estimular o pleno desenvolvimento de seus membros. É esse conjunto de “funções” típicas de seu conceito de “família” que o autor enxerga nas igrejas. Não sem razão, para Du Bois a igreja é “a mais completa expressão da vida organizada do Negro”, de gerência dos recursos comunitários, de instrução educacional, formação política, de acúmulo de riqueza, em suma, é o lugar onde as ações sociais podem ser racional e eficazmente coordenadas para enfrentar as mazelas da pobreza e do racismo.
Essa caraterística singular das igrejas negras fez com que a abordagem de Du Bois não se limitasse a investigar a força simbólica das representações religiosas sobre o sentido subjetivo das ações sociais, mas concentra sua atenção na dimensão institucional que a vida religiosa pode assumir na vida das comunidades. Nesse ponto, o autor elabora sua terceira e principal hipótese de investigação:
A Igreja Negra não é simplesmente um organismo para a propagação da religião; é o centro da vida social, intelectual e religiosa de um grupo organizado de indivíduos. Provê a vinculação social, provê a diversão de várias formas e serve como um escritório de inteligência e informação; suplanta o teatro; direciona os piqueniques e excursões; fornece a música; introduz os estranhos à comunidade; serve como liceu, livraria e sala de leitura. É, por fim, o órgão central da vida organizada do Negro Americano para a diversão, o descanso, a instrução e a religião.
Essa descoberta possuía diversas implicações analíticas e políticas. Vale a pena destacar que, no fim do século XIX, as igrejas negras americanas não eram imaginadas como instituições poderosas de mobilização social como se consagraram no imaginário contemporâneo a partir da luta pelos direitos civis e da atuação de lideranças do porte de Martin Luther King e Malcolm X. Conforme observa Savage (2000), o trabalho de Du Bois está entre os esforços que lentamente ajudaram a moldar essa percepção. Aliás, um dos resultados da pesquisa do autor na sétima região da Filadélfia é a conclusão de que “todos os movimentos de melhoria social estão propensos a se centrarem nas igrejas” (Du Bois, 2023: 229). Por outro lado, essas mesmas características tornavam a instituição religiosa algo “peculiar” e “anômala”, nos termos do sociólogo, na medida em que cabia às igrejas oferecer, com escassos recursos e forjada numa orientação cultural tradicionalista, tudo aquilo que o racismo limitava na vida social: “para manter essa proeminência, a Igreja Negra tem sido forçada a competir com os salões de dança, com o teatro e com a casa, como uma agência doadora de diversão; ajudada pela proibição de cor nas diversões públicas”. A clausura racial implicava que a enorme diferenciação social da gente negra se refletisse obrigatoriamente na multiplicidade de atividades que a organização religiosa tomava para si.
Essa sobrecarga de funções implicadas pela combinação entre a virulência do racismo e força comunitária das igrejas atribuía a figura da liderança religiosa um papel contraditório e complexo:
O ministro que dirige esta peculiar e anômala instituição não pode ser criticado sem o conhecimento total do seu difícil papel. É na realidade o prefeito, o chefe magistrado de uma comunidade, governando com certeza, mas governando de acordo com os ditados de um conselho municipal não muito inteligente, de acordo com costume e lei consagrados pelo tempo; e, acima de tudo, prejudicado pela necessidade do seu orçamento; pode ser um guia espiritual, mas precisa ser um organizador social, um líder do homem real; pode desejar enriquecer e reformar a vida espiritual do seu rebanho, mas acima de tudo deve possuir membros na sua igreja; pode desejar revolucionar os métodos da Igreja, para elevar os ideais do povo, para dizer a difícil e honesta verdade para um povo que precisa um pouco mais de verdade e um pouco menos de bajulação. Contudo, como ele pode fazer isso quando o povo desse organismo social demanda que ele deva reduzir o tempo das atividades puramente espirituais de seu rebanho para ministrar o seu entretenimento, sua diversão e conforto físico [...] - o que o ministro pode ser para além do que a maioria dos ministros estão se tornado, os gerentes de negócios de um campo de piquenique?
Para Du Bois, um dos principais desafios da reforma social, capitaneada por lideranças religiosas negras, e tendo na igreja sua base de mobilização de recursos, é que o enfrentamento da linha de cor também deveria significar, contraditoriamente, a perda da proeminência das organizações religiosas na vida das comunidades negras. Ou melhor, que a manutenção do prestígio social das igrejas fosse estreitamente relacionada à direção de atividades propriamente espirituais e religiosas, deixando áreas como a educação, o gerenciamento de negócios econômicos e o governo de questões políticas para instituições mais eficazes e modernas na condução desses campos. Du Bois é taxativo: “eu gostaria de insistir que está chegando o tempo em que as atividades da Igreja Negra vão se tornar diferenciadas, quando deverá entregar a escola, a casa, as organizações sociais, aquelas funções que em um dia de pobreza orgânica tão heroicamente soube suportar”. Por enquanto, o poder social das igrejas negras e as mazelas do racismo reforçavam-se de forma contraditória e constituíam uma das características mais expressivas do significado social e cultural da modernidade nos Estados Unidos naquele fim de século.
