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“POR QUE HOMOSSEXUAIS SÓ EXISTEM NA CIDADE?” A RECENTE “INSTITUCIONALIZAÇÃO” DA “HOMOSSEXUALIDADE” NO SUL DE MOÇAMBIQUE* * Agradeço ao Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) por ter apoiado financeiramente essa pesquisa.

“WHY DO HOMOSEXUALS ONLY EXIST IN CITIES?” THE RECENT “INSTITUTIONALIZATION” OF “HOMOSEXUALITY” IN SOUTHERN MOZAMBIQUE

Resumo

A partir de pesquisa etnográfica realizada nos últimos anos no sul de Moçambique, o presente artigo responde antropologicamente à pergunta colocada por um telespectador moçambicano sobre o porquê da inexistência de sujeitos homossexuais em contextos rurais locais. O argumento central aqui apresentado é de que ainda que o desejo (homo)erótico preceda e prescinda da linguagem, a constituição de um sujeito propriamente homossexual não. Logo, as cidades oferecerão não apenas um ambiente propício para a vivência de experiências eróticas e identitárias desse sujeito, mas também a episteme necessária para que ele se constitua como tal.

Palavras-chave
África; LGBT; história; antropologia; sexualidade

Abstract

Based on an ethnographic research carried out in recent years in southern Mozambique, this article answers anthropologically the question posed by a Mozambican viewer about why there are no homosexual subjects in local rural contexts. The central argument presented here is that although the (homo)erotic desire precedes and dispenses with language, the constitution of a subject that is properly homosexual does not. Therefore, cities will provide not only an environment conducive to the experience of erotic and identity experiences of this subject but will offer the necessary episteme for such subject to be constituted as such.

Keywords
Africa; LGBT; history; anthropology; sexuality

Nós estamos concentrados nas cidades porque é nelas onde nós encontramos aquilo que é a maior parte dos nossos constituintes. A maior parte dos nossos membros vive nas cidades e foi nelas onde decidimos iniciar a discussão sobre direitos e cidadania. Acreditamos que, partindo das cidades e mobilizando as pessoas, poderemos chegar ao campo (Danilo Silva, então diretor da Lambda, em entrevista para o jornal A Verdade, 4 out. 2012A Verdade. (2012). O Estado discrimina. Disponível em: http://www.verdade.co.mz/destaques/democracia/30981-o-estado-discrimina Acesso em 21 mar. 2018.
http://www.verdade.co.mz/destaques/democ...
)

Aproximadamente oito anos depois da resposta do ativista LGBT, Danilo Silva, contida nessa epígrafe, a questão da homossexualidade (e sua suposta inexistência) no meio rural continua viva em Moçambique. No programa televisivo A Tarde é Sua, do canal local STV, exibido ao vivo em rede nacional no dia 26 de fevereiro de 2020, um telespectador envia por Whatsapp a seguinte pergunta aos ativistas LGBT presentes: “Por que os homossexuais só existem na cidade?”. Esse telespectador trabalha visitando vários “distritos” (zonas rurais) do país e diz nunca ter visto pessoas do mesmo sexo se relacionando nesses lugares. Tal pergunta pode parecer deslocada em várias das atuais sociedades nacionais pelo mundo, onde sujeitos homossexuais despontam também em contextos rurais (Annes & Redlin, 2012Annes, Alexis & Redlin, Meredith. (2012). The Careful Balance of Gender and Sexuality: Rural Gay Men, the Heterosexual Matrix, and “Effeminophobia”. Journal of Homosexuality, 59/2, p. 256-288, DOI: 10.1080/00918369.2012 .648881
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; Fernandes et al., 2016Fernandes, Estêvão et al. (2016). Diversidade sexual e de gênero em áreas rurais, contextos interioranos e/ou situações etnicamente diferenciadas. Novos descentramentos em outras axialidades - Apresentação. Aceno, 3/5, p. 10-13.). Em Moçambique, no entanto, tal pergunta revela um dado central para a compressão da homossexualidade não como uma subjetivação universal e atemporal, mas como um constructo social que, como tal, precisa ganhar “institucionalidade” (Douglas, 2007Douglas, Mary. (2007) [1986]. Como as instituições pensam. São Paulo: Edusp.).

Como já tratei em outros textos (Miguel, 2019Miguel, Francisco. (2019). Maríyarapáxjis: silêncio, exogenia e tolerância nos processos de institucionalização das homossexualidades masculinas no sul de Moçambique. Tese de Doutorado. PPGAS/Universidade de Brasília., 2020aMiguel, Francisco. (2020a). Por uma política com “respeito”: a institucionalização da homossexualidade no programa radiofônico moçambicano Café Púrpura. Caderno de Estudos Africanos, 40, p. 141-166., 2020bMiguel, Francisco. (2020b). International cooperation, homosexuality, and Aids in Mozambique. Contexto Internacional: Journal of Global Connections, 42/3, p. 647-664. Disponível em: http://doi.org/10.1590/S0102-8529.2019420300006
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), a ideia de homossexualidade, tal como fora construída na Europa, é uma categoria do pensamento que não está dada na natureza e, portanto, não é nem universal, nem estática, tampouco atemporal (Foucault, 1988Foucault, Michel. (1988). História da sexualidade 1. A vontade de saber. 19 ed. Rio de Janeiro: Graal.; Bleys, 1995Bleys, Rudi C. (1995). The geography of perversion: male-tomale sexual behavior outside the West and ethnographic imagination, 1750-1918. New York: New York University Press.; Rubin, 2018Rubin, Gayle. (2018). Estudando subculturas sexuais: escavando as etnografias das comunidades gays em contextos urbanos da América do Norte. Teoria e Cultura, 13/1, p. 247-288.). Em outras palavras, uma subjetivação homossexual - ou seja, como contraposta à heterossexual; alguém que costumeiramente narre seu desejo ou identidade como inato e imutável; que frequentemente conduza suas práticas homoeróticas ao longo da vida; que direcione seu afeto primordial ou exclusivamente a pessoas de seu próprio sexo; e/ou que carregue consigo a tendência de aderir, mais ou menos, em sua corporeidade aos signos do gênero oposto - não é universal, ainda que as práticas sexuais e afetivas entre pessoas do mesmo sexo possam virtualmente ser (Padgug, 1990Padgug, Robert. (1990). Sexual matters: rethinking sexuality in history. In Duberman, Martin; Vicinus, Martha & Chauncey, George (eds.). Hidden from history: reclaiming the gay and lesbian past. New York: Penguin Books, p. 54-64.; Murray & Roscoe, 1998Murray, Stephen O. & Roscoe, Will. (1998). Boy-wives and female husbands: studies of African homosexualities. New York: Palgrave.; Neill, 2009Neill, James. (2009). The origins and role of same-sex relations in human societies. Jefferson: McFarland & Company.).

Assim, para que a homossexualidade ou o sujeito homossexual (moderno) ganhe existência social é preciso um esforço político-epistemológico ou um processo de institucionalização (Douglas, 2007Douglas, Mary. (2007) [1986]. Como as instituições pensam. São Paulo: Edusp.) - fenômeno que historicamente ocorreu em determinados momentos e locais da experiência humana, sem que necessariamente coincidissem em seus significados.1 1 Boellstorff (2005: 173) afirma que “o ponto crucial é que a homossexualidade (como qualquer outra lógica cultural) se globaliza (ou se move) não como um discurso monolítico mas como uma multiplicidade de crenças e práticas, elementos que podem se mover independentemente entre si ou não se mover de forma nenhuma”. Por exemplo, na Indonésia, toda a ideia confessional embutida na “epistemologia do armário” (Sedgwick, 1990) não teria tido ressonância entre os nativos “gays” e “lesbi”. Por instituição, Mary Douglas (2007Douglas, Mary. (2007) [1986]. Como as instituições pensam. São Paulo: Edusp.: 61) refere-se às convenções sociais fortes; que partem da analogia com o corpo e com a divisão (sexual) do trabalho; que se baseiam na natureza e na razão; que são os resultados contínuos de uma disputa de classificações desenvolvidas por grupos sociais; que precisam “se esquecer” do que não lhe convém; e que, para ser estáveis, precisam camuflar seu caráter socialmente construído. Em minha tese de doutorado (Miguel, 2019Miguel, Francisco. (2019). Maríyarapáxjis: silêncio, exogenia e tolerância nos processos de institucionalização das homossexualidades masculinas no sul de Moçambique. Tese de Doutorado. PPGAS/Universidade de Brasília.), demonstro não apenas vários processos de institucionalização da homossexualidade na história de Moçambique desde o século XX até o presente (no governo, na mídia, no movimento LGBT, na religião, nas famílias), como investigo de que modo tal institucionalização se dava via o senso comum de meus interlocutores em campo.

Assim, a pesquisa etnográfica consistiu em um período de seis meses contínuos, de março a setembro de 2018, na província de Maputo. No total, foram realizadas 36 entrevistas formais, entre pessoas LGBT e pessoas não LGBT; brancos, negros e mestiços; moçambicanos e estrangeiros; jovens e velhos; ativistas sociais, acadêmicos, artistas, trabalhadores urbanos e quem mais estivesse disposto a sobre isso comigo conversar. Por fim, pude acompanhar, de forma mais sistemática, não apenas o dia a dia administrativo da Lambda, a principal organização LGBT do país, mas também o cotidiano de alguns de seus agentes comunitários e beneficiários LGBT em seus trabalhos na periferia da cidade, bem como frequentar algumas de suas festas, seus cultos religiosos e conhecer alguns de seus lares e famílias.

Respondendo à pergunta posta no título, mas também aos debates internacionais sobre a questão da exogenia da homossexualidade em África (Miguel, 2019Miguel, Francisco. (2019). Maríyarapáxjis: silêncio, exogenia e tolerância nos processos de institucionalização das homossexualidades masculinas no sul de Moçambique. Tese de Doutorado. PPGAS/Universidade de Brasília.),2 2 Basicamente trata-se de perspectivas afro-centradas e cristãs-conservadoras, que, em oposição aos regimes ocidentais, afirmam a inexistência autóctone da homossexualidade no continente africano. A questão importa aqui porque foi no campo que diversas lideranças africanas investiram suas esperanças de reencontro com a “tradição” para fins de descolonização política e epistêmica. Os discursos sobre a exogenia da homossexualidade em África e os debates teóricos que eles têm suscitado podem ser acessados em Mott, (2005) e Kaoma (2009). Para uma síntese exaustiva da questão, ver Miguel (2019). analiso aqui algumas das entrevistas com diferentes sujeitos moçambicanos, que revelaram como a ideia de homossexualidade é historicamente recente em Moçambique. E, mais do que isso, ela está geograficamente mais institucionalizada em centros urbanos do que no interior rural do país. Tal aferição se deu em um contexto de pesquisa, no qual investiguei o processo de descoberta da própria sexualidade de meus interlocutores. Assim, nas entrevistas, pude perceber como a maioria dos meus interlocutores narrou, em referência às fases da infância, adolescência e até mesmo à fase adulta, certo vazio simbólico para lidar com um desejo erótico que descobriam em si e para o qual suas famílias, sua língua e sua cultura não reservavam até então detida dedicação (Miguel, 2019Miguel, Francisco. (2019). Maríyarapáxjis: silêncio, exogenia e tolerância nos processos de institucionalização das homossexualidades masculinas no sul de Moçambique. Tese de Doutorado. PPGAS/Universidade de Brasília.).3 3 Em outro trabalho (Miguel, no prelo) analiso historicamente os léxicos changana e português moçambicano que fazem parte do campo semântico da homossexualidade. Minhas conclusões apontam que no acervo lexical changana, o neologismo maríyarapáxji é apropriado como forma de acusar afeminação quando dirigida a um homem, mas que nas últimas décadas passou a significar também homossexual. Além disso, demonstro como o acervo lexical em língua portuguesa parece atualmente preferível não apenas no processo de institucionalização da homossexualidade promovido pela Lambda, mas como meus próprios interlocutores machangana preferem acionar as categorias estrangeiras para se referir à sua sexualidade e à dos outros. Por último, demonstro como os falantes de changana, no discurso cotidiano, tendem a usar termos mais descritivos, associando os agentes não a termos identitários-sexuais, mas ao gênero que pertencem ou deveriam pertencer. A partir de trechos biográficos narrados pelos próprios sujeitos, demonstro um dos processos de institucionalização da homossexualidade que, longe de constituir uma subjetivação natural e universal, vem ocorrendo apenas nas últimas décadas no sul de Moçambique.

UMA SENHORA DO INTERIOR4 4 Os dados dessa seção são derivados de minha tese doutoral (Miguel, 2019) e foram trazidos com mais detalhes em outros dois artigos. Nesses artigos, utilizei este mesmo caso para desenvolver, respectivamente, uma reflexão sobre a atuação das organizações locais e internacionais na institucionalização da homossexualidade em Moçambique (Miguel, 2020b) e outra sobre os usos das línguas changana e portuguesa nesse processo (Miguel, no prelo).

Luiz era um dos funcionários mais sêniores da Lambda e responsável por toda a parte de projetos sobre a questão de HIV/Aids nessa organização não governamental voltada para a defesa dos LGBT.5 5 O combate ao HIV/Aids é hoje o objetivo principal da maior parte dos projetos financiados por instituições estrangeiras, cuja execução é responsabilidade da Lambda. Em outro trabalho (Miguel, 2020b), trato de diversos aspectos que atravessam o tema. Ele tem 40 anos, é de uma província do norte do país e, apesar de não ser ele mesmo “LGBT”,6 6 A noção de “pessoa LGBT” é um jargão comum no vocabulário de meus interlocutores. Neste artigo, irei utilizar “LGBT” nesse sentido de pessoa, para qualificar um tipo de parentesco classificatório, para adjetivar o movimento/organização e os direitos conquistados por essa população. Utilizarei “gay” quando assim falado nas entrevistas e para me referir tanto às subjetividades indonésias apontadas por um certo autor quanto tratar da chamada cura gay. Por fim, a palavra “homossexualidade” e suas derivações aparecerão neste artigo como um modo de criar e classificar sujeitos, dotada de uma história e de uma geografia próprias. A categoria aparecerá também com dois outros sentidos: enquanto subjetivação do eu, identidade já autoatribuída, domesticada e reivindicada pelos próprios sujeitos moçambicanos que nela se veem contemplados ou que, sobre ela, querem disputar significados e que, além disso, têm sua própria história biográfica e subjetiva de adesão/repulsão; enquanto práticas sexuais (ou “homoeróticas”), vistas pelo observador externo, que visam contemplar um desejo erótico - mas nem sempre erótico por todas as partes envolvidas (pois também podem existir, na prática, motivações materiais ou ser de natureza compulsória e violenta para um ou alguns dos parceiros). Assim, “homossexualidade” ganhará seu sentido específico no contexto em que ela será aqui e ali trazida ao longo do texto. Por fim, uso-a para conseguir uma estabilização mínima - necessária ao registro escrito - de conceitos e ideias polifônicos e em permanente fluxo histórico e biográfico. já possui mais de uma década de experiência na questão da Aids em interseção com as questões LGBT.

Era noite, e, depois de mais um dia cansativo de trabalho, ele finalmente me concedeu uma entrevista. Começo por lhe perguntar sobre sua trajetória profissional. Diz ele que, ainda em sua terra natal, começou a trabalhar para uma organização moçambicana que atuava no campo da prevenção do HIV. Em determinado momento - por volta de 2006 - depois de debates sobre uma falta de eficácia dos próprios programas de prevenção, chegou-se à conclusão de que as questões de gênero deveriam ser incluídas nesses programas.

Nesse sentido, ele e alguns colegas da organização foram na mesma época fazer um treinamento em Arusha, Tanzânia, patrocinado por duas instituições suecas voltadas para essas questões. Foi lá que Luiz, que não é homossexual, teve o primeiro contato com a problemática da orientação sexual.

Então foi ali quando eu aprendi - estou a falar de mais ou menos há 12 ou 13 anos - que aprendi sobre orientação sexual. Foi a primeira vez que comecei a ouvir. Bom, somente era um tópico novo, não tinha muito conhecimento na altura. E aí nós fomos para ser treinados como formadores. Então a responsabilidade era voltar ao país e começar, e treinar o primeiro grupo de formadores. Teriam a missão de ao nível das províncias fazer a formação na área do HIV, mas fazendo esta ligação com assuntos ligados ao gênero. [...] E quando eu voltei de Arusha, voltei uma pessoa completamente diferente [de] como fui (entrevista com Luiz, Maputo, 27 jun. 2018).

Aqui já podemos perceber como essas organizações internacionais - europeias em sua quase totalidade - foram (e ainda são) fundamentais para oferecer uma série de novas perspectivas sobre diversos assuntos àqueles ativistas dos países em desenvolvimento.7 7 Obviamente que o contrário também pode ser verdadeiro. Quando lhe pergunto o porquê de ele ter retornado “completamente diferente” dessa experiência na Tanzânia, Luiz me responde:

Primeiro porque eu era uma pessoa, por exemplo, muito contra o aborto. E eu até me lembro que antes da formação, tinha feito alguns comentários - acho que foi num post do Facebook, realmente não me lembro quem era - a julgar! Por[que] alguém estava a defender o aborto. Aborto seguro. E eu, na altura, fiz comentários [de] que hoje eu me arrependo profundamente. Porque eu praticamente atropelei os direitos que aquela pessoa tinha de decidir se mantinha a gravidez ou não... Mas não tinha, não tinha o conhecimento que adquiri depois daquela formação (entrevista com Luiz, Maputo, 27 jun. 2018).

As novas perspectivas, todavia, vão muito além da questão do aborto - desde como se deve melhor combater a epidemia de HIV/Aids até oferecer um novo léxico para lidar com sujeitos até então, por muitos moçambicanos, inomináveis, como os homossexuais. Esse primeiro contato com a questão da orientação sexual, de acordo com o entrevistado, também foi bastante transformador. Quando voltou da formação no país vizinho, Luiz precisou replicar os conhecimentos adquiridos e nesse sentido fez uma série de “formações” por todo o país. Mas uma em especial, no norte de Moçambique, afetou-o para sempre e é importante para o argumento deste artigo:

E uma coisa que me marcou - acho que foi em 2009, [...] nós fomos a um distrito no interior de Nampula falar sobre orientação sexual, falar sobre homossexualidade e apareceu uma velha. [...] E quando eu falei do tópico ela disse “Epa, meu filho, agora estou a entender. Eu tive um irmão que nunca se casou. Nós tentamos forçar, forçamos, mas ele nunca aceitou. Disse que quando ficava próximo das mulheres se sentia mal, havia um espírito que vinha, lhe tomava, e fazia-lhe mal. Mas eu sempre vi ele com homens, até a morte dele. Nunca se juntou com mulheres, nunca teve este afeto. Mas eu não sabia. Só agora que meu filho tá a falar isso, começo a entender.” Por que me marcou? Me marcou porque nós não estávamos numa grande cidade. Estávamos lá no interior. E a pessoa que estava a falar era uma idosa, creio que não sabia ler nem escrever, mas ela lembrou-se desse episódio, quer dizer [...] Depois eu acabei usando esse depoimento em outras formações, inclusive em grandes cidades, porque havia uma corrente que dizia assim “Ah, é assunto das cidades. Isso é com os brancos, cá entre nós não existe” (entrevista com Luiz, Maputo, 27 jun. 2018).