Por todas as razões, o texto “O Problema da diversão” é uma leitura fundamental que documenta não apenas os primeiros passos da sociologia da religião desenvolvida por Du Bois, mas o surgimento de uma interpretação sociológica vigorosa e original sobre o lugar da raça na constituição do mundo moderno.
O PROBLEMA DA DIVERSÃO5
W.E.B. Du Bois
Desejo discutir com vocês, bastante superficialmente, uma fase de desenvolvimento na vida organizada dos Negros Americanos que até agora recebeu pouca atenção. É a questão das diversões dos Negros - qual atitude deles em relação a isso, quais instituições entre eles conduzem as recreações e qual a tendência de indulgência em diversões de vários tipos. Não quero dizer que este seja um dos problemas mais urgentes dos Negros, mas mesmo assim está destinado com o passar dos anos a tornar-se cada vez mais; e em todos os tempos e lugares, o modo, o método e a extensão da recreação de pessoas, tem uma vasta importância para o bem-estar geral.
Nesse caso, fui especialmente estimulado a levar em consideração esse problema particular dos muitos outros que afetam os Negros em cidades e no campo, porque há muito tempo tenho notado com apreensão silenciosa uma distinta tendência entre nós, em depreciar, menosprezar e zombar dos meios de recreação, em tratar a diversão como uma propriedade peculiar do diabo e considerar até mesmo sua busca legítima como perda de tempo e energia. Tenho ouvido, sermão após sermão e ensaio após ensaio, advertências tempestuosas sobre os terríveis resultados do prazer e o fim horripilante daqueles que são depravados o suficiente para buscar o mesmo. Eu ouvi tão grande artilharia de “nãos” atiradas em nossos jovens: não dance, não jogue cartas, não vá ao teatro, não beba, não fume, não cante músicas, não brinque de “jogo do beijo”, não jogue bilhar, não jogue futebol, não vá em excursões - que não ficaria surpreso, senhores e senhoras, em encontrar na vida fervilhante de uma grande cidade, centenas de garotos e garotas negras que escutaram por uma vida inteira a advertência, “Não faça isso ou você irá para o inferno,” e então, com muito entusiasmo e euforia, disseram “Bem, então vamos para o inferno”.
Se você viajar ao interior do estado da Virgínia, para as pequenas cidades e aldeias, a primeira coisa que notará é a escassez de homens e mulheres jovens. Há bebês em abundância e garotos e garotas com até quinze, dezesseis e dezessete anos - então, repentinamente, a oferta parece sumir e entre dezoito e trinta anos existe um grande intervalo. Onde estão esses jovens? Estão em Norfolk, Richmond, Baltimore, Washington, Philadelphia e Nova York. Em uma região da Philadelphia, jovens entre as idades de dezesseis e trinta anos formam mais de um terço da população. A população Negra de toda cidade da Philadelphia, que aumentou em cem por cento desde 1860, recebeu a maior parte deste crescimento advinda de jovens garotos e garotas. Por que vão embora? Primeiramente, sua migração é, por óbvio, apenas uma marola desta grande onda em direção a cidades que estão redistribuindo a população da Inglaterra, França, Itália, Alemanha e Estados Unidos, drenando os distritos rurais dessas terras de seus ossos e tendões. O movimento inteiro é causado pela revolução industrial que vem transferindo o lugar do trabalho humano da agricultura à manufatura e concentrado a fabricação nas cidades, assim, por salários mais altos atraindo a população mais jovem. Esse é o motivo primário, mas por trás disso está uma motivação mais poderosa e, em alguns casos, até mais decisiva: é a sede por diversão. Você que nasceu e foi criado em meio a vida caleidoscópica da grande cidade, mal percebe o quão irresistivelmente atrativa é a vida citadina para quem experimentou a longa, maçante e inanimada monotonia do campo. Quando aquela vida do campo foi ainda mais despojada dos poucos prazeres usualmente associadas a ela, quando a opinião pública da melhor classe dos Negros nos distritos rurais levanta distintivamente a sobrancelha, não apenas sobre a maioria dos tipos históricos de diversão usuais em uma comunidade camponesa, mas também, em alguma extensão, por sobre a própria ideia de diversão como uma necessária e legitima busca, então é inevitável que ocorra o que estamos vendo hoje, uma perfeita debandada de jovens Negros para a cidade.