Assim, a senhora do interior norte-moçambicano, segundo Luiz provavelmente analfabeta, relatava ter tido um irmão que, para ela, se encaixava no perfil do sujeito homossexual que pela primeira vez na vida alguém lhe apresentava. Para esse sujeito, por mais desajustado socialmente que o fosse, não havia nome na língua nativa, não havia uma identidade específica: ele simplesmente era, ao mesmo tempo, um celibatário, alguém que tem aversão afetiva/sexual às mulheres e alguém que anda com homens.8 8 Em Moçambique, muitos LGBT são lidos pela chave dos inférteis e/ou celibatários (Chipenembe, 2018). Em changana, ngwendzá (Miguel, no prelo). Ele próprio, segundo a irmã, atribuía a causa aos espíritos.9 9 Sobre a atual dimensão espiritual da homossexualidade, as abordagens religiosas e a “cura gay” em Moçambique, ver Miguel (2019). Mas a composição em uma subjetividade específica centrada na sexualidade não parecia existir. O novo sujeito que surgia no aparato cognitivo e linguístico de Luiz, por intermédio das organizações suecas, iria - por uma cadeia facilmente demonstrável - surgir na realidade daquela velha senhora do interior do país, para dar conta de seu irmão, um sujeito até então apenas fora do comum.

Situações como essa aparecem recorrentemente na etnografia moçambicana sobre o assunto (Chipenembe, 2018Chipenembe, Maria Judite Mario. (2018). Sexual rights activism in Mozambique. A qualitative case study of civil society organisations and experiences of “lesbian, bisexual and transgender persons. Thesis. Faculty of Arts and Philosophy/Universiteit Gent.), e, em conversas com professores universitários da Universidade Eduardo Mondlane, em Maputo, como veremos adiante, eles revelaram pela primeira vez pensar na possibilidade do apadrinhamento e do “morar junto” entre homens, tão comuns desde o período colonial, como experiências também homossexuais e homoafetivas. Segundo um deles, “o moçambicano não está treinado para enxergar isso”. Mas se um dos professores diz que sua incapacidade de enxergar a homossexualidade se deve ao fato de ele ser alguém que veio da “província”, ou seja, do interior rural, onde essas questões não existem e para as quais ele não teria sido “treinado” a perceber, Luiz provavelmente responderia que ainda que não haja o nome, o sujeito está lá, assim como as suas práticas homoeróticas, e que apenas basta ter o “conhecimento” sobre a questão para então poder identificá-lo. Assim como teria acontecido com aquela senhora do interior e com ele próprio.

UM VETERANO HOMOSSEXUAL DE MAPUTO

Nas classes populares negras do sul de Moçambique, relativamente apartadas dos brancos no período colonial (Miguel, 2019Miguel, Francisco. (2019). Maríyarapáxjis: silêncio, exogenia e tolerância nos processos de institucionalização das homossexualidades masculinas no sul de Moçambique. Tese de Doutorado. PPGAS/Universidade de Brasília.), e em que historicamente predominou a oralidade, pouco registro escrito nos foi legado sobre o tema da homossexualidade. As entrevistas servem aqui, portanto, para recuperar uma história oral de sujeitos que experenciaram a descoberta da própria sexualidade em um momento histórico em que a categoria “homossexual” não era acessível em vários sentidos para eles. Assim, tive oportunidade de conversar sobre esses assuntos com algumas pessoas mais velhas, dentre as quais resgato especialmente a conversa que tive com Paulino, um sexagenário ronga homossexual que vivia na periferia da cidade de Maputo.

Chegamos a sua casa, Isaías10 10 Isaías é o nome fictício que atribuí a meu principal assistente de campo e amigo. Pessoa fundamental para o que aprendi sobre a vida homossexual masculina contemporânea em Maputo e sobre o movimento LGBT moçambicano. e eu, pelas ruas tortuosas e de terra, características dos bairros periféricos, que se chamam “quaisquer nomes-caniço” (como Polana-Caniço, por pertencer à parte da cidade onde as construções, há algumas décadas não eram de alvenaria, mas de caniços de madeira). Sua casa é diferente de tantas outras em que estive nas periferias de Maputo e da Matola: maior, dividida por cômodos bem definidos, com muitos móveis de madeira, quadros e enfeites. Sobre a casa e sobre a personalidade que ela expressava, Isaías explicou-me no caminho de volta que Paulino é um “assimilado”.11 11 Segundo Aboim (2008: 285), “O termo assimilado aplicava- se aos africanos negros e mestiços que, segundo critérios das autoridades coloniais, eram considerados como tendo absorvido com sucesso (assimilado) a língua e a cultura portuguesas. Em princípio, aos indivíduos com este estatuto legal eram concedidos privilégios e obrigações dos cidadãos portugueses, o que lhes permitia escapar aos fardos impostos à maioria dos africanos (os indígenas). O estatuto de assimilado foi formalmente abolido em 1961”. Não creio que a classificação de Isaías tivesse um tom crítico ou pejorativo, pois ele próprio assim se classificava, mas antes o sentido de que, segundo ele, “dava para perceber que ele [Paulino] tem uma vida ‘organizada’, veio de uma família ‘civilizada’”, não só pela postura, mas pelo patrimônio que conseguiu acumular. Tal informação queria também provar uma proximidade de tal sujeito com o mundo dos brancos.

Em nossa conversa - que Paulino me permitiu apenas anotar, evidenciando o valor da discrição - ele me revelou logo no início que tanto ele quanto sua família são “naturalíssimos” de Maputo. Todos falantes de ronga, mas também de português. Sua mãe era costureira, e seu pai trabalhava na burocracia estatal. Ele trabalhou toda a vida no ramo dos livros. No dia em que o conheci, Paulino vestia um conjunto de moletom cinza e usava óculos, aparentando ser o já senhor que é, mas ao mesmo tempo com uma aparência conservada, não muito comum aos homens e mulheres maputenses de idade semelhante pertencentes às classes sociais menos abastadas.

Participaram da conversa além de Isaías, que me acompanhava, o atual companheiro de Paulino, Guamba, bem mais novo que ele, por volta dos 30 anos, mas que se manteve calado durante toda a conversa. Guamba é de Quelimane, e veio de lá para viver na capital sob o teto de Paulino, que até então morava só. Ambos se portavam de acordo com os signos locais de masculinidade. Ao fim da conversa, quando já nos encaminhávamos para o portão da rua e já sem a presença de Guamba, Paulino me falou mais sobre o seu concubino, a quem se referiu no início da conversa como “amigo” e “sobrinho”, revivendo certas terminologias portuguesas para esse tipo de relação homossexual hierárquica.12 12 Se o uso do termo “sobrinho” reflete um modo particular do mundo lusófono de tratar concubinos masculinos, mas que encontra semelhanças com outros parentescos LGBT (Weston, 1991), a centralidade da ideia de “amigo” parece ter ressonância não apenas nas homossociabilidades europeias e norte-americanas (Foucault, 1981; Weston, 1991) quanto na tradição banto sul-moçambicana (Webster, 2009). Disse-me que Guamba tem o quarto dele e que ele o trata como “filho”. Mas Paulino alega que, quando ele quer ter relações sexuais, o rapaz não pode negar, pois não pode lhe faltar com o respeito.

Para além do interessante dado de presenciar um casal que vive um modelo de relações homossexuais hierárquicas, outrora chamada de “pederástica” em África e em vários outros lugares do mundo, em que o sênior “adota” um mais jovem para companhia e serviços sexuais (Miguel, 2016Miguel, Francisco. (2016). Levam má bô: (homo)sexualidades masculinas em um arquipélago africano. Curitiba: Editora Prismas.: 47), a própria história de Paulino entre as décadas de 1950 e 1980 revelaria muito sobre a história de seu próprio país e de como era ser “homossexual” negro “assimilado” nos anos coloniais e pós-independentes. Seleciono uma de suas histórias pessoais, quando já em meados dos anos 1970, na transição do regime político, ele conheceu um português, com quem passou a viver, mas de quem foi separado pelo advindo da independência.

Paulino e um reformado soldado português, mais velho do que ele, se conheceram quando o primeiro tinha 20 anos de idade. Paulino nunca teve muitos amigos homossexuais, mas, segundo ele, era possível encontrar outros homossexuais, discretamente, em bares pela cidade13 13 Para mais detalhes sobre uma história queer de Lourenço Marques, ver a interessante pesquisa de Simões de Araújo (2021) e a entrevista realizada por Costa Santos (2017). . O português e ele passaram 11 anos morando juntos na região central da então Lourenço Marques. No prédio em que moraram, Paulino disse nunca ter sofrido qualquer recriminação por parte dos vizinhos, que os tratavam bem e sem intromissões de qualquer ordem. Em parte, ele atribui isso ao fato de ele sempre ter-se “dado ao respeito”. Ainda que não tenha elaborado sobre o que isso significava, podemos inferir que tenha a ver com o fato de ele sempre ter sido discreto em relação ao seu relacionamento e por manter em público uma postura masculina. Pelo Estado, também disse nunca ter sido importunado no que se refere ao seu relacionamento homoafetivo e de coabitação.

Na sequência, Paulino ainda me contou como foi que seu “amigo” português, antes, foi pedir a autorização da família dele para que eles morassem juntos na casa do português, e para mim essa é a chave para compreender a história de institucionalização da homossexualidade não só em Lourenço Marques, como na atual Maputo.

O português era diretor na mesma fábrica de cigarros em que alguns tios do jovem Paulino trabalhavam como operários. Ao abordar um desses tios de Paulino, perguntando se o conhecia, o português teria assustado o tio com a possibilidade de o sobrinho ter feito algo de errado. O português então esclareceu o motivo de procurá-lo, dizendo ao tio: “Estou a pedir esse rapaz para me fazer companhia, porque eu não tenho ninguém lá em casa. A minha família já se foi para Portugal”. O tio prometeu falar com o pai de Paulino, seu primo, que, por sua vez, disse nada poder decidir, visto que esse filho estava sob a responsabilidade dos avós maternos.14 14 Paulino morava com a mãe e com alguns tios maternos. Mas, aqui, não se deve à matrilocalidade o pressuposto de a mãe e os tios maternos decidirem a questão. Como se trata de uma sociedade patrilinear, que possui a instituição do lobolo (bridewealth), provavelmente o pai de Paulino, na ocasião, não teria pagado o lobolo e, portanto, não teria os direitos sobre esse filho, que ainda pertencia à linhagem materna. O português então foi falar com a mãe de Paulino, que encaminhou a questão para sua própria mãe, ou seja, a avó de Paulino.15 15 Em sociedades gerontocráticas como as do bantos, decisões familiares como essa frequentemente só são tomadas depois de se ouvir a opinião dos anciãos da família. Razão pela qual faz sentido que a pessoa mais sênior da família seja quem decida certos assuntos. A avó materna de Paulino ficou preocupada, pois já tinha passado por um episódio de prisão de um filho, pelo fato de ele ter “estragado coisas dos brancos”. A mãe de Paulino então explicou a avó do rapaz que esse branco trabalhava com o irmão dela, era alguém conhecido e confiável. A avó custou a aceitar, mas acabou concedendo. Segundo Paulino, sua avó confiava no neto, porque ele sempre havia sido um “miúdo muito sério”.

A família então aceitou, mas, segundo Paulino, sem saber de que exatamente se tratava tal pedido. Eu imediatamente insisti sobre esta questão: se de fato a família não entendia esse pedido como um pedido de “casamento”. E Paulino me garantiu que não entenderam como tal e que ele tinha certeza disso.

Em nossa conversa foi possível ter acesso a uma vida conjugal homoafetiva que transcorreu, aparentemente, sem grandes transtornos, nas barbas dos regimes pré e pós-independente, em plena zonal central da capital do país e com a “aceitação” da família. Em princípio, eu tentava interpretar esse e outros casos sempre a partir da chave de uma maior tolerância em relação à homossexualidade em Moçambique, tese defendida em vários cantos, por distintas pessoas, o que incluiria até atuais militantes dos direitos LGBT no país. Sem descartar que, de fato, existe algo de não tão persecutório sobre o assunto na sociedade ou no Estado moçambicanos - especialmente se comparado com o que o ocorreu em países vizinhos (Miguel, 2019Miguel, Francisco. (2019). Maríyarapáxjis: silêncio, exogenia e tolerância nos processos de institucionalização das homossexualidades masculinas no sul de Moçambique. Tese de Doutorado. PPGAS/Universidade de Brasília.) - outra chave de interpretação possível, parece-me, é aquela que aponta para um silêncio estratégico produzido por aqueles que sabiam do que aquilo se tratava, mas que não queriam correr o risco de um eventual estigma, quando não um desconhecimento geral das classes populares de origem banto em relação a esse tipo de possibilidade erótica e conjugal.

Outras duas pessoas mais velhas, aqui já mencionadas, me alertaram sobre isso: uma professora da Universidade Eduardo Mondlane e um famoso escritor, ambos moçambicanos de origem banto e heterossexuais. Transcrevo um trecho do meu diário de campo de uma conversa a três, em que chegamos à conclusão sobre o “olhar não treinado” dos moçambicanos em enxergar, em alguns tipos de relação, qualquer conotação homoerótica:

Contei da história do Paulino para eles e demonstrei meu espanto sobre ninguém dos vizinhos, da família etc. terem se manifestado em relação aos dois morarem juntos na cidade. [...] Chegamos à conclusão de que essas relações de apadrinhamento [...] não eram entendidas quase nunca como uma relação homoafetiva (não usou esse termo), mas que isso era normal: alguém com posses apadrinhar um jovem para trabalhar como garoto de recados, pequenos trabalhos domésticos, etc. (independentemente de essa relação ser inter ou intrarracial.). E que as pessoas liam isso como “ah, está a dar uma ajuda”. Com esse exemplo e com outros, chegamos à conclusão de que os moçambicanos, especialmente os negros, não estavam/estão treinados para ver a dimensão (homo)sexual de algumas relações, que elas são lidas em outras chaves. Foi interessantíssimo perceber como a professora Maria interrompeu na hora para dizer: “Agora eu estou a lembrar vários casos na infância e estou pensando se não era isso mesmo. Por exemplo, tinha duas senhoras que moravam juntas... (E ficou em silêncio, com o olhar distante, como quem está impressionada de só agora se dar conta de que aquela poderia ser uma relação homoafetiva). Nunca passou pela minha cabeça que fosse isso”. [...] Um outro dado que ilustra essa questão de um “olhar não treinado” para ver isso foi quando contei do Paulino que uma vez foi advertido pela polícia por estar com um branco em um local sabidamente de encontros homoeróticos na praia. Provoquei que enquanto em Portugal já havia nessa altura até um aparato policial para investigar atos homossexuais em banheiros públicos, nas colônias - e aqui não parece ter sido diferente - a homossexualidade era menos vigiada. Foi nesse momento que Chico disse que eu precisava entender que ninguém aqui estava treinado para ver isso, no sentido de que não havia um vocabulário, uma semântica (termos meus) ou experiência pra enquadrar encontros entre homens na chave da sexualidade (diário de campo, Maputo, 16 ago. 2018).

Especificamente sobre a menor vigilância em relação à homossexualidade nas colônias (Braga, 2006Braga, Paulo Drumond. (2006). Mulheres criminosas, mulheres perdoadas (Cabo Verde e São Tomé. Século XVI). Islenha, 38.; Miguel, 2016Miguel, Francisco. (2016). Levam má bô: (homo)sexualidades masculinas em um arquipélago africano. Curitiba: Editora Prismas., 2019Miguel, Francisco. (2019). Maríyarapáxjis: silêncio, exogenia e tolerância nos processos de institucionalização das homossexualidades masculinas no sul de Moçambique. Tese de Doutorado. PPGAS/Universidade de Brasília.), que supus nesse trecho do diário, é preciso ressalvar que durante a guerra colonial, Eduardo Pitta nos conta que ele mesmo foi alvo de um inquérito das Forças Armadas portuguesas, que buscava fazer uma caça aos homossexuais nas instituições militares, tanto na metrópole quanto nas colônias (Costa Santos, 2017Costa Santos, Gustavo G. (2017). “Nos bares da Rua Araújo era fácil engatar militares, sobretudo marinheiros”: vivências e sociabilidades homoeróticas em Moçambique colonial. Estudos de Sociologia, 2/23, p. 479-492.; Simões de Araújo, 2021Simões de Araújo, Caio. (2021). “Queering the City”. The Politics of Intimacy, Sex and Liberation in Lourenço Marques (Mozambique) 1961-1982. Revue d’Histoire Contemporaine de l’Afrique, 2, p. 130-150.). De qualquer maneira, essa conversa revela que mais do que a existência de uma certa tolerância social em relação à homossexualidade, o que parece existir também no sul de Moçambique é um amplo desconhecimento das classes populares - especialmente entre os mais velhos - em relação a essa possibilidade de existência, seja como prática, seja como identidade. E isso se deve, entre outras coisas, ao regime vigente de uma ars erótica, antes e concomitante ao aparecimento de uma scientia sexualis (Miguel, no preloMiguel, Francisco. (no prelo). Maríyarapáxjis: Língua, gênero e homossexualidade em Moçambique. Revista Mana.).16 16 Em linhas gerais, em História da sexualidade, Foucault (1988) faz uma divisão heurística entre um “dispositivo da aliança” e uma “ars erotica”, ou seja, da sexualidade iniciatória e como transmissão do segredo, característica das sociedades pré-burguesas por um lado; e, por outro, um “dispositivo da sexualidade” e uma “scientia sexualis”, ou seja, prevalência da sexualidade no discurso, na confissão e na ciência, que surgem no século XVII com o advindo do capitalismo.

Nascido na Lourenço Marques dos anos 1950, Paulino também não teve acesso a nenhum conteúdo sobre o assunto (fosse na TV, em livros, em revistas ou na rádio) em sua adolescência. Razão pela qual, diferente do antropólogo que o entrevistava, seu primeiro contato com esse mundo se dera diretamente por intermédio de um “iniciador”, sem outros tipos de intermediação entre o discurso e a própria prática sexual. Nossa conversa se deu mais ou menos assim:

- Quando também tinha essas idades, eu tinha uns primos que gostavam muito de mim. Epa, eu às vezes, sem perceber, porque eles eram mais velhos... Mas como a minha tendência sempre foi essa, cedia...

[...]

- Mas desde novo então você sabia o que que era assim... Você sabia que que era homossexualidade.

- Mas como vou saber? Eu só sentia... Muitas das vezes, há aquela coisa de aprender. Aquela coisa de natureza (entrevista com Paulino, Maputo, 3 jul. 2018).

Interessado por essa dimensão do conhecimento sexual que se adquire na prática, por intermédio de um iniciador, eu lhe perguntei sobre a questão. Paulino então respondeu-me sobre como era na sua época:

Você pode crescer e atingir mesmo até idade de 15, 16, 17, 20, mas se não houver o iniciador ali... Mas você sempre tem aquela... Você vê uma pessoa e começa a, epa, imaginar... “Epa, [se] aquela pessoa se aproximasse...” [...] Sentir o calor desde aquela pessoa[...] Aí, o que que falta? Falta o iniciador. Vais aparecer o iniciador. Pronto, você já... Ele te abriu teus caminhos (entrevista com Paulino, Maputo, 3 jul. 2018).

Então eu o provoquei, perguntando o que um iniciador ensinaria propriamente. Sabendo que eu também era homossexual e que eu já havia dito que ele poderia perguntar qualquer coisa que quisesse a mim, ele rebateu a minha pergunta, questionando o que o meu iniciador havia me ensinado. Eu então lhe respondi:

- Eu vou responder... Porque antes, no meu caso, antes d’eu ter com alguém, eu já tinha visto na televisão, eu já tinha visto em revista...