Quando um homem jovem cresceu sentindo os entraves do preceito, religião ou costume como muito cansativos para ele e, então, na idade mais impressionável e imprudente da vida, é repentinamente transplantado para uma atmosfera de excesso, o resultado pode ser desastroso. No caso de homens e mulheres jovens de cor, é um desastre. A história diariamente se repete em toda grande cidade da nossa terra. Homens e mulheres jovens criados em atmosferas de diversão restrita jogam fora os limites quando entram na vida da cidade, não uma restrição ou algumas restrições, porém quase todas, atirando-se com isso na dissipação e no vício. Essa tendência é causada fortemente por causa de duas circunstâncias peculiares para a condição do Negro Americano: a primeira é sua exclusão expressa ou tácita das diversões públicas das mais grandes cidades; e a segunda, a pouca reflexão sobre o fato de que o provedor chefe da diversão dos povo de cor é a igreja Negra que, em teoria, é opositora da diversão moderna. Permitam-me esclarecer melhor esse segundo ponto, pois grande parte do desenvolvimento passado e futuro da raça é incompreendido por ignorância de certos fatos históricos fundamentais. Entre muitas pessoas, o grupo sociológico primitivo foi a família ou pelo menos o clã. Não é assim entre os Negros americanos: cada vestígio de organização primitiva entre Negros escravizados foi destruído pelo navio negreiro; neste país, a primeira organização voluntária distintiva dos Negros foi a Igreja Negra. A Igreja Negra veio antes da casa dos Negros, é anterior a sua vida social e, em todos os aspectos, permanece hoje como a mais completa e ampla expressão da vida organizada do Negro.
Somos tão familiarizados com igrejas e a igreja trabalha tão perto de nós que dedicamos escasso tempo para observar isso em perspectiva e constatar que, na origem e nas funções da Igreja Negra, ela é um organismo social amplo, profundo e mais compreensível do que as Igrejas dos Americanos brancos. A Igreja Negra não é simplesmente um organismo para a propagação da religião; é o centro da vida social, intelectual e religiosa de um grupo organizado de indivíduos. Provê a vinculação social, provê a diversão de várias formas e serve como um escritório de inteligência e informação; suplanta o teatro; direciona os piqueniques e excursões; fornece a música; introduz os estranhos à comunidade; serve como liceu, livraria e sala de leitura. É, por fim, o órgão central da vida organizada do Negro Americano para a diversão, o descanso, a instrução e a religião. Para manter essa proeminência, a Igreja Negra tem sido forçada a competir com os salões de dança, com o teatro e com a casa, como uma agência doadora de diversão; ajudada pela proibição de cor nas diversões públicas, ajudada pelo fato já mencionado antes, de que ela entre nós é mais velha do que a própria casa, a igreja tem sido peculiarmente bem sucedida, de modo que, dos dez mil Negros da Philadelphia a quem perguntei, “Onde você procura sua diversão?”, mais de três quartos só poderiam responder: “Nas Igrejas”.
O ministro que dirige esta peculiar e anômala instituição não pode ser criticado sem o conhecimento total do seu difícil papel. É na realidade o prefeito, o chefe magistrado de uma comunidade, governando com certeza, mas governando de acordo com os ditados de um conselho municipal não muito inteligente, de acordo com costume e lei consagrados pelo tempo; e, acima de tudo, prejudicado pela necessidade do seu orçamento; pode ser um guia espiritual, mas precisa ser um organizador social, um líder do homem real; pode desejar enriquecer e reformar a vida espiritual do seu rebanho, mas acima de tudo deve possuir membros na sua igreja; pode desejar revolucionar os métodos da Igreja, para elevar os ideais do povo, para dizer a difícil e honesta verdade para um povo que precisa um pouco mais de verdade e um pouco menos de bajulação. Contudo, como ele pode fazer isso quando o povo desse organismo social demanda que ele deva reduzir o tempo das atividades puramente espirituais de seu rebanho para ministrar o seu entretenimento, sua diversão e conforto físico; quando ele vê o piquenique mascarado de acampamento, o reavivamento tornando-se o evento social da estação, o dia da adoração transformar-se em dia de recepção geral e jantar fora, as organizações religiosas rivais precipitando-se em dívidas para mobiliar suas casas de adoração com uma elegância que ultrapassa de longe a habilidade financeira de um povo muito pobre; quando as portas da igreja tornam-se o lugar de encontro de todos os amantes e Lothario6 da comunidade; quando uma rodada incessante de entretimentos, encontros e festas à caráter, percorrem toda a semana - o que o ministro pode ser para além do que a maioria dos ministros estão se tornado, os gerentes de negócios de um campo de piquenique?