- Você ainda tem sorte porque foi na altura de televisão... Nós nem tínhamos televisão. [...] No final da década de 60, já estavam a aparecer revistas... [...]Eu tinha muitas revistas. Destruí há pouco tempo...

- Mas não tinha esse assunto na revista? Não fala disso nas revistas?

- Ah, não falavam, não falavam...

- Então, estou dizendo isso porque eu, quando fui ter minha primeira vez, eu já sabia mais ou menos o que que ia acontecer, o que que tinha que fazer...

- Sim. Sorte de ver uma coisa. Mas quando assim mesmo, sem ter visto, quando a pessoa já te pega, eita, você já vai ver, afinal, é isto... Você até percebe com facilidade, porque você já tem no sangue. Muitas das vezes, ao dormir, pode aventurar com alguém, assim, pensar que a outra pessoa pode me fazer isto, fazer isto... Agora... Há aquelas pessoas que dizem “Ah, eu fui o...” Eu muitas das vezes digo “Não, não diz é o fulano te ensinou. O fulano te iniciou...” (entrevista com Paulino, Maputo, 3 jul. 2018).

E a partir daí as diferenças de nossas culturas e inserções históricas me fizeram refletir de maneira profunda sobre nossas distintas práticas e identidades sexuais, ainda que “gostássemos da mesma semente”.17 17 “Vurhándzá hí rimbéwu” (aqueles que gostam da mesma semente/gênero) é uma expressão do changana, presente apenas a partir da última edição do Dicionário portuguêschangana, de Sitoe (2017), que, apesar de eu não ter encontrado ressonância entre os falantes (eles tampouco reconheciam sua tradução como “homossexual”), escolho aqui com fins estéticos porque supostamente descreve uma forma genérica e poética para aqueles que dirigem seu desejo sexual e afetivo a pessoas do mesmo sexo. A diferença não só geracional, mas também de condições materiais de existência e de inserção cultural entre o etnógrafo e seu interlocutor revela, apesar do desejo homoerótico semelhante, duas formas distintas de adentrar não só a vida sexual em si, mas o universo simbólico que nossas culturas construíram (ou não) sobre esses nossos desejos quando estávamos prontos a vivê-los.

Enquanto eu nasci no final da década de 1980, em uma família de classe média brasileira, em que a homossexualidade, apesar de violentamente repudiada, era absolutamente gramatical, Paulino nasceu em meados da década de 1950, em uma família de moçambicanos “assimilados” urbanos, em que um campo semântico da homossexualidade como tal parecia ainda não existir. Se o que estou chamando de uma semântica homossexual (ou seja, a existência de um conjunto conectado de figuras públicas, textos e ideias sobre o assunto disponíveis em vários canais, um vocabulário acusatório, os termos “ativo” e “passivo” que “ensinam” como é o sexo entre homens etc.) antecedeu a minha prática propriamente sexual, para Paulino e outros, o caminho teria sido o inverso.

De certa forma, esse e outros relatos de interlocutores moçambicanos por mim entrevistados (Miguel, no preloMiguel, Francisco. (no prelo). Maríyarapáxjis: Língua, gênero e homossexualidade em Moçambique. Revista Mana.)18 18 “Eu próprio não sei como me detalhar porque... não aprendi... ainda não tive aquilo de aprender, saber que isto é isto, aquilo é aquilo. Eu só tenho desejo, às vezes eu encontro alguém, ficamos. Só. Ainda não tenho aquela experiência de “assim, que eu sinto assim, é porque eu sou assim”. Ainda não tenho. Porque quem me ajudou... [...] Que foi esse tal senhor que eu me... pela primeira vez. Então eu só parei ali. Sim. Eu parei ali” (entrevista com Amarildo, Matola, 23 ago. 2018). corroboram a divisão de Foucault (1988)Foucault, Michel. (1988). História da sexualidade 1. A vontade de saber. 19 ed. Rio de Janeiro: Graal. entre um “dispositivo da aliança”, caracterizado por uma iniciação de passagem do segredo, e um “dispositivo de sexualidade”, expresso fundamentalmente no discurso, pois apenas pelo próprio iniciador um sujeito moçambicano como ele, naquela época, poderia acessar o que estou chamando de semântica homossexual.

O JOVEM CAETANO

Engana-se, porém, o leitor ou a leitora que pensar que o desconhecimento sobre a ideia de homossexualidade é um dado óbvio, fruto apenas da diferença geracional entre Paulino e este antropólogo, e daquele mundo da década de 1960 em que mais ou menos em todo lugar a homossexualidade cultural começava a emergir e se globalizar.19 19 Tanto em São Paulo (Green, Trindade, 2005) quanto no Rio de Janeiro, com o Grupo Ok, já há no final da década de 1950, uma sociabilidade gay e um protomovimento LGBT bastante parecidos com o que existia restrito aos brancos de Lourenço Marques na mesma época (Melo, 1981). Entrevistei outros moçambicanos de origem banto, alguns da minha idade ou até mais jovens do que eu, que relataram o mesmo vazio simbólico no momento dos primeiros sinais de um desejo erótico que, pela falta de um léxico, não significaram imediatamente como “homoerótico” ou “homossexual”. E não se trata de um vazio simbólico em razão da pouca idade que tinham e do desenvolvimento individual da linguagem, como na primeira infância, mas um vazio simbólico já na vida adulta, quando se pressupõe que o sujeito já domina os códigos e a língua de seu grupo. Esse é o caso de Caetano, um agente comunitário da Lambda nascido no mesmo ano que eu (1988), em um contexto rural da província de Inhambane, ainda na região sul de Moçambique. Caetano, que além do português fala outras “línguas nacionais”, como ronga, chopi, bitonga, xitswa, ndau, me conta em entrevista cheia de detalhes sobre como se deu a “descoberta” de sua sexualidade:

- Eu geralmente levava a vida heterossexual sem saber que eu era bissexual ou tinha desejo por pessoas do mesmo sexo. Mas eu acredito que eu tinha um afeto por pessoas do mesmo sexo. [...] E fui percebendo que quando aquela pessoa [homem] tocasse, eu não me chateava. Quando me tocasse, quando me abraçasse, eu queria mais. Tás a perceber? Mas não que eu sabia que eu era... que eu tinha relações... eu poderia ter relações com essa pessoa. Porque, pra mim, já tinha na minha consciência que eu era homem. [...] tenho que me relacionar simplesmente com mulher. A história veio se reverter quando, no fim do meu nível básico, tive estágio aqui em Maputo. Então, eu vim com meu primo pra estagiar. No primeiro dia, ele simplesmente me perguntou se eu conhecia a La Biba e a La Santa.20 20 Trata-se de duas famosas drag queens moçambicanas. [...] Então eu disse que não conhecia. Então foi quando ele contou que a La Biba [e a La Santa] são homens, mas que têm relações com pessoas do mesmo sexo. E [...] naquele dia [isso] foi [para mim] um absurdo. Foi um absurdo, comecei a rir, quase que estragava a boca até. [...] Mas no mesmo dia saímos pra fazer os banhos, sei lá o quê, ele foi tomar banho. Quando ele volta, estamos assim em beliches diferentes. [...]Então quando eu reparei pra ele, tive um susto muito grande. Porque quando ele vinha assim de [cueca] boxer, aquele corpo todo dele, tomei um susto. [...] Porque eu já via ele muitas vezes. Mas acredito que o susto foi quando... foi por ele ter me falado que é possível homem... pessoas do mesmo sexo ter relações. [...] Nunca tinha ouvido falar!

- E você nunca tinha visto nenhum gay?

- Não! Se eu vi, mas não sabia que ele era homossexual. Cresci sabendo que existe “maria-rapaz”. Geralmente lá na província chama assim: “maria-rapaz”. É tipo assim um homem que tem, assim, comportamentos meio afeminados. “Maria-rapaz” não que aquela pessoa tenha relações com pessoas do mesmo sexo. Então, por isso que eu digo nunca tinha visto um gay. [...]. O nome “maria-rapaz” eu já ouvia. Então quando tomei esse susto, fiquei assim com medo. “Será que eu estou... Será que eu sou aquilo que ele disse?” (entrevista com Caetano, Maputo, 21 jun. 2018).

Do susto de se perceber desejando o primo e sem revelar tal desejo, Caetano ainda passaria por uma segunda situação que julga importante me contar.

- no fim de 2009, quando saí de lá [de Inhambane], minha irmã morava cá [em Maputo], disse que eu tinha que vir para aqui, porque ela tinha arranjado um emprego pra mim. Então vim. Então quando cheguei aqui, na altura tinha um... não sei como se chama tal televisão agora, na altura chamava-se “KTV”. Então tinha muito chat, assim por baixo a projetar filmes, né? Mas por baixo saía um leque de mensagens: “Ah, eu sou gay, gostaria de conhecer não sei quem...” [...] Então, peguei o número. Tive medo de ligar, eu decidi mandar mensagem. Então foi dali que um senhor ligou para mim. “Oi, [Caetano], tudo bem?” “Estou bem.” “Podemos nos encontrar?” “Ah, sim, podemos.” [...] fui conhecer. Mesmo ele disse “Ah, vamos para minha casa.” Sei lá o quê... “Ah, tá bem, não tem problema nenhum.” Fui, troquei de roupa, tomei um banho e fui. Quando chegamos lá, tive o meu primeiro beijo com ele. Ele queria ter relações sexuais mesmo, mas eu... Na altura, eu não sabia o que era. Não sabia. E ele queria, porque queria. “Ou porque tu me penetras, ou porque eu te penetro, escolha uma das duas, a gente vai fazer”. Então eu disse “Epa, eu não estou preparado”. Mas também era já um senhor de idade. Em relação a mim, era um pouco mais velho, então... [...]Então, eu não me senti à vontade, não quis, não aceitei. E ele respeitou isso. Não me fez mal nenhum (entrevista com Caetano, Maputo, 21 jun. 2018, grifos meus).