Essa é a situação da Igreja Negra hoje. Eu não quis me referir a todas as Igrejas Negras, mas sim a igreja média. É mais um infortúnio do que uma falha das igrejas. Com o peculiar desenvolvimento que temos tido neste país, duvido que a Igreja Negra pudesse cumprir mais nobremente sua grande e multiforme tarefa. Se cambaleia sob seu fardo, mesmo assim demanda respeito como a primeira demonstração de qualidade do Negro civilizado para governar a si mesmo. Apesar de tudo isso, a situação permanece e demanda - peremptoriamente demanda - reforma. Por um lado, temos um crescimento da multidão inquieta de jovens que estão sempre demandando formas e meios de recreação; em todo momento em que isso é negado, ocorre um momento em que se incrementa o crescimento de uma classe distinta de Negros libertinos, criminosos e prostitutas que vão crescendo entre nós dia após dia, que enchem nossas cadeias e hospitais, que atentam e mancham os nossos irmãos, irmãs e crianças, e com isso fazem mais em um dia para ofuscar nosso bom nome do que Hampton pode fazer em um ano para restaurá-lo. Por outro lado, temos a Igreja Negra procurando suprir tal demanda por diversão - fazendo isso em detrimento e morte de sua verdadeira e divina missão de inspiração humana.
Sob essas circunstâncias duas questões imediatamente emergem: primeiro, essa crescente demanda por diversão é legítima? E segundo, pode a igreja continuar sendo o centro de diversões?
Vamos considerar a primeira questão e perguntar o que é diversão? Toda vida é ritmo - o correto balanço do pêndulo faz o ponteiro girar, mas o balanço esquerdo deve segui-lo; o golpe descendente do martelo une o ferro, e então o martelo deve ser levantado entre cada golpe; o coração deve bater e, ainda, entre cada batida há uma pausa; o dia é o período de cumprimento das funções da vida e, ainda assim, o prelúdio e o fim do dia é a noite. Então, através da natureza, das batidas inquietas das ondas longínquas até o ritmo das estações e o turbilhão dos cometas, podemos ver uma lei de trabalho e descanso, de atividade e relaxamento, de inspiração e diversão. Podemos imaginar um pequeno filósofo míope argumentando fortemente contra a perda de tempo envolvida em atividades intermitentes do mundo - argumentando contra o tempo perdido quando o martelo é erigido para a segunda batida, contra o desnecessário balanço alternado do pêndulo, contra o sono que tricota a manga do cuidado, contra as diversões que revigoram, recreiam e divertem. Com tal filosofia o mundo nunca concordará, pois o mundo inteiro hoje é organizado para o trabalho e a recreação. O local onde a balança é melhor mantida entre os dois é onde está o melhor da civilização, e o melhor da cultura. Essa civilização declina em direção ao barbarismo aonde, por um lado, trabalho e exploração são tão predominantes que destroem o grande vigor que está por trás deles ou, por outro lado, onde o relaxamento e a diversão tornam-se dissipação ao invés de recreação.
Debruço-me sobre esses simples fatos porque temo que mesmo um povo proverbialmente jubiloso como os Negros Americanos estão esquecendo de reconhecer para suas crianças o direito concedido por Deus de brincar; reconhecer que há uma demanda perfeitamente natural e legítima por diversão (lazer) por parte da juventude, e que nenhum povo deve se permitir rir, zombar ou forçosamente reprimir a propensão a alegria natural e busca por prazer por parte das mulheres e homens jovens. Visite uma grande cidade hoje e verá quão completa e maravilhosamente organizadas são suas avenidas de diversão; seus parques e playgrounds, seus teatros e galerias, sua música e dança, suas excursões e passeios de bonde representam uma enorme proporção das despesas de toda grande municipalidade. Que a questão da diversão pode muitas vezes ser exagerada em tais centros isso é também verdade, mas de todas as agências que contribuem para esse excesso, nenhuma é mais potente que a indevida repressão. Diversões adequadas devem ser sempre uma questão de cuidadoso raciocínio e incessante investigação, para o correto ajustamento entre repressão e excesso; não existe um único meio de diversão, dos sociais da Igreja aos bailes públicos ou dos jogos de damas às corridas de cavalo, que não possam ser levadas a um excesso prejudicial; por outro lado, é difícil nomear uma única diversão que, quando bem limitada e direcionada, não possa ser um ganho positivo para qualquer sociedade; tome, por exemplo, na nossa sociedade Americana moderna o jogo de bilhar; suponho que, deixado a si mesmo, o mais inocente, interessante, e cavalheiresco jogo de habilidades dificilmente poderia ser vulgarizado e, ainda assim, porque hoje vem acompanhado das apostas, bebidas excessivas, más companhias e horas tardias, você pode ouvir maldizerem-no em todo púlpito, de São Francisco até Nova York, como o caminho mais rápido para a perdição; no que diz respeito a condição atual, as preocupações do púlpito parecem estar certas, mas os reformadores sociais devem perguntar-se a si mesmos: são essas condições necessárias? Não foi de longe mais prudente para a Universidade da Pensilvânia colocar mesas de bilhar nas salas dos clubes de estudantes? Existe alguma razão válida para explicar o porquê da Y.M.C.A de Norfolk não possuir uma mesa de bilhar entre os seus divertimentos (lazeres)? Em outras palavras, é uma política inteligente entregar uma diversão charmosa inteiramente ao diabo e, depois, chamá-la de diabólica?
Se agora existe entre o povo racional, saudável e sério uma demanda legítima por diversão, e se por causa de sua constituição histórica peculiar a Igreja Negra comprometeu-se a fornecer esse divertimento aos Negros Americanos, é razoável supor que a igreja pode ser bem-sucedida neste intento? Há um infalível sinal na resposta dessa pergunta: se a juventude está se reunindo para ir à igreja, então a igreja está realizando sua dupla tarefa; mas na verdade a juventude está deixando a igreja. Nas quarenta igrejas negras da Filadélfia, duvido se há duzentos homens jovens que são efetivos e ativos membros da igreja; há com toda certeza dois mil homens jovens que encontram suas namoradas nos domingos à noite, mas não são pilares da igreja. As jovens mulheres são mais confiáveis, mas também estão caindo fora. Essa tendência é menos manifesta no interior, porque a juventude não tem outro lugar para ir, mas mesmo ali pode ser notada uma crescente dificuldade em se alcançar a população de jovens. Isso simplesmente significa que a mais jovem geração de Negros está cansada das limitadas e banais diversões que a Igreja oferece. A mensagem espiritual da igreja foi entorpecida por uma reiteração muito indistinta e inoportuna.
Há ainda uma outra razão, mais profunda e sutil, e, portanto, mais perigosa do que essas; isto é, o recuo das almas jovens e honestas contra uma distinta tendência ao entorno da hipocrisia na aparente doutrina e prática da Igreja Negra. A Igreja Metodista, a Batista e agora quase todas as denominações nas quais os escravos puderam ingressar, quando do tempo de sua introdução na América, sentiram um impulso total para um recuo contrário à diversão excessiva. As dissipações de uma idade de devassidão, exibição e licenciosidade, levaram essas igrejas a pregação da seriedade na vida e a desgraça da mera busca do prazer como um trabalho de vida. Transportada para a América, essa religião de protesto tornou-se uma indiscriminada condenação das diversões e a glorificação do ideal ascético da autoinfligida miséria. Nessa linguagem, a Igreja Negra começou primeiro a balbuciar, seus primeiros ensinamentos foram que os cristãos deveriam ficar totalmente a parte de um mundo cheio de prazeres e, aqueles que partilhassem desses prazeres estariam em pecado. Quando, agora nesses dias, a igreja fala nessa mesma tonalidade e convida uma juventude saudável e alegre dos últimos bancos a renunciar de sua diversão nesse mundo em favor de uma dieta de jejum e oração, esses mesmos jovens em número crescente estão positiva, deliberada e decisivamente declinando de fazer tal coisa; e estão pontuando o fato óbvio que a própria igreja que está pregando contra a diversão, está também esticando cada nervo para diverti-lo. Sentem que isso é uma essencial hipocrisia na posição da igreja e se recusam a serem hipócritas.
A bem da verdade eu e você sabemos que a nossa igreja não é realmente hipócrita nesse ponto; ela erra somente no uso de uma antiquada e infeliz fraseologia. O que a Igreja Negra está tentando imprimir sobre a juventude é que o Trabalho e o Sacrifício são o verdadeiro destino da humanidade - a Igreja Negra está tenuamente tateando aquela divina palavra de Fausto:
“Entbehren sollst du, sollst entbehren”7 [Tu deves renunciar! Deves renunciar].
Mas nessa verdade, devidamente concebida, propriamente enunciada, não há nada incompatível com a diversão saudável, com a verdadeira recreação - para o que é verdadeira diversão, verdadeira diversão, mas a re-criação de energia que devemos sacrificar para nobres fins, para altos ideais, enquanto não possuímos a adequada diversão, desperdiçaremos ou dissiparemos nossos melhores poderes? Se a Igreja Negra poderia ter o tempo e a oportunidade para anunciar essa mensagem espiritual clara e verdadeiramente; se pudesse concentrar suas energias e ênfase no encorajamento da diversão própria ao invés de denunciá-la em série; e se pudesse cessar de dissipar e baratear uma religião através de incessantes atividades semirreligiosas então estaríamos, começando por uma base religiosa sólida, aptos para abordar a questão real sobre a adequada diversão. Para que acreditem em mim, meus ouvintes, o grande perigo da melhor classe de jovens Negros hoje não é o de que possam hesitar em sacrificar suas vidas, seu dinheiro e sua energia no altar de sua raça, mas o perigo está sob uma proscrição persistente e contínua, abaixo de milhares de pequenos aborrecimentos, insultos comezinhos e decepções de um sistema de castas, eles perderem a divina fé de seus pais na fecundidade do sacrifício; com certeza nenhum filho do século XIX ouviu mais nitidamente as zombeteiras palavras: “Aflição, cruel amizade”.