Demoraria ainda algum tempo até Caetano ter sua primeira relação sexual com outro homem. Todavia, desses longos trechos da entrevista de Caetano, destaco dois pontos. O primeiro e mais importante é que aquele jovem provinciano, que em casa ajudava o pai na carpintaria e a madrasta na machamba,21 21 Termo que em Moçambique significa roça, pequena unidade de produção agrícola. aos 22 anos, afirma não ter tido qualquer informação sobre a possibilidade de existência de relações sexuais entre pessoas do mesmo sexo. O ano era 2008, e ele nunca tinha sequer ouvido falar sobre isso e tampouco já tinha visto um gay. Em decorrência disso, ele disse, como Paulino, que, na época, não fazia ideia do tipo de ato sexual que poderia acontecer entre dois homens. Isso demonstra de maneira cabal que o vazio simbólico-homossexual descrito pelo sexagenário Paulino não era apenas um dado da década de 1960, possivelmente verdadeiro em vários contextos sociais na mesma época, incluindo ocidentais. Trata-se também de um contexto cultural e histórico específico, haja vista que já em 2008, com o avanço de várias tecnologias de transporte e comunicação, ainda que elas pouco consigam se capilarizar pelo interior moçambicano, é possível encontrar sujeitos moçambicanos que, já adultos, jamais tiveram qualquer contato com um campo semântico de relações sexuais entre pessoas do mesmo sexo.

O segundo ponto que Caetano revela é que o termo “maria-rapaz” não significava para ele o que hoje ele entende (e se entende) como “homossexual”22 22 Assim como em relação aos fops ingleses da primeira metade do século XVII, um termo pejorativo para homens aristocratas que eram vistos por seus contemporâneos como afeminados, mas sobre quem se presumia serem sexualmente interessados por mulheres (Staves apud Trumbach, 1990). . “Maria-rapaz”, em seu léxico e na sua experiência de sujeito nascido na província, nomeava qualquer homem que tivesse trejeitos femininos ou que fosse dado às tarefas domésticas, femininas por excelência no sul de Moçambique, sem que isso indicasse a possibilidade de esse mesmo homem também ter relações sexuais com outros homens.23 23 Junod (apud Thomaz, Gajanigo, 2009) em sua clássica etnografia, realizada na virada do século XIX para o XX, conta um episódio de discussão e zombaria entre garotos de Mafumo contra os da Matola, no qual a acusação de afeminação como algo pejorativo parece já presente, mas nela não haveria necessariamente a conotação homossexual. Tal questão é mais bem analisada em Miguel (2019). Assim, o thauma de Caetano primeiro chega com a revelação do primo de que tal tipo de sexualidade era possível, mas é apenas pela televisão - em um programa que no GC24 24 GC é a sigla de “gerador de caracteres”. Trata-se daquela faixa inferior da tela, comum a muitos programas de televisão, em que mensagens rolam, geralmente para resumir as notícias que repórteres e apresentadores estejam anunciando oralmente. apareciam mensagens enviadas via SMS por telespectadores querendo comentar qualquer coisa ou querendo, como no caso do “iniciador” de Caetano, conhecer outras pessoas - que ele finalmente terá uma primeira experiência homossexual, ainda que não tenha havido penetração.

Em uma segunda entrevista, realizada dez dias depois da primeira, Caetano me conta sobre o breve episódio de sua passagem pelo seminário de padres, que ocorrera há aproximadamente dez anos, no mesmo período em que ele começava a “descobrir” seus desejos homoeróticos. Ao lhe perguntar se havia algum tipo de contato sexual entre os internos, especialmente à noite nos albergues, onde muitos rapazes dormiam na mesma cama que outros, Caetano, mais uma vez, demonstra como a “homossexualidade” não estava em seu campo de possibilidades nem tampouco parecia estar no daqueles de mesma geração e origem geográfica:

- Eu estou aqui na cidade, se eu for pro Exército, eu terei que sair da cidade para o campo. Então vou levar essa prática. Normalmente, porque os homossexuais são pessoas que vivem mais nas cidades. É onde se sentem mais à vontade. Então, eu acredito que eu vou sair daqui e vou levar [o conhecimento sobre a prática] pro sítio onde eu vou. Pro Exército, por exemplo, pode ser [...] um sítio muito bem isolado. Porque eu sei mais... E acredito que não vi lá porque as pessoas eram todas do campo.[...] E eu também era do campo. Mas eu já sabia, mas não sabia o que era. O que que fazia. O que fazer. Então, [...] eu acredito que eles também não sabiam muito disso. Porque algumas vezes que eu acabei comentando que eu ouvi em Maputo que homens namoravam entre eles, fui... todos ficaram admirados. “Não é possível!” “Como é que um homem pode namorar com um outro homem?” “Não é possível!” “Mas eu ouvi no Maputo, quando eu fui no Maputo, eu estava a ouvir que é possível dois homens namorarem, duas mulheres namorarem.” Eles não sabiam também (entrevista Caetano, Maputo, 21 jun. 2018).

Interessado - como o telespectador mencionado na abertura deste artigo - pela hipótese do surgimento de um sujeito propriamente “homossexual” no sul de Moçambique apenas com o advindo da cidade, insisto na questão com Caetano:

- Você acha que é na cidade que as pessoas viram homossexuais?

- Não é exatamente virar homossexuais. (risos) Não estou a dizer virar homossexuais. Mas estou a dizer que, na cidade, as pessoas que são homossexuais, elas têm mais oportunidades de saber sobre a sua orientação sexual em relação ao campo. [...]. Na cidade, os homens e as mulheres são ensinados a viver conforme têm que viver...

- No campo...

- Apesar de que também na cidade isso acontece. Mas é muito mais no campo, que tem os pais, os tios, os avós como espelhos. Dificilmente ele vê outra pessoa como espelho. Se eu sair daqui da cidade, vai pro campo, chega lá começa a fazer tuas coisas, vão te olhar! [...] vão respeitar, mas não, não vão seguir a ti como exemplo. Pra eu estar lá, meu pai, meu avô e meu tio são meus modelos. Eles nasceram, cresceram, que tem que casar com mulher; é mulher, tem que fazer isto, tem que fazer isso e aquilo. E são assim. Mas na cidade há mais oportunidade de saber mais sobre as coisas (entrevista com Caetano, Maputo, 21 jun. 2018, grifos meus).

É que no campo - explica Caetano - até hoje seriam muito poucos os lares que possuiriam aparelhos de televisão ou acesso à internet. Muitas vezes, nem mesmo corrente elétrica. Isso dificultaria o acesso aos modos de viver da cidade, o que incluiria a homossexualidade. E mesmo nos poucos lares onde há luz elétrica, Caetano questiona retoricamente: “quantas vezes esses assuntos foram assuntos de abordagem mesmo das próprias televisões?” Ele mesmo responde a sua pergunta:

- Quando nós vemos na novela, “Epa, essas são manias de quê? Ah, são coisas de brancos, esses brancos que fazem. Não é coisa de negro”. Porque... Ouve-se muito mesmo que a homossexualidade foi uma coisa importada, uma coisa que vem dos brancos pros negros. Os negros vão fazendo por necessidade, por querer dinheiro, sei lá o quê. É exatamente isto que estou a tentar te dizer. Não que as pessoas na cidade se tornam homossexuais. Porque eu acredito que homossexualidade não é uma coisa que se adquira. Em termos de [por exemplo] eu nasci hétero, vou adquirir a homossexualidade, não faz sentido... (entrevista com Caetano, Maputo, 21 jun. 2018).

Fica evidente que Caetano e eu estamos operando nesse momento da conversa com diferentes concepções de homossexualidade. Enquanto eu estou pensando aqui em termos foucaultianos de um tipo de sujeito específico, que surge a partir de um enfoque identitário em sua prática sexual e seu afeto por pessoas do mesmo sexo, rivalizando com outras inúmeras identidades possíveis - geográfica e historicamente localizadas na humanidade - Caetano tem em mente pessoas com desejos homoeróticos (e que não necessariamente os traduziram em subjetivação homossexual, em meus termos) e as práticas homossexuais em si. É em razão disso que ele me diz que “homossexualidade” (o desejante homoerótico e as práticas homossexuais) são universais, ou seja, pode existir tanto na cidade como no campo, independente do “conhecimento”, porque é inato. Essa ideia de Caetano, para mim, é um axioma, o ponto de partida. Todavia, estou mais interessado, aqui, na segunda parte de sua fala, quando ele revela que a dimensão da “informação” e do “conhecimento” é fundamental para o surgimento da subjetivação homossexual à qual, hoje, ele e eu, de certa forma, também nos filiamos.