Não houve tempo na história dos Americanos Negros no qual tiveram uma necessidade mais urgente de orientação espiritual do mais elevado tipo; quando em meio aos cuidados mesquinhos da reforma social e da reação moral, havia um lugar mais amplo para uma fé divina no alto destino e poder maravilhosos daquela vasta e histórica raça negra cuja promessa e primeiros frutos pertencem a nós, o povo americano. Há rastejando entre nós ideais baixos de ódio mesquinhos, de sórdidos ganhos, de roubo político, de caça ao lugar e autoelogio imodesto, isso deve ser sufocado para que a picada não leve à morte dos nossos ideais mais elevados e sentimentos mais nobres.
Até agora procurei demonstrar; primeiro, que o problema da adequada diversão para nossa juventude está rapidamente se tornando urgente; segundo, que a Igreja Negra, desde o seu desenvolvimento histórico, tornou-se o principal centro das nossas diversões e tem sido forçada a posição insustentável de parecer negar a propriedade das diversões mundanas e acaba dissipando ao mesmo tempo sua energia espiritual em fornecê-las para os seus membros.
Agora eu gostaria de insistir que está chegando o tempo em que as atividades da Igreja Negra vão se tornar diferenciadas, quando deverá entregar a escola, a casa, as organizações sociais, aquelas funções que em um dia de pobreza orgânica tão heroicamente soube suportar. O próximo organismo social que se seguirá a Igreja entre os Negros será a escola e, com a lenta mais certa edificação da casa do Negro, nós nos tornaremos finalmente uma sociedade sadia. Acima da escola e da casa deve descansar o fardo de fornecimento da diversão para a juventude Negra. Essa tarefa não pode ser evitada - não pode ser uma reflexão para depois - e não pode ser uma atividade espasmódica, mas sim cuidadosa e racionalmente planejada. Tirar os meninos e meninas da escola primária: gostaria de ressaltar o fato, para toda professora de escola que tem criança de seis a treze anos sob seus cuidados, de que supervisionar a diversão dessas crianças é tão importante quanto supervisionar os seus estudos. E, antes de qualquer coisa, deixe a criança cantar, cantar músicas, não hinos; já é ruim o suficiente aos domingos ouvir o vigor rude e a poderosa música das canções de escravo serem substituídas pela combinação de música irreverente e poesia medíocre que chamamos de hinos gospel. Mas, pelo amor de Deus, não tentemos mais a providência usando isso não apenas para hinos, mas também para propósitos escolares. Comprem bons livros de música - livros que cantam a terra, o ar, os céus, o mar, os amores, os pássaros, as árvores e toda coisa que faz o mundo de Deus belo. Defina o Sul para cantar Annie Laurie, the Loreilei, Santa Lucia e “My Heart is the Hielands” deixe as crianças cantarolarem, assoviarem e baterem as mãos - elas obterão mais religião real de uma canção folclórica digna e saudável do que de uma interminável repetição de hinos em todas as ocasiões, com caras azedas e reverência forçada. Atenta-se ao tempo do recreio como tão compulsório quanto o do trabalho. No tempo de trabalho, faça com que os pupilos trabalhem e trabalhem duro e continuamente e no tempo do recreio faça com que brinquem e brinquem duro e alegremente. Reúna e direcionem os seus jogos, seu “Eu Espio”, “Rei Consello”, “Lobo Cinza” e os mil e um bons e velhos jogos que conhecemos da Inglaterra e da China. Observe aquele garoto que depois de uma manhã de trabalho não vai brincar, não está se formando direito. Observe aquela garota que lamenta e dorme na hora do recreio, precisa de um médico. Nessas escolas de grau primário, deve ser dada atenção especial aos esportes atléticos; garotos e garotas devem ser encorajados, senão compelidos a correr, pular, caminhar, remar, nadar, arremessar e saltar. O piquenique escolar acompanhado de uma longa caminhada sobre colinas, vales e brincadeira entre as árvores, em comunhão íntima com a mãe natureza, é infelizmente necessária. Por fim, aqui deve ser desenvolvida uma capacidade para o puro e de coração aberto gozo do belo mundo sobre nós, e ai do professor que é tão intolerante e cabeça vazia para sugerir aos corações inocentes e risonhos que a brincadeira não é uma instituição divina que nunca deixou e nunca deixará de andar de mãos dadas com o trabalho.
Enquanto as crianças crescem, nos importantes anos dos quatorze aos dezoito, o problema da diversão torna-se mais grave, e porque é grave não demanda menos, porém mais atenção. Geralmente a última coisa que está na cabeça da organização de uma escola superior é: como vamos fornecer diversão adequada para esses duzentos ou trezentos jovens de todas as idades, gostos e temperamentos? E ainda, a menos que a escola divirta, tanto quanto instrua esses garotos e garotas e ensine como divertir-se por si mesmos, falha com metade da sua tarefa de mandar ao mundo homens e mulheres que nunca poderão resistir com sucesso na horrível batalha moral que o sangue Negro está travando hoje em dia pela humanidade. Aqui novamente os esportes atléticos devem no futuro desempenhar grande papel nas escolas normais e de missão do Sul. Devemos rapidamente chegar ao momento quando o homem cheio de cérebro e nenhum músculo será visto como um grande idiota tanto quanto aquele com muitos músculos e nenhum cérebro; quanto ao jovem que não caminhar um par de boas milhas, terá que se contentar com apenas algumas propostas de casamento. A consideração crucial nesta idade da vida, entre os quatorze e os dezoito anos, é realmente o adequado intercurso social entre os sexos; é uma questão grave porque a resposta equivocada de hoje acompanhada de uma terrível história social que nos compele a alegação de culpa sobre o envergonhador fato de que a impureza sexual entre homens e mulheres negros é a desgraça gritante da República Americana. A escola sulista que tanto pode treinar seus filhos e filhas para que se misturem em pura e casta conversação e desfrutem plenamente do amor natural que tem pela companhia uns dos outros; que tanto pode divertir e interessá-los ao mesmo tempo que protegê-los com um alto senso de honradez e castidade - essa escola pode ser a maior dentre todas as escolas dos Negros e a mais poderosa das instituições da América. Por outro lado, a escola que procura construir paredes de aço entre os sexos, que desencoraja o honesto e aberto intercurso, que faz disso um negócio no qual colocam o selo de desaprovação sobre diversões sensíveis e alegres, essa escola está enchendo as casas ruins e os salões de jogos de nossas grandes cidades com os pensionistas mais desesperados.
Eu gostaria de oferecer apenas uma ilustração para esclarecer o sentido de minha questão crucial; e tomarei duas diversões comuns que unem os sexos - dançar e acompanhar jovens garotas da casa para a Igreja na noite de domingo. Nunca esquecerei um baile que acompanhei em Eisenach, Alemanha; contrariamente à minha grande e elaborada expectativa, o jovem rapaz não acompanha a garota até o baile; as garotas chegam ao baile com seus pais e mães, os garotos chegam sozinhos. No bonito e arejado hall, as mães sentam-se em círculo nos cantos da sala e preparam suas filhas ao lado delas; pais e irmãos mais velhos olham tudo da porta. Então, dançamos sob os olhares de pais e mães e pedimos a permissão dos parentes para dançar; sentimo-nos convidados de confiança no seio familiar; três horas deslizando em pura alegria até que, finalmente, grandes mesas são trazidas para dentro; sentamos, descansamos, bebemos café e cantamos. Então, as mães levam as filhas para casa e os jovens rapazes vão embora sozinhos. Tive muitos bons momentos na vida, mas nenhum no qual eu olhe para traz com prazer e satisfação mais genuínos. Quando, agora, comparamos a diversão assim conduzida com o costume universalizado entre nós de permitir que nossas filhas, desacompanhadas e sem vigilância, sejam escoltadas à noite pelas grandes cidades ou distritos ao acaso por conhecidos desconhecidos dos pais, sem diversão racional, mas com frívolas conversações e bobagens sem rumo, não tenho nenhuma hesitação ao dizer: eu preferiria que uma filha minha dançasse sob os olhos de sua mãe, do que entregá-la desprotegida e descuidada nas mãos de um estranho não observável. Os casos que citei são por óbvio extremos - não são todas as escoltas de garotas da igreja impróprias, e nem toda dança é realizada como aquela de Eisenach, mas gostaria de deixar essa dúvida com vocês. Não seria possível salvar de suas associações e condições funestas, uma diversão tão prazerosa, inocente e natural como dançar?
Já falei demais e ainda não exauri sequer pela metade esse assunto fértil, peculiar e interessante; a questão inteira do prazer caseiro e da diversão das pessoas mais velhas permanece intocada. Espero ter levado a vocês uma reiteração do que desejo que seja o pensamento central deste texto, não é a defesa de uma diversão particular ou o criticismo de proibições particulares, mas uma insistência no fato de que a diversão é correta, que o prazer é coisa de Deus e que aquelas pessoas que negam e fecham as portas sobre isso, simplesmente escancaram outras portas para a dissipação e o vício. Imploro a vocês que se esforcem para mudar a atitude mental da raça sobre a diversão aos mais novos, de uma inteira negação para uma empática afirmação. Ao invés de alarmar a juventude tão constantemente contra o excesso de prazer, vamos inspirá-los ao trabalho altruísta, e mostrar para eles que a diversão e a recreação são os legítimos e necessários acompanhamentos do trabalho e que nós podemos retirar o máximo de prazer quando eles fortalecem e inspiram-nos para um esforço renovado em uma grande causa; e acima de tudo, deixe-nos ensiná-los que não pode existir causa maior do que a do desenvolvimento do caráter do Negro para as suas maiores e mais sagradas possibilidades.