Ou seja, onde não há televisão, e nem sequer luz elétrica, como em muitos locais no interior de seu país, não há (ou há menos) informação sobre a possibilidade de subjetivação homossexual. Lá, no campo, os modelos são restritos ao ambiente doméstico e à coletividade próxima, que são “espelhos” para a formação da sua identidade de gênero (seja homem ou mulher). Como nesse ambiente doméstico é ainda raro encontrar homossexuais, ninguém pode nisso se ver espelhado; logo será muito difícil se tornar algo que não existe. Isso também é verdadeiro para o ambiente urbano que encontro na província de Maputo, apesar do aumento da visibilidade LGBT e da clara mudança no acesso a esse tema25 25 Para um exemplo dessa visibilização da agenda LBGT em Moçambique, ver Miguel (2020a). . Seja na cidade ou no campo, como trata Boellstorff (2005Boellstorff, Tom. (2005). The gay archipelago: sexuality and nation in Indonesia. Princeton: Princeton University Press., p.67,102) alhures, a subjetividade gay não é, em vários contextos culturais, transmitida por intermédio da família ou de outras instituições tradicionais. No sul de Moçambique, mesmo quando há um escape das lógicas de parentesco domésticas e a televisão revela outras formas de subjetivação e de existência da vida sexual alhures, elas são muitas das vezes taxadas, como diz Caetano, de “coisas de branco”, reforçando a ideia de exogenia da homossexualidade. Todavia, como abordei em minha tese de doutorado, a “homossexualidade” enquanto subjetivação se tornará cada vez mais visível em muitos lares do sul do país, a partir dos processos de sua institucionalização levados a cabo pelos vários atores sociais locais e estrangeiros; e as famílias de algum jeito terão, cada vez mais, que com ela lidar.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A pergunta do telespectador que dá título a este artigo coloca uma questão: por que a homossexualidade seria mais visível nas cidades do que no campo em Moçambique? Diversos autores ensaiaram respostas sociológicas para demonstrar, em outras sociedades, ou até mesmo em Moçambique (Simões de Araújo, 2021Simões de Araújo, Caio. (2021). “Queering the City”. The Politics of Intimacy, Sex and Liberation in Lourenço Marques (Mozambique) 1961-1982. Revue d’Histoire Contemporaine de l’Afrique, 2, p. 130-150.), como as cidades, diferente dos contextos rurais, propiciam ambientes de menor controle social sobre os indivíduos, o que acabaria por propiciar melhores condições de vivência de uma identidade homossexual, assim como de suas práticas eróticas (Fortier, 2001Fortier, Anne-Marie. (2001). “Coming home”. Queer migrations and multiple evocations of home. European Journal of Cultural Studies, 4/4, p. 405-424.; Green, Trindade, 2005Green, James. N. & Trindade, Ronaldo (eds.). (2005). Homossexualismo em São Paulo e outros escritos. São Paulo: Editora Unesp.; Rubin, 2018Rubin, Gayle. (2018). Estudando subculturas sexuais: escavando as etnografias das comunidades gays em contextos urbanos da América do Norte. Teoria e Cultura, 13/1, p. 247-288.). Este artigo, no entanto, demonstra que, desde a década de 1960, no sul de Moçambique, a cidade (e os brancos que a habitavam), mais do que oferecer um ambiente mais propício a práticas sexuais e identidades não hegemônicas, é o lócus original de uma nova subjetivação que não estava dada, nos mesmos termos, em alguns contextos rurais tradicionais em África (Bleys, 1995Bleys, Rudi C. (1995). The geography of perversion: male-tomale sexual behavior outside the West and ethnographic imagination, 1750-1918. New York: New York University Press.).

Isso tem efeitos teóricos importantes em face de outros cenários etnográficos. Ao contrário do que viveu Eribon (2008)Eribon, Didier. (2008). Reflexões sobre a questão gay. São Paulo: Companhia de Freud. na França e do que constata Fortier (2001)Fortier, Anne-Marie. (2001). “Coming home”. Queer migrations and multiple evocations of home. European Journal of Cultural Studies, 4/4, p. 405-424. alhures, os percursos rural-urbanos de meus interlocutores moçambicanos não produziram narrativas de uma “migração como emancipação” (Fortier, 2001Fortier, Anne-Marie. (2001). “Coming home”. Queer migrations and multiple evocations of home. European Journal of Cultural Studies, 4/4, p. 405-424.: 408), tampouco construíram a imagem de suas famílias heterossexuais como “lócus original de trauma” (Fortier, 2001Fortier, Anne-Marie. (2001). “Coming home”. Queer migrations and multiple evocations of home. European Journal of Cultural Studies, 4/4, p. 405-424.:409). Diferente do que Weston (1991)Weston, Kath. (1991). Families we choose. New York: Columbia University Press. percebeu nos Estados Unidos, os sujeitos moçambicanos com quem conversei não foram rejeitados por suas famílias consanguíneas e, por conseguinte, buscaram migrar para a cidade para viver de forma mais livre suas experiências homossexuais e homoafetivas. Mas foi na cidade que muitos deles descobriram que a homossexualidade era, antes de mais nada, uma subjetividade possível.

A partir do que meus interlocutores moçambicanos das classes populares e de origem banto me informam, concluo que mais do que viver um desejo erótico inato, as cidades propiciaram um novo léxico e uma nova semântica, nos quais foi possível significar seus desejos, corporificá-los e vivê-los. Assim, torna-se compreensível a observação do telespectador de que não haveria homossexuais nos distritos, porque talvez de fato, em muitos deles, os homossexuais ainda não existam - como demonstrado nos vários casos etnográficos abordados. Portanto, ainda que o desejo erótico preceda e até mesmo prescinda da linguagem, ele, mesmo inato, só se poderá constituir como identidade e criar sujeitos políticos quando uma certa episteme estiver disposta em determinado momento e local da experiência humana.