REFERÊNCIAS
- Blum, Edward J. (2007). W.E.B. Du Bois American Prophet. Pennsylvania: University of Pennsylvania Press.
- Blum, Edward J., & Young, Jason R. (2009). The Souls of W. E. B. Du Bois; new essays and reflections. Macon: Mercer University Press.
- Du Bois, W. E. B. (2023). O Negro da Filadélfia. São Paulo: Autêntica.
- Du Bois, W.E. B. (1897). The Problem of Amusement. Southern Workman, 27.
- Evans, Curtis. (2007). W.E.B. Du Bois: Interpreting Religion and the problem of the Negro Church. Journal of the American Academy of Religion, 75/2, p. 268-297.
- Gato, Matheus, & Brandão, Isaac Palma. (2024). A Igreja Negra Como Objeto Científico: Du Bois e a Sociologia da Religião. In: Du Bois, W. E. B. A Igreja Negra. São Paulo: Recriar.
- Gato, Matheus. (2024). Du Bois: Made In Brazil. Afro-Ásia, 69, p. 518-537.
- Gato, Matheus. (2025). Redescobrir Du Bois. Revista Cult, Ano 28, Edição 314, p. 10-14.
- Rabaka, Reiland. (2010). Against epistemic apartheid: W. E. B. Du Bois and the disciplinary decadence of sociology. Lanham: Lexington Books.
- Savage, Barbara Dianne. (2000). WEB Du Bois and “The Negro Church”. The Annals of the American Academy of Political and Social Science, 568/1, p. 235-249.
- Wortham, Robert A. (2009). WEB Du Bois, the Black Church, and the sociological study of Religion. Sociological Spectrum, 29, p. 144-172.
- Wortham, Robert A. (2005). Du Bois and the sociology of religion: Rediscovering a founding figure. Sociological Inquiry, 75/4, p. 433-452.
- Zuckerman, Phil. (2002). The sociology of religion of W.E.B. Du Bois. Sociology of Religion, 63/2, p. 239-253.
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1
Sobre o contexto de recepção da obra de Du Bois nas ciências sociais brasileiras cf.: “Du Bois: Made In Brazil” (Gato, 2024). Cf. também: “Redescobrir Du Bois” (Gato, 2025).
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2
É o caso de um conjunto de livros e artigos escritos por sociólogos, antropólogos, teólogos e estudiosos da religião que tem apresentado diferentes facetas dos estudos religiosos, congregacionais e da sociologia da religião de Du Bois. Para uma discussão mais aprofundada, cf.: Rabaka (2010); Zuckerman (2000, 2002); Wortham (2005, 2009); Evans (2007); Blum (2005, 2007); Blum e Young (2009); Johnson (2008) e Kahn (2009). Para um resumo em língua portuguesa de alguns dos principais textos de Du Bois sobre o tema ver: “Sociologia da religião em W. E. B. Du Bois” redigida por Fabiana Sousa (2023) disponível em: https://pp.nexojornal.com.br/bibliografia-basica/2023/06/28/Sociologia-da-religi%C3%A3o-em-W.-E.-B.-Du-Bois. Para uma explanação didática sobre os principais aspectos da sociologia da religião ver o vídeo Du Bois e Sociologia da Religião produzido por Isaac Palma Brandão em: https://pp.nexojornal.com.br/pergunte-a-um-pesquisador/2023/06/15/isaac-palma-brandao-du-bois-e-a-sociologia-da-religiao.
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3
Du Bois, W. E. B. A Igreja Negra. São Paulo: Recriar, 2024.
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4
Para uma discussão em português cf.: “A Igreja Negra Como Objeto Científico: Du Bois e a Sociologia da Religião” (Gato & Palma, 2024).
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5
Texto traduzido por Caio César Pedron, com revisão técnica de Matheus Gato.
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6
Du Bois aqui faz referência ao nome de uma personagem do romance The Fair Penitent (1703), escrito por Nicholas Rowe (1674-1703). Trata-se de um sedutor inescrupuloso de mulheres, uma espécie de Don Juan de Marco sem as crises de identidade ou um Dorian Gray menos narcísico. O nome Lothario tornou-se uma expressão para designar esse tipo humano específico do sedutor.
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7
Há uma pequena imprecisão na forma como está citada a passagem de Fausto, reproduzimos a citação correta no corpo do texto e aqui deixaremos a passagem conforme o original: “Entbehren sallst du, sollst entbehren”.
Datas de Publicação
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Publicação nesta coleção
25 Abr 2025 -
Data do Fascículo
2025
Histórico
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Recebido
14 Jan 2025 -
Aceito
03 Fev 2025