NOTAS

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    Agradeço ao Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) por ter apoiado financeiramente essa pesquisa.
  • 1
    Boellstorff (2005Boellstorff, Tom. (2005). The gay archipelago: sexuality and nation in Indonesia. Princeton: Princeton University Press.: 173) afirma que “o ponto crucial é que a homossexualidade (como qualquer outra lógica cultural) se globaliza (ou se move) não como um discurso monolítico mas como uma multiplicidade de crenças e práticas, elementos que podem se mover independentemente entre si ou não se mover de forma nenhuma”. Por exemplo, na Indonésia, toda a ideia confessional embutida na “epistemologia do armário” (Sedgwick, 1990Sedgwick, Eve Kosofsky. (1990). Epistemology of the closet. Berkeley: University of California Press.) não teria tido ressonância entre os nativos “gays” e “lesbi”.
  • 2
    Basicamente trata-se de perspectivas afro-centradas e cristãs-conservadoras, que, em oposição aos regimes ocidentais, afirmam a inexistência autóctone da homossexualidade no continente africano. A questão importa aqui porque foi no campo que diversas lideranças africanas investiram suas esperanças de reencontro com a “tradição” para fins de descolonização política e epistêmica. Os discursos sobre a exogenia da homossexualidade em África e os debates teóricos que eles têm suscitado podem ser acessados em Mott, (2005) e Kaoma (2009). Para uma síntese exaustiva da questão, ver Miguel (2019)Miguel, Francisco. (2019). Maríyarapáxjis: silêncio, exogenia e tolerância nos processos de institucionalização das homossexualidades masculinas no sul de Moçambique. Tese de Doutorado. PPGAS/Universidade de Brasília..
  • 3
    Em outro trabalho (Miguel, no preloMiguel, Francisco. (no prelo). Maríyarapáxjis: Língua, gênero e homossexualidade em Moçambique. Revista Mana.) analiso historicamente os léxicos changana e português moçambicano que fazem parte do campo semântico da homossexualidade. Minhas conclusões apontam que no acervo lexical changana, o neologismo maríyarapáxji é apropriado como forma de acusar afeminação quando dirigida a um homem, mas que nas últimas décadas passou a significar também homossexual. Além disso, demonstro como o acervo lexical em língua portuguesa parece atualmente preferível não apenas no processo de institucionalização da homossexualidade promovido pela Lambda, mas como meus próprios interlocutores machangana preferem acionar as categorias estrangeiras para se referir à sua sexualidade e à dos outros. Por último, demonstro como os falantes de changana, no discurso cotidiano, tendem a usar termos mais descritivos, associando os agentes não a termos identitários-sexuais, mas ao gênero que pertencem ou deveriam pertencer.
  • 4
    Os dados dessa seção são derivados de minha tese doutoral (Miguel, 2019Miguel, Francisco. (2019). Maríyarapáxjis: silêncio, exogenia e tolerância nos processos de institucionalização das homossexualidades masculinas no sul de Moçambique. Tese de Doutorado. PPGAS/Universidade de Brasília.) e foram trazidos com mais detalhes em outros dois artigos. Nesses artigos, utilizei este mesmo caso para desenvolver, respectivamente, uma reflexão sobre a atuação das organizações locais e internacionais na institucionalização da homossexualidade em Moçambique (Miguel, 2020bMiguel, Francisco. (2020b). International cooperation, homosexuality, and Aids in Mozambique. Contexto Internacional: Journal of Global Connections, 42/3, p. 647-664. Disponível em: http://doi.org/10.1590/S0102-8529.2019420300006
    http://doi.org/10.1590/S0102-8529.201942...
    ) e outra sobre os usos das línguas changana e portuguesa nesse processo (Miguel, no preloMiguel, Francisco. (no prelo). Maríyarapáxjis: Língua, gênero e homossexualidade em Moçambique. Revista Mana.).
  • 5
    O combate ao HIV/Aids é hoje o objetivo principal da maior parte dos projetos financiados por instituições estrangeiras, cuja execução é responsabilidade da Lambda. Em outro trabalho (Miguel, 2020bMiguel, Francisco. (2020b). International cooperation, homosexuality, and Aids in Mozambique. Contexto Internacional: Journal of Global Connections, 42/3, p. 647-664. Disponível em: http://doi.org/10.1590/S0102-8529.2019420300006
    http://doi.org/10.1590/S0102-8529.201942...
    ), trato de diversos aspectos que atravessam o tema.
  • 6
    A noção de “pessoa LGBT” é um jargão comum no vocabulário de meus interlocutores. Neste artigo, irei utilizar “LGBT” nesse sentido de pessoa, para qualificar um tipo de parentesco classificatório, para adjetivar o movimento/organização e os direitos conquistados por essa população. Utilizarei “gay” quando assim falado nas entrevistas e para me referir tanto às subjetividades indonésias apontadas por um certo autor quanto tratar da chamada cura gay. Por fim, a palavra “homossexualidade” e suas derivações aparecerão neste artigo como um modo de criar e classificar sujeitos, dotada de uma história e de uma geografia próprias. A categoria aparecerá também com dois outros sentidos: enquanto subjetivação do eu, identidade já autoatribuída, domesticada e reivindicada pelos próprios sujeitos moçambicanos que nela se veem contemplados ou que, sobre ela, querem disputar significados e que, além disso, têm sua própria história biográfica e subjetiva de adesão/repulsão; enquanto práticas sexuais (ou “homoeróticas”), vistas pelo observador externo, que visam contemplar um desejo erótico - mas nem sempre erótico por todas as partes envolvidas (pois também podem existir, na prática, motivações materiais ou ser de natureza compulsória e violenta para um ou alguns dos parceiros). Assim, “homossexualidade” ganhará seu sentido específico no contexto em que ela será aqui e ali trazida ao longo do texto. Por fim, uso-a para conseguir uma estabilização mínima - necessária ao registro escrito - de conceitos e ideias polifônicos e em permanente fluxo histórico e biográfico.
  • 7
    Obviamente que o contrário também pode ser verdadeiro.
  • 8
    Em Moçambique, muitos LGBT são lidos pela chave dos inférteis e/ou celibatários (Chipenembe, 2018Chipenembe, Maria Judite Mario. (2018). Sexual rights activism in Mozambique. A qualitative case study of civil society organisations and experiences of “lesbian, bisexual and transgender persons. Thesis. Faculty of Arts and Philosophy/Universiteit Gent.). Em changana, ngwendzá (Miguel, no preloMiguel, Francisco. (no prelo). Maríyarapáxjis: Língua, gênero e homossexualidade em Moçambique. Revista Mana.).
  • 9
    Sobre a atual dimensão espiritual da homossexualidade, as abordagens religiosas e a “cura gay” em Moçambique, ver Miguel (2019)Miguel, Francisco. (2019). Maríyarapáxjis: silêncio, exogenia e tolerância nos processos de institucionalização das homossexualidades masculinas no sul de Moçambique. Tese de Doutorado. PPGAS/Universidade de Brasília..
  • 10
    Isaías é o nome fictício que atribuí a meu principal assistente de campo e amigo. Pessoa fundamental para o que aprendi sobre a vida homossexual masculina contemporânea em Maputo e sobre o movimento LGBT moçambicano.
  • 11
    Segundo Aboim (2008Aboim, Sofia. (2008). Masculinidades na encruzilhada: hegemonia, dominação e hibridismo em Maputo. Análise Social, 43/187, p. 273-295.: 285), “O termo assimilado aplicava- se aos africanos negros e mestiços que, segundo critérios das autoridades coloniais, eram considerados como tendo absorvido com sucesso (assimilado) a língua e a cultura portuguesas. Em princípio, aos indivíduos com este estatuto legal eram concedidos privilégios e obrigações dos cidadãos portugueses, o que lhes permitia escapar aos fardos impostos à maioria dos africanos (os indígenas). O estatuto de assimilado foi formalmente abolido em 1961”.
  • 12
    Se o uso do termo “sobrinho” reflete um modo particular do mundo lusófono de tratar concubinos masculinos, mas que encontra semelhanças com outros parentescos LGBT (Weston, 1991Weston, Kath. (1991). Families we choose. New York: Columbia University Press.), a centralidade da ideia de “amigo” parece ter ressonância não apenas nas homossociabilidades europeias e norte-americanas (Foucault, 1981Foucault, Michel. (1981). De l’amitié comme mode de vie. Gai Pied, 25, p. 38-39. Trad. Wanderson Flor do Nascimento. (Entrevista de Michel Foucault a R. de Ceccaty, J. Danet e J. le Bitoux).; Weston, 1991Weston, Kath. (1991). Families we choose. New York: Columbia University Press.) quanto na tradição banto sul-moçambicana (Webster, 2009Webster, David J. (2009). A Sociedade Chope: indivíduo e aliança no sul de Moçambique (1969-1976). Lisboa: Imprensa de Ciências Sociais.).
  • 13
    Para mais detalhes sobre uma história queer de Lourenço Marques, ver a interessante pesquisa de Simões de Araújo (2021)Simões de Araújo, Caio. (2021). “Queering the City”. The Politics of Intimacy, Sex and Liberation in Lourenço Marques (Mozambique) 1961-1982. Revue d’Histoire Contemporaine de l’Afrique, 2, p. 130-150. e a entrevista realizada por Costa Santos (2017)Costa Santos, Gustavo G. (2017). “Nos bares da Rua Araújo era fácil engatar militares, sobretudo marinheiros”: vivências e sociabilidades homoeróticas em Moçambique colonial. Estudos de Sociologia, 2/23, p. 479-492..
  • 14
    Paulino morava com a mãe e com alguns tios maternos. Mas, aqui, não se deve à matrilocalidade o pressuposto de a mãe e os tios maternos decidirem a questão. Como se trata de uma sociedade patrilinear, que possui a instituição do lobolo (bridewealth), provavelmente o pai de Paulino, na ocasião, não teria pagado o lobolo e, portanto, não teria os direitos sobre esse filho, que ainda pertencia à linhagem materna.
  • 15
    Em sociedades gerontocráticas como as do bantos, decisões familiares como essa frequentemente só são tomadas depois de se ouvir a opinião dos anciãos da família. Razão pela qual faz sentido que a pessoa mais sênior da família seja quem decida certos assuntos.
  • 16
    Em linhas gerais, em História da sexualidade, Foucault (1988)Foucault, Michel. (1988). História da sexualidade 1. A vontade de saber. 19 ed. Rio de Janeiro: Graal. faz uma divisão heurística entre um “dispositivo da aliança” e uma “ars erotica”, ou seja, da sexualidade iniciatória e como transmissão do segredo, característica das sociedades pré-burguesas por um lado; e, por outro, um “dispositivo da sexualidade” e uma “scientia sexualis”, ou seja, prevalência da sexualidade no discurso, na confissão e na ciência, que surgem no século XVII com o advindo do capitalismo.
  • 17
    Vurhándzá hí rimbéwu” (aqueles que gostam da mesma semente/gênero) é uma expressão do changana, presente apenas a partir da última edição do Dicionário portuguêschangana, de Sitoe (2017)Sitoe, Bento. (2017). Dicionário português-changana. Maputo: Texto Editores., que, apesar de eu não ter encontrado ressonância entre os falantes (eles tampouco reconheciam sua tradução como “homossexual”), escolho aqui com fins estéticos porque supostamente descreve uma forma genérica e poética para aqueles que dirigem seu desejo sexual e afetivo a pessoas do mesmo sexo.
  • 18
    “Eu próprio não sei como me detalhar porque... não aprendi... ainda não tive aquilo de aprender, saber que isto é isto, aquilo é aquilo. Eu só tenho desejo, às vezes eu encontro alguém, ficamos. Só. Ainda não tenho aquela experiência de “assim, que eu sinto assim, é porque eu sou assim”. Ainda não tenho. Porque quem me ajudou... [...] Que foi esse tal senhor que eu me... pela primeira vez. Então eu só parei ali. Sim. Eu parei ali” (entrevista com Amarildo, Matola, 23 ago. 2018).
  • 19
    Tanto em São Paulo (Green, Trindade, 2005Green, James. N. & Trindade, Ronaldo (eds.). (2005). Homossexualismo em São Paulo e outros escritos. São Paulo: Editora Unesp.) quanto no Rio de Janeiro, com o Grupo Ok, já há no final da década de 1950, uma sociabilidade gay e um protomovimento LGBT bastante parecidos com o que existia restrito aos brancos de Lourenço Marques na mesma época (Melo, 1981Melo, Guilherme de. (1981) A sombra dos dias. Lisboa: Livraria Bertrand.).
  • 20
    Trata-se de duas famosas drag queens moçambicanas.
  • 21
    Termo que em Moçambique significa roça, pequena unidade de produção agrícola.
  • 22
    Assim como em relação aos fops ingleses da primeira metade do século XVII, um termo pejorativo para homens aristocratas que eram vistos por seus contemporâneos como afeminados, mas sobre quem se presumia serem sexualmente interessados por mulheres (Staves apud Trumbach, 1990Trumbach, Randolph. (1990). The birth of The Queen: sodomy and the emergence of gender equality in modern culture, 1600-1750. In: Duberman, Martin B.; Vicinus, Martha & Chauncey Jr, George (eds.). Hidden from history: reclaiming the gay and lesbian past. New York: Penguin Books, p. 129-140.).
  • 23
    Junod (apud Thomaz, Gajanigo, 2009Thomaz, Omar & Gajanigo, Paulo. (2009). Usos e costumes dos Bantu. (Coleção Clássicos em Antropologia).) em sua clássica etnografia, realizada na virada do século XIX para o XX, conta um episódio de discussão e zombaria entre garotos de Mafumo contra os da Matola, no qual a acusação de afeminação como algo pejorativo parece já presente, mas nela não haveria necessariamente a conotação homossexual. Tal questão é mais bem analisada em Miguel (2019)Miguel, Francisco. (2019). Maríyarapáxjis: silêncio, exogenia e tolerância nos processos de institucionalização das homossexualidades masculinas no sul de Moçambique. Tese de Doutorado. PPGAS/Universidade de Brasília..
  • 24
    GC é a sigla de “gerador de caracteres”. Trata-se daquela faixa inferior da tela, comum a muitos programas de televisão, em que mensagens rolam, geralmente para resumir as notícias que repórteres e apresentadores estejam anunciando oralmente.
  • 25
    Para um exemplo dessa visibilização da agenda LBGT em Moçambique, ver Miguel (2020a)Miguel, Francisco. (2020a). Por uma política com “respeito”: a institucionalização da homossexualidade no programa radiofônico moçambicano Café Púrpura. Caderno de Estudos Africanos, 40, p. 141-166..

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    16 Maio 2022
  • Data do Fascículo
    Sep-Dec 2021

Histórico

  • Recebido
    29 Fev 2020
  • Revisado
    03 Set 2020
  • Aceito
    16 Set 2020
